ÊNIO WALCACER DE OLIVEIRA FILHO[1]
(orientador)
Resumo: A presente pesquisa tem por finalidade analisar o uso progressivo da força e a letalidade policial à luz da Lei nº 13.964/2019, que amplia a excludente de ilicitude ao agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão à vítima. Esta alteração tem como propósito aumentar a eficácia das ações que envolvam crime de sequestro, de modo a permitir, no âmbito de um contexto fático, o uso de instrumentos letais com a finalidade de zelar pela vida da vítima. Não obstante esta previsão legal possuir característica de proteção à vida e de ordem social, objetiva-se com este estudo, tecer comparativos com o dispositivo legal anterior, bem como delinear sobre os problemas advindos de tal medida, expondo o entendimento de estudiosos sobre a ineficácia desta alteração. Abordaremos aspectos conceituais e históricos da excludente de ilicitude no Brasil, e trazer reflexões sobre o uso progressivo da força, comumente adotado por países desenvolvido. O presente trabalho adotou como metodologia de pesquisa a dedutiva-qualificativa, consubstanciada em ampla revisão bibliográfica composta por doutrinas jurídicas, matérias jornalísticas, jurisprudência e legislação. O objetivo deste trabalho é analisar os impactos gerados com a tipificação da ampliação de legitima defesa, notadamente se não se tornou uma licença para matar.
PALAVRAS-CHAVE: Legítima Defesa; Letalidade Policial; Uso Progressivo da Força.
Abstract: This research aims to analyze the progressive use of force and police lethality in the light of Law No. 13.964 / 2020, which expands the exclusion of illegality to the public security agent who repels aggression or the risk of aggression to the victim. This amendment aims to increase the effectiveness of actions involving the crime of kidnapping, in order to allow, within a factual context, the use of lethal instruments in order to care for the victim's life. Despite the fact that this legal provision has characteristics of protection of life and social order, the objective of this study is to make comparisons with the previous legal provision, as well as to outline the problems arising from such measure, exposing the understanding of scholars about the ineffectiveness this change. We will address conceptual and historical aspects of the exclusion of illegality in Brazil, and bring reflections on the progressive use of force, commonly adopted by developed countries. The present study adopted the deductive-qualifying research methodology, embodied in a wide bibliographic review composed of legal doctrines, journalistic articles, jurisprudence and legislation. The objective of this work is to analyze the impacts generated by the typification of the expansion of legitimate defense, especially if it has not become a license to kill.
KEYWORDS: Self-defense; Police lethality; Progressive Use of Force.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Conceito e Características das Excludentes de Ilicitude no Direito Penal Brasileiro. 2.1. Estado de Necessidade. 2.2. Estrito Cumprimento do Dever Legal. 2.3. Exercício Regular de Direito. 2.4. Legítima Defesa. 2.4.1. Legítima Defesa de Agentes da Segurança Pública - anterior à inclusão da Lei nº 13.964/19. 3. Uso Progressivo da Força. 4. Legítima Defesa aos Agentes de Segurança segundo a Lei nº 13.964/2019 e o Uso Progressivo da Força. 5. Considerações Finais. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O Brasil como país em desenvolvimento possui inúmeros problemas de ordem social, cultural e educacional, e isto, aliado a fatores econômicos faz com que alcancemos índices alarmantes de violência no cenário mundial.
Diante deste contexto caótico e crescente de violência, recentemente fora promulgada por iniciativa do Poder Executivo, a Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, popularmente denominada “Pacote Anticrime”, cuja ementa é aperfeiçoar a legislação penal e processual penal. A lei modificou diversos dispositivos no âmbito penal e processual penal, com o objetivo de diminuir a criminalidade e adequar os diplomas legais às atuais necessidades da sociedade.
Não obstante a boa intenção legislativa há de se destacar, que dentre as alterações efetivadas, está a inclusão de um parágrafo na Excludente de Ilicitude de Legítima Defesa, prevista no art. 25 do Código Penal, destinada aos agentes de segurança quando da atuação em casos envolvendo vítima mantida como refém.
Diante desta extensão da legítima defesa, surgem as seguintes problemáticas de pesquisa: a legítima defesa concedida ao agente de segurança inserta na Lei nº 13.964/19, trata-se de uma “licença para matar”? Qual o meio adequado para agir em situações envolvendo reféns?
Como se observa, é de suma importância o estudo desta temática, haja vista que nos países desenvolvidos a letalidade é o último recurso utilizado pelos policiais em uma situação de risco, comumente adota-se o uso gradativo da força, no intuito de salvaguardar a vida e a incolumidade física do transgressor.
Com a legitimação desta excludente, tem-se como objetivo geral averiguar se haverá uma banalização da vida sob a alegação de legítima defesa, e consequentemente uma rasura na garantia fundamental e constitucional do Direito à existência.
Em linhas específicas será abordado o texto normativo anterior à alteração do art. 25 do Código Penal, comparando-o ao atual regramento, bem como os métodos utilizados por países desenvolvidos para a solução de situações de risco, e os meios adequados para preservação da vida do infrator e da vítima.
Este trabalho adota como metodologia de pesquisa, a documental teórica alicerçada em doutrinas jurídicas, legislações relacionadas, matérias jornalísticas e entendimento de Tribunais e especialistas da área, através de uma abordagem qualitativa.
O trabalho tratará de aspectos conceituais e interpretativos de estudiosos sobre temas afetos à excludente de ilicitude e aplicação gradativa da força, através da análise da bibliografia de autores como CAPEZ (2018), MASSOM (2017), NUCCI (2020), CAPEZ (2018), dentre outros.
2. CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DA EXCLUDENTE DE ILICITUDE NO DIREITO PENAL BRASILEIRO.
O sistema jurídico penal brasileiro estrutura as condutas socialmente reprováveis em um texto formal, em que se estabelecem entre outras, as respectivas sanções estatais utilizadas para reprimir e coibir tal ato.
Entretanto, há situações em que a própria norma afasta o aspecto sancionador em que determinado ato se inseriria, em razão da forte motivação que o reveste. Trata-se da exclusão de ilicitude, prevista no art. 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que deste ponto em diante, chamaremos apenas de Código Penal:
Exclusão de ilicitude
Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato
I - em estado de necessidade;
II - em legítima defesa;
III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito
Excesso punível
Parágrafo único - O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.
Percebe-se que o legislador elencou as situações em que, embora a conduta realizada pelo agente seja penalmente reprovável, não será considerado crime e, consequentemente, não haverá pena, são as denominadas excludentes de ilicitude: estado de necessidade, legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito.
Discorrendo sobre o assunto, Masson (2017, p. 424-425), traz a seguinte informação:
O Código Penal possui em sua íntegra causas genéricas e específicas de exclusão de ilicitude. Causas genéricas ou gerais são as previstas na Parte Geral do Código Penal. Aplicam-se a qualquer espécie de infração penal, e encontram-se previstas no art. 23 e seus incisos: estado de necessidade, legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito. Causas específicas, ou especiais, podem ser definidas como as previstas na Parte Especial do Código Penal (e na legislação especial) com aplicação unicamente a determinados crimes, ou seja, somente àqueles delitos a que expressamente se referem, a exemplo dos arts. 128 (aborto), 142 (injúria e difamação), 146, § 3º, I e II (constrangimento ilegal), 150, §3º, I e II (violação de domicílio) e 156, §2º (furto de coisa comum), todos do Regimento Repressivo.
As excludentes de ilicitude previstas no art. 23 são aplicáveis a todos os tipos de infração penal, já as previstas na parte especial do Código Penal e em legislação especial, devem estar expressamente consignadas no dispositivo.
Para não haver um distanciamento do tema proposto neste estudo, abordaremos de forma sucinta o estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular de direito, para aprofundarmos um pouco mais sobre a legítima defesa, com enfoque ao atribuído às forças policiais.
2.1. ESTADO DE NECESSIDADE
O art. 24 do Código Penal estabelece que se encontra em estado de necessidade: “quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.”
Por óbvio, quem tem o dever legal de enfrentar o perigo não pode alegar o estado de necessidade, conforme disposto no § 1 º do aludido artigo.
O estado de necessidade pressupõe a existência de um perigo (atual) que incida em conflito dois ou mais interesses legítimos, que, pelas circunstâncias, não podem ser todos salvos. Neste caso, um interesse cede aos demais, como verificamos no exemplo do naufrágio, onde duas pessoas se veem obrigadas a dividir uma mesma tábua, que somente suporta o peso de uma delas. Pelo estado de necessidade, o direito autoriza um deles a matar o outro, se outra não for a opção, para salvar a sua própria vida (ESTEFAM, 2018, p. 308).
Observa-se pela leitura do exemplo que houve o assassinato, cuja motivação foi a autopreservação, neste caso a lei afasta o homicídio, tendo em vista a necessidade de salvar a sua vida.
2.2. ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL
O Estrito Cumprimento do Dever Legal incide sobre aquele que possui o dever legal de praticar determinado ato, dentro dos limites legais, e que por este motivo, não pode responder concomitantemente por um ilícito penal, haja vista ser inconcebível ter uma lei que permita determinada ação e ao mesmo tempo a recrimine.
Acerca do estrito cumprimento do dever legal, Junqueira; Vanzolini (2019, p. 115), esclarecem que:
Primeiro é necessária a existência de uma dever legal, lei, no caso em sentido amplo (lei, decreto, regulamento etc.). O que não basta é um mero dever contratual (que pode dar azo, conforme o caso, ao exercício regular de direito). No exemplo de Assis Toledo, atuam licitamente os agentes do Poder Público que realizam prisões, arrombamento, busca e apreensão de pessoas ou coisas, porta adentro de uma residência, em cumprimento de mandados judiciais. E, no desempenho de missões dessa natureza, se houver resistência, ainda que por parte de terceiros, no caso de prisão, podem os executores usar os meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência.
As atribuições que se revestem o dever legar tem que estar previsto em norma, o que já denota a diferença entre o exercício regular de um direito.
No cumprimento do dever legar a lei autoriza a atuação e, por consequência, deve propiciar o adequado respaldo jurídico para o seu exercício, sob pena de tornar inócua a previsão. Nota-se que esta excludente abarca muitas das ações policiais, como a realização de busca e apreensão, efetuar prisões e arrombamentos.
Embora muito próximo da temática apresentada neste trabalho, mais adiante apontaremos as diferenças entre este instituto e o da legítima defesa.
2.3. EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO
O Exercício Regular de um Direito é aventado quando do exercício de uma prerrogativa concedida pelo ordenamento jurídico. Conforme preleciona Capez (2018, p. 451-452), o exercício regular de Direito deve ser compreendido como:
Causa de exclusão da ilicitude que consiste no exercício de uma prerrogativa conferida pelo ordenamento jurídico, caracterizada como fato típico.(...)
Deve ser entendida em sentido amplo, abrangendo todas as formas de direito subjetivo, penal ou extrapenal, por exemplo, o jus corrigendi do pai de família que deriva do poder familiar (CC, art. 1.634, I). São também fontes de direito subjetivo os regulamentos e as provisões internas de associações autorizadas legalmente a funcionar, cujo exercício regular torna lícito o fato típico, por exemplo, as lesões praticadas nas competições esportivas. Cite-se também os castigos infligidos pelo mestre-escola derivados de regulamentos internos de estabelecimentos de ensino, as providências sanitárias de autoridades públicas que derivam do poder de polícia do Estado e que vêm reguladas em portarias, instruções etc.
Da leitura do excerto, observa-se que o exercício regular de direito é cabível em várias ramificações distintas, desde castigos escolares (dentro dos parâmetros legais) à competições esportivas, e neste caso, citamos como exemplo lutas livres, futebol, etc., haja vista que as lesões infligidas aos competidores são características da própria atividade esportiva.
Insta destacar também que pela doutrina tradicional as intervenções médicas e cirúrgicas também são alcançadas pelo exercício regular de direito. Seguindo este raciocínio eventuais amputações de membros (pés, mãos, etc.) ou lesões que visem salvar a vida do paciente são consideradas lícitas.
2.4. LEGÍTIMA DEFESA.
Conforme mencionado anteriormente, a legítima defesa está prevista no inciso II do art. 23 do Código Penal. De modo mais específico, o artigo 25 do mesmo diploma legal traz o conceito de legítima defesa, conforme se observa: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”
A legítima defesa está relacionada com a autodefesa ou à defesa de terceiros (neste incluídos os agentes de segurança pública), de toda sorte, deve estar presente à utilização de meios moderados para repelir a agressão atual ou iminente.
São requisitos da legítima defesa: a) a reação a uma agressão atual ou iminente e injusta; b) a defesa de um direito próprio ou alheio; c) a moderação no emprego dos meios necessários a repulsa; e d) o elemento subjetivo.
A agressão é sinônimo de ataque. Sendo assim, a simples provocação não enseja a legítima defesa, podendo ainda ser ativa ou omissa. Esta agressão só pode ser humana, se for animal, caracteriza-se estado de necessidade. A agressão atual é aquela que está acontecendo e a iminente é a que está prestes a acontecer.
Quanto à defesa de direito próprio ou alheio, deve ser compreendido como qualquer direito (liberdade, honra, patrimônio, vida, etc.), em que uma pessoa se defende ou defende direito de outrem, de terceiros.
Feitas as considerações sobre estado de necessidade e legítima defesa, insta trazer as diferenças entre estes dois institutos, que nas palavras de Estefam; Gonçalves (2018, p. 655-656), compreende:
Pode-se dizer, em síntese, que as principais excludentes de ilicitude (legítima defesa e estado de necessidade) diferem nos seguintes aspectos:
- a legítima defesa pressupõe agressão, e o estado de necessidade, perigo;
- nela, só há uma pessoa com razão; no estado de necessidade, todos têm razão, pois seus interesses ou bens são legítimos;
- há legítima defesa ainda quando evitável a agressão, mas só há estado de necessidade se o perigo for inevitável;
- não ocorre legítima defesa contra ataque de animal (salvo quando ele foi instrumento de uma agressão humana), mas existe estado de necessidade nessa situação.
Embora muito próximos, a legítima defesa se distingue do estado de necessidade, uma vez que este corresponde a uma situação de agressão de um direito alheio e de valor jurídico igual, já naquele, o indivíduo encontra-se diante de uma situação atual ou iminente de injusta agressão, dirigida a si ou a terceiro, a qual não é obrigada a suportar.
Em seguida tratar-se-á da legítima defesa de agentes de segurança pública.
2.4.1 Legítima Defesa de Agentes da Segurança Pública - anterior à inclusão da Lei nº 13.964/19.
No tocante a legítima defesa de terceiros, em casos que envolvem a intervenção do Estado através das forças policiais, como, por exemplo, a agressão ou risco de agressão à vítima mantida refém durante a prática de crimes, a Constituição Federal prevê a atuação das forças de segurança:
Art. 144. CRFB/88. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para preservação da ordem pública e da incolumidade de pessoas e do patrimônio.
É nítido que esse dispositivo constitucional é garantidor de proteção a direito individual e coletivo, em total consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana expresso no inciso III, do art. 1°[2] da CRFB/88.
Para exercer esta preservação da ordem pública, de pessoas e do patrimônio a norma penal prevê algumas excludentes de ilicitude ao agente de segurança, como o estado de necessidade, já mencionado aqui anteriormente.
A legítima defesa é aplicável a qualquer pessoa, e antes da vigência da Lei nº 13.964/19 não havia nenhum dispositivo expresso e específico sobre a legítima defesa para os policiais. Como se trata do cerne do presente estudo, abordaremos esta temática oportunamente.
Atrelada a esta atuação estatal, na promoção da segurança pública, o Código de Processo Penal estabelece em alguns de seus dispositivos, a possibilidade de o agente de segurança atuar com o emprego da força, vejamos:
Art. 284. Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.
[...]
Art. 292. Se houver, ainda que por terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.
Art. 293. Se o executor do mandado verificar, com segurança, que o réu entrou ou se encontra em alguma casa, o morador será intimado a entregá-lo, à vista da ordem de prisão. Se não for obedecido imediatamente, o executor convocará duas testemunhas e, sendo dia, entrará à força na casa, arrombando as portas, se preciso; sendo noite, o executor, depois da intimação ao morador, se não for atendido, fará guardar todas as saídas, tornando a casa incomunicável, e logo que amanheça, arrombará as portas e efetuará a prisão.
O emprego da força também é mencionado nos artigos 231, 232 e 234[3] do Código de Processo Penal Militar (CPPM/69), entretanto, não existe no Brasil uma lei específica que detalha os procedimentos de uso da força ou as regras a serem seguidas quando da formação e treinamento policial. Este assunto será explorado no capítulo seguinte.
3. USO PROGRESSIVO DA FORÇA.
Como não há regulamentação específica sobre o emprego da força policial, o Brasil segue as diretrizes mundiais sobre a matéria. Tanto o Código de Conduta para Encarregados da Aplicação da Lei – CCEAL (ONU, 1979)[4], adotado pela Assembleia Geral das Nações , em 17 de dezembro de 1979 quanto os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo – PBUFAF (ONU, 1990)[5], adotado no Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Infratores, são os documentos mais relevante no cenário mundial sobre o uso da força.
Nos termos do artigo 3º do Código de Conduta dos Encarregados de Aplicação da Lei os “funcionários responsáveis pela aplicação da lei só podem empregar a força quando tal se afigure estritamente necessário e na medida exigida para o cumprimento do seu dever”
Nesta mesma linha, o Quarto e Quinto Princípios do PBUFAF, preveem que:
4. Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei, no exercício das suas funções, devem, na medida do possível, recorrer a meios não violentos antes de utilizarem a força ou armas de fogo. Só poderão recorrer à força ou a armas de fogo se outros meios se mostrarem ineficazes ou não permitirem alcançar o resultado desejado.
5. Sempre que o uso legítimo da força ou de armas de fogo seja indispensável, os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem:
a) Utilizá-las com moderação e a sua ação deve ser proporcional à gravidade da infração e ao objetivo legítimo a alcançar;
b) Esforçar-se por reduzirem ao mínimo os danos e lesões e respeitarem e preservarem a vida humana;
c) Assegurar a prestação de assistência e socorros médicos às pessoas feridas ou afetadas, tão rapidamente quanto possível;
d) Assegurar a comunicação da ocorrência à família ou pessoas próximas da pessoa ferida ou afetada, tão rapidamente quanto possível.
Observa-se das transcrições supra, que a Organização das Nações Unidas orientam aos seus signatários, que a força exercida pelos agentes de segurança deve ser moderada, proporcional à gravidade da violação identificada e com intensidade estritamente necessária ao atendimento do objetivo legal que deve ser atingido.
Eventuais abusos ou desvios deverão ser reprovados, uma vez que são considerados como uso excessivo da força e arbitrariedade. Neste caso, recomenda-se o uso progressivo da força, adotado por diversos países europeus, nos Estados Unidos, Irlanda, etc.
O Uso Progressivo da Força, nas palavras de Fagundes apud SENASP (2017, p. 04):
O uso progressivo da força é a expressão utilizada para determinar, regular e disciplinar o dever legal do uso da força, atribuído ao Estado por meio da força policial. Consiste num processo de avaliação prévia do policial em relação ao indivíduo suspeito ou infrator, passando pela seleção adequada de opções de força pelo policial, em resposta ao nível de submissão daquele indivíduo, findando na resposta do policial.
(...)
O conjunto dos níveis de uso da força utilizados pelo policial, juntamente com o conjunto dos níveis de submissão do agressor compõe os chamados “Modelos de Utilização do Uso Progressivo da Força”, que são espécies de protocolos, criados justamente para orientar o policial sobre a ação a ser tomada a partir das reações da pessoa que está naquele momento transgredindo a lei, ou simplesmente em atitude suspeita. Atualmente, existem inúmeros modelos espalhados pelo mundo, utilizados de acordo com a realidade com a qual a força policial respectiva lida. A Secretaria Nacional de Segurança Pública apresenta alguns modelos de uso progressivo da força em seu curso sobre o tema: FLETC, GILLESPIE e REMSBERG, PHOENIX, NASHVILLE e CANADENSE. Os modelos variam no formato (gráficos, círculos, tabelas) e no nível de força, avaliação da atitude do suspeito e percepção de risco.
O uso progressivo da força utiliza-se de protocolos que visam subsidiar o agente no caso concreto, de modo que este escolha o meio mais eficiente e menos danoso. Não há um padrão único de protocolo no Brasil, no entanto o mais utilizado entre a segurança pública no país é o FLETC adaptado.
Originário dos Estados Unidos e desenvolvido pelo Instituto de Treinamento Policial da Universidade de Ilinois, este método consiste na utilização de uma pirâmide de uso de força crescente, denominado "Modelo de Uso de Força", em que a percepção do policial quanto ao agressor alcança 05 (cinco) níveis: submissão à ordem, resistência passiva, resistência ativa, agressão física não letal, e agressão física-letal. Para cada uma delas, a resposta deve seguir a mesma ordem: verbalização, contato físico, imobilização, força não-letal e força letal. (SANDES, 2007, p. 02).
Para retratar a adaptação deste modelo para o Brasil, em trabalho publicado na Revista Científica da PMMT em 2006, Sandes (2007, p. 92) traz a seguinte classificação:
Nível 1 – Presença: presença física do policial como atitude preventiva que visa a inibir comportamento incomum ou inadequado.
Nível 2 – Verbalização: através do diálogo o policial interpela o cidadão em conduta inconveniente, buscando a mudança de atitude a fim de evitar o afloramento de infração. A mudança de comportamento encerra a ação do policial.
Nível 3 – Contato físico: em caso da verbalização não surtir o efeito desejado frente a uma conduta inconveniente, como medida de cautela e como demonstração de força para dissuadir e desencorajar a ação, o policial verbaliza realizando contato físico (toque no ombro). A mudança de comportamento encerra a ação do policial.
Nível 4 – Imobilização: em caso de resistência física ao se efetuar uma condução coercitiva. Caracterizada geralmente pela recusa no cumprimento de ordem legal, agressão não física ou tentativa de fuga. Para chegar a este nível, devem ser esgotados os níveis anteriores.
Nível 5 – Força não letal: em caso de resistência ativa ao se efetuar uma condução coercitiva. Caracterizada geralmente pela agressão física contra o policial ou terceiros. É admissível que o policial empregue força física, sempre sem violência arbitrária ou abuso de poder. A verbalização deve ser mantida sempre no sentido de desencorajar o comportamento do agressor.
Nível 6 – Força letal: só se justifica no caso de legítima defesa e preferencialmente no estrito cumprimento do dever legal em inevitável risco de vida do policial ou de terceiros frente a uma ação deliberada do infrator. A verbalização deve se mantida sempre no sentido de desencorajar o comportamento do agressor.
Denota-se da classificação americana e da adaptada para o Brasil, a incidência de várias medidas escalonadas visando findar a situação gravosa enfrentada pelo policial. Em ambos os casos, a letalidade se apresenta como o último recurso a ser utilizado.
A intenção destas metodologias é evitar o uso da força excessiva e atenuar o potencial de abuso presente no desempenho da atividade policial, devendo o Poder Público incentivar e equipar os seus agentes de segurança ao uso de armas não-letais e munições especiais, de forma a garantir que o uso da força letal só se dará após esgotados todos os demais recursos.
O uso da arma letal é uma preocupação mundial, haja vista que ao Estado cumpre preservar e salvaguardar os direitos mais caros aos cidadãos, e o primeiro deles é o direito à vida, independentemente da situação fática a ser mitigada.
No próximo capítulo será abordada a inclusão do parágrafo único ao art. 25 do Código Penal contextualizada ao uso progressivo da força.
4. LEGÍTIMA DEFESA AOS AGENTES DE SEGURANÇA SEGUNDO A LEI Nº 13.964/2019 E O USO PROGRESSIVO DA FORÇA.
A Lei nº 13.964/2019 surgiu com a promessa de atualizar dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal, com o intuito de mitigar a criminalidade crescente no país. Denominado popularmente como “Pacote Anticrime”, a norma, dentre outras alterações, incluiu o parágrafo único ao artigo 25 do Código Penal, que passou a vigorar com a seguinte redação:
Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.
Da leitura do parágrafo único observa-se que o agente de segurança que repele agressão ou risco de agressão à vítima mantida refém durante a prática de crimes está revestido de legítima defesa. Esta inclusão trouxe muitas discussões doutrinárias e acadêmicas acerca da permissividade que a lei concede para o policial atuar utilizando-se dos meios que lhe aprouver, sem que haja qualquer limite fixado ou parâmetro para tal, embora a remissão ao caput do artigo.
Em apresentação de sua obra recente, Nucci (2020, p. 08) faz duras críticas ao Pacote Anticrime, afirmando que:
(...) pretende-se recriar um instituto considerado inconstitucional pelo Pretório Excelso, conferindo maior desarmonia ao sistema penal, caso seja aprovado o mencionado pacote anticrime. Mas não é só. Intenta-se alterar o cenário das excludentes de ilicitude e, em particular, da legítima defesa (arts. 23 e 24, CP), a pretexto de dar maior abrigo à atuação dos agentes policiais no confronto com a criminalidade. Vale dizer, os agentes de segurança pública teriam maior espaço para matar pessoas e não serem punidos. Inexiste necessidade disso, pois a legítima defesa, hoje vigente, concede cobertura plena a quem é agredido, seja policial ou não, podendo se defender, mas com os meios necessários e de forma moderada. Afinal, está-se em Estado Democrático de Direito e não em linha de guerra total no território brasileiro.
Resta patente a preocupação do autor com a alteração legislativa e com a liberalidade que assiste ao policial em matar pessoas sem qualquer punição, sob o argumento de ter agido em legítima defesa.
Isto porque, embora o parágrafo se relacione ao caput não há norma específica que trata dos meios moderados, mesmo porque o cidadão comum não anda armado, o policial sim, deste modo, a lei não fixou critérios objetivos para atuação do policial.
O parágrafo único estabelece que o agente de segurança pode atuar no risco de agressão, neste aspecto, há de se ressaltar que não se trata da “legítima defesa antecipada ou preventiva”, eis que, nestas, a iminência da agressão, em princípio, está afastada e tampouco refere-se à “legítima defesa pré-ordenada”, caracterizada pela ação dos chamados “ofendículos”, isto é, de aparatos usados para a defesa do patrimônio. Doutrinadores denominam este tipo de ação pelo risco de legítima defesa protetiva. (LESSA, 2019, p. 01)
Contextualizando a atuação policial, após a promulgação do pacote anticrime, Lessa (2019, p. 02) faz a seguinte reflexão:
Assim, num cenário real o agente de segurança pública está agora licenciado a repelir não apenas a iminência ou a atualidade da agressão injusta, mas, também, o risco a ela. E para tanto ele deve focar no perigo, que é o causador do risco.
Mas será que esse dispositivo vale apenas para os atiradores estratégicos das polícias, os comumente chamados “snipers”? Cremos que não, pois a lei não excepciona. Dessa forma, qualquer policial brasileiro, civil, militar ou municipal, está legalmente amparado pela nova tendência da excludente, bastando que, diante de si, exista uma vítima feita refém sob risco de agressão.
Nesse particular, é óbvio que a doutrina do gerenciamento de crises continua válida, afinal a preservação de vidas é mote do Estado. Entretanto, em existindo a avaliação fundada de que o “risco” supera as possibilidades de resolução pacífica – que deve sempre ser buscada – a lei agora autoriza a neutralização do perigo, a fim de que risco de agressão a um inocente desapareça.
Conforme disposto no excerto, qualquer agente policial poderá agir quando há vítima refém. Neste aspecto, devemos refletir que os snipers, passam por intenso treinamento de precisão, haja vista, serem convocados em situações extremamente delicadas, o que justifica este aperfeiçoamento especializado.
Ao permitir que qualquer policial atue em casos, em que a vida do refém está em risco, sem nenhum treinamento adequado é permitir que o Brasil, se torne palco de uma mortandade inimaginável.
Para além, destas questões polêmicas de permissividade, a lei deveria estabelecer critérios para o uso progressivo da força, afinal, numa situação fática tem-se ao menos duas vidas em jogo (agressor e o refém), e não há demérito de nenhuma em relação à outra.
Neste sentido Lima traz o seguinte ensinamento:
A proteção contra a privação arbitrária da vida é de fundamental importância, devendo os Estados, conforme as convenções internacionais, adotarem medidas para prevenir e punir a privação da vida por criminosos, mas também prevenir mortes arbitrárias pelas suas próprias forças de segurança, pois esses atos são assuntos de altíssima gravidade. Portanto, devem as organizações aplicadoras da lei dar a mais alta prioridade à proteção do direito à vida de todas as pessoas.
O Estado tem por incumbência estabelecer medidas para coibir a criminalidade e proporcionar tranquilidade aos seus cidadãos, no entanto, sob pretexto de salvar vidas inocentes, não pode ceifar de modo arbitrário a vida do transgressor, que também é um cidadão detentor dos direitos e garantias fundamentais constitucionais.
O Estado deve assumir uma postura de guardião dos direitos humanos de todo o seu povo, independentemente do crime que este ou aquele cometeu, o uso progressivo da força como visto, é meio internacionalmente reconhecido e o mais adequado, em qualquer situação de combate. Não obstante, as ações dos policiais sob à égide da legítima defesa devem ser averiguadas para se confirmar o emprego moderado da força de modo objetivo e técnico, nos termos que se apresenta qualquer Estado Democrático de Direito.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o advento da Lei nº 13.964/2019, em que foi aprovado o popularmente conhecido “Pacote Anticrime”, inúmeras discussões jurídicas e acadêmicas revestiram a matéria. Um dos palcos de maior embate é a inserção do parágrafo único ao art. 25 do Código Penal, que prevê a incidência da legítima defesa ao agente de segurança repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.
Diante da problemática apresentada verificou-se a preocupação de estudiosos do Direito acerca da permissividade concedida pela referida norma, considerada por alguns como uma “licença para matar”, pois não há parâmetros legais definidos que determinem o modo de atuação de policiais.
Neste contexto, restou patente a necessidade de se firmar no Brasil o uso progressivo da força, comumente adotado por diversos países e fomentado pela Organização das Nações Unidas e Organizações de Direitos Humanos, haja vista que, qualquer nação deve zelar pelos direitos e garantias individuais de seu povo indistintamente, sendo o primeiro deles o direito à vida.
Concluímos que a utilização da força de modo progressivo deve ser empregada em qualquer situação policial, com ou sem refém, e há que ser estabelecer o seu devido regramento, de modo a proporcionar segurança jurídica aos agentes de segurança e à sociedade em geral.
Verificamos ao final, que as atuações classificadas como legítima defesa prevista no parágrafo único do art. 25 do Código Penal devem ser passíveis de investigação/averiguação, onde o judiciário deve ter condições de avaliar se houve o emprego moderado da força naquele caso concreto, eis que, de outro modo, o Brasil regrediria aos primitivos tempos de barbárie.
6. REFERÊNCIAS
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[1] Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos, especialista em Ciências Criminais, pós-graduado em Direito e Processo Legislativo, graduado em Direito e em Comunicação Social, todos os cursos pela Universidade Federal do Tocantins – UFT. Delegado da POlícia Civil do Tocantins. Professor de Direito e de Processo Penal. Escritor de Obras Jurídicas.
[2] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana;
(...) (CRFB/88)
[3] Art. 231. Se o executor verificar que o capturado se encontra em alguma casa, ordenará ao dono dela que o entregue, exibindo-lhe o mandado de prisão. Parágrafo único. Se o executor não tiver certeza da presença do capturado na casa poderá proceder a busca, para a qual, entretanto, será necessária a expedição do respectivo mandado, a menos que seja a própria autoridade competente para expedi-la.
Art. 232. Se não for atendido, o executor convocará duas testemunhas e procederá da seguinte forma: sendo dia, entrará à força na casa, arrombando-lhe a porta, se necessário; sendo noite, fará guardar todas as saídas tornando a casa incomunicável, e, logo que amanheça, arrombar-lhe-á a porta e efetuará a prisão.
Art. 234. O emprego da força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e seus auxiliares, inclusive a prisão do defensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas.
[4] ONU – Organização das Nações Unidas. Código de Conduta para Encarregados da Aplicação da Lei. Assembleia Geral das Nações Unidas. Resolução nº 34/169, de 17 de dezembro de 1979. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/ajus/prev18.htm> Acesso em: 26 abr. 2020
[5] ONU. Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de fogo. Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Infratores. Havana, Cuba, 27 de agosto a 07 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/ajus/prev20.htm> Acesso em: 26 abr. 2020.
Acadêmico de Direito da Faculdade Serra do Carmo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Jackson Maguila Vieira de. Aplicação da legítima defesa e a letalidade policial à luz da Lei nº 13.964/20 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jun 2020, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54684/aplicao-da-legtima-defesa-e-a-letalidade-policial-luz-da-lei-n-13-964-20. Acesso em: 22 nov 2024.
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