KELLY NOGUEIRA DA SILVA GONÇALVES
(Orientadora)
RESUMO: O objetivo do presente estudo consiste em analisar a aplicação das medidas protetivas de urgência pelos agentes de segurança, nos termos da Lei n° 13.827/2019. O estudo foi pautado pela revisão bibliográfica, caracterizada pela analise de doutrinas, legislações e julgados. A princípio o estudo abordou a evolução legislativa da Lei Maria da Penha, enfocando as medidas protetivas e o atendimento fornecido às mulheres vítimas de violência doméstica. Por derradeiro, fora abordada a aplicação das medidas de segurança nos termos da legislação em vigor. A violência é um fenômeno social grave e complexo que atinge meninas e mulheres, em todo o mundo, de diferentes culturas, idade, classe social, raça e etnia e que gera efeitos negativos não só para a saúde física e mental das mulheres, mas para toda a sociedade. O estudo abordou, nesse contexto, as alterações inerentes à proteção à vitima, com enfoque na Lei n° 13.827/2019. Tal lei é questionada por parcela da doutrina, a qual afirma ser inconstitucional em virtude de afetar a reserva jurisdicional. Já outros afirmam que a Lei é constitucional visto que a lei preservou a reserva de jurisdição ao magistrado, pois a última palavra será dada por ele. A despeito da celeuma, destaca-se que a Lei trouxe um importante passo na evolução do combate à violência doméstica.
Palavras-chave: Medidas Protetivas. Maria da Penha. Agentes de Segurança.
ABSTRACT: The objective of the present study is to analyze the application of emergency protective measures by security agents, under the terms of Law No. 13,827 / 2019. The study was guided by the bibliographic review, characterized by the analysis of doctrines, legislation and judgments. At first, the study addressed the legislative evolution of the Maria da Penha Law, focusing on protective measures and the care provided to women victims of domestic violence. Finally, the application of security measures under the terms of the current legislation had been addressed. Violence is a serious and complex social phenomenon that affects girls and women worldwide, of different cultures, age, social class, race and ethnicity and that has negative effects not only on the physical and mental health of women, but on the whole society. The study addressed, in this context, the changes inherent to victim protection, with a focus on Law No. 13,827 / 2019. Such law is questioned by a portion of the doctrine, which claims to be unconstitutional due to affecting the judicial reserve. Others say that the law is constitutional since the law preserved the jurisdiction's reserve of jurisdiction, since the last word will be given by him. Despite the uproar, it is noteworthy that the Law brought an important step in the evolution of the fight against domestic violence.
Keywords: Protective Measures. Maria da penha. Security agents.
1 INTRODUÇÃO
A violência contra a mulher constitui uma forma de violação dos direitos humanos e a Lei Maria da Penha evidencia o propósito de preservar os direitos da mulher, além de impor a adoção de políticas públicas para resguardar seus direitos, assim o poder público tem o papel de garantir esses direitos e resguardar a mulher de toda forma de discriminação, negligência, exploração, violência, crueldade e opressão (DIAS, 2011).
Assim, ela está frequentemente ligada não só ao uso da força física, mas intelectual, psicológica ou moral que impede ou obriga a pessoa a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. A relação de desigualdade entre o homem e a mulher que remonta tempos milenares colocou a mulher em situação de inferioridade e submissão, terreno fértil para violação dos direitos femininos (DIAS, 2011).
Diante disso, o Brasil editou a Lei nº 11.340/2006 com o objetivo de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher cumprindo os ditames das convenções e dos tratados que é signatário, dentre eles à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
É cediço que a feitura da norma repressiva foi um avanço importante para combater a violência no âmbito familiar, porém, é sabido também que os temas dispostos nela não foram suficientes para frear a violência vivida por milhares e milhares de mulheres espalhadas pelo imenso espaço geográfico denominado Brasil, pois a taxa de homicídios contra as mulheres ocorridos dentro das residências no país foi de 28,5%, decorridos de feminicídios íntimos derivados da violência doméstica (BRASIL, 2019).
No Direito, para que se possa punir uma conduta é necessário que exista previsão legal. O comportamento do ser humano é dinâmico e, portanto, as regras cogentes devem acompanhá-lo, desta maneira visando reprimir a violência contra a mulher o legislador confeccionou novas normas.
Diante de tantos assassinatos de mulheres e até mesmo suicídios, derivados das relações domésticas e familiares ou ainda das relações afetivas; do surgimento de novos crimes como exposição da intimidade, o legislador editou novas normas com intuito de conter a violência praticada contra a mulher.
Mediante análise crítica legislativa, doutrinária e jurisprudencial objetiva-se verificar os pontos positivos e negativos que as modificações legais trouxeram e a sua efetividade. Entre as diversas alterações legislativas inseridas na Lei Maria da Penha cite-se a alteração legislativa promovida pela Lei n° 13.827 de 13 de maio 2019. Tal diploma legal altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para autorizar, nas hipóteses que especifica, a aplicação de medida protetiva de urgência, pela autoridade judicial ou policial, à mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou a seus dependentes, e para determinar o registro da medida protetiva de urgência em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça.
Nesse contexto, há significativa discussão, pois há quem arguiu a inconstitucionalidade da norma, pois tal autorização supostamente violaria o princípio da reserva jurisdicional enquanto que outros defendem que não porque necessário é a homologação pelo magistrado, ou seja, de qualquer forma só se efetiva o afastamento se o juiz concordar com a medida.
Ante o exposto, o objetivo do presente estudo consiste em analisar a aplicação das medidas protetivas de urgência pelos agentes de segurança, nos termos da Lei n° 13.827/2019.
A princípio o estudo abordou a evolução legislativa da Lei Maria da Penha, enfocando as medidas protetivas e o atendimento fornecido às mulheres vítimas de violência doméstica.. Após enfocou os tipos de violência sendo que, por derradeiro, fora abordada a aplicação das medidas de segurança nos termos da legislação em vigor. O problema da pesquisa consiste em se analisar a constitucionalidade e efetividade de tal possibilidade, abordando os aspectos doutrinários, legais e jurisprudenciais acerca do tema proposto. O estudo foi pautado pela revisão bibliográfica, caracterizada pela analise de doutrinas, legislações e julgados. A princípio o estudo abordou a evolução legislativa da Lei Maria da Penha, enfocando as medidas protetivas e o atendimento fornecido às mulheres vítimas de violência doméstica. Por derradeiro, fora abordada a aplicação das medidas de segurança nos termos da legislação em vigor
2 LEI MARIA DA PENHA
A lei Maria da Penha teve variadas ações que proporcionaram sua criação. A primeira conferência internacional da mulher realizada no México em 1975, a qual buscava a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, fora o marco impulsivo para o reconhecimento da lacuna ocorrida no Brasil inerente a esse tema.
Posteriormente houve a ratificação da Convenção Belém do Pará em 1994, onde resultou na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher. Observa-se que à Convenção supramencionada estabelece ações afirmativas visando acelerar o processo de obtenção da igualdade entre mulheres e homens (SOUZA, 2018).
Todavia, no Brasil somente fora efetivada em norma materializada, em setembro de 2006, a qual casuisticamente tentou homenagear Maria da Penha Maia NUCCI, vítima de violência doméstica pelo seu agressor (ex marido). Maria da Penha foi casada com o professor Marco Antônio Herredia Viveros, o qual a violentava frequentemente. Em meados de 1983 ela sofreu a primeira tentativa de assassinato pelo agressor, fato que a deixou paraplégica, em seguida fora vítima de afogamento e eletrochoque durante o banho.
Após um efêmero lapso temporal continuou sofrendo tentativas de homicídios. Apesar dessas repetidas agressões e ameaças, durante todo o tempo em que ficaram casados, Maria da Penha não denunciava seu marido, por temer represálias contra ela e as três filhas. Só depois de ter sido quase assassinada por duas vezes, decidiu fazer a denúncia (SILVA, 2014).
Apesar de a investigação ter sido iniciada, a denúncia fora apresentada pelo Ministério Público, todavia o primeiro julgamento só ocorreu muito tempo após os reiterados crimes. Na constante luta, após 15 anos de movimentos e reivindicações, juntamente com a colaboração de ONG’s, Maria da Penha conseguiu ser atendida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), bem como seu agressor ser preso, porém cumpriu apenas dois anos de prisão (CHAUÍ, 2015).
O processo relatado pela OEA também julgou em repúdio a ausência de legislação brasileira acerca desse tipo de violência. Este foi o estopim para a criação da lei. Posteriormente, foram criados diversos projetos de lei para tratar das medidas protetivas quanto à violência doméstica e familiar, estabelecendo mecanismos de prevenção e assistência às vítimas (CÔRTES, 2017).
E assim, o governo federal, através de renomados juristas, com princípios especados na Carta Magna e tratados internacionais, além da participação de cinco organizações internacionais, fora criado um projeto de lei, oriundo do artigo 226, § 8°, da CF/88, além dos tratados ratificados pelo Estado, e aprovado no Senado Federal e Câmara, cognominada, Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). O então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em caráter de reparação simbólica, homenageou a vítima, que lutou bravamente para obter a justiça “reconhecendo a luta de quase vinte anos desta mulher em busca de justiça contra um ato de violência doméstica e familiar” (SILVA, 2014, p.13).
A autenticidade da referida lei proporcionou créditos indubitavelmente efetivos, em que a mulher passou a ser mais valorizada tanto em âmbito familiar quanto laboral, além do que o conjunto articulado de políticas públicas entre programas de prevenção, integração operacional, atendimento policial especializado, promoção e realização de campanhas e as medidas protetivas, fortaleceram a luta contra a violência de gênero, porém, ainda muito há que se efetivar. Hodiernamente a problemática situa-se na concretização da norma fundada, pois não é suficiente apenas a isonomia especada na lei em si, se esta não for aplicada no âmbito social (CAPEZ, 2016).
2.2 Formas de Manifestação da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher foi um dos acordos internacionais de maior relevância que o Brasil pactuou para tratar da violência acometida pelas mulheres ao longo de história da humanidade que define fenômeno social da seguinte forma:
Artigo 1°: Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado. Artigo 2° Entender-se-á que violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica:
a. que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual; b. que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro lugar, e c. que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra (CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, 1994).
O Tribunal de Justiça de Sergipe (BRASIL, 2019) conceituou cada tipo de violência adotada pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ocorrida em Belém do Pará no ano de 1994 como sendo:
Violência física (visual): É aquela entendida como qualquer conduta que ofenda integridade ou saúde corporal da mulher. É praticada com uso de força física do agressor, que machuca a vítima de várias maneiras ou ainda com o uso de armas, exemplos: Bater, chutar, queimar, cortar e mutilar.
Violência psicológica (não-visual, mas muito extensa): Qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima da mulher, nesse tipo de violência é muito comum a mulher ser proibida de trabalhar, estudar, sair de casa, ou viajar, falar com amigos ou parentes.
Violência sexual (visual): A violência sexual está baseada fundamentalmente na desigualdade entre homens e mulheres. Logo, é caracterizada como qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada; quando a mulher é obrigada a se prostituir, a fazer aborto, a usar anticoncepcionais contra a sua vontade ou quando a mesma sofre assédio sexual, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade.
Violência patrimonial (visual-material): importa em qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos pertencentes à mulher, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
Violência moral (não-visual): Entende-se por violência moral qualquer conduta que importe em calúnia, quando o agressor ou agressora afirma falsamente que aquela praticou crime que ela não cometeu; difamação; quando o agressor atribui à mulher fatos que maculem a sua reputação, ou injúria, ofende a dignidade da mulher. (Exemplos: Dar opinião contra a reputação moral, críticas mentirosas e xingamentos). Obs: Esse tipo de violência pode ocorrer também pela internet.
Diante de tantas formas de violência é que a Lei 11.340/2006 vem tratando em seu artigo 6º que “a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui umas das formas de violação dos direitos humanos” (BRASIL, 2006). Assim, o legislador buscou abarcar as possíveis formas de proteger a mulher de qualquer tipo de violência no plano jurídico e existencial.
A Lei Maria da Penha conceitua a violência física em seu artigo 7º, inciso I: “a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal”. De outro modo a violência física é definida como sendo a que “consiste em provocar, dolosamente, com ou sem marcas aparentes, danos à saúde ou integridade da mulher” (NUCCI, 2015).
Ainda que a agressão não deixe marcas aparentes, o uso da força física que ofenda o corpo ou a saúde da mulher constitui vis corporalis, expressão que define a violência física (DIAS, 2008, p. 46).
O autor explica que são condutas previstas, por exemplo, no Código Penal, configurando os crimes de lesão corporal e homicídio, bem como ainda na Lei de Contravenções Penais, como as vias de fato.
Para as irmãs Muszkata a violência física ocorre quando uma pessoa tem poder em relação à outra e causa, ou tenta causar, dano não acidental por meio da força física ou por algum tipo de arma, podendo provocar lesões externas, internas ou ambas (MUSZKAT, MUSZKAT, 2016, p. 80).
A Lei Maria da Penha conceitua a violência psicológica em seu artigo 7º, inciso II:
a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (BRASIL, 2006).
No item 4.3 será tratada de forma detalhada sobre a Lei nº 13.772/2018 que alterou o inciso II da Lei Maria Penha.
Para (CUNHA, PINTO, 2008, p. 61) a violência psicológica consiste na agressão emocional tão ou mais grave que a física:
O comportamento típico se dá quando o agente ameaça, rejeita, humilha ou discrimina a vítima, demonstrando prazer quando vê o outro se sentir amedrontado, inferiorizado e diminuído, configurando a vis compulsiva. Dependendo do caso concreto, a conduta do agente pode, v.g., caracterizar o crime de ameaça.
Dias (2008) salienta que é o tipo de violência mais frequente, e talvez seja a menos denunciada. “A vítima muitas vezes nem se dá conta que agressões verbais, silêncios prolongados, tensões, manipulações de atos e desejos são violências e devem ser denunciadas”.
Já para Fernandes (2015) a violência psicológica é “uma violência que destrói e subjuga silenciosamente e se mantém por não ser identificada”.
Denota-se a partir desses conceitos que a violência psicológica é de difícil reconhecimento, na medida em que não deixa marcas visíveis no corpo da vítima. Ela se manifesta de forma gentil, como pequenos gestos de “cuidados” iniciando-se num processo de controle pelo homem da mulher, que não identifica a situação de violência. Para Maria Berenice Dias (2008), “a violência psicológica encontra forte alicerce nas relações desiguais de poder entre os sexos”.
A violência sexual prevista no inciso III, da Lei nº 11.340/2006 como:
A violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos (BRASIL, 2006).
A violência sexual é definida pela OMS como “todo ato sexual, tentativa de consumar um ato sexual ou insinuações sexuais indesejadas; ou ações para comercializar ou usar de qualquer outro modo a sexualidade de uma pessoa por meio da coerção por outra pessoa, independentemente da relação desta com a vítima, em qualquer âmbito, incluindo o lar e o local de trabalho” (OMS, 2018)
Segundo o organismo das Nações Unidas, a coerção pode ocorrer de diversas formas e por meio de diferentes graus de força, intimidação psicológica, extorsão e ameaças. A violência sexual também pode acontecer se a pessoa não estiver em condições de dar seu consentimento, em caso de estar sob efeito do álcool e outras drogas, dormindo ou mentalmente incapacitada, entre outros casos. (BRASIL, 2018).
As Nações Unidas definem a violência contra as mulheres como:
Qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais para as mulheres, inclusive ameaças de tais atos, coação ou privação arbitrária de liberdade, seja em vida pública ou privada.” (OMS, 2018).
A violência por parte do parceiro se refere ao comportamento de um parceiro ou ex-parceiro que causa danos físicos, sexuais ou psicológicos – incluindo agressão física, coerção sexual, abuso psicológico e comportamentos de controle. Portanto, a violência sexual é:
Qualquer ato sexual, tentativa de consumar um ato sexual ou outro ato dirigido contra a sexualidade de uma pessoa por meio de coerção, por outra pessoa, independentemente de sua relação com a vítima e em qualquer âmbito. Compreende o estupro, definido como a penetração mediante coerção física ou de outra índole, da vulva ou ânus com um pênis, outra parte do corpo ou objeto (OMS, 2018).
Em sua obra (DIAS, 2008, p. 48) esclarece que a violência sexual foi reconhecida pela Convenção de Belém do Pará como violência contra a mulher. Explica ainda que houveram resistências por parte da doutrina e da jurisprudência em admitir a possibilidade de ocorrência dessa violência no seio familiar, haja vista que o sexo é um exercício de direito do homem. Agressões como essas, asseveram (CUNHA; PINTO, 2008) geralmente, provocam nas vítimas sentimento de culpa, vergonha e medo, o que as faz, não raramente ocultar o evento.
Por isso que Jesus (2015, p. 08) afirma que a violência sexual é um crime clandestino e subnotificado, praticado contra a liberdade sexual da mulher. Provoca traumas físicos e psíquicos, além de expor a doenças sexualmente transmissíveis e à gravidez indesejada.
Assinala ainda com maestria o professor Greco (2017, p. 13) que a conduta de violentar uma mulher, forçando-a ao coito contra sua vontade, não somente a inferioriza, como também afeta psicologicamente, levando-a muitas vezes ao suicídio.
Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, se calcula que são cometidos 143.000 estupros por ano, mas somente 35% das vítimas denunciam. (BRASIL, 2019).
No Brasil, em 2014, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apresentou um seminário em Brasília para apresentar estudos que tratam da violência contra o sexo feminino. Além de uma edição do Sistema de Indicadores de Percepção Social, foi apresentada a Nota Técnica Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. (IPEA, 2014). A pesquisa foi realizada no metrô de São Paulo e revelou que 65% dos entrevistados, na maioria mulheres, concordava com o fato de as mulheres que vestiam roupas curtas mereciam ser atacadas, o que colocou a violência sexual sob os holofotes, diante disso a jornalista Nana Queiroz lançou a campanha “#Eunãomereçoserestuprada”.
É a primeira pesquisa a traçar um perfil dos casos de estupro no Brasil a partir de informações de 2011 do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan). Com base nesse sistema, a pesquisa estima que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e que, destes casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. Os registros do Sinan demonstram que 89% das vítimas são do sexo feminino e possuem, em geral, baixa escolaridade (SINAN, 2014).
O Anuário de Segurança Pública em 2019 registrou 66.041 casos em 2018, 180 estupros por dia, um crescimento de 4,1%. Trouxe também das vítimas de violência sexual 81,8% são do sexo feminino, destas 53,8% tinham até 13 anos, 50,9% são negras e 48,5% são brancas e ainda que 4 meninas de até 13 anos são estupradas por hora. (OMS, 2019).
O crime de estupro vem tipificado no Código Penal, artigo 213 e é assim descrito como: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. (ANGHER, 2017).
Bem pontuado por (GRECO, 2017, p. 12) quando explica que “o núcleo do tipo penal é o verbo constranger com sentido de forçar, obrigar, subjugar a vítima ao ato sexual”.
A ideia de que a mulher era propriedade do homem, primeiramente do seu pai e irmãos, e educada para servir posteriormente ao marido, é algo que vem sendo perpetuado desde que a sociedade existe, ou até mesmo antes dela, e mesmo hoje com todas as informações que se tem acesso, o avanço social e cultural pelo qual passamos o patriarcalismo ainda permanece encravado no subconsciente das sociedades atuais, que mantêm até involuntariamente essa cultura sexista (IBDFAM, 2016).
Nesse sentido, uma das formas que retrata essa opressão perante à classe feminina é o estupro marital, pois historicamente a relação sexual estava ligada a um dever contratual ligada ao casamento. O estupro marital consiste na conjunção carnal forçada dentro da relação conjugal, ou seja, do marido e sua mulher, que foi tratada ao longo dos tempos como uma das obrigações do casamento, embora não existisse nada expresso. (IBDFAM, 2016)
Regressando à ideia de “débito conjugal” os tradicionais doutrinadores brasileiros Hungria e Noronha atribuíam à mulher o “dever” de esposa de manter relação sexual com seu marido; questionavam-se se havia estupro entre o casal, pois a mulher tinha um “débito conjugal”, competia a ela a obrigação de se submeter à pratica sexual:
As relações sexuais são pertinentes à vida conjugal, constituindo direito e dever recíprocos dos que casaram. O marido tem direito à posse sexual da mulher, ao qual ela não se pode opor. Casando-se, dormindo sob o mesmo teto, aceitando a vida em comum, a mulher não se pode furtar ao congresso sexual, cujo fim mais nobre é o da perpetuação da espécie. A violência por parte do marido, não constituirá, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não aceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo, podendo, todavia, ele responder pelo excesso cometido. (NORONHA, 2002, p. 70)
Graças às mudanças legislativas, substituiu-se a tradicional noção de “débito” pela de “liberdade sexual”, que hoje é o bem juridicamente tutelado no Código Penal no tópico referente aos crimes contra a dignidade sexual, esclarece (FERNANDES, 2015, p. 96).
Corroborando com essa ideia Greco ( 2017, p. 31), assenta que não subsiste mais esse entendimento pelo doutrinadores modernos, perdeu-se o sentido de discutir se o marido cometia ou não crime de estupro em relação à mulher, pois que, embora alguns possam querer alegar seu “crédito conjugal”, o marido somente poderá relacionar-se sexualmente com a sua mulher com o consentimento dela.
A Lei Maria da Penha traz o conceito desse tipo de violência em seu artigo 7º, inciso IV assim denominada:
Como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. (BRASIL, 2006)
Rogério Sanches e Ronaldo Batista frisam que essa forma de violência é usada como meio para atingir o resultado das violências física ou psicológica (CUNHA; PINTO, 2008, p. 63).
Já para Scarance Fernandes (2015), esse tipo de violência rompe com o modelo de violência tradicional (como a agressão física), trata-se de uma conduta violadora dos direitos da mulher, viola os direitos patrimoniais.
Guilherme de Souza Nucci, questiona a utilidade deste inciso ao menos na seara penal: “Lembremos que há as imunidades (absoluta e relativa), fixadas pelos arts. 181 e 182 do Cód. Penal nos casos de delitos patrimoniais não violentos no âmbito familiar” (NUCCI, 2019).
Discordando dessa posição doutrinária de Nucci, Berenice Dias assim expôs: “A partir da vigência da Lei Maria da Penha, o varão que ‘subtrair’ objetos da mulher pratica violência patrimonial (art. 7º, IV)”. Esclarece ela que não se aplicam as imunidades previstas no Cód. Penal, não é admissível o afastamento da punição quando o infrator mantém um vínculo de natureza familiar com a mulher vítima. Para ela o fato do infrator possui o vínculo familiar com a vítima é motivo de agravamento da pena (CP, art. 61, II), assim, assevera que incorre em equívoco o célebre jurista Nucci em questionar a utilidade do dispositivo (DIAS, 2011).
A orientação jurisprudencial também segue nesse sentido:
Decidiu o Superior Tribunal de Justiça (STJ) em processo por crime patrimonial entre os cônjuges, com separação de corpos, que a imunidade do art. 181, I, do Código Penal não foi derrogada pela Lei Maria da Penha. Isso porque, “embora tenha previsto a violência patrimonial como uma das que pode ser cometida no âmbito doméstico e familiar contra a mulher, não revogou quer expressa, quer tacitamente, o artigo 181 do Código Penal”. Além disso, “na própria legislação vigente existe a previsão de medidas cautelares especificas para a proteção do patrimônio da ofendida” e no “direito penal não se admite a analogia em prejuízo do réu” (STJ, RHC n. 42.918/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 5.8.2014, Dje 14.8.2014). (FERNANDES, 2015, p. 105).
Rogério Sanches e Ronaldo Batista discordam de Maria Berenice (2008) , os autores coadunam com a ideia de Nucci (2019) quando argumentam que como a Lei Maria da Penha não trouxe expressamente essa previsão de revogação dos dispositivos afastando as imunidades, os dispositivos continuam vigorando e que não se pode fazer eventual aplicação de analogia entre a situação do idoso e da mulher, haja vista que no Estatuto do Idoso esses dispositivos vieram expressamente revogados, portanto, aplicar a analogia seria analogia in malam partem (CUNHA; PINTO, 2008, p. 65).
A violência moral consiste em “qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”, art. 7º, inciso V da Lei nº 11.340/2006 (BRASIL, 2006). Os crimes de calúnia, difamação ou injúria são crimes de violência verbal que estão tipificados no Código Penal, na Parte Especial, Título I dos crimes contra a pessoa, Capítulo V dos crimes contra a honra (ANGHER, 2017).
Em sua obra organizada, a autora Carmen Hein de Campos registra a diferença entre os tipos penais do Código Penal e os mesmos tipos penais descritos na Lei Maria da Penha sobre os crimes contra a honra:
A diferença entre os tipos genericamente concebidos no Código Penal e sua previsão na Lei Maria da Penha são a especificidade de todo o ato considerado como violência doméstica e familiar contra a mulher, que conceitualmente impõe o agente ter relações familiares ou afetivas e íntimas, considerado por isso de âmbito doméstico (CARMEN, 2011, p. 210).
Dias (2008, p. 54) complementa os delitos contra a honra quando acometidos no âmbito familiar caracterizam violência doméstica contra a mulher, portanto, será aplicada a agravante descrita no Cód. Penal, art. 61, II,ƒ (BRASIL, 1940).
É uma violência verbal que segundo os autores Cunha e Pinto (2008, p. 65) , normalmente se dá concomitante à violência psicológica, seguindo o mesmo entendimento de Berenice Dias ( 2008, p. 54).
A violência moral é uma das formas mais comuns de dominação da mulher. Xingamentos públicos e privados mina a autoestima e expõem a mulher perante amigos e familiares, contribuindo para seu silêncio. Carmen alerta ainda que a mulher tem sofrido violência moral em novas dimensões com o uso de tecnologias de informação e redes de internet e que isso acarreta violação do direito à personalidade em geral e das mulheres, em particular, quando tal violação pressupuser a manutenção da desigualdade de gênero. Ou seja:
Quando as ofensas forem divulgadas em espaços virtuais massivamente e em rede, de forma instantânea e de difícil comprovação e combate, fortalecendo sentimentos ou percepções discriminatórias e reproduzindo padrões de relações desiguais de poder entre homens e mulheres, que importam em anular a condição de sujeito dessas (CARMEN, 2011, p. 210).
O estado de saúde mental, a higidez espiritual, a auto-estima das mulheres vítimas da cotidiana e incessante violência verbalizada é grave e lamentável, resultante numa nulificação psicológica da ofendida (AMARAL, 2011, p. on line).
3 APLICAÇÃO DAS MEDIDAS DE URGÊNCIA PELOS AGENTES DE SEGURANÇA PÚBLICA NA LEI Nº 13.827/2019
A investigação criminal, com vistas a verificar os pormenores que circundam a agressão contra uma mulher no âmbito das relações domésticas, serve para dar suporte à ação penal, com o fulcro de proporcionar ao Ministério Público a oportunidade de pleitear em juízo a punição do agressor, satisfazendo assim a justiça e à punibilidade. Sobre essa questão, o ilustrado Fernando Capez ressalta que o direito de punir consiste em um:
(...) direito de pedir ao Estado-Juiz a aplicação do direito penal objetivo a um caso concreto. É também o direito público subjetivo do Estado-Administração, único titular do poder-dever de punir, de pleitear ao Estado-Juiz a aplicação do direito penal objetivo, com a consequente satisfação da pretensão punitiva. (CAPEZ, 2016, p. 111).
Incube, nesse sentido, a Polícia Judiciária, por meio da investigação de violências contra a mulher, a apuração dos delitos. A investigação criminal é assim um instrumento no qual se verá os fatos referentes à violência doméstica levados posteriormente ao juízo. Para tanto deverá ser efetivado por meio do Inquérito Policial.
No âmbito da polícia judiciária, exercida pela polícia investigativa, a preocupação é com a infração e sua solução no que tange a descobrir a autoria e materialidade do crime, no caso em tela da agressão contra mulher no âmbito das relações domésticas, com o fito de subsidiar eventual ação penal proposta pelo Ministério Público.
No art. 11 da Lei Maria da Penha estão arroladas providências exemplificativas que a autoridade policial também deve adotar no atendimento à mulher, sem prejuízo de outras. A primeira delas é o dever de proteção policial. Barbosa e Foscarini (2011, p. 251) entendem que o inciso I admite diversas interpretações, mas os operadores do direito devem avaliar as reais necessidades da mulher que sofreu violência, especialmente no momento da prática ou da iminência de acontecer. Cunha e Pinto (2012, p. 85) criticam este inciso afirmando que o legislador divorciou- se da realidade ao prever que, efetivamente, a polícia poderia conferir proteção integral à vítima. Na prática, com o volume de trabalho e a inexistência de quadro de funcionários suficientes para atender a demanda das delegacias e das companhias de polícia militar, é impossível garantir que a vítima esteja segura 24 (vinte e quatro) horas por dia, mas, dentro das possibilidades, os profissionais devem estar à disposição da mulher para que seja garantido o mínimo de segurança, de forma que a mesma se estabeleça em um lugar seguro.
Com relação à segunda parte do inciso I, a comunicação ao parquet e ao Judiciário é indispensável. Ciente da situação de violência, o MP poderá requerer novas diligências ao delegado e providências em favor da vítima em juízo. O juiz, por sua vez, fica autorizado a agir de ofício em alguns casos, por exemplo, se for necessário determinar a prisão do agressor ou deferir novas MPU (art. 19, caput e art. 20 da Lei nº 11.340/06).
Quanto ao encaminhamento para hospital, posto de saúde ou Instituto Médico
Legal (IML), este deve ser feito com garantia policial. Num primeiro momento, se a vítima chegar lesionada à Delegacia, ela deve ser encaminhada para o posto de saúde ou hospital mais próximo, para não haja agravamento no seu estado de saúde.
O mais correto neste caso é a vítima ser levada em viatura policial para o Hospital ou IML, a fim de submeter-se aos cuidados médicos e ao exame de corpo de delito, sendo inadmissível dar à vítima uma requisição para que ela se dirija por sua conta até o órgão de perícia criminal (SOUZA 2015, p. 70).
A providência do transporte também tem caráter essencial, pois, além de dar segurança à ofendida, preserva o sigilo dos abrigos ou do local onde se instalou provisoriamente a vítima e seus dependentes. Como visto, havendo ameaça de nova violência contra a mulher, a possibilidade de afastamento do agressor do lar deverá ser requerida. Porém, havendo risco de morte para a mulher e seus dependentes, o mais acertado é optar por um abrigo oferecido pelo Estado, se em outro lugar não puderem se recolher.
Ademais, em caso de demora na decisão judicial de afastamento do agressor do lar, a retirada espontânea da vítima para abrigo poderá ser uma solução provisória. O recolhimento da vítima e dependentes em casas de abrigo é uma medida fundamental de proteção nos casos em que a violência obriga a ofendida a sair do lar e esta se vê sem lugar para se instalar. Com relação ao acompanhamento da vítima para retirada de seus pertences (inciso IV), este deve se necessário, ser realizado com mandado judicial (BITTENCOURT, 2018). Se houver controvérsia sobre a propriedade da coisa a qual a mulher quer retirar, “não deve a autoridade policial permitir sua retirada sem que, antes, seja a controvérsia decidida nas vias judiciais adequadas, onde se estabelecerá a partilha de bens” (CUNHÁ, 2014, p 43).
O dever de informação (inciso V) dos direitos da vítima e serviços de atendimento a ela destinados, por sua vez, também é de responsabilidade da autoridade policial.
Outra questão fundamental para a humanização do atendimento às mulheres que procuram as Delegacias da Mulher é fazer os profissionais compreenderem “os ciclos da violência, pois o fenômeno da violência contra a mulher não pode ser pensado apenas como um episódio isolado, mas sim em um processo contínuo e repetitivo” (MISTRETTA, 2011, p. 05).
Para isso, a qualificação do profissional é indispensável no atendimento. Para esse objetivo ser alcançado, mais eficaz seria que a equipe multidisciplinar, na ocasião do pedido das Medidas Protetivas de Urgência, fosse responsável por prestar as referidas informações.
O Superior Tribunal de Justiça entende que o descumprimento da medida protetiva da Lei Maria da Penha não configura o crime de desobediência e é nessa esteira que aplica sua interpretação. Vejamos uma decisão da Corte:
DIREITO PENAL. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA PREVISTA NA LEI MARIA DA PENHA. O descumprimento de medida protetiva de urgência prevista na Lei Maria da Penha (art. 22 da Lei 11.340/2006) não configura crime de desobediência (art. 330 do CP). De fato, a jurisprudência do STJ firmou o entendimento de que, para a configuração do crime de desobediência, não basta apenas o não cumprimento de uma ordem judicial, sendo indispensável que inexista a previsão de sanção específica em caso de descumprimento (HC 115.504-SP, Sexta Turma, Dje 9/2/2009). Desse modo, está evidenciada a atipicidade da conduta, porque a legislação previu alternativas para que ocorra o efetivo cumprimento das medidas protetivas de urgência, previstas na Lei Maria da Penha, prevendo sanções de natureza civil, processual civil, administrativa e processual penal. Precedentes citados: REsp 1.374.653-MG, Sexta Turma, DJe 2/4/2014; e AgRg no Resp 1.445.446-MS, Quinta Turma, DJe 6/6/2014. STJ – 5ª Turma – RHC 41.970- MG, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 7/8/2014 (Vide Informativo n. 538) (Informativo nº 544).
Para a Corte não configura o crime quando o agressor desatende a ordem se houver previsão legal de sanção civil, administrativa ou processual penal para o descumprimento sem que a lei ressalve a sanção criminal. Assim, caso o agressor se insurja contra a medida protetiva basta aplicar as sanções previstas na própria Lei Maria da Penha como a execução da multa imposta pelo art. 22, § 4º e a decretação da prisão preventiva art. 20, sem a necessidade de uma responsabilização criminal. O novel legislativo de nº 13.641/2018 que alterou a Lei nº 11.340/06 inseriu o primeiro tipo penal incriminador, qual seja, a conduta do descumprimento das medidas protetivas de urgência, a ora comentada lei inseriu a seção IV com o seguinte art. 24-A:
“ Seção IV
Do Crime de Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.
§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.
§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.”.
Note-se que a norma inovadora vai ao encontro com a jurisprudência do STJ, porém perdeu-se o sentido dessa discussão com o novo tipo penal incriminador.
Tratando diferentemente do tipo penal incriminador o objeto tutelado é a manutenção do respeito às decisões. Judiciais. Trata-se de crime próprio, sendo, portanto, o sujeito ativo apenas a pessoa vinculada à medida protetiva de urgência. O sujeito passivo, por outro lado, é, primariamente, a Administração da Justiça, mas secundariamente a própria vítima da violência doméstica e familiar (NETO, 2018).
Conforme se extrai do § 1º da norma ora estudada, o crime configura-se independentemente da esfera processual. É cabível ressaltar que a violência doméstica nem sempre configura crime e as medidas protetivas são autônomas em relação à persecução criminal, ocasião em que ostentam natureza cautelar civil (HOFFMANN, 2018)
Curiosamente o legislador restringiu a concessão de fiança somente ao magistrado e vedou à autoridade policial. Deste modo, a intenção legislativa foi ampliar o âmbito de proteção à mulher, pois é sabido que aos crimes cuja pena máxima não exceda quatro anos cabe ao delegado de polícia arbitrar fiança e livrar se solto o agressor, na lei em comento o legislador excepcionou a regra prevista no art. 322 do CPP quanto ao poder dado à autoridade policial. A vedação da fiança arbitrada pelo delegado de polícia em tais casos não viola a Constituição Federal em termos de proporcionalidade sob o ângulo negativo (GOMES, 2016).
No caso da violência doméstica e familiar contra a mulher, mais do que um mandamento constitucional interno de criminalização, como ocorre com os crimes hediondos (artigo 5º., XLIII, CF), o Brasil reconhece nos tratados internacionais e na legislação interna que essa espécie de violência constitui grave violação dos Direitos Humanos (vide artigo 6º, da Lei 11.340/06 c/c artigo 4º, II, CF) (NETO, 2018).
Por derradeiro, importante salientar que a ocorrência do tipo penal incriminador não impede a imposição de sanções de outra natureza, como a execução de multa eventualmente imposta e a decretação da prisão preventiva caso esteja presente algum de seus requisitos (artigo 313, III do CPP) (OLIVEIRA, 2015)
Nesse contexto, cite-se recente alteração legislativa promovida pela Lei n° 13.827 de 13 de maio 2019. Tal diploma legal altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para autorizar, nas hipóteses que especifica, a aplicação de medida protetiva de urgência, pela autoridade judicial ou policial, à mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou a seus dependentes, e para determinar o registro da medida protetiva de urgência em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça.
O texto, que altera a LMP é oriundo do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 94/2018, aprovado no Senado em abril de 2019. Aprovada sem vetos, a nova norma que modificou a lei protetiva à mulher vítima de violência doméstica autoriza especificamente no que tange à aplicação das medidas protetivas de urgência o delegado de Polícia ou o Policial Civil ou ainda o Policial Militar a afastar o agressor do lar ou do local de convivência com a ofendida quando for verificada a existência de risco atual e iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, além de determinar o registro da medida protetiva em bancos de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2006).
Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:
I - pela autoridade judicial;
II - pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou
III - pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.
§ 1º Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente.
§ 2º Nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso.
Essa alteração foi alvo de críticas e elogios. Lembrando que a referida modificação já havia sido objeto de discussão na Lei nº 13.505/17.
O art. 12-C autoriza esse afastamento do agressor pelo delegado ou pelos policias civil ou militar somente em municípios que não forem sede de comarcas, ou seja, que não tiver um juiz que possa conceder a medida impositiva, ressalvando a chancela judicial nas 24 horas seguintes. Aqui reside a grande discussão, pois há quem arguiu a inconstitucionalidade da norma, pois tal autorização violaria o princípio da reserva jurisdicional enquanto que outros defendem que não porque necessário é a homologação pelo magistrado, ou seja, de qualquer forma só se efetiva o afastamento se o juiz concordar com a medida.
Guilherme de Souza Nucci é um dos defensores de que a alteração não é inconstitucional. Ele escreveu um artigo jurídico no site Conjur intitulado “Alterações na LMP trazem resultados positivos”. Pontua o jurista que a lei preservou a reserva de jurisdição ao magistrado, pois a última palavra será dada por ele, assim como ocorre na prisão em flagrante feita pelo delegado. Ele não só defende que o delegado possa aplicar a medida como também os policiais quando da ausência da autoridade policial, “ora, policiais devem prender em flagrante quem estiver cometendo crime; depois o delegado avaliará e, finalmente, o juiz dará a última palavra” (NUCCI, 2019).
Saliente Nucci (2019) que não visualiza inconstitucionalidade, tampouco usurpação de jurisdição, ao contrário, o que se privilegia é a proteção da mulher, a dignidade da pessoa humana, pois num país de extensa dimensão não se pode deixar escapar o agressor porque naquela localidade não existe um representante estatal (juiz ou delegado). “O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana encontra-se acima de todos os demais princípios e é perfeitamente o caso de se aplicar nesta hipótese”.
Renato Brasileiro opina pela inconstitucionalidade em sua obra Legislação Criminal Especial Comentada, arguiu que toda e qualquer espécie de provimento cautelar está condicionado à manifestação fundamentada do Poder Judiciário:
Seja previamente ou nos casos de prisão preventiva, temporária e imposição autônoma das medidas protetivas de urgência, seja pela necessidade de imediata apreciação da prisão em flagrante, devendo o magistrado indicar de maneira fundamentada, com base em elementos concretos existentes nos autos, a necessidade de segregação cautelar, inclusive com apreciação de cabimento de liberdade provisória, com ou sem fiança (CPP, art. 313, II e III), sem prejuízo da aplicação cumulativa das medidas cautelares diversas da prisão (LIMA, 2016, p. 934).
O autor argumenta que todas essas afetam direta ou indiretamente a liberdade de ir e vir da pessoa, com maior ou menor grau de intensidade, portanto, não se admite que elas possam ser decretadas por outras autoridades diversas do juiz competente. Para a presidente da Comissão de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Adélia Moreira Pessoa o novo art. 12-C não é inconstitucional conquanto o âmbito de incidência desta norma é restrito aos municípios que não forem sede de comarca e sujeito ao controle jurisdicional em 24 horas como determinado”.
Em relação a esse novo artigo lembra Adélia que:
Que o Brasil ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher (Cedaw, 1979) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994), além de diversos outros instrumentos de proteção à mulher e a Lei 11.340/06, que estabeleceu as medidas protetivas de urgência que, muitas vezes, frente à dimensão continental do Brasil, não são efetivamente aplicadas nos prazos previstos na lei, com a concessão e o cumprimento da medida sendo realizados em tempo incompatível com a urgência necessária. (IBDFAM, 2013)
Sua crítica é pontual em relação à aplicação da medida por parte dos policiais civil ou militar quando da ausência do delegado de polícia nos municípios “pareceu-me muito genérica, muito abrangente, como que isentando o Estado da obrigação de disponibilizar delegados em todos os municípios (IBDFAM, 2019). Quanto ao parágrafo 2º do artigo em comento Nucci (2019) demonstra preocupação, lembra ele que o legislador se mostrou ingênuo e desinformado quanto à não concessão da liberdade provisória ao agressor que muitas vezes é afastado do lar por crimes de menor potencial ofensivo como ameaça ou lesão simples, assim, a medida se mostra sem amparo constitucional e ofende aos princípios da proporcionalidade e legalidade. Finalmente, em relação ao art. 38-A sua adição é salutar, pois permitirá um controle maior controle em decisões tomadas em face da mulher agredida garantindo o acesso a diversos órgãos que atuam na proteção da LMP.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em sede de conclusão, no presente estudo se verificou que entre as diversas alterações legislativas inseridas na Lei Maria da Penha cite-se a alteração legislativa promovida pela Lei n° 13.827 de 13 de maio 2019. Tal diploma legal altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para autorizar, nas hipóteses que especifica, a aplicação de medida protetiva de urgência, pela autoridade judicial ou policial, à mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou a seus dependentes, e para determinar o registro da medida protetiva de urgência em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça.
Com isso, no estudo em questão, se analisou a aplicação das medidas protetivas de urgência pelos agentes de segurança, nos termos da Lei n° 13.827/2019.
Nesse contexto, a nova legislação trouxe divergências doutrinárias, visto que alguns autores, conforme explicitado no estudo em comento argumentaram pela inconstitucionalidade da norma, pois tal autorização violaria o princípio da reserva jurisdicional enquanto que outros defendem que não porque necessário é a homologação pelo magistrado, ou seja, de qualquer forma só se efetiva o afastamento se o juiz concordar com a medida. Nesse contexto, há significativa discussão, pois há quem arguiu a inconstitucionalidade da norma, pois tal autorização supostamente violaria o princípio da reserva jurisdicional enquanto que outros defendem que não porque necessário é a homologação pelo magistrado, ou seja, de qualquer forma só se efetiva o afastamento se o juiz concordar com a medida. Alegam ainda que a nova legislação afronta a liberdade de ir e vir da pessoa, sendo que não se admite que elas possam ser decretadas por outras autoridades diversas do juiz natural.
Já outros afirmam que a Lei é constitucional visto que a lei preservou a reserva de jurisdição ao magistrado, pois a última palavra será dada por ele, assim como ocorre na prisão em flagrante feita pelo delegado. Assim, a medida restritiva será validada, ou não, pelo juiz competente, não afetando as prerrogativas inerentes à reserva de jurisdição. A despeito da celeuma, destaca-se que a Lei trouxe um importante passo na evolução do combate à violência doméstica. Resta saber como os tribunais analisarão a aplicabilidade da norma e, consequentemente, sua constitucionalidade.
REFERÊNCIAS
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MINISTÉRIO DA SAÚDE. Violência Intrafamiliar: orientações para a Prática em Serviço. Brasília DF: Ministério da Saúde; 2002.
NUCCI, Guilherme de Souza. 2007. Leis penais e processuais penais comentadas. 2ª ed.São Paulo: RT.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
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SILVA, Edison Miguel. Lei Maria da Penha: Conduta baseada no gênero. Disponível em <http://www.mpgo.mp.br/portalweb/hp/7/docs/lei_maria_da_penhaconduta_baseada_no_genero.pdf> Acesso em 23 de maio de 2020.
SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentário a Lei de Combate à Violência Contra a Mulher.2ed. Curitiba: Juruá, 2018
Graduando em Direito pela Fasec Faculdade Serra do Carmo
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Osvaldo Rego Oliveira. Aplicação das Medidas de Urgência pelos Agentes de Segurança Pública na Lei nº 13.827/2019 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jun 2020, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54675/aplicao-das-medidas-de-urgncia-pelos-agentes-de-segurana-pblica-na-lei-n-13-827-2019. Acesso em: 22 nov 2024.
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