RESUMO: O presente estudo visa abordar a temática acerca do acordo de não persecução penal, positivado pela Lei n. 13.964/19 no art. 28-A do Código de Processo Penal, sob a perspectiva do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública e do princípio da discricionariedade regrada do órgão acusatório.
PALAVRAS-CHAVE: acordo de não persecução penal, justiça negociada, discricionariedade regrada, poder-dever.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. 2.1. O PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DA AÇÃO PENAL E DA DISCRICIONARIEDADE REGRADA. 2.2. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 4. REFERÊNCIAS.
A questão atinente à aplicação do Acordo de Não Persecução Penal retrata a adoção do regime de justiça negocial como medida despenalizadora na solução de demandas criminais menos graves, de modo a mitigar o princípio da obrigatoriedade da ação penal e a garantir celeridade ao sistema criminal e a devida reparação à vítima pelos danos causados pelo autor.
Conquanto se tenha inicialmente questionado acerca da legalidade do Acordo de Não Persecução Penal, em razão de estar previsto originariamente apenas na resolução n. 181/17 do Conselho Nacional do Ministério Público, a Lei n. 13.964/19 pôs fim a qualquer celeuma existente ao positivá-lo expressamente no art. 28-A do Código de Processo Penal.
O instituto consiste, assim, em um negócio jurídico de natureza extrajudicial, celebrado entre o Ministério Público e o investigado, devidamente acompanhado pelo seu advogado, em que o agente confessa a prática da infração penal e se compromete a cumprir determinadas condições necessárias e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
A relevância do tema é inquestionável, especialmente em virtude do impacto da medida despenalizadora na realidade social subjacente, a qual minora os efeitos deletérios do édito condenatório e valoriza o interesse da vítima.
2. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
2.1. O PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DA AÇÃO PENAL E DA DISCRICIONARIEDADE REGRADA
O princípio da obrigatoriedade preconiza que, preenchidos os requisitos mínimos exigidos, diante da natureza indisponível do objeto da relação jurídica subjacente, compete ao Ministério Público a propositura da ação penal pública incondicionada.
Sendo assim, por força desse princípio, extraído segundo a doutrina do art. 24 do Código de Processo Penal, há um dever de atuação por parte da Polícia investigativa e do Ministério Público para que se possa apurar e denunciar determinada infração penal.
De acordo com o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, também denominado de legalidade processual, aos órgãos persecutórios criminais não se reserva qualquer critério político ou de utilidade social para decidir se atuarão ou não. Assim é que, diante da notícia de uma infração penal, da mesma forma que as autoridades policiais têm a obrigação de proceder à apuração do fato delituoso, ao órgão do Ministério Publico se impõe o dever de oferecer denúncia caso visualize elementos de informação quanto à existência de fato típico, ilícito e culpável, além da presença das condições da ação penal e de justa causa para a deflagração do processo criminal (BRASILEIRO, 2019, p. 249).
Em outras palavras, Aury Lopes Júnior (2018, p. 129) elucida que o dever de agir do Ministério Público acarreta a inexistência de margem de atuação entre denunciar, pedir diligências complementares ou postular arquivamento. Para o doutrinador, “Ou denuncia, se presentes as condições da ação; ou pede diligências complementares, nos termos do art. 16; ou postula de forma fundamentada o arquivamento”.
Consoante as lições de Nestor Távora e Rosmar Alencar (2018, p. 56), “a persecução criminal é de ordem pública, e não cabe juízo de conveniência ou oportunidade”. Nesse compasso, Fernando Capez (2018, p. 167) também aduz que não se adotam critérios de política ou de utilidade social para o oferecimento da denúncia, sob pena do cometimento do crime de prevaricação. Em simetria, entende Eugênio Pacelli:
Estar obrigado à promoção da ação penal significa dizer que não se reserva ao parquet qualquer juízo de discricionariedade, isto é, não se atribui a ele qualquer liberdade de opção acerca da conveniência ou da oportunidade da iniciativa penal, quando constatada a presença de conduta delituosa, e desde que satisfeitas as condições da ação penal. A obrigatoriedade da ação penal, portanto, diz respeito à vinculação do órgão do Ministério Público ao seu convencimento acerca dos fatos investigados, ou seja, significa apenas ausência de discricionariedade quanto à conveniência ou oportunidade da propositura da ação penal. (PACELLI, 2018, p. 117)
Com efeito, nessa perspectiva, presentes indícios de autoria de prova da materialidade em relação à prática de um fato típico, sendo inexistentes as causas extintivas de punibilidade, não pode o “parquet”, em tese, deixar de ajuizar a ação penal.
Entrementes, cumpre ressaltar que a obrigatoriedade da ação penal não consiste em um dever desarrazoado de denunciar o investigado, vez que o poder de ação somente deve ser exercido quando presentes os requisitos necessários para a persecução penal.
Para fins de compreensão dos mecanismos para fiscalização do princípio da obrigatoriedade, Renato Brasileiro (2019, p. 249) especifica que o art. 28 do Código de Processo Penal impõe ao juiz o exercício da função anômala de realizar seu controle, podendo efetuar a remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça no caso de discordância da promoção de arquivamento requerida pelo Promotor de Justiça. Ademais, traz à baila que o mecanismo da ação penal privada subsidiária da pública também é uma importante forma de fiscalização da inércia ministerial.
Realizando um cotejo aos demais institutos de justiça negociada, como a transação penal e a suspensão condicional do processo, é possível, entretanto, que se aplique uma mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal.
O Ministério Público é instituição com prerrogativa e dever funcional de estabelecer e fixar as prioridades políticos-criminais na concretização da persecução penal, delineando, de modo privativo (art. 129, I, CF), a existência de interesse e justa causa para a denúncia. Sendo assim, o Órgão Ministerial possui a prerrogativa funcional de, como agente político responsável pela acusação no sistema penal, verificar a existência de interesse público na persecução penal.
Não há óbices, por conseguinte, que desde que adequado ao fato e à situação pessoal do acusado, sejam aplicados os referidos institutos de justiça criminal consensual. Constitui-se uma clara mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal e de seu desdobramento lógico atinente à indisponibilidade da ação penal pública na persecução da celeridade e da efetividade do Ius Puniendi Estatal.
Sob essa perspectiva, o escólio de Vladimir Aras:
O Ministério Público brasileiro é, assim, um promotor de política criminal do Estado. Não é mero espectador, não é autômato da lei penal. Na condição de agente político do Estado, tem o dever de discernir a presença, ou não, do interesse público na persecução criminal em juízo, ou se, diante da franquia do art. 129, inciso I, da Constituição, combinado com o art. 28 do CPP, deixará de proceder à ação penal, para encaminhar a causa penal a soluções alternativas, não judicializando a pretensão punitiva. Entre essas soluções estão a opção pela Justiça Restaurativa ou pelos acordos penais.
Nessa toada, a Lei dos Juizados Especiais (n. 9.099/95) dispõe acerca da titularidade do Ministério Público para formular, conforme juízo de discricionariedade regrada, proposta de transação penal e de suspensão condicional do processo, a teor dos arts. 76 e 89, mediante a condição do cumprimento por parte do agente de prestações previamente estabelecidas pelo parquet. Cuida-se de um poder-dever, em que se atribui ao Órgão Ministerial estabelecer a destinação das prestações pecuniárias, conforme a ordem prevista na legislação penal, de modo a se priorizar a terceira via do direito penal, qual seja, a reparação das vítimas. Colaciona-se entendimento da Corte Cidadã, in verbis:
A suspensão condicional do processo não é direito subjetivo do acusado, mas sim um poder-dever do Ministério Público, titular da ação penal, a quem cabe, com exclusividade, analisar a possibilidade de aplicação do referido instituto, desde que o faça de forma fundamentada. STJ. 6ª Turma. AgRg no RHC 74464/PR, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 02/02/2017.
A suspensão condicional do processo é solução de consenso e não direito subjetivo do acusado. STJ. 5ª Turma. AgRg no RHC 91265/RJ, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 27/02/2018.
Destarte, “havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, a ser especificada na proposta” (art. 76, caput, Lei n. 9.099/95). A discricionariedade do Ministério Público decorre da manifestação do princípio acusatório e leva em conta o bem jurídico tutelado pela norma na aplicação de uma pena não privativa de liberdade, além do preenchimento dos requisitos estabelecidos no mencionado diploma.
Por sua vez, o instituto despenalizador da suspensão condicional do processo estabelece que nas ações penais envolvendo crimes cuja pena mínima cominada seja igual ou inferior a um ano, o Ministério Público, no momento do oferecimento da denúncia, poderá propor a suspensão condicional do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, e preenchidos os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 89, caput, Lei n. 9.099/95).
A iniciativa para propor a suspensão condicional do processo é faculdade exclusiva do Ministério Público, a quem cabe promover privativamente a ação penal pública (CF, art. 129, I), não podendo o juiz da causa substituir-se a este, aplicando o benefício ex officio. A proposta é um ato discricionário da parte, a quem incumbe avaliar, por critérios de conveniência e oportunidade, e inspirado por motivos de política criminal, se, estrategicamente, sua formulação satisfaz o interesse social. A imposição de ofício pelo juiz implicaria ofensa ao princípio da inércia jurisdicional, colocando-o na posição de parte. Não se trata, portanto, de direito subjetivo do réu, mas de ato discricionário do Parquet. (CAPEZ, 2018, p. 619)
Nesse caminhar, cumpre ao Poder Judiciário realizar o controle de legalizada do ato mediante sua homologação. Não lhe compete, por conseguinte, proceder a juízo de mérito quanto ao conteúdo do acordo, sob pena de violação ao princípio da imparcialidade previsto no sistema acusatório. Assim, havendo discordância quanto à proposta do parquet, a Suprema Corte sumulou o entendimento de que se deve aplicar, por analogia, o art. 28 do Código de Processo Penal (Súmula n. 696).
O Acordo de Não Persecução Penal, seguindo a logica dos institutos correlatos da transação e da suspensão condicional do processo, também encampa a consensualidade no direito penal, caracterizando um inegável papel protagonista do Ministério Público na definição de políticas criminais, mormente diante de seu poder-dever de firmar o negócio jurídico.
Nesse caminhar, Rogério Sanches Cunha e Renee do Ó Souza enaltecem que o acordo de não persecução penal traz economia de recursos, em um ambiente de racionalidade e mediante a apresentação de vantagens recíprocas. Consoante os doutrinadores:
Não se vislumbra prejuízo à Justiça Pública/interesse público, porque sob a análise do custo-benefício trazido pelo instituto, fruto da onda consequencialista em que se encontra o direito atualmente, em que já se reconhece a incapacidade do Judiciário dirimir, tempestiva e satisfatoriamente, todos os conflitos que a ele são levados, é muito mais vantajoso uma imediata decisão negociada, que cumpra a função dirimente do conflito do que uma decisão proferida ao longo de anos, incapaz de cumprir com as funções da pena e nem de recompor o sentimento social de validade das normas.
Com efeito, a hipótese configura inegável celeridade na resolução de conflitos menos graves, evitando a burocratização do Poder Judiciário e a superlotação das penitenciárias, permitindo a canalização para a persecução de delitos contumazes e mais perigosos à segurança social. Abandona-se, portanto, um positivismo extremamente legalista, conforme preceituam Alexandre de Morais e Aury Lopes:
Os juristas desatualizados insistem em excluir os institutos da Justiça Negociada do ambiente processual brasileiro, lutando por manter a ilha moderna do processo penal e o fetiche pela decisão penal de mérito como o único mecanismo de descoberta e de produção de sanções estatais. Precisamos caminhar para construção de garantias mínimas sobre o conteúdo do objeto penal na nova perspectiva (irreversível, por enquanto) da Justiça Negocial, porque sem maiores discussões, a porta da manipulação e da seletividade penal permanecerá aberta.
2.2. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
O Acordo de não Persecução Penal, expressão da justiça consensual, consiste em um negócio jurídico de natureza extrajudicial celebrado entre o Ministério Público e o investigado, devidamente acompanhado pelo seu advogado, em que o agente confessa a prática da infração penal e se compromete a cumprir determinadas condições necessárias e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
Como consequência do cumprimento das condições elencadas, o Ministério Público deixa de denunciá-lo e realiza o arquivamento a investigação. Segundo o entendimento doutrinário:
Cuida-se de negócio jurídico de natureza extrajudicial, necessariamente homologado pelo juízo competente, celebrado entre o Ministério Público e o autor do fato delituoso - devidamente assistido por seu defensor -, que confessa formal e circunstanciadamente a prática do delito, sujeitando-se ao cumprimento de certas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do Parquet de promover o arquivamento do feito, caso a avença seja integralmente cumprida (BRASILEIRO, 2019, p. 200).
Para Rogério Sanches Cunha e Renee do Ó Souza:
Sobretudo em países do Commom Law, o uso corriqueiro da justiça negociada e dos acordos penais demonstrou que este instituto é útil para determinados tipos de infrações e, principalmente, apto a evitar o colapso do sistema de Justiça, incapaz de conciliar as formalidades procedimentais e o tempo necessário para dar respostas tempestivas que aplacassem satisfatoriamente o clamor decorrente dos crimes.
Nesse espírito de práticas compositivas no âmbito criminal, o Conselho Nacional do Ministério Público editou a Resolução n. 181/2017, fixando as balizas necessárias para a celebração do Acordo de Não Persecução Penal. Conquanto tenha sido objeto de questionamentos quanto a sua constitucionalidade por ofensa ao princípio da reserva legal, por tratar de matéria envolvendo direito penal e processual penal, com o advento da Lei n. 13.964/19 foi posta uma pá de cal em qualquer discussão por ventura existente, estando expressamente positivado no art. 28-A do Código de Processo Penal.
Sendo assim, a criação do Acordo de Não Persecução Penal objetiva garantir celeridade à solução dos casos criminais menos graves, de forma a reduzir os custos do sistema criminal e a valorizar a reparação da vítima, racionalizando a atuação do sistema penal. Destacam Renee do Ó Souza e Patrícia E. C. Dower que:
A previsão tem por escopo evidente dotar de maior racionalidade o nosso sistema penal, assegurando, de um lado, resposta mais rápida aos crimes menos graves, respeitando sempre a autonomia da vontade do investigado e a ampla defesa, garantida pela indispensabilidade da defesa técnica e, de outro lado, permitindo ao Ministério Público e ao Poder Judiciário maior dedicação e celeridade também no que toca à apuração de crimes graves, opção já indicada pela constituição ao definir institutos despenalizadores da Lei n. 9.099/1995. (SOUZA, Renee do Ó; DOWER, Patrícia E. C., 2017, p. 117-148).
O Conselho Nacional do Ministério Público, por sua vez, como fundamento para a edição da resolução, aduziu que haveria um grande avanço na qualidade do Sistema de Justiça pátrio, elencando os seguintes motivos:
conforme pronunciamento da Comissão redatora da Resolução em estudo:
a) uma celeridade na resolução dos casos menos graves (evitando-se, inclusive, que o nosso STF tenha que discutir questões bagatelares menores, como vem fazendo, que são completamente incompatíveis com a relevância que deve ter um Tribunal Supremo); b) mais tempo disponível para que o Ministério Público e o Poder Judiciário processem e julguem os casos mais graves, tendo a possibilidade, de tal maneira, de fazê-lo com maior tranquilidade e reflexão; c) haveria economia de recursos públicos, já que os gastos inerentes à tramitação do processo penal seriam reduzidos (ou seja, menos processos judicias, menos gastos); d) minoração dos efeitos deletérios de uma sentença penal condenatória aos acusados em geral, que teriam mais uma chance de evitar uma condenação judicial, dando um voto de confiança aos não reincidentes, minorando, também, os efeitos sociais prejudiciais de uma pena e desafogaria, também, os estabelecimentos prisionais. (CNMP, 2017, p. 32).
Adentrando nos pormenores do tema, o diploma processual prevê que a celebração do acordo de não persecução penal deve ser necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, havendo a necessidade de o agente confessar a prática da infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos (Art. 28-A, caput, CPP). Preenchidos os requisitos, o Ministério Público poderá propô-lo, mediante a aplicação seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente:
Art. 28-A. [...]
I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo
II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime
III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);
IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou
V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
§ 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.
Consoante exposto alhures, “o acordo de não persecução penal é faculdade do Ministério Público, que avaliará, inclusive em última análise, se o instrumento é necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime no caso concreto” (Enunciado 19 do Grupo Nacional De Coordenadores De Centro De Apoio Criminal – GNCCRIM). Todavia, pode o investigado, no caso de recusa do parquet em propor o acordo, requerer a remessa ao órgão superior nos moldes do art. 28, do Código de Processo Penal (art. 28-A, §14º, CPP).
No tocante à confissão formal e circunstanciada do investigado para a formalização do ato, pugna-se que seja realizada perante o Promotor de Justiça, em audiência específica, com registro próprio, independentemente de anterior interrogatório policial (Art. 28-A, § 3º e § 4º, CPP). Para tanto, é imprescindível a presença do advogado do investigado ou de um defensor público ou dativo.
[...] desde que o investigado seja formalmente advertido quanto ao direito de não produzir prova contra si mesmo e não seja constrangido a celebrar o acordo, parece não haver nenhuma incompatibilidade entre esta primeira obrigação do investigado e o direito ao silêncio (CF, art. 5o, LXIII). Ora, como não há dever ao silêncio, todo e qualquer investigado (ou acusado) pode voluntariamente confessar os fatos que lhe são imputados. Nessas condições, cabe ao próprio indivíduo decidir, livre e assistido pela defesa técnica, se tem (ou não) interesse em celebrar o acordo de não-persecução penal (BRASILEIRO, 2019, p. 207).
Ademais, no que tange à análise da presença ou não da violência ou grave ameaça, deve-se circunscrever ao campo da intencionalidade/consciência de agir do autor, ou seja, se de modo intencional e consciente o agente se utilizou da violência ou grave ameaça para atingir um fim ilícito.
A conduta, nos delitos de natureza culposa, é o ato humano voluntário dirigido, em geral, à realização de um fim lícito, mas que, por imprudência, imperícia ou negligência, isto é, por não ter o agente observado o seu dever de cuidado, dá causa a um resultado não querido, nem mesmo assumido, tipificado previamente na lei penal. Toda conduta, seja dolosa ou culposa, deve ter sempre uma finalidade. A diferença entre elas reside no fato de que na conduta dolosa, como regra, existe uma finalidade ilícita, enquanto na conduta culposa a finalidade é quase sempre lícita. Na conduta culposa, os meios escolhidos e empregados pelo agente para atingir a finalidade lícita é que foram inadequados ou mal utilizados (GRECO, Rogério, 2014. p. 204)
Imperioso ressaltar que o instituto do acordo de não persecução penal não repele o ajuste nos casos de crimes culposos com violência no resultado. Nesse contexto, o Enunciado 23 do Grupo Nacional De Coordenadores De Centro De Apoio Criminal – GNCCRIM – menciona que ser possível pois “nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pela agente, apesar de previsível”.
Em relação às condições ajustadas entre o investigado e o Ministério Público, Renato Brasileiro elucida que àquele deve assumir o dever de cumpri-las de forma cumulativa ou não, acrescentando que:
Não se trata de pena, justamente por faltar uma das características fundamentais de toda e qualquer pena, qual seja, a imperatividade. Em outras palavras, em se tratando de pena, o Estado pode impor coercitivamente o seu cumprimento, pouco importando a voluntariedade do condenado. No acordo de não persecução penal, o investigado voluntariamente se sujeita ao cumprimento de certas condições não privativas de liberdade, que, se cumpridas, esvaziam o interesse processual no manejo da ação penal, dando ensejo ao arquivamento do procedimento investigatório. Enfim, como não há imputação (denúncia), nem tampouco, consequentemente, processo penal, não há e nem poderia haver a imposição de pena (BRASILEIRO, 2019, p. 207).
Partilhando desse entendimento quanto à aplicação de pena restritiva de direito como condição do acordo de não persecução penal, a exemplo da prestação pecuniária, Antônio Suxberger entende que:
As medidas previstas no acordo de não persecução penal, ainda que guardem similitude com penas restritivas de direito positivadas na legislação penal substantiva, não materializam sanção penal no seu sentido mais estrito. Isso porque à sanção penal concorrem características que não estão presentes nas medidas de responsabilização que são avençadas pelas partes no acordo de não persecução penal. Por isso, as medidas fixadas no acordo não afetam a punibilidade do fato noticiado. Afinal, só mesmo a manifestação jurisdicional afeta o jus puniendi do Estado. (SUXBERGER in CUNHA, 2017, p. 87-107).
Em consonância com a tese firmada, o Enunciado 25 do Grupo Nacional De Coordenadores De Centro De Apoio Criminal – GNCCRIM – afirma que o Acordo de Não Persecução Penal “somente estabelece direitos e obrigações de natureza negocial e as medidas acordadas voluntariamente pelas partes não produzirão quaisquer efeitos daí decorrentes, incluindo a reincidência”.
Caso o magistrado considere inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor (Art. 28-A, § 5, CPP).
O diploma processual elenca, ainda, ser inaplicável o Acordo de Não Persecução Penal quando cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais; se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; tiver sido o agente beneficiado nos cinco anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e, nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor (Art. 28-A, § 2, I a IV, CPP).
Em relação à expressão “infração pretérita insignificante”, o entendimento firmado pelos juristas tem sido quanto àquelas relativas aos delitos de menor potencial ofensivo, às quais ser avaliada no caso concreto se cumprem o requisito de ser necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime (Enunciado 21 do Grupo Nacional De Coordenadores De Centro De Apoio Criminal – GNCCRIM).
Além disso, o Enunciado 22 do Grupo Nacional De Coordenadores De Centro De Apoio Criminal – GNCCRIM – veda também o acordo de não persecução penal aos crimes hediondos e equiparados, já que em relação a estes o acordo não seria suficiente para a reprovação e prevenção do crime.
De mais a mais, polêmico questionamento tem sido feito quanto à possibilidade de celebração do Acordo e Não Persecução Penal após o recebimento da denúncia. Isso porque as normas que delineiam o instituto possuem natureza híbrida, compostas de normas de caráter penal e processual penal. Na lição de Cezar Roberto Bitencourt:
Em outros termos, toda lei penal, seja de natureza processual, seja de natureza material, que, de alguma forma, amplie as garantias de liberdade do indivíduo, reduza as proibições e, por extensão, as consequências negativas do crime, seja ampliando o campo da licitude penal, seja abolindo tipos penais, seja refletindo nas excludentes de criminalidade ou mesmo nas dirimentes de culpabilidade, é considerada lei mais benigna, digna de receber, quando for o caso, os atributos da retroatividade e da própria ultra-atividade penal (BITENCOURT, 2016, p. 219)
Conquanto o Enunciado nº 20 do Grupo Nacional De Coordenadores Do Centro De Apoio Criminal – GNCCRIM esclareça que só é possível a aplicação do acordo para os processos em andamento nos quais a denúncia não foi recebida, trata-se de posição institucional questionável em razão da natureza mais benéfica da norma, que deveria retroagir em benefício do investigado, consoante determinam os art. 5º, inc. XL, da Constituição Federal e art. 2, § único, do Código Penal.
Devidamente firmado, o acordo de não persecução penal deve ser submetido à homologação judicial, devendo o magistrado devolver os autos posteriormente ao Ministério Público para que promova a execução da pena no juízo de execução penal (Art. 28-A, § 6, CPP).
Entretanto, se o togado recusar a homologação da proposta que não atenda aos requisitos legais ou que não tenha sido readequada conforme os ditames especificados no códex processual penal, devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia (Art. 28-A, §§7 e 8, CPP).
Havendo o descumprimento das condições estipuladas, o Órgão Ministerial deverá comunicar os fatos ao juízo para fins de rescisão e posterior oferecimento da denúncia (Art. 28-A, §10, CPP).
Uma vez celebrado o acordo de não-persecução penal, o Ministério Público deixará de oferecer denúncia contra o investigado. Para tanto, é intuitivo que o agente cumpra todas as obrigações por ele assumidas por ocasião da avença. Não o fazendo, estará sujeito ao oferecimento de denúncia, à semelhança do que já ocorre com o descumprimento injustificado da transação penal (súmula vinculante n. 35). [...] Essa denúncia a ser oferecida pelo Ministério Público poderá trazer, como suporte probatório, inclusive a confissão formal e circunstanciada do investigado por ocasião da celebração do acordo. Ora, se o próprio investigado deu ensejo à rescisão do acordo, deixando de adimplir as obrigações convencionadas, é de todo evidente que não se poderá desprezar os elementos de informação por ele fornecidos (BRASILEIRO, 2019, p. 209).
Por outro lado, cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade (Art. 28-A, §13, CPP). Segundo Renato Brasileiro (2019, p. 210), “uma vez cumpridas as condições, esvazia-se o interesse processual no manejo da ação penal, tendo em conta que já estaria suficientemente satisfeita a pretensão punitiva estatal em virtude do cumprimento das obrigações a que se sujeitou o investigado”. Observa-se, apenas, que, enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo, o prazo prescricional ficará suspenso para a persecução penal do delito (art. 116, IV, do CP).
Por derradeiro, depreende-se que esse novo modelo de solução de conflitos e reparação de danos deve ser utilizado com cautela, de modo proporcional, apostando em soluções que racionalizem o sistema penal brasileiro, sem escusar-se dos ditames legais quanto a sua aplicabilidade para promover, assim, não somente a redução do prazo entre o delito e a responsabilização do culpado, mas também a celeridade e a eficiência na reparação de danos à vítima ou à sociedade.
A impossibilidade processual de acusação de todos os crimes praticados, bem como o longo período de espera para solução dos processos acarretou o incremento da porcentagem de delitos não solucionados ou não punidos pelo Poder Judiciário.
O modelo da Justiça Penal Negociada consagrado pelo ordenamento jurídico pátrio, tanto mais com a positivação do Acordo de Não Persecução Penal no art. 28-A do Código de Processo Penal pelo Pacote Anticrime (Lei n. 13.964/19), permite que se promova uma desburocratização do aparato estatal para o combate à impunidade além de permitir o injusto penal restaurável à vítima.
Mediante um juízo de discricionariedade regrada, em regime de exceção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, o Ministério Público pode celebrar com o investigado um negócio jurídico de natureza extrajudicial, que, preenchidos alguns requisitos e condições, pode acarretar a extinção de punibilidade do agente infrator.
Esse benefício despenalizador, por certo, permite que o Estado otimize seus recursos para a eficiente gestão da persecução penal, uma vez que a desjudicialização de casos menos graves evita o massivo encarceramento de eventuais condenados e, por consequência, garante celeridade à persecução penal de infrações mais críticas.
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NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal. Parte Especial. Vol. 3. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2019.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 22. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Antonni Rodrigues Cavalcanti de. Curso de direito processual penal. 13. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPODIVM, 2018.
Pós-Graduada em Direito Ambiental – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito Constitucional – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito Penal – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito Sanitário – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito da Criança e do Adolescente – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito Difuso e Coletivo– Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito Público – Anhanguera Uniderp. Pós-Graduada em Direito Processual Penal – Escola do Ministério Público de Santa Catarina. Pós-Graduada em Direito Processual Civil – Damásio Educacional. Bacharel em Direito – Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SIMONI, Lanna Gabriela Bruning. Aplicação do princípio da discricionariedade regrada no acordo de não persecução penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jun 2020, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54786/aplicao-do-princpio-da-discricionariedade-regrada-no-acordo-de-no-persecuo-penal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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