EVELYM GIOVANA LOPES DE OLIVEIRA DA SILVA [1]
JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL [2]
(Coautores)
RESUMO: O estudo tem por objeto analisar a (im) possibilidade da realização de Audiência de Custódia por videoconferência. Tal medida está prevista no Pacto São José da Costa Rica e pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, e no ordenamento jurídico brasileiro, pela Resolução n° 213 do Conselho Nacional de Justiça. Discorrendo sobre as posições de doutrinadores acerca do tema proposto frente aos princípios constitucionais e analisando os julgados dos tribunais superiores. Sendo relevante na medida em que contribui para a compreensão do modo em que é utilizada a audiência de custódia frente aos princípios constitucionais. Para tanto, utilizou-se metodologia dedutiva que será discutida ao longo do artigo, conceitos e posicionamentos doutrinários e jurisprudências acerca dos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, da audiência de custódia e da videoconferência.
Palavras-chave: Audiência de Custódia; Videoconferência; Pacto São José da Costa Rica; Processo Penal.
ABSTRACT: The purpose of the study is to analyze the (im) possibility of holding a Custody Hearing by videoconference. This measure is provided for in the San José Pact of Costa Rica and the International Covenant on Civil and Political Rights, and in the Brazilian legal system, by Resolution No. 213 of the National Council of Justice. Discussing the positions of doctrines on the proposed theme in face of constitutional principles and analyzing the judgments of the higher courts. Being relevant to the extent that it contributes to the understanding of the way in which the custody hearing is used in face of constitutional principles. For that, we used deductive methodology that will be discussed throughout the article, concepts and doctrinal positions and jurisprudence regarding international treaties that deal with human rights, custody hearing and videoconference.
Keywords: Custody Hearing; Video conference; San José Pact of Costa Rica; Criminal proceedings.
Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. Processo penal humanitário e sua aplicabilidade em conformidade com a constituição federal. 2.1 Considerações acerca do estado democrático de direito e o processo penal. 2.2. Instrumentalidade constitucional do processo penal e a necessidade da dupla conformidade. 3. Pacto de São José da Costa Rica e a implementação da audiência de custódia no Brasil. 3.1. Características e previsão normativa da audiência de custódia. 3.2. Princípios que regem o Pacto São José da Costa Rica. 4. A (in)compatibilidade da audiência de custódia por videoconferência. 4.1. A gênesis da videoconferência no sistema processual penal. 4.2. Entrelaço entre a videoconferência e a custódia. 4.3. O pacote anticrime e a audiência de custódia por videoconferência. 4.4. Entendimento dos tribunais superiores acerca do tema. 4.4.1. Conflito de competência negativo. 4.4.2. Medida cautelar suspende a realização de audiências de custódias por videoconferências. 5. CONCLUSÃO. 6. REFERÊNCIAS.
1.INTRODUÇÃO
Um dos maiores problemas acerca da condução do preso é o cumprimento das garantias constitucionais que este possui. O Processo Penal é marcado por raízes autoritárias, que por ventura acaba atropelando direitos fundamentais da pessoa. Nessa vereda, surgiu a audiência de custódia, cuja medida se pauta em controle imediato de legalidade e da necessidade da prisão (PAIVA, 2018).
A audiência de custódia está prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos/Pacto São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário desde 1992. Uma vez que o tratado internacional em comento versa sobre direitos humanos, logo, possui caráter supralegal. (MAZZIOLI, 2018).
Nesse sentido, é levantado o seguinte questionamento: a realização de audiência de custódia por videoconferência é (in)compatível com o Pacto São José da Costa Rica e a Constituição Federal de 1988? Neste presente artigo, pretende-se, então, analisar através de princípios constitucionais, tratados internacionais, código de processo penal e doutrinadores, sobre a (im)possibilidade de ser realizado tal procedimento através de videoconferência.
O tema é de indiscutível relevância no âmbito jurídico e social em razão da grande incidência de audiências de custódia e a busca por processo penal humanitário, bem como a aplicação dos princípios constitucionais. Para tanto, utilizou-se a metodologia dedutiva que será discutida ao longo do artigo, conceitos e posicionamentos doutrinários e jurisprudências acerca dos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, da audiência de custódia e da videoconferência.
É interessante trazer à baila, em primeiro modo, como fora abordada a aplicabilidade do processo penal em conformidade com a Constituição Federal, salientando-se a interpretação adequada do Código de Processo Penal acerca do Estado Democrático de Direito, haja vista que, o processo penal, deve guardar a Constituição e os Tratados Internacionais que versem sobre Direitos Humanos (LOPES JR, 2017).
Logo após, é importante ressaltar o conceito e características da audiência de custódia, que dentre elas encontram-se o ajuste do processo penal brasileiro aos tratados internacionais, a prevenção à tortura policial e prevenção de prisões ilegais, preservando assim, o caráter antropológico e humanitário da pessoa. Por conseguinte, será abordada a inauguração da medida por meio do Pacto São José da Costa Rica e a sua regulamentação através da Resolução n.º 213 do Conselho Nacional de Justiça.
Por fim, há uma análise acerca da implantação da videoconferência no processo penal, o Pacote Anticrime no que tange a audiência de custódia por equipamento audiovisual, já que foi alvo de discussão quando era Projeto de Lei. Outrossim, será feita uma abordagem sobre os julgados dos tribunais superiores acerca da temática, posicionamento do Superior Tribunal de Justiça e do Conselho Nacional de Justiça.
2.PROCESSO PENAL HUMANITÁRIO E SUA APLICABILIDADE EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL
2.1 Considerações acerca do Estado Democrático de Direito e o Processo Penal
No Estado Democrático de Direito, é inegável a eficácia dos direitos fundamentais ante as adversidades presentes no país. É um desafio constante que o direito processual penal vem combatendo, haja vista, que, infelizmente, alguns juristas fecham os olhos para normas constitucionais e tratados internacionais, contidos em nosso ordenamento jurídico.
Logo, a atividade legiferante, mormente no campo do direito processual penal, está condicionada, ante a supremacia das normas constitucionais e dos tratados internacionais de direitos humanos, ao respeito do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, entre outros, sob pena de manifestar inconstitucionalidade. Seguindo esse contexto, afirma Lopes Jr (2017):
Somente a partir da consciência de que a Constituição deve efetivamente constituir (logo, consciência de que ela constitui a ação), é que se pode compreender que o fundamento legitimante da existência do processo penal democrático se dá por meio da sua instrumentalidade constitucional. Significa dizer que o processo penal contemporâneo somente se legitima à medida que se democratizar e for devidamente constituído a partir da Constituição. (LOPES JR, 2017, p. 54).
Desse modo, no campo do processo penal, é mais compassivo que se atente a esse comando normativo, pois é aqui que se têm as invasões mais atuantes do Estado nos direitos fundamentais. Logo, é inegável que se tente barrar o jus puniendi estatal, servindo o processo penal como instrumento de limitação da atividade do Estado.
O que se busca evitar é justamente a teoria da crise das fontes, cuja lei ordinária acaba valendo mais que a Constituição. Conforme assevera Lopes Jr (2017) “o processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena” (LOPES JR, 2017, p. 60), mas não o pode ser feito sem um olhar minucioso para a nossa Carta Magna de 1988.
2.2 Instrumentalidade constitucional do Processo Penal e a necessidade da Dupla Conformidade
Ainda predomina no Brasil e no estrangeiro[3] a equivocada concepção de processo como relação jurídica, na esteira da doutrina de Bülow. Ocorre que, o senso comum teórico ainda não se deu conta de que essa concepção de processo parte de uma equivocada noção de igualdade e segurança[4].
Com razão, adverte Lopes Jr (2012, p. 101), “foi GOLDSCHMIDT que evidenciou o caráter dinâmico do processo, ao transformar a certeza própria do direito material na incerteza característica da atividade processual”.
A partir de Beck (2011) é inegável dizer que vivemos numa sociedade de risco, onde os riscos estão em tudo e em todos os lugares, evidenciando que estamos inseridos num Estado Insegurança.
Portanto, é óbvio, que o processo penal não está fora desse contexto, ao contrário, também está inserido na mais completa epistemologia da incerteza, já que a sentença judicial nunca pode ser prevista com segurança, coexistindo em igualdade de condições a possibilidade de serem prolatadas no processo, sentenças justas e injustas (LOPES JR, 2012).
Para Calamandrei (1999) “o êxito depende, por conseguinte, da interferência destas psicologias individuais e da força de convicção com que as razões feitas pelo demandante consigam fazer suscitar ressonâncias e simpatias na consciência do julgador” (CALAMANDREI, 1999, p. 223).
No entanto, adverte Lopes Jr (2012) que “o árbitro (juiz) não é livre para dar razão a quem lhe dê vontade, pois se encontra atrelado à pequena história retratada pela prova contida nos autos” (LOPES JR, 2012, p.109). Preleciona ainda o citado autor que, o juiz “está obrigado a dar razão àquele que melhor consiga, através da utilização de meios técnicos apropriados, convencê-lo. Por conseguinte, as habilidades técnicas são cruciais para fazer valer o direito, considerando sempre o risco inerente à atividade processual” (LOPES JR, 2012, p. 109).
Dessa maneira, destaca Calamandrei (1999): “a fortunada coincidência é a que se verifica quando entre dois litigantes o mais justo seja também o mais habilidoso”, sendo que para ele o processo “vem a ser nada mais que um jogo no qual há que vencer” (CALAMANDREI, 1999, p. 224).
Em assim sendo, a concepção que melhor retrata essa realidade do processo, que está inserido na epistemologia da incerteza, por evidente, é aquela que foi construída por Goldschmidt (1935), ou seja, a que conceitua o processo enquanto situação jurídica, retratando assim a insegurança processual, o seu estado de guerra e a sua dinamicidade, ao contrário da concepção de processo como relação jurídica, que está ancorada num equivocado juízo de estática.
Assim, o processo penal nada mais é do que uma guerra[5], na qual alguém há de vencer. E, vencerá, por óbvio, aquele que melhor aproveitar as chances processuais[6], conseguindo, através da produção das provas[7], a captura psíquica do juiz[8].
Por conseguinte, se o processo penal é uma guerra, um jogo, que não deve ter por missão a busca desenfreada do mito “verdade real”, já que a verdade no processo penal não é achada, mas sim construída analogicamente através dos rastros da passeidade (KHALED JR, 2013), mister se faz compreendê-lo pelo viés da sua instrumentalidade constitucional.
Aliás, Goldschmidt (1935), já perguntava “Por que supõe a imposição da pena a existência de um processo?” E, ainda: “Se o ius puniendi corresponde ao Estado, que tem o poder soberano sobre seus súditos, que acusa e também julga, por meio de distintos órgãos: por que necessita que prove seu direito em um processo?” (GOLDSCHMIDT, 1935, p.7).
Em resposta ao presente questionamento, Lopes Jr (2012) ensina que:
O processo não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (Direito Penal), senão que desempenha o papel limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal). (LOPES JR, 2012, p. 72).
Da mesma forma, Khaled Jr (2013) afirma que:
O processo deve ser um limite ao poder; se não fosse esse o seu sentido, sequer precisaria existir. Trata-se de um meio de redução da complexidade que condiciona a manifestação do poder punitivo a um conjunto de requisitos, exigindo que o processo seja o caminho necessário – o único possível – para a imposição da pena. (KHALED JR, 2013, p. 142)
Realmente, não se pode negar essa vertente instrumental do processo penal, como ferramenta de contenção do poder punitivo, pois de acordo com Khaled Jr (2014, p. 1) “Os brasileiros são vítimas de um deliberado processo de invenção histórica”, o que faz com que se acredite “que somos um povo ordeiro e pacífico, que não conhece conflitos e vive alegremente na democracia racial que prospera no Brasil”, encobrindo, assim, “o autoritarismo nosso de cada dia” e reforçando a crença na bondade do poder punitivo.
E, essa crença na regularidade dos atos de poder, sobretudo do poder punitivo, segundo Carvalho (2013, p. 164):
Define postura disforme dos sujeitos processuais, estabelecendo situação de crise através da ampliação da distância entre práticas penais e a expectativa democrática da atividade jurisdicional. O reflexo concreto é violação explícita ou inversão do sentido garantista de interpretação e de aplicação das normas de direito de processo penal, revigorando práticas autoritárias. (CARVALHO, 2013, p. 164).
Aliás, Ferrajoli (2009) também ressalta que essa confiança ilimitada na bondade do poder e na sua capacidade de atingir a verdade retratam concepções inquisitivas, sendo que o estilo acusatório é fulcrado na desconfiança ilimitada do poder como fonte autônoma de verdade. Não é por outra razão que Carvalho (2013) afirma que “pressupor a tendência constante das agências de punitividade em violar os direitos fundamentais talvez seja a única forma de criar blindagem prático-teórica contra as violações mesmas” (CARVALHO, 2013, p. 164).
Logo, partindo-se das premissas de que o exercício do poder punitivo e de que as práticas penais são violentas, o garantismo de Ferrajoli (2009) é construído a partir do princípio da irregularidade dos atos dos poderes, ganhando relevo, nesse contexto, a função do processo penal como instrumento de contenção dos abusos e arbítrios do poder punitivo. Caso não se entenda dessa forma, ficar-se-á, segundo Lopes Jr (2016), “sempre na circularidade ingênua de que, acreditando na ‘bondade dos bons’ (AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO), presume a legitimidade de todo e qualquer ato de poder” (LOPES JR, 2016, p. 423).
Não é por outra razão que Morais da Rosa (2011) declara que:
Isto porque, diante da complexidade contemporânea, a legitimação do Estado Democrático de Direito deve suplantar a mera democracia formal, para alcançar a democracia material, na qual os Direitos Fundamentais devem ser respeitados, efetivados e garantidos, sob pena da deslegitimação paulatina das instituições estatais. Dito de outra forma, em face da supremacia Constitucional dos direitos positivados no corpo de Constituições rígidas ou nelas referidos (CR, art. 5º, §2º), como a brasileira de 1988, e do princípio da legalidade, a que todos os poderes estão submetidos, surge a necessidade de garantir esses direitos a todos os indivíduos, principalmente os processados criminalmente, pela peculiar situação que ocupam (mais fracos ante o poder estatal). O garantismo jurídico baseia-se, portanto, nos direitos individuais – vinculados à tradição iluminista – com o escopo de articular mecanismos capazes de limitar o poder do Estado soberano, sofrendo, como curial, as influências dos acontecimentos históricos, especificamente a transformação da sociedade relativamente à tutela dos direitos sociais e negativos de liberdade, bem assim do levante neoliberal que, na esfera do Direito Público apresenta perspectiva de exclusão social e mitigação das garantias individuais, tendo como reação a crítica contundente de parcela considerável dos juristas. (MORAIS DA ROSA, 2011, p. 5).
Portanto, é iniludível que o processo penal, como guerra ou jogo, tendo por base o paradigma constitucional, tem por missão assegurar o respeito às regras do jogo, isto é, o flair play processual e não a arcaica e inatingível busca desenfreada da “verdade real”.
É óbvia a imanente relação complementar que existe entre crime, pena e processo, pois não existe crime sem pena, bem como pena sem delito e processo. Claro que não haveria também “processo penal senão para determinar o crime e impor uma pena” (LOPES JR, 2013, p. 32). Assim, “o processo, como instituição estatal, é a única estrutura que se reconhece como legítima para a imposição da pena” (LOPES JR, 2013, p. 34).
No entanto, conforme dito, segundo Lopes Jr (2012) “não se pode mais admitir que o processo penal sirva para ‘fazer crer’ – às pessoas – que ele determina a ‘verdade’ dos fatos” (LOPES JR, 2012, p. 575).Desta feita, em não sendo a sentença fonte reveladora da “verdade divina”, o que seria ela? Para Lopes Jr (2012), a sentença é:
Um ato de convencimento formado em contraditório e a partir do respeito às regras do devido processo. Se isso coincidir com a “verdade”, muito bem. Importa é considerar que a “verdade” é contingencial, e não fundante. O juiz, na sentença, constrói – pela via do contraditório – a “sua” história do delito, elegendo os significados que lhe parecem válidos, dando uma demonstração inequívoca de crença. O resultado final nem sempre é (e não precisa ser) a “verdade”, mas sim o resultado do seu convencimento – construído nos limites do contraditório e do devido processo penal. (LOPES JR, 2012, p. 575).
Morais da Rosa e Khaled Jr (2014) confessam que “decidir é uma tarefa complexa”, pois o cérebro “por seus sistemas S1 (implícito, rápido, automático, emotivo e sem esforço) e S2 (consciente, demorado, racional, desgastante e lógico), busca reduzir a complexidade da decisão” (MORAIS DA ROSA; KHALED JR, 2014, p. 7). Por isso, a psicologia cognitiva pode ser uma aliada, já que “acolhe a racionalidade da decisão, todavia, mitigada, ou seja, a racionalidade depende do estoque de informações, a maneira como foi processada e o impacto que isso representa diante dos fins da decisão”. Prelecionam ainda (2014, p. 13) que “nosso sistema processual penal ainda é animado por uma doentia ambição de verdade, que se recusa a arrefecer” e “Em nome dessa insaciável busca, permanece imperando um processo penal do inimigo, cujo objetivo consiste na obtenção da condenação a qualquer custo” (MORAIS DA ROSA; KHALED JR, 2014, p. 7).
Dessa forma, cristalino que, num processo democrático, como a sentença depende do “estoque de informações” e da “maneira como foi processada”, outro caminho não há senão o convencimento do julgador basear-se em atos de prova, colhidos sob o crivo do devido processo legal[9]. Aliás, como assevera Streck (2012), “discutir as condições de possibilidade da decisão judicial é, antes de tudo, uma questão de democracia”. (STRECK, 2012. p. 93).
Não por outra razão, Cunha Martins (2001) proclama que o ponto cego do direito é o evidente, já que ele seda os sentidos, cega, alucina, ao não se permitir ver, por ser um “simulacro de autorreferencialidade” – basta por si só. Para Lopes Jr (2016), “Erroneamente, somos levados a crer que o ‘evidente’ dispensa prova, afinal, é evidente! E aqui está o perigo: o desamor do contraditório” (LOPES JR, 2016, p. 425).
Assim sendo, o processo penal, à luz do exposto, deve ser um instrumento de correção do caráter alucinatório do evidente (LOPES JR, 2016), instaurando o contraditório e submetendo tudo às regras do jogo, democraticamente previstas na Constituição Federal.
Entretanto, não podemos olvidar que o Código de Processo Penal, promulgado (1941) em pleno Estado Novo de Getúlio Vargas e inspirado no Código de Processo Penal Italiano da década 30 (Codice Rocco), possui um nítido viés fascista, policialesco e de inegável matriz autoritária. Por conseguinte, é indefectível o choque ideológico entre o Código de Processo Penal de índole ditatorial e a Constituição Federal de 1988 democrática.
Dessarte, imperioso se torna fazer uma filtragem constitucional quando da aplicação das regras do Código de Processo Penal, a fim de se verificar se tal regra foi ou não recepcionada pela atual ordem constitucional.
Nesse sentido, inclusive, informa Coutinho (2010):
Há, porém, nisso tudo, que se entende o status quo e perceber ser a constitucionalização do Código de Processo Penal e da legislação processual penal um dir-se-ia, em sentido atécnico – processo; e não mero ato. (...) Aqui, como parece elementar, ao Poder Judiciário cabe, tendo ciência da situação – empurrando aqueles que a ignoram -, passar aos – ou paulatinamente ir fazendo-os – imprescindíveis ajustes constitucionais, por sinal como se deu com várias Cortes Constitucionais europeias no último pós-guerra mundial, a começar pela italiana, a qual foi, passo a passo, declarando a inconstitucionalidade do CPPI” (COUTINHO, 2010, p. 8 e 9).
Por relevância, na esteira do que foi dito, não se pode admitir a aplicação das regras do Código de Processo Penal sem antes realizar um sério controle de constitucionalidade.Todavia, não basta apenas verificar a conformidade dos dispositivos da lei adjetiva penal com as normas constitucionais, pois como adverte Coutinho (2010) “é preciso respeitar o Pacto de São José da Costa Rica (Decreto n. 678/92) porque, sendo justo à cidadania, mas também legal e legítimo, não há por que ser ignorado, como insistentemente, estão a insistir, mormente os órgãos jurisdicionais (...)”. (COUTINHO, 2010, p. 18 e 19).
É de conhecimento de todos que, até a Segunda Guerra Mundial, a grande discussão no campo do Direito girava em torno da divisão cartesiana de Direitos Naturais versus Direitos Positivos. No entanto, após as atrocidades praticadas contra a humanidade no século passado e a respectiva incorporação dos chamados até então “Direitos Naturais” nas Constituições Modernas e nos mais variados Tratados Internacionais, hoje, a discussão do Neoconstitucionalismo, pauta-se na efetivação desses direitos.
Nessa conjuntura, Norberto Bobbio (1988)instrui que os chamados direitos humanos surgem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações de Direitos) para, ao fim, encontrar a plena efetivação como direitos positivos universais, afirmando, ainda que, atualmente, a maior cizânia em torno dos direitos humanos “não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los” (BOBBIO, 1988, p. 48).
A partir de Oliveira (2016), pode-se inferir que:
“A proteção dos direitos humanos é a principal ferramenta na defesa e promoção das liberdades públicas e das condições materiais primordiais para uma vida digna. Os poderes Executivo e Legislativo são sempre solicitados a atuar consoante esses direitos. No entanto, é o Poder Judiciário o “último guardião de tais direitos, e a esperança de proteção em relação a eles”, e para isso revela-se indispensável buscar a efetividade de sua tutela jurisdicional” (OLIVEIRA, 2016, p. 144).
Dentro desse contexto, o sistema interamericano de proteção dos Direitos Humanos partiu da Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), de 1948, ou Carta de Bogotá, e da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (DADH), de 1948, culminando com a Convenção Americana dos Direitos Humanos (CADH), também chamada de Pacto de São José da Costa Rica, de 1969. O Brasil ratificou a CADH através do Decreto Legislativo n. 27, de 28.5.1992, e a promulgou pelo Decreto Executivo n. 678, de 6.11.19992, assumindo, portanto, a obrigação internacional de assegurar o seu cumprimento, a ela vinculando-se, em especial de proteção da dignidade da pessoa humana.
Dessa maneira, resta de forma patente, após todas as conquistas civilizatórias operadas no período pós-segunda guerra mundial, que a fundamentação do Estado de Direito, sob o pilar da dignidade da pessoa, produz importantes efeitos jurídicos, inclusive, no âmbito do processo penal. Não é por outra razão que, o imputado não pode ser instrumentalizado, tratado como objeto, no atual estado da arte no processo penal, mas, sim, como um sujeito de direitos.
Aliás, como reitera Sarlet (2004), constitui a dignidade, princípio fundante da ordem jurídica, fundamento de todos os direitos, garantias e deveres fundamentais. Logo, essa dignidade da pessoa, ingressa no processo penal também, como um “limite invencível da interferência do poder, em seu aspecto negativo, ou seja, de não violação das esferas de dignidade, de não aceitação de violação”, bem como em seu “aspecto positivo ou prestacional, de respeito e efetivação da dignidade (GIACOMOLLI, 2015, p. 13).
Por essas razões, acertadamente, Giacomolli (2015) leciona que “uma leitura convencional e constitucional do processo penal, a partir da constitucionalização dos direitos humanos, é um dos pilares a sustentar o processo penal humanitário” (GIACOMOLLI, 2015, p. 12). Assim, para ele há que se falar em “processo penal constitucional, convencional e humanitário”. Dessa maneira, prosseguindo em suas ilações, exalta que “a proteção convencional internacional dos direitos vem justificada no preâmbulo da CADH, por serem atributos da pessoa humana, cujo paradigma antropológico (ser humano) é reconhecido e integra a normatividade internacional” (GIACOMOLLI, 2015, p. 12).
Por conseguinte, necessário se faz, no âmbito do processo penal, uma revolução hermenêutica, com a quebra dos paradigmas autoritários de uma ordem legal (CPP) anacrônica, policialesca, fascista, punitivista, fomentadora da violência estatal e de nítida base ditatorial.
Na atual quadra da história, mister se faz uma nova ordem processual penal, constitucional e internacionalmente comprometida com a proteção da dignidade da pessoa humana.
Aliás, Coutinho (2010) é bastante enfático em sustentar que “não esquecer, porém, antes de tudo, que se não volta atrás nas conquistas democráticas de direitos e garantias constitucionais, sob pena de se perder a própria democracia” (COUTINHO, 2010, p. 16 e 17).
No entanto, segundo Oliveira (2016):
A primeira informação trazida pela pesquisa trata do tema “direitos humanos” na formação dos juízes. Os resultados indicam que, quando questionados sobre a da existência de alguma disciplina de direitos humanos durante o curso de graduação, 84% dos magistrados responderam negativamente e, dentre as respostas positivas, apenas 4% dos juízes tiveram a disciplina como obrigatória, sendo 12% como disciplina opcional. Não obstante a dificuldade da matéria nas faculdades, considerando a relevância do tema, os juízes foram instados a manifestar seu interesse pelos estudos relacionados aos direitos humanos. De um universo de 109 entrevistados, 40 % (isto é, 42) nunca estudaram direitos humanos; vale dizer: quatro entre dez juízes não tiveram espaço formal para aprofundar sistematicamente conhecimentos fundamentais voltadas aos direitos humanos. (...) Outro ponto da pesquisa cuidou do conhecimento dos magistrados quanto ao funcionamento dos Sistemas de Proteção da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA). Constatou-se que 59% possuem um conhecimento superficial, enquanto 20% declararam desconhecer como funcionam os mencionados sistemas de proteção (OLIVEIRA, 2016, p. 144).
E, ainda, de acordo com Oliveira (2016):
O resultado revelou-se ainda pior na parte da pesquisa relacionada ao conhecimentodos magistrados em relação à Convenção Americana de Direitos Humanos: 66% dos entrevistados afirmaram que nunca utilizaram esse tratado e apenas 9% o fizeram. Tal constatação revela que, a despeito dos esforços da comunidade internacional para estabelecer um consenso mínimo sobre os direitos humanos e, ainda, instrumentos normativos para garanti-lo, a maioria dos magistrados ignora esse processo e as conquistasrealizadas em prol do fortalecimento da democracia (OLIVEIRA, 2016, p. 145).
Tal pesquisa revela aquilo que Giacomolli (2015) já denunciava como a imperiosa necessidade de superação, no processo penal, do déficit de compreensão (dogmáticos, jurídicos, de validade e de eficácia dos direitos fundamentais). (GIACOMOLLI, 2015, p. 13), pois:
Não mais encontram legitimidade o discurso e a argumentação dos juristas e dos sujeitos do processo quando arraigados no paradigma solitário e perfeito do arcabouço ordinário das regras do CPP, de sua validade pelo fato da existência, sem questionamentos constitucionais e convencionais. (GIACOMOLLI, 2015, p. 13).
Portanto, é inegável a necessidade de rompimento desses entraves, na direção da construção de um processo penal constitucional e humanitário, que necessariamente passa pela análise de conformidade das regras do Código de Processo Penal com o Pacto de São José da Costa Rica, dentro daquilo que se chama de controle de convencionalidade, até porque hierarquicamente o CPP, enquanto lei ordinária, está baixo da CADH, que segundo o STF possui o status de norma supralegal.
A partir dessa analise acerca da interpretação correta do Processo Penal, no intuito que se ele se torne mais constitucional, convencional e humanitário, analisaremos a audiência de custódia. Tal medida está inclusa no ordenamento jurídico através da Convenção Americana de Direitos Humanos/Pacto São José da Costa Rica desde a década de 90, e que, por ventura, foi regulamentada em 2015 através da Resolução 213 do Conselho Nacional de Justiça.
3.PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA E A IMPLEMENTAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO BRASIL
3.1. Características e previsão normativa da Audiência de Custódia
A audiência de custódia/apresentação é um mecanismo que consiste segundo Paiva (2018), “na condução de uma pessoa presa, sem demora, a presença de uma autoridade judicial (…) para exercer um controle imediato da legalidade e da necessidade da prisão” (PAIVA, 2018, p. 35). Aqui, não há a análise do mérito, apenas questões relativas à pessoa do cidadão. Lima (2019) conceitua a audiência de custódia da seguinte forma:
Grosso modo, a audiência de custódia pode ser conceituada como a realização de uma audiência sem demora após a prisão penal, em flagrante, preventiva ou temporária, permitindo o contato imediato do preso com o juiz, com um defensor (público, dativo ou constituído) e com o Ministério Público. (LIMA, 2019, p. 48).
Destacamos que ambos os doutrinadores enfatizam as expressões presença e contato imediato, logo, infere-se a dizer que contato este deva ser de forma presencial. Em consonância ao que rege a essência dos tratados internacionais que da audiência de custódia foi berçário, e visto que, caso houver violações acerca dessas expressões, há a violação do caráter antropológico do tratado.
Lima (2019) ainda nos chama a atenção que tal mecanismo garantidor é adotado em diversos países, dentre eles Peru, Argentina e Chile. A audiência de custódia possui dois objetivos precípuos: o primeiro deles é coibir eventuais maus tratos e/ou torturas e o segundo é a análise da legalidade da prisão em flagrante. Tais objetivos também são válidos em nosso sistema processual penal brasileiro.
A previsão normativa da aludida garantia é encontrada em tratados internacionais de direitos humanos. A priori, conforme bem leciona Caio Paiva (2018), temos a Convenção Americana de Direitos Humanos[10] (CADH) em seu art. 7.5 prevê que “Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais(…)”, cujo se tem o conceito de audiência de custódia.
Na mesma vereda, se tem o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos[11] (PIDCP), promulgado em 1992 pelo decreto n° 592, estabelece em seu art. 9.3 que “Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais(…)”.
A Convenção Europeia de Direitos Humanos[12] (CEDH) em seu art. 5.3 exalta que “Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c, do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais(…)”.
Pacelli (2018), já nos alerta acerca da audiência de custódia versa sobre “(…) a legalidade da prisão, sobre a atuação dos envolvidos, sobre a sua formação profissional e educacional, bem como sobre suas condições pessoais de vida (família, trabalho,etc.)” (PACELLI, 2018, p. 38). Vale lembrar que Lima (2019) chama a atenção que tal medida “visa à diminuição da superpopulação carcerária” (LIMA, 2019, p. 45).
Somado a isso, Paiva (2018) leciona que a finalidade da medida garantidora vai além. Uma vez que, além de ajustar o processo penal brasileiro aos tratados internacionais, ajuda na prevenção à tortura policial, e ajuda a evitar prisões ilegais, arbitrárias, ou desnecessárias. Visto que a apresentação do preso ao juiz é uma garantia, e caso for violada, o Estado estará violando o Pacto São José da Costa Rica.
Como demonstrado, diversos tratados internacionais fazem alusão sobre a temática em comento (audiência de custódia). O que se busca é justamente o ajuste do processo penal brasileiro aos tratados internacionais de direitos humanos, preservando a sua essência. A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica), por se tratar de tratado internacional mais próximo do qual o Brasil se vincula, analisaremos alguns pontos pertinentes ao mesmo.
3.2 Princípios que regem o Pacto São José da Costa Rica
Como se bem sabe o Brasil é adepto do Pacto São José da Costa Rica desde 1992[13]. Nessa época já se tinha a figura da audiência de custódia, que foi um longo desafio até ser implementado em nosso ordenamento jurídico. A norma estava escrita no papel, no entanto, a sua aplicabilidade era praticamente nula, demonstrando assim, a dificuldade em respeito aos tratados internacionais de direitos humanos.
Até o presente ano não se tem uma lei que regularmente o manejo destas audiências, o que se tem, é o Projeto de Lei do Senado n° 554/2011[14] de autoria do Senador Antônio Carlos Valadares e a Resolução n° 213/2015[15] do Conselho Nacional de Justiça. A referida resolução unificou a normativa da matéria, e, somente entrou em vigor a partir de 1º de fevereiro de 2016.
Contudo, a Resolução do CNJ teve sua constitucionalidade questionada, alegou-se sobre possível ilegalidade ao inovar no ordenamento jurídico. Tal insatisfação foi matéria de ADI (5240/SP)[16] proposta pela Associação de Delegados de Polícia do Brasil. Alvo em questão foi julgado improcedente, e bem como leciona Eugênio Pacelli (2018):
O STF recentemente enfrentou a questão (tal como visto no Informativo de Jurisprudência nº 795) e julgou improcedente o pedido, entendendo que a iniciativa do CNJ/TJSP se coaduna com o Pacto de San José da Costa Rica, que por sua vez tem status supralegal, e que não houve inovação jurídica —apenas explicitação de conteúdo normativo já existente, e mais: obrigatório. (PACELLI, 2018, p. 67).
Logo, infere-se a dizer que a Resolução n° 213 do CNJ se compactua com o Pacto São José da Costa Rica, conforme leciona Pacelli e Fischer (2018) o referido pacto “(…)tem status supralegal, e que não houve inovação jurídica —apenas explicitação de conteúdo normativo já existente, e seria impositivo, obrigatório ao ordenamento jurídico interno”. (PACELLI; FISCHER, 2018, p. 54).
Em se tratando de normas de Tratados de Direitos Humanos, é válido lembrar que os mesmos são de eficácia imediata. Conforme adverte Mazzioli (2013) “(…)o propósito da Convenção é a proteção da pessoa, não importando se por lei ou por outra medida estatal.” (MAZZIOLI, 2013, p. 36). Logo, cabe ao Estado adotar as medidas necessárias para que estes direitos sejam pleiteados e aplicados.
È válido lembrar que conforme Ramos (2018), o controle de convencionalidade consiste na análise da compatibilidade de atos internos em face das normas internacionais. Possuindo dois efeitos: o efeito negativo que consiste na invalidação das normas e decisões nacionais contrárias às normas internacionais; o efeito positivo que consiste na interpretação adequada das normas nacionais para que estas sejam conformes às normas internacionais.
Na seara de Direitos Humanos tais interpretações são essenciais para a aplicabilidade correta do Pacto São José da Costa Rica em nosso ordenamento jurídico, preservando o caráter humanitário do processo penal. Ao passo que juízes e tribunais brasileiros sagram medidas que compactuam com tais tratados.
Resta claro, que há desarmonia em seguir a ordem constitucional de tais regramentos que os tratados internacionais propunham. Como, por exemplo, a audiência de custódia que veio ser regulamentada somente 2015 através da Resolução 213 do Conselho Nacional de Justiça. No entanto, até o momento e com os avanços tecnológicos, tal como a videoconferência, vem passando por etapas desafiadoras, haja vista, que não se tem uma lei federal ainda no presente momento acerca da temática.
4. A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA POR VIDEOCONFERÊNCIA
4.1 A gênesis da videoconferência no sistema processual penal
Com o avanço dos meios de comunicação, o sistema de videoconferência pegou espaço no berço do Poder Legislativo como ferramenta ágil em atos judiciais, pois permite a comunicação online, isto é, em tempo real, entre as partes e o magistrado, superando, com isso, as barreiras físicas.
O direito, como se bem sabe, é uma matéria dinâmica que se amolda de acordo com as necessidades que fora enfrentando ao longo do tempo. Em consonância a essa temática de se conectar em ambiente virtual, foi instituída a Lei n° 11.419/2006[17], que inaugura o processo judicial em meio eletrônico, tornando-se habitual a sua utilização.
No art. 1°, parágrafo 2. °, inciso II da referida lei,autoriza o uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais aplicando ao processo civil, penal e trabalhista, bem como aos juizados especiais permitindo transmissão eletrônica toda forma de comunicação à distância com a utilização de redes de comunicação. Marcando, deste modo, o avanço do meio tecnológico na seara common law e civil law.
No art. 217 do Código de Processo Penal, incluído pela Lei n° 11.690/2008[18], tratou da inquirição da testemunha ou ofendido por videoconferência, por sua vez, estabelece o seguinte:
Art. 217. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha, ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor.
Parágrafo único. A adoção de qualquer das medidas previstas no caput deste artigo deverá constar do termo, assim como os motivos que a determinaram (BRASIL, 2008).
Um ano após esse marco, foi sancionada a Lei n° 11.900/2009[19] com o intuito de prever a possibilidade de realização de interrogatório e outros atos processuais por sistema de videoconferência. A mencionada lei de 2009 alterou a redação do parágrafo 2.º do art. 185 do Código de Processo Penal, trazendo hipóteses para permissão de videoconferência de forma taxativa, in verbis:
Art. 185 (...)
§ 2o Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades:
I - prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento;
II - viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal;
III - impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código;
IV - responder à gravíssima questão de ordem pública.(BRASIL, 2009).
Dispõe ainda no art. 222 do mesmo documento, a oitiva da testemunha utilizando o referido recurso tecnológico, o seguinte:
Art. 222. A testemunha que morar fora da jurisdição do juiz será inquirida pelo juiz do lugar de sua residência, expedindo-se, para esse fim, carta precatória, com prazo razoável, intimadas as partes.
(...)
§ 3o Na hipótese prevista no caput deste artigo, a oitiva de testemunha poderá ser realizada por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, permitida a presença do defensor e podendo ser realizada, inclusive, durante a realização da audiência de instrução e julgamento. (BRASIL, 2009).
O Conselho Nacional da Justiça, não ficou atrás e editou a Resolução n° 105/2010[20], cuja autoriza a realização de interrogatórios e inquirição de testemunhas por videoconferência. Marcando a utilização do recurso em audiências judiciais e estabelecendo regras em relação à documentação dos depoimentos por meio do sistema audiovisual.
Não se pode negar, a reconhecida ferramenta ora em análise aduz e supre muito bem os procedimentos judiciais que o sistema Legislatório enfrenta, devido à demanda demasiada que consta na realidade deste país. Todavia, a sua utilização na audiência de custódia aparenta ser equivocada, pois, vai de encontro às garantias constitucionais conforme fora exaustivamente demonstrada em Capítulos anteriores.
4.2 Entrelaço entre a videoconferência e a custódia
Não se pode olvidar que não há norma federativa para regulamentar a realização de audiência de custódia no âmbito nacional. Apesar da sua não obrigatoriedade, é cediço, em se atentar aos tratados de diretos humanos no qual o Brasil é signatário conforme fora demonstrado.
Esse foi o pontapé inicial às diversas construções doutrinárias e jurisprudenciais para se realizar audiências de custódia por videoconferência nesse país. A consequência desse açodamento material é a supressão do direito à ampla defesa e a essência primordial da audiência de custódia/apresentação.
Com autoridade no tema, Caio Paiva (2018), conclui que em respeito à normativa internacional que trata sobre a audiência de custódia, estabelece (a norma) nitidamente que o preso deva ser conduzido à presença do magistrado. Não obstante, se realizar esse procedimento por videoconferência, há violação das expressões “conduzir” e “presença”, já que amortizaria o significadamente o impacto antropológico e humanizatório da medida. (PAIVA, 2018, p. 67).
Aspirando a economia do dinheiro público e evitando o gasto com deslocamento, magistradosdifundem e ampliam o alcance da lei para a videoconferência. Nesse contexto, Lopes Jr. (2019) já alerta sobre o perigo em retirar a garantia da jurisdição.
Apesar de tais intenções, há um enorme equívoco por trás disso, pois perfura o preceito constitucional e o direito fundamental dos custodiados, consoante dispõe o art. 8.2 do Pacto São José da Costa Rica:
Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
a. Direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;
b. Comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c. Concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;
d. Direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;
e. Direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;
f. Direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;
g. Direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;
h. Direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior (CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1969).
Com isso, infere-se a dizer que, versando de lei supralegal que é este tratado, e conforme bem colocado no item d, o direito do acusado de defender-se pessoalmente e de se comunicar livremente com seu defensor. Aqui o intuito da norma é a análise da persona a comunicação pessoal, e não virtual, já que a essência é a preservação do caráter humano e da dignidade da pessoa humana.
Dentro do contexto, Nucci (2014) afirma que “o contato pessoal nos soa essencial para que as relações humanas não se percam, podendo o juiz analisar o comportamento do interrogando, se sincero ou falso, se tranquilo ou ansioso, enfim, como se mostra diante do julgador.” (NUCCI, 2014, p. 65). Nesse sentido parece ser o entendimento do comitê de Direitos Humanos da ONU[21]:
A pessoa deverá comparecer fisicamente ante o juiz ou outro funcionário autorizado pela lei para exercer funções judiciais.A presença física das pessoas reclusas permite que se lhes pergunte sobre o tratamento que receberam durante a reclusão, e facilita o translado imediato a um centro de prisão preventiva se houver determinação para que continue na prisão. Portanto, é uma garantia para o direito à segurança pessoal e à proibição da tortura e dos tratados cruéis, desumanos ou degradantes (COMITÊ DIREITOS HUMANOS, 2014).
Ressalte-se que a interpretação de tais direitos deve ser pro homine, assim, a norma que aperfeiçoar da melhor forma o exercício de determinado direito, deverá prevalecer. Conforme se extrai do art. 29 doPSJCR “nenhuma disposição sua pode ser interpretada no sentido de limitar o gozo ou o exercício de qualquer direito, ou liberdade prevista no direito interno(…)suas normas não podem limitar outros direitos previstos em outros tratados ou convenções”, seguindo essa linha se tem respeito à Carta Magna e aos princípios que a norteiam.
4.3 O pacote anticrime e a audiência de custódia por videoconferência
É notório que o Projeto de Lei n° 10.372/2018[22] trabalhada por uma comissão do Congresso sobre propostas elaboradas pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, e o Projeto de Lei n° 822/2019[23] que fora apresentado pelo ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, trata a videoconferência como grande aliada ao Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal, pois, vem como uma moderna ferramenta de interrogatório aos presos, com o escopo de reduzir custos com descolamento dos mesmos.
Porém, não prosperou na íntegra o PL n° 822/2019, que fora exaustivamente debatido na Câmara dos Deputados e foram deixados alguns pontos de fora do referido projeto em parecer de proferido em Plenário em 04/12/2019. Posteriormente, levado a Casa do Senado, e em Plenário, aprovado em 11/12/2019, sem modificações pelos senadores, e consequentemente, encaminhado para sanção presidencial[24].
O Projeto de Lei originou na norma de n° 13.964/2019[25] aprovada em 24 de dezembro de 2019, conhecida como Pacote Anticrime, e entrou em vigor em 23/01/2020. No que tange a videoconferência o PL trazia em seu art. 185 do CPP a seguinte alteração:
Art.185
(...)
2º O juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades:
(...)
IV - responder à questão de ordem pública ou prevenir custos com deslocamento ou escolta de preso.
(...)
§ 8º Aplica-se o disposto nos § 2º, § 3º, § 4º e § 5º, no que couber, à realização de outros atos processuais que dependam da participação de pessoa que esteja presa, como acareação, reconhecimento de pessoas e coisas, audiência de custódia e inquirição de testemunha ou tomada de declarações do ofendido.
(...)
§ 10. Se o réu preso estiver recolhido em estabelecimento prisional localizado fora da comarca ou da subseção judiciária, o interrogatório e a sua participação nas audiências deverão ocorrer na forma do § 2º, desde que exista o equipamento necessário. (NR)
Todavia, não vingou a citada alteração, pois ainda no Projeto de Lei a câmara dos deputados tirou de pauta esse artigo. O que se infere a dizer que no momento de debate, na Casa do Povo, não se achou viável a redação supracitada, que promovia como regra o interrogatório por videoconferência, a fortiori não se tem motivos para achar agora.
Aqui houve um debate sucinto e exaustivo acerca da problemática da nova redação do art. 185 do CPP que notoriamente iria trazer devaneio para o processo penal, afinal, “afrouxa” os requisitos para a videoconferência. Uma vez que, ia tornar a realização da videoconferência como regra nas audiências judiciais.
É bom lembrar que a audiência de custódia ainda não se tem lei ordinária que trata de seu manejo, se tem apenas a Resolução n° 213 do CNJ. Alguns doutrinadores usam o art. 185 do CPP de forma análoga para a realização de audiência de custódia por videoconferência, como, por exemplo, Lima (2019) que já assevera:
A nosso juízo, se presente uma das hipóteses listadas nos diversos incisos do § 2o do art. 185 do CPP, é perfeitamente possível que esta apresentação ocorra por meio de sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que seja possível constatar a plena observância dos direitos fundamentais do preso (LIMA, 2019, p. 45).
De forma contrária, outros discordam de tal medida, por exemplo, Paiva (2018) que leciona que o contato pessoal do preso com juiz é um contato de suma importância, em especial para aquele que está sofrendo o jus piniendi estatal. E se do contrário for, acaba matando o caráter antropológico da audiência de custódia.
Lopes Jr. (2019) vai além, critica o seu parágrafo 2.°, inciso IV, do artigo original em comento, pois se tem um conceito genérico de “questão de ordem pública” e “prevenir custos”, ambos de difícil enquadramento (LOPES JR, 2019, p. 134). E tal questão para o processo penal é um enorme prejuízo, dando a mercês diferentes interpretações. O doutrinador em seu livro Direito Processual Penal já nos alerta acerca disso:
Graves inconveniente são as fórmulas abertas, vagas e imprecisas, utilizadas pelo legislador nos incisos §2º do art. 185 para definir os casos em que a oitiva por videoconferência estaria justificada. A utilização de expressões como “risco à segurança pública”, “fundada suspeita”, “relevante dificuldade”, “gravíssima questão de ordem pública” cria indevidos espaços para o decisionismo e a abusiva discricionariedade judicial, por serem expressões despidas de um referencial semântico claro. Serão, portanto, aquilo que o juiz quiser que sejam. O risco de abuso é evidente. (LOPES JR, p. 137).
O fato é que não prosperou a normativa do artigo supracitado do projeto de lei. Após um longo debate que fora submetido o Pacote Anticrime, se manteve a redação inicial do art. 185 do Código de Processo Penal, que embora haja lacunas para interpretações diversas em seus incisos, manteve ainda a audiência por videoconferência como exceção, somente de forma excepcional.
4.4 Entendimento dos Tribunais Superiores acerca do tema
Ao perscrutar a jurisprudência brasileira, encontram-se pouquíssimos julgados que aborde especificamente acerca da videoconferência na audiência de custódia, por ambos os temas (audiência de custódia e videoconferência), estão brotando os frutos agora, visto que são temáticas recentes. No entanto, trouxemos dois julgados de grande repercussão em nosso sistema processual, coroando argumentos expedidos em tópicos antecedentes.
4.4.1 Conflito de competência negativo
O caso em questão se refere a Paulo Emílio Bueno Silva, que teve sua prisão preventiva decretada pelo Juízo Federal da 4.ª Vara de Guarulhos — SJ/SP. No entanto, o cumprimento do mandado de prisão ocorreu em Paraná na cidade de Curitiba, na data de 18/09/2019. Após essa diligência, o encarceramento foi comunicado pela Superintendência da Polícia Federal no Paraná ao Juízo que a decretara.
Em ocasião, expediu-se uma carta precatória a uma das Varas Federais Criminais da Subseção Judiciária de Curitiba/Paraná, de modo a que, realizasse a audiência de custódia, em cumprimento aos preceitos legais. Uma vez que procedimento em comento deveria, em regra, ser realizado de forma presencial pelo juiz competente no local da prisão.
No entanto, a Juíza Federal da 1.ª Unidade de Apoio de Curitiba/PR, declarou-se incompetente para a realização do ato, fundamentando que a realização do ato poderia ser efetuado por videoconferência diretamente pelo juízo deprecante, e somado a isso, não tinha disponibilidade na pauta para a realização do mesmo.
Em suma, ambos os juízos se declararam incompetentes, e, tendo em vista que o conduzido permanecia preso preventivamente no Estado do Paraná, sem que tenha havido a audiência de custódia, o caso foi encaminhado e julgado pelo Supremo Tribunal de Justiça. Conforme se observa na decisão CC 168.522-PR (2019/0288114-4) que teve como relator a ministra Laurita Vaz:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL PENAL. MANDADO DE PRISÃO PREVENTIVA. CUMPRIMENTO EM UNIDADE JURISDICIONAL DIVERSA. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. REALIZAÇÃO. COMPETÊNCIA. JUÍZO DA LOCALIDADE EM QUE EFETIVADA A PRISÃO. REALIZAÇÃO POR MEIO DE VIDEOCONFERÊNCIA PELO JUÍZO ORDENADOR DA PRISÃO. DESCABIMENTO. PREVISÃO LEGAL. INEXISTÊNCIA. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR COMPETENTE O JUÍZO SUSCITANTE. 1. A audiência de custódia, no caso de mandado de prisão preventiva cumprido fora do âmbito territorial da jurisdição do Juízo que a determinou, deve ser efetivada por meio da condução do preso à autoridade judicial competente na localidade em que ocorreu a prisão. Não se admite, por ausência de previsão legal, a sua realização por meio de videoconferência, ainda que pelo Juízo que decretou a custódia cautelar. 2. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal da Vara da Seção Judiciária do Paraná, o Suscitante. (CC 168.522/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 11/12/2019, DJe 17/12/2019)
Portanto, em consonância com a Resolução n° 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, em seu art. 13, parágrafo único, que prevê expressamente realização a audiência de custódia será realizada pelo juízo competente que determinou a ordem de custódia, e nos casos em que forem cumpridos fora da jurisdição do juiz processante, cabe a autoridade judicial competente na localidade em que ocorreu a prisão, de acordo com a lei de organização judiciária local.
Resta claro, que a resolução fora publicada em 2015, e na mesma época já se tinha a figura da videoconferência no direito processo penal brasileiro, com o advento da lei n° 11.900/2009. No entanto, no ato em comento não há a menção do uso da tecnologia, o que poderia ter previsto expressamente, mas não o fez.
Dessa maneira, em acertada decisão, foi submetido à realização da audiência de custódia (presencial) no Juízo da 1ª Unidade de Apoio de Curitiba, Seção Judiciária do Paraná, nos moldes da Resolução 213/2015 do CNJ, e no artigo 7. °, parágrafo 5. ° do Pacto São José da Costa Rica.
A Ministra Laurita Vaz finaliza em seu voto da seguinte forma:
De fato, uma das finalidades precípuas da audiência de custódia é aferir se houve respeito aos direitos e garantias constitucionais da pessoa presa. Assim, demanda-se que seja realizada pelo Juízo com jurisdição na localidade em que ocorreu o encarceramento. É essa autoridade judicial que, naquela unidade de exercício do poder jurisdicional, tem competência para tomar medidas para resguardar a integridade do preso, bem assim de fazer cessar agressões aos seus direitos fundamentais, e também determinar a apuração das responsabilidades, caso haja relato de que houve prática de torturas e maus tratos.
(...)
Portanto, também por não haver previsão legal de realização da audiência de custódia por meio de videoconferência, compete a sua realização ao Juízo com jurisdição na localidade em que se deu o cumprimento do mandado de prisão preventiva.
(CC 168.522/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 11/12/2019, DJe 17/12/2019)
Logo, corrobora, com a ideia principiológica da audiência de custódia que é justamente o comparecimento físico ante o juiz. Dessa forma, permite que seja perguntado ao preso, de forma mais humanitária sobre o tratamento que recebera durante a reclusão, ante a ausência de lei federal e em respeito às normas internacionais, sobre a temática.
4.4.2 Medida cautelar suspende a realização de audiências de custódias por videoconferências
O caso trata de Reclamação para Garantia das Decisões (sob n° 0008866-60.2019.2.00.0000), proposta pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina que questiona o ato normativo do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, acerca da regulamentação da audiência de custódia por videoconferência.
O TJSC regulamenta a audiência de custódia regionalizada no âmbito de sua jurisdição através da Resolução CM n° 08/2018, dividindo em comarcas sedes e comarcas integrantes. Na comarca-sede serão efetuadas as audiências de custódia de todas as comarcas que compõem a região.
Posteriormente o referido tribunal, editou a Resolução CM n° 09/2019, na qual permitiu a realização da audiência de custódia por videoconferência, alterando a resolução anterior. A priori, as audiências ocorriam virtualmente apenas em dias úteis, e, aos finais de semana, continuaria ocorrendo presencialmente pelo juízo plantonista da comarca integrante.
O que de fato ocorreu, foi tornar a exceção à regra. Motivada pelo fato de que o uso da tecnologia seria mais conveniente e mais célere ao Poder Judiciário, o uso de audiência de custódia por videoconferência tornou-se regra naquela ocasião, fechando os olhos para o caráter primordial do ato, que é justamente, a necessidade e excepcionalidade de tal medida.
Como se não bastasse, houve a quebra do contraditório e ampla defesa, pois as audiências naquela localidade eram realizadas sem a presença do defensor do detido—diga-se Advogado ou Defensor Público—ou até mesmo com a ausência da autoridade judicial no local do ato, frustrando, por conseguinte, a coleta adequada do depoimento.
Em 19/11/2019, o presidente do Conselho Nacional de Justiça, o então ministro Dias Tofolli, decidiu liminarmente (id nº 3807724) o caso nesse sentido:
Nesse contexto, observado a fundamentação supra e considerando que a Resolução do CNJ n° 213/2015, que regulamenta a audiência de custodia, assegura a apresentação pessoal do preso em flagrante delito diretamente a autoridade judiciária (art. 1°, §1°²), deve ser deferida a medida cautelar requerida, pela plausibilidade da tese da reclamante – diante da existência de parâmetro de controle adequado e com estrita aderência ao ato submetido analise -, bem como pelo perigo de dano irreversível, assim considerada a realização desde importante ato à revelia dos princípios e finalidades que o norteiam.
ANTE O EXPOSTO, defiro a medida cautelar requerida para determinar a imediata suspensão do §4° do art. 5° da Resolução CM n° 08/2019 do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, com redação alterada pela Resolução CM n° 09/2019, mantida a organização regionalizada instituída, objeto de questionamento em outro procedimento. (CNJ – RGD n° 0008866-60.2019.2.00.0000, Relator: Ministro DIAS TOFFOLI, Data de julgamento: 13/12/2019, ML - 58°Sessão Virtual, Data de Publicação: DJe 19/11/2019)
O ministro suspendeu a norma que permite a realização de audiência de custódia por videoconferência. O que busca é vigorar a ratio da audiência de custódia, que em meio aos anseios e as tentativas falhas em manter celeridade, acaba por atropelar os princípios fundamentais da nossa constituição e dos direitos humanitários.
Em suma, em sua decisão, Dias Toffoli, demonstra claro e evidente que qualquer entendimento contrário a Resolução CNJ n° 213/2015 precisa ser aprovado pelo Congresso Nacional, em virtude do Princípio da Legalidade Estrita, respeitando, desta forma, a Constituição Federal[26].
5. CONCLUSÃO
Conforme o explanado e observado ao longo do presente artigo, o objetivo se pautou na interpretação correta acerca do Código de Processo Penal, sob o viés humanitário. Visto que ele foi fundado em momento polêmico, acabou trazendo consigo o viés autoritário, que em muitos casos, não está em consonância aos princípios constitucionais e tratados internacionais.
Dessa forma, destaca-se audiência de custódia, que está inclusa em nosso ordenamento jurídico desde a década de 90, marcada por luta constante até ser difundida e espalhada pelo território por completo. Tal medida, é voltada a preservar o caráter antropológico e humanitário da pessoa presa, fazendo jus ao processo penal humanitário.
Nesse sentido, a presente medida mostra-se inadequada caso seja realizada por videoconferência. A grande valia não, a economia de gastos públicos, e sim, em respeitar os tratados internacionais de direitos humanos e a Carta Magna de 1988. Uma vez que não trouxeram tal possibilidade, no ordenamento pátrio, e quando oportunidade teve, não optou por trazer.
Por fim, não restam dúvidas de que é necessário adequar o processo e a legislação, buscando-se novas soluções. Como se bem sabe, é necessário interpretar os dispositivos com um olhar amplo, respeitando as normas superiores e fazendo o uso de recursos tecnológicos da melhor forma, para que seja cumprido o devido processo legal.
6.REFERÊNCIAS
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[1] Coautora e Acadêmica do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. E-mail: [email protected].
[2] Coautor e professor do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho, Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília - UCB. E-mail: [email protected].
[3]De acordo com Lopes Jr (2012, p. 100): “A teoria do processo como relação jurídica recebeu críticas, tanto na sua aplicação para o processo civil como também para o processo penal, mas, em que pese sua insuficiência e inadequação, acabou sendo adotada pela maior parte da doutrina processualista”.
[4]Adverte Lopes Jr (2012, p. 100) que “A noção de processo como relação jurídica, estruturada na obra de BÜLOW, foi fundante de equivocadas noções de segurança e igualdade que brotaram da chamada relação de direitos e deveres estabelecidos entre as partes e entre as partes e o juiz. O erro foi o de crer que no processo penal houvesse uma efetiva relação jurídica, com um autêntico processo de partes”.
[5]Para Lopes Jr (2012, p. 102) “Essa dinâmica do estado de guerra é a melhor explicação para o fenômeno do processo, que deixa de lado a estática e a segurança (controle) da relação jurídica para inserir-se na mais completa epistemologia da incerteza”.
[6] Segundo Lopes Jr (2012, p. 102) “O processo é uma complexa situação jurídica, na qual a sucessão de atos vai gerando situações jurídicas, das quais brotam as chances, que, bem aproveitadas, permitem que a parte se liberte de cargas (probatórias) e caminhe em direção favorável. Não aproveitando as chances, não há a liberação de cargas, surgindo a perspectiva de uma sentença desfavorável. O processo, enquanto situação – em movimento -, dá origem a expectativas, perspectivas, chances, cargas e liberação de cargas. Do aproveitamento ou não dessas chances, surgem ônus e bônus”.
[7]“As provas são os materiais que permitem a reconstrução histórica e sobre os quais recai a tarefa de verificação das hipóteses, com a finalidade de convencer o juiz (função persuasiva)” (LOPES JR, 2012, p. 537).
[8]Esclarece Lopes Jr (2012, p. 538) que “o processo penal tem uma finalidade retrospectiva, em que, através das provas, pretende-se criar condições para a atividade recognitiva do juiz acerca de um fato passado, sendo que o saber decorrente do conhecimento desse fato legitimará o poder contido na sentença”.
[9]Bonato (2003, p. 1) leciona que: “tido como princípio basilar na estruturação dos estados de direito modernos, o princípio do devido processo legal ganha relevo no sistema brasileiro em razão das garantias que dele decorrem, servindo de vetor e base para que seja alcançado um direito material calcado na razoabilidade das leis e um processo realmente democrático, efetivo e justo dentro de uma sociedade que procura caminhar sempre mais para uma democracia plena. Numa sociedade de padrões bastante discriminatórios, a previsão do princípio na atual Constituição foi sem dúvida um avanço no mundo jurídico”.
[10] CADH disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm.
[11] PIDCP disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm.
[12] CEDH disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=536&lID=4.
[13] Decreto n° 678/1992, de 06 de novembro de 1992.
[14] Projeto de lei n° 554 de 2011 disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/102115.
[15] Resolução 213 do CNJ disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2234.
[16]ADI 5240/SP disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10167333.
[17] Lei n° 11.419/2006 disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11419.htm.
[18] Lei n° 11.690/2008 disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11690.htm.
[19] Lei n° 11.900/2009 disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11900.htm.
[20] Resolução n°105 do CNJ disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/166.
[21] Comitê de Direitos Humanos disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2017/10/Diretrizes_Portugu%C3%AAs_vers%C3%A3o-online.pdf.
[22] PL 10.372/2018 disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2178170.
[23] PL 822/2019 disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?
idProposicao=2192353.
[24] Senado Notícias disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/12/11/senado-aprova-pacote-anticrime-que-vai-para-sancao-presidencial.
[25] Pacote Anticrime disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm.
[26] Art. 22, inciso I, da CF/88: “Compete privativamente a União legislar sobre direito processual penal (...)”.
Bacharelando no Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Marcos Douglas Silva. A Realização da audiência de custódia por videoconferência e a (in) compatibilidade com a Constituição Federal e o Pacto São José da Costa Rica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 maio 2020, 04:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54590/a-realizao-da-audincia-de-custdia-por-videoconferncia-e-a-in-compatibilidade-com-a-constituio-federal-e-o-pacto-so-jos-da-costa-rica. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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