RESUMO: Uma parcela significante das etnias indígenas no Brasil adotam práticas que ferem os direitos fundamentais constitucionais e tratados internacionais de direitos humanos, tais como, o homicídio de neonatos gêmeos e criança portadoras de deficiências físicas ou anomalias genéticas. Essas práticas são defendidas pelo posicionamento do relativismo cultural, que entende ser um direito inerente à cultura dos povos indígenas. Com base nos depoimentos de indígenas que sofreram ou vêm sofrendo os reflexos do costume, é possível verificar a ausência de intervenção do Estado em defesa de seus direitos. A partir de um levantamento teórico sobre o tema exposto, por meio de uma abordagem qualitativa dos dados encontrados em bibliografias e estudos de casos já realizados, o presente artigo, objetiva expor a devida prevalência do direito a vida sobre a prática cultural indígena do homicídio de crianças, dilucidando o conflito entre o relativismo cultural e os direitos garantidos pelo Ordenamento Jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Prática cultural indígena; Homicídio de crianças; Direitos em conflito.
SUMÁRIO: 1.INTRODUÇÃO; 2. ETNIAS INDÍGENAS BRASILEIRAS E A CULTURA DO HOMICÍDIO DE CRIANÇAS; 1.1. A CLASSIFICAÇÃO COMO HOMICÍDIO; 1.2. A “MÁ SORTE” DAS CRIANÇAS INDÍGENAS; 3. VIDA E CULTURA: DIREITOS UNIVERSAIS GARANTIDOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO; 3.1. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988; 3.2. OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS; 3.3. O ESTATUTO DO ÍNDIO; 3.4. O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLECENTE; 4. O POSICIONAMENTO DO ESTADO; 5. MEDIDAS ADOTADAS EM DEFESA DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS INDÍGENAS; 6. CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.
1.INTRODUÇÃO
Existe um grande conflito entre a defesa do direito universal à vida garantido pelo ordenamento jurídico brasileiro e a aplicação da visão do relativismo cultural defendida por antropólogos, membros do legislativo e órgãos do governo, no que se refere às práticas culturais lesivas de povos indígenas. Contudo, o que deve prevalecer sobre as práticas culturais indígenas, o relativismo cultural ou os direitos humanos universais?
Há uma urgente necessidade de se fazer valer as normas constitucionais e infraconstitucionais vigentes no Brasil em defesa dos indivíduos, independentemente de sua cultura, crença ou tradições.
Até o momento não existem soluções eficazes para impedir as mortes silenciosas que ocorrem em tribos indígenas no Brasil. Crianças estão morrendo sem direitos e com o som de suas vozes abafado pelos gritos em defesa da liberdade cultural.
O presente estudo tem o intuito de ampliar as formulações teóricas acerca do tema escolhido e assim contestar os argumentos opositivos que se utilizam da visão do relativismo cultural para admitir tais atrocidades.
2. ETNIAS INDÍGENAS BRASILEIRAS E A CULTURA DO HOMICÍDIO DE CRIANÇAS
Atualmente, segundo dados do censo de 2010 do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, existem 305 etnias indígenas no país (IBGE, 2010). Uma parte relevante das tribos indígenas brasileiras ainda adotam práticas culturais lesivas aos seus membros. Essas práticas, em destaque, a do homicídio de crianças, afrontam os direitos vigentes no ordenamento jurídico brasileiro e os tratados de direitos humanos celebrados, que visam a garantia e defesa primordial à vida.
Infelizmente não existem dados oficiais do governo sobre a prática do homicídio de crianças em tribos indígenas, o que dificulta a percepção do real percentual e habitualidade do costume, sendo possível apenas afirmar que ela ainda ocorre nas etnias mais isoladas, tendo em vista o Mapa da Violência de 2014, divulgado pelo Ministério da Justiça, na época, revelou ser a cidade mais violenta do país, o município de Caracaraí, localizado no estado de Roraima, onde, no período de um ano, 42 pessoas foram assassinadas, dentre elas, 37 índios neonatos, mortos pelos próprios pais (WAISELFISZ, 2014). Além desse, outros casos registrados pela mídia brasileira revelam que, lamentavelmente, centenas de indígenas sofrem os reflexos do hábito cultural em comento, sem qualquer tipo de proteção do governo aos seus direitos.
2.1 A CLASSIFICAÇÃO COMO HOMICÍDIO
É importante salientar que os homicídios de crianças indígenas são constantemente associados ao crime de infanticídio, o que não deve prevalecer, visto que a figura típica do infanticídio não se adequa aos fatos, descreve, o Código Penal Brasileiro (1940), como infanticídio: “Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena - detenção, de dois a seis anos”.
O estado puerperal mencionado no artigo acima citado, é caracterizado como uma perturbação psíquica, momentânea, decorrente do parto (OLIVEIRA, 2016). Sendo assim, conforme a norma jurídica, a inadequação do crime de infanticídio à prática cultural indígena da morte de crianças no Brasil, se dá pela ausência de influência do estado puerperal, devendo ser classificada como homicídio.
No entanto, a adequação ao tipo penal não possui o intuito de responsabilização criminal dos indígenas praticantes do costume, e sim, tão somente utilizar-se da correta tipificação da conduta, considerando que os indígenas são sujeitos de proteção jurídica específica, cuja culpabilidade deve ser apurada de acordo com o grau de integração que possuem com a sociedade não-indígena.
2.2 A “MÁ SORTE” DAS CRIANÇAS INDÍGENAS
A cultura milenar dos povos indígenas do Brasil é baseada na realização de rituais místicos e práticas voltadas à harmonização entre o grupo e suas divindades. A prática do homicídio de crianças indígenas se dá por crenças específicas de cada etnia, ocorrendo em casos de crianças nascidas com deficiência física, gêmeos, ou filhos de mãe solteira. Essas crianças não são aceitas pelo grupo, sendo abandonadas na floresta, enterradas vivas, mortas pela ingestão de veneno ou utilização de objetos letais. Independentemente do ritual ou motivação, todas são destinadas à morte, por trazerem “má sorte” à tribo.
Relatos de indígenas são registrados por ONGS - Organizações não Governamentais, dentre os quais, vários contam situações em que mães se recusaram a matar seus filhos, não aceitos pela tribo. Sem amparo do governo, os indígenas encontram auxílio de missionários locais ou de integrantes das ONGS, para salvar a vida das crianças.
Tem-se registro de que pelo menos 8 (oito) grupos indígenas no Brasil praticam o homicídio de crianças, são os Kamayurá (PAGLIARO e JUNQUEIRA apud OCORRÊNCIAS, 2010), Suyá (PAGLIARO et al, apud OCORRÊNCIAS, 2010), Yanomami (EARLY e PETERS apud OCORRÊNCIAS, 2010), Suruwahá (FEITOSA, TARDIVO e CARVALHO, apud OCORRÊNCIAS, 2010), Kaiabi (PAGLIARO apud OCORRÊNCIAS, 2010), Kuikuro (FREITAS, FREITAS e SANTOS apud OCORRÊNCIAS, 2010), Amundawa e Urueu-Wau-Wau (SIMONIAN apud OCORRÊNCIAS, 2010).
O documentário Quebrando o Silêncio (2009), dirigido pela jornalista indígena, Sandra Terena, mostra, em entrevistas realizadas em diferentes regiões do país, relatos de vários indígenas vítimas da prática. Entre os depoimentos estão os dos indígenas: Marité Ikpeng, pai de trigêmeos, que junto com sua esposa e filhos, deixou a aldeia onde morava, para salvar a vida dos neonatos; Paltu Kamayurá, pai que perdeu um filho gêmeo, enterrado vivo; Marcos Mayoruna, sobrevivente que teve irmão gêmeo queimado vivo aos 10 (dez) anos de idade; Lúcia Bakairi, que salvou irmão da morte; e o Cacique Tabata KuiKuro, que saiu da tribo com sua família, para criar seu filhos gêmeos, não aceitos pelo grupo (QUEBRANDO, 2009).
Outros casos de crianças indígenas salvas da morte, repercutem na mídia e são motivos de polêmica, por comumente motivarem o preconceito contra os povos indígenas. Podemos citar, o drama sofrido no caso da bebê Analu Paluni Kamayura Trumai, que foi resgatada por policiais em 05 de junho de 2019, após ter sido enterrada viva pela bisavó, logo após o nascimento, em Canarana, a 838 km de Cuiabá, Mato Grosso (JUSTIÇA, 2019).
Com efeito, deve-se lembrar que a manutenção das etnias indígenas é imprescindível pois tratam-se de povos de cultura milenar, que não devem ser discriminados, tão pouco, classificados como inferiores ou retrógrados. Jamais se deve ter um olhar etnocêntrico, pois, quando se refere à cultura, é impróprio estabelecer um costume como certo ou errado, todo comportamento cultural deve ser interpretado dentro da visão de seu próprio povo, uma vez que nenhuma cultura é inferior a outra, conforme estabelece o posicionamento do relativismo cultural. Sob a mesma perspectiva expõe Meneses (2000, p. 250): “Cada traço cultural deve ser estudado no contexto da cultura a que pertence, e não em referência à do observador. Para isso, tenta-se imergir na cultura diferente para captar o sentido que a organiza”.
O relativismo cultural objetiva a defesa de toda e qualquer cultura, para que aja sua perpetuação. Assim sendo, a busca pela satisfação dos direitos negligenciados não deve extinguir a cultura dos povos indígenas. No entanto, deverá sempre ser garantido o que é indeclinável: a vida de seus membros.
3. VIDA E CULTURA: DIREITOS UNIVERSAIS GARANTIDOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Apesar da contraposição entre a vida e a cultura quando se refere à prática do homicídio de crianças por tribos indígenas, ambas correspondem à direitos humanos universais, que em nosso ordenamento jurídico são classificados como direitos fundamentais. Sua universalidade está atrelada ao fato de que são pertencentes a raça humana, inerentes, portanto, ao ser natural, independentemente de origem ou momento. Tratam-se de ideais básicos de cada indivíduo que devem ser protegidos e alcançados.
Barreto (2006) em seu posicionamento sobre a situação de confronto que ocorre entre práticas culturais indígenas de certas etnias, principalmente o homicídio de neonatos, procura salientar o princípio da universalidade dos direitos humanos e da personalidade. Com o devido embasamento em normas do ordenamento jurídico brasileiro afirma que:
São reconhecidos aos indígenas seus usos, costumes, línguas, organização social etc. Entretanto, existe um limite a este reconhecimento: a colisão com os direitos humanos fundamentais ou direitos da personalidade (BARRETO, 2006, p. 6).
Não obstante, tais direitos, ao serem postos em contraponto, deve-se ponderar pela prevalência de um sobre o outro, e assim, o bem maior a ser tutelado é a vida, uma vez que sem ela não se pode exercer nenhum outro direito.
3.1. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Em nossa Lei Maior, o direito à vida é consagrado no título dos direitos e garantias fundamentais, sendo assegurada a todos, sem qualquer distinção, e garantida sua inviolabilidade, isto é, proteção contra as violações arbitrarias, considerando que através dela decorrerão os demais direitos pátrios:
TÍTULO II
Dos Direitos e Garantias Fundamentais
CAPÍTULO I
DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...] (BRASIL, 1988a).
A cultura está ligada ao direito à liberdade tratada no artigo acima citado, e também é tutelada no Título VIII, Da Ordem Social, da Constituição Federal (1988), artigo 215, caput: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.”
É expresso que o Estado possui o dever de proteger as manifestações culturais, dentre elas as indígenas, no entanto, ao defender o direito de uma tribo indígena de realizar a prática do homicídio de crianças, priva-se às mesmas de seu direito à vida, que é garantia fundamental de caráter inviolável, sendo ela imprescindível para a efetiva concretização dos direitos inerentes a pessoa humana, inclusive a liberdade cultural.
Tirar a vida de crianças indígenas é declarar que elas não possuem direito algum, sob o fundamento de que se está preservando a cultura de um povo que possui o direito de manifestar-se livremente.
A Constituição brasileira (1988) também assegura a efetividade de normas de caráter internacional na legislação nacional, no parágrafo 2º do artigo 5º, estabelece: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Ademais, os direitos fundamentais, são mundialmente reconhecidos, seja por tratados, pactos, e demais dispositivos celebrados entre diversos países. A universalidade de tais direitos é proclamada por serem imanentes ao ser humano.
3.2. OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS
Dentre os diversos tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte, a Carta da Organização das Nações Unidas promulgada pelo país em 1945, tem como um de seus objetivos, o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião (BRASIL, 1945). No mesmo sentido, também estabelece a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:
ARTIGO II
1- Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição (ONU, 1948, p. 5).
Sendo, portanto, ratificado que os direitos humanos, por serem dotados de universalidade, são plenamente aplicáveis aos povos indígenas.
No que diz respeito ao direito universal à vida, a Convenção Americana dos Direitos Humanos, Pacto de São José de Costa Rica de 1969, promulgado pelo Brasil em 1992, estipula no seu Artigo 4: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção” (BRASIL, 1992b).
Quanto aos direitos culturais, ao estipular seus ideais relacionados aos direitos e liberdades inerentes a pessoa humana, designa o Artigo XXVII da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e de seus benefícios” (ONU, 1948). Ainda, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, afirma em seu Artigo 15: “1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: a) Participar da vida cultural [...]” (BRASIL, 1992a). Semelhantemente dispõe o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Protocolo de São Salvador, em seu Artigo 14, do título: Direito aos Benefícios da Cultura (BRASIL, 1999).
Além de tudo, todos os tratados e convenções introduzidos no ordenamento jurídico brasileiro, já mencionados, estão em perfeita harmonia com as demais leis ordinárias brasileiras, em especial, a Lei nº 6.001, de 1973.
3.3. O ESTATUTO DO ÍNDIO
A lei especial nº 6.001, de 1973, que instituiu o Estatuto do Índio, regula a situação dos indígenas, no plano jurídico, e suas condições particulares. Em seu Art. 6º, determina que:
Serão respeitados os usos, costumes e tradições das comunidades indígenas e seus efeitos, nas relações de família, na ordem de sucessão, no regime de propriedade e nos atos ou negócios realizados entre índios, salvo se optarem pela aplicação do direito comum (BRASIL, 1973).
Sendo, portanto, estabelecido um regime jurídico diferenciado para os povos indígenas, em respeito à liberdade cultural.
Entretanto, quando o referido estatuto menciona a aplicação de quaisquer formas de sanções próprias dos grupos indígenas aos seus membros, veda explicitamente, a pena de morte: “Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte” (BRASIL, 1973). Tais sanções, assim como qualquer sanção aplicada pelo Estado, representam a perda de determinado direito de um indivíduo em detrimento da sociedade a qual integra, sendo punido por violar uma norma e pôr em risco a ordem social. Ora, se é vedada a morte como sanção (a única hipótese legal em que ela se justificaria), torna-se implícito que não será passível em outros casos.
No mais, visando a garantia dos direitos das crianças indígenas, é plenamente possível, com o advento da Lei nº 13.257, de 2016, a aplicação concomitante do Estatuto do Índio e do Estatuto da Criança e do Adolescente, gerando ao Estado, o dever de assegurar a vida e saúde de tais indivíduos, desde o seu nascimento.
3.4. O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLECENTE
Em virtude da inclusão feita pela Lei nº 13.257 (2016), do parágrafo único, ao artigo 3º, da Lei nº 8.069 (1990), Estatuto da Criança e do Adolescente, é garantida a aplicação de tal estatuto às crianças indígenas:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem (BRASIL, 1990).
São garantidos a elas, todos os direitos estabelecidos nesse estatuto, quais sejam, direito à vida, saúde, dignidade e proteção integral. Tendo como princípio, o melhor interesse da criança, que rege as aplicações de políticas públicas ou quaisquer medidas a elas aplicadas.
O artigo 4º, do mesmo estatuto, dispõe:
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude (BRASIL, 1990).
É atribuída ao Estado, a responsabilidade jurídica sobre os menores, sendo seu dever garantir o cumprimento dos direitos inerentes à todas as crianças e adolescentes brasileiros. Seja por meio de políticas públicas ou medidas judiciais, cabe aos entes públicos lhes oferecer proteção prioritária.
No que concerne ao Estado, deveria criar formas de proteger as crianças indígenas das práticas culturais lesivas. Por ser detentor de tutela jurídica sobre elas, pode intervir, no intuito de salvaguardar a vida das crianças em risco.
4. O POSICIONAMENTO DO ESTADO
A Fundação Nacional do Índio – FUNAI, instituída no Brasil desde 5 de dezembro de 1967, é responsável pela proteção dos povos indígenas brasileiros e a aplicação das políticas públicas indigenistas (BRASIL, 1967). Como órgão governamental especializado na cultura e direitos indígenas, possui papel fundamental no trato de questões relativas os índios.
Ocorre que, em seu posicionamento em defesa da liberdade cultural dos povos indígenas, a FUNAI, em uma de suas declarações, sustentou: “a alegação dessa suposta prática serve, muitas vezes, como tentativa de criminalização e demonstração de preconceito contra os povos indígenas, e também como justificativa para penalizar servidores públicos que atuam em áreas indígenas” (FUNAI, 2016).
Com o intuito de preservar os costumes indígenas, os órgãos do governo mantem o entendimento de que o combate ou qualquer interferência na prática do homicídio de crianças representa ameaça à diversidade étnica, estimulando ideias a atitudes de preconceito e discriminação contra os indígenas.
Para Barreto (2006), o governo, por adotar posicionamento extremista do relativismo cultural, negligência os direitos de personalidade dos indivíduos indígenas. Onde diz:
Na visão dos órgãos governamentais, se a cultura indígena diz que as crianças deveriam morrer, então o Estado estaria proibido de atuar para proteger estas vidas, em nome do respeito aos valores culturais, do isolamento e da preservação da cultura (BARRETO, 2006, p. 9).
Pela postura omissiva em realizar levantamentos para o registro da prática, e aplicar medidas de proteção às crianças indígenas, o Estado ignora o fato de que, independentemente da quantidade, a morte arbitraria de um ser humano deve sempre ser evitada, dado o valor inestimável que possui uma única vida.
5. MEDIDAS ADOTADAS EM DEFESA DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS INDÍGENAS
Além do trabalho realizado por grupos missionários que frequentemente estão presentes em tribos indígenas, Organizações Não Governamentais, como a Atini - Voz pela Vida, fundada em 2006, com sede em Brasília, atuam na defesa dos direitos das crianças indígenas:
Atini significa "voz" na língua suruwahá. O movimento se inspirou na luta de uma mulher indígena, Muwaji Suruwahá, que levantou sua voz com coragem a favor de sua filha Iganani. A menina tem paralisia cerebral, e por isso estava condenada à morte por envenenamento em sua própria comunidade. Muwaji desafiou a tradição de seu povo e ainda a burocracia do mundo de fora para manter sua filha viva e garantir seu tratamento médico (CONHEÇA, 2014).
Outra ONG, a Aldeia Brasil, atua em tribos indígenas, possuindo sedes no estado do Paraná e de São Paulo. Um de seus objetivos é defender as vítimas da prática cultural indígena do homicídio de crianças (DOCUMENTÁRIO, 2010).
Atualmente, crianças indígenas permanecem abrigadas em sedes de tais organizações, e outras, tornaram-se ativistas no combate da prática.
6.CONCLUSÃO
Há uma urgente necessidade de se fazer valer as normas constitucionais e infraconstitucionais vigentes no Brasil, em defesa dos indivíduos, independentemente de sua cultura, crença ou tradições. Por meio dos registros de casos, depoimento de indígenas e estudos realizados por ONGS – Organizações Não Governamentais, é possível afirmar que a prática do homicídio de crianças se perpetua na cultura indígena, sem que nada seja feito pelas autoridades públicas para impedir a morte delas.
O ordenamento jurídico brasileiro possui uma série de dispositivos que garantem o direito a vida em detrimento de qualquer outro direito, inclusive, a liberdade cultural. No entanto, projetos legislativos tentam dar mais especificidade ao direito que tais crianças possuem, de viver.
Visto que, instituições do governo, em especial, a FUNAI, permanecem inertes, fundadas no preceito de que as expressões culturais indígenas, devem ser preservadas independentemente das consequências lesivas aos direitos dos integrantes da cultura indígena, ainda que as vítimas consigam fugir da morte a qual estavam destinadas, continuam lutando por aceitação e pela garantia do cumprimento dos direitos pátrios inerentes à elas.
REFERÊNCIAS
BARRETO, Maíra de Paula. Universalidade dos Direitos Humanos e da Personalidade versus Relativismo Cultural. In: XV Congresso Nacional do CONPEDI - Direito, Sociobiodiversidade e soberania na Amazônia, 2006, Manaus. Anais do XV Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2006. p. 1-21.
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WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2014: os jovens do Brasil. Rio de Janeiro: Flacso Brasil, 2014. Disponível em: https://www.mpma.mp.br/arquivos/CAOPCRIM/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf. Acesso em: 01 jun. 2020.
Graduanda em direito, pelo Centro Universitário Luterano de Manaus - CEULM/ULBRA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRUCE, Sara Freire. A prática cultural indígena do homicídio de crianças e o conflito entre cultura e vida Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jul 2020, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54860/a-prtica-cultural-indgena-do-homicdio-de-crianas-e-o-conflito-entre-cultura-e-vida. Acesso em: 22 nov 2024.
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