RHANNA RIBEIRO FERREIRA
(coautora)
Artigo de conclusão de curso apresentado à Banca examinadora do Centro Universitário – UNINOVAFAPI, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel de Direito.Orientador(a): Prof. Me. Juliano de Oliveira Leonel.
RESUMO: O presente trabalho trata da inconstitucionalidade da execução provisória da pena após condenação, pelo Tribunal do Júri, objetivando examinar, de forma crítica, por meio do método lógico-dedutivo, a inconstitucionalidade da execução imediata da pena, após condenação, pelo tribunal do júri, dentro de uma ótica constitucional e processual penal. Inicialmente serão feitas considerações em relação à instrumentalidade constitucional do processo penal, bem como sua natureza jurídica e sua dupla conformidade humanitária, constitucional e convencional, identificando a legitimidade da sentença condenatória, na medida em que a execução provisória da pena fere o princípio da presunção de inocência. Além de deixar claro que o princípio da soberania dos veredictos não autoriza a execução provisória. E, buscando levantar o entendimento dos tribunais a respeito da execução antecipada após decisão de 1º e 2º grau. Por fim, almeja-se uma conclusão no que diz respeito à inconstitucionalidade do artigo 492, inciso I, “e” do Código de Processo Penal.
Palavras-chave: Inconstitucionalidade. Soberania dos Veredictos. Presunção de Inocência. Execução Provisória. Tribunal do Júri.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. A INSTRUMENTALIDADE CONSTITUCIONAL DO PROCESSO PENAL. 2.1 Natureza jurídica do processo penal. 2.2 A dupla conformidade do processo penal humanitário, constitucional e convencional em relação ao art. 492, i, “e”, do CPP. 3. A LEGITIMIDADE DA SENTENÇA CONDENATÓRIA PELO TRIBUNAL DO JÚRI SOB FUNDAMENTO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS . 3.1 Art. 492, I, “e” do CPP em observância ao princípio da presunção de inocência. 3.2 Art. 492, I, “e” do CPP em observância ao princípio soberania dos vereditos. 4. A (IN)CONSTITUCIONALIDADE E O PACOTE ANTICRIME. 4.1 Da (in)constitucionalidade do art. 492, i, “e”, do CPP perante a supremacia das normas constitucionais e dos tratados internacionais de direitos humanos. 4.2 Entendimento dos tribunais em relação a (in)constitucionalidade da execução antecipada após a decisão de 1º e 2º grau.
O estudo em pauta tem como propósito demonstrar, no âmbito do direito processual penal e constitucional, a inconstitucionalidade da execução antecipada da sentença condenatória, proferida pelo tribunal do júri, de forma a compreender em que medida a execução provisória da pena se torna inconstitucional.
Considerando a relevância do tema em questão, bem como sua repercussão, torna-se essencial tentar demonstrar que, ao instituir o estado democrático de direito, a Constituição Federal submeteu diversos princípios para assegurar os direitos fundamentais dos indivíduos, entre eles, o princípio da presunção de inocência, expresso em seu art. 5º, LVII, visando garantir a liberdade do acusado, até o trânsito em julgado.
A pesquisa objetiva o levantamento de questões atinentes à execução provisória da pena, a partir do princípio da presunção de inocência e da soberania dos veredictos, como também, a análise de sua inconstitucionalidade e as divergências dos entendimentos dos tribunais.
Nesse sentindo, visando aclarar a temática, esta pesquisa abordará, em seu primeiro capítulo, a instrumentalidade constitucional do processo penal, bem como sua natureza jurídica e sua dupla conformidade.
No segundo capítulo, serão abordados tópicos relevantes acerca da legitimidade da sentença condenatória, sob fundamento dos princípios constitucionais, demonstrando em que medida a execução provisória da pena fere o princípio da presunção de inocência, e como o legislador usou o princípio da soberania dos veredictos em desfavor do acusado.
Por conseguinte, no terceiro capítulo, será explanada a inconstitucionalidade da alteração do art. 492, I, “e” do Código de Processo Penal perante a supremacia das normas constitucionais e dos tratados internacionais de direito humanos, além de demonstrar as divergências dos tribunais em relação à execução antecipada da pena, após decisão de 1º e 2º grau.
O trabalho em foco dispõe do método lógico-dedutivo, fundamentando-se na construção jurisprudencial, normativa e doutrinária, sendo explorada a execução provisória da pena, a partir ordenamento jurídico brasileiro. O referencial teórico sobre o tema, doutrinas, artigos jurídicos, jurisprudência, normas constitucionais será o método de procedimento específico do trabalho em questão.
2.A INSTRUMENTALIDADE CONSTITUCIONAL DO PROCESSO PENAL
O Estado democrático é visto como garantista da tutela da pessoa humana, dos direitos fundamentais de liberdade e de segurança social. A respeito dessa definição Duarte (2013, p.1-2) alega:
O modelo de Estado Democrático de Direito, em que o Estado brasileiro se insere (ou deve se inserir), caracteriza-se por institucionalizar e positivar amplas garantias e direitos individuais, encarados como direitos fundamentais. O processo penal, neste tipo de Estado, é visto como uma garantia fundamental, tomadora de uma roupagem distinta da de outros tempos, que pressupõe o processo penal como uma garantia a eventuais abusos estatais, para concebê-lo como um instrumento apto à tutela dos direitos fundamentais, tanto na perspectiva Estatal (proteção de direitos coletivos e potenciais) quanto na do sujeito de Direito (proteção das liberdades individuais), de sorte que a infração penal seja encarada como um problema afeto a um contexto geral, que envolve questões históricas, políticas, econômicas e sociais.
Por via de regra, o senso comum teórico, afirma que o Direito Penal é considerado como protetor da manutenção da paz jurídica, como um importante instrumento. É permeado por diversos princípios constitucionais, que limitam o poder punitivo do Estado, preservando, assim, seus direitos fundamentais de liberdade, a segurança social e a tutela da pessoa humana (DUARTE, 2013).
O Direito Penal, no plano da dogmática, teria, em sua função, prevenir infrações jurídicas no futuro, ou seja, teria a função de prevenção de condutas humanas voluntárias, vistas como ilícitas, que lesionam ou expõem perigo a bens e valores, protegidos no nosso ordenamento jurídico, em que pese à criminologia crítica já ter demonstrado que as funções declaradas da pena não conseguem cumprir aquilo que um dia prometeram.
Dessa forma, a falha da função de prevenir infrações penais, acaba gerando a necessidade de aplicação de uma sanção: a pena ou uma medida de segurança. No entanto, a aplicação da sanção só ocorre mediante o devido processo penal.
É importante ressaltar a íntima relação entre o Processo Penal, a pena e Direito Penal. Ou seja, para que exista uma pena é necessário que cumpra o devido processo penal, e isso só ocorrerá mediante a infração de um delito composto no Código Penal brasileiro. Assim, Lopes Jr (2020, p. 43) esclarece:
Existe uma íntima relação e interação entre a história das penas e o nascimento do processo penal, na medida em que o processo penal é um caminho necessário para alcançar-se a pena e, principalmente, um caminho que condiciona o exercício do poder de penar (essência do poder punitivo) à estrita observância de uma série de regras que compõe o devido processo penal [...]. Esse é o núcleo conceitual do “Princípio da Necessidade”.
Diante disso, o Princípio da Necessidade delimita o ponto diferencial entre o processo penal com o processo civil. O Direito Civil pode ocorrer por via extraprocessual, o que o difere do Direito Penal, onde não é permitida a solução do conflito dessa forma para que haja a aplicação de uma pena, sendo necessária a efetivação por via processual.
Conforme Lopes Jr (2020, p.45) “O direito penal não tem realidade concreta fora do processo penal, ou seja, não se efetiva, senão pela via processual”. Logo, só existe possibilidade de aplicação de uma pena posterior ao devido processo penal. Com isso, fica definido a instrumentalidade do processo penal, relacionado com o Direito Penal e a pena.
Dado isso, ao longo desse percurso, para se chegar, legitimamente, à pena, é necessário seguir, rigorosamente, as regras e garantias constitucionais do devido processo legal. De acordo com Lopes Jr (2020, p. 45) “O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena”.
Somente assim, com todo o percurso necessário para se chegar legitimamente à pena, juntamente com as garantias constitucionais e a pretensão acusatória, em observância a instrumentalidade constitucional e seus alicerces, proteção, e máxima efetividade aos direitos e garantias individuais, poderá se chegar a uma pena tida como justa.
2.1 Natureza Jurídica do Processo Penal.
O direito processual penal é o ramo do direito público que objetiva conferir efetividade ao direito penal, fornecendo os meios e o caminho para que seja aplicada a pena em caso concreto. Assim, Marques (1997, p. 32) conceitua o Processo Penal como “Conjunto de princípios e normas que regulam a aplicação jurisdicional do direito penal, bem como as atividades persecutórias da Polícia Judiciária, e a estruturação dos órgãos da função jurisdicional e respectivos auxiliares”.
As principais teorias acerca da natureza jurídica do processo são: o processo como relação jurídica de (Büllow); o processo como situação jurídica de (Goldschmidt) e o processo como procedimento em contraditório de (Fazzalari).
A criação da obra de Oskar Von Büllow, denominada a “Teoria das exceções e dos pressupostos processuais”, foi responsável pelo surgimento da ciência processual, onde esta relação processual seria de natureza pública e autônoma. E, tinha como finalidade a análise de uma lei Prussiana, que antecedia o que hoje entendemos como Alemanha, e cujo objetivo seria autorizar a extinção do processo sem resolução do mérito (BULLOW, 1868 apud LOPES JR, 2020).
Os elementos que constituem essa relação jurídica processual seriam: pessoas, materiais, atos e momento em que se desenvolvem. Essa analogia, do jurídico processual e triangular, se forma entre as partes e o juiz, atribuindo-se a origem da mutualidade de direitos e obrigações, onde as partes têm direito à tutela jurisdicional e o juiz é o responsável pela condução do processo, até alcançar a sentença.
Fundamenta-se que o processo penal é uma relação jurídica complexa e autônoma, composta em três partes, com direitos e obrigações recíprocas. Comprovando, assim, que o réu não é uma simples peça do processo e, muito menos, que o processo é um mero instrumento (LOPES JR, 2020).
A “teoria do processo como situação jurídica” criada por James Goldschmidt aponta falhas na célebre obra de Bullow. Para Goldschimdt, o processo é tratado como um complexo de situações processuais, em que as partes tendem a uma sentença definitiva vantajosa, negando, assim, a existência de direitos e obrigações processuais de Bullow, o considerando “pressupostos de uma sentença de fundo” (GOLDSCHMIDTH, 1925 apud LOPES JR, 2020).
O processo como situação jurídica dá início a “expectativas, chances, cargas e liberação de cargas”. As expectativas se dão com o efeito da realização de um ato processual, praticado pela parte interessada, em uma sentença vantajosa. De modo que, as possibilidades advêm de uma chance, diante dela, pode disponibilizar-se de uma carga processual e caminha-se no sentido de uma sentença benéfica, ou não, podendo, com isso, aumentar a probabilidade de uma sentença desvantajosa. Outrossim, liberação de uma carga pode-se advir de um agir positivo (prática que lhe é permitido) como também não, sempre que se encontrar num cenário que lhe consente se abster de realizar algum ato processual (LOPES JR E SILVA, 2010).
Vale ressaltar que, no processo penal não existem “distribuição de cargas probatórias”, pois está ligado à noção de unilateralidade, logo, passível de atribuição. Contudo, os sujeitos não incumbem obrigações, mas cargas processuais da prova estão submetidas ao acusador, sustentado pela a ideia de que a peça acusatória foi realizada por ele, mas, também por que o acusado (réu) está guardado pelo princípio da presunção ou estado de inocência (LOPES JR, 2020).
A ideia de demonstrar a tipicidade caberia apenas ao acusador, através de um sistema analítico. Para uma melhor concepção da tipicidade, ilicitude e culpabilidade, o fato penal se torna tripartido. Assim, declara Jardim, (2003, p. 214): “a ilicitude ou culpabilidade devem ser depreendidas das circunstâncias do fato principal, narradas, necessariamente, na peça acusatória, sendo ônus do autor provar, suficientemente, a existência destas circunstâncias que afirmou”.
Por seu turno, a “teoria do processo como procedimento em contraditório” foi desenvolvida por Fazzalari, considerada um segmento da teoria de Goldschmidt, ainda que não assumida por todos, mas é inegável a importância do Professor Alemão. No processo, os atos do procedimento se desenvolvem de um modo dialógico. Modo de permitir que todos os indivíduos envolvidos no resultado final possam compartilhar dessa conclusão final, ou seja, seria o contraditório. O processo é uma espécie de procedimento intrínseco, que se desenvolve em contraditório (FAZZALARI, 1958 apud LOPES JR, 2020).
Contudo, a ideia de que o Estado, quando desempenha uma função jurisdicional por meio do processo, torna clara a concepção de que o processo é um instrumento posto à disposição do Estado, para o exercício da jurisdição.
Com isto, o contraditório é observado em duas extensões “como direito a informação e reação”, onde qualquer ato do procedimento é presunção para o provimento final e todos são convocados a cooperar. E, esses atos estão interligados de modo que, a legitimidade posterior, depende da legitimidade anterior e de todos eles, submetem-se da sentença (LOPES JR, 2020).
Enfim, desse modo, claro está que a natureza jurídica do processo é de guerra, jogo, pois o mundo do processo é o mundo da incerteza. Em assim sendo, a posição defendida por Goldschmidt se mostra acertada, se comparada com a natureza jurídica defendida por Büllow, já que inscreve o processo penal numa situação de dinamicidade, enquanto que, na perspectiva de relação jurídica processual, o processo estaria inserido numa situação estática.
Por isso, resta-nos evidente que o processo é um jogo, que será vencido pelo jogador que melhor aproveitar as chances processuais e, por isso, num Estado Democrático de Direito, ganha relevo a ideia de instrumentalidade constitucional do processo, já que uma sentença só seria legítima após o respeito às regras do jogo, do flair play processual.
2.2 A dupla conformidade do processo penal humanitário, constitucional e convencional em relação ao art. 492, I, “e”, do CPP.
O Código de Processo Penal (CPP) foi promulgado em 3 de outubro de 1941, Decreto-Lei nº. 3.689, que entrou em vigor a partir de 1 de janeiro do ano de 1942, imposta por Getúlio Vargas (BRASIL, 1941). E, está conectado a uma “cópia” inquisitiva do Código Rocco Italiano, de 1930, ambos inspirados em uma ditadura fascista.
No entanto, o CPP passou por diversas reformas, muitas delas amenizadas anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), “adaptando-se” ao regime democrático. Todavia, permanece regido por estruturas autoritárias. Zapater (2016, p. 2; 4):
[...] somente devido a uma intensa mobilização dos juristas e profissionais atuantes na defesa de acusados para que se adequasse o texto legal às normas constitucionais que passaram a prever garantias processuais penais como direitos individuais fundamentais. [...] São mais de seis décadas, durante as quais, pessoas vêm sendo processadas e condenadas com base em um procedimento que foi concebido para desprivilegiar o direito de defesa, compreendido pelo autor do Código como um “sentimentalismo mais ou menos equívoco”.
Assim sendo, apesar de ainda possuirmos um CPP inquisitivo, a Constituição Federal delineia um sistema acusatório. Segundo, Távora & Alencar (2016, p. 48) “esse modelo que tem como características fundamentais a separação entre as funções de acusar, defender e julgar, conferidas a personagens distintos”.
E, com isso, atingimos um sistema acusatório conduzido através dos princípios da presunção de inocência, da ampla defesa, do contraditório e da publicidade, ocasionando satisfação de direitos humanos fundamentais e, principalmente, uma proteção do indivíduo contra o arbítrio do Estado.
É notável que o CPP, que possui status de lei ordinária, deve obediência à Constituição Federal. Afirma Cunha (2018, p. 2): “Atualmente a Constituição é considerada como um parâmetro normativo e axiológico, de modo que os demais ramos do direito devem ser interpretados de acordo com os seus preceitos maiores.” Ademais, o Tratado Internacional de Direitos Humanos, tendo status de norma supralegal, se situa abaixo da Constituição Federal e acima das demais normas do Ordenamento Jurídico. Dessa forma, atesta Leite & Cruz (2018, p. 7):
As normas imediatamente abaixo da Constituição (infraconstitucionais) e dos tratados internacionais sobre direitos humanos são as leis (complementares, ordinárias e delegadas), as medidas provisórias, os decretos legislativos, as resoluções legislativas, os tratados internacionais em geral incorporados ao ordenamento jurídico e os decretos autônomos.
Com efeito, o CPP deve estar em conformidade com a Constituição Federal e com a Convenção Americana dos Direitos Humanos (CADH). Reitera Cunha (2018, p.7): “o processo penal, na atualidade, deve passar, não apenas pelo filtro constitucional, mas, também, pelo filtro convencional dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil”.
O Estado Democrático de Direito exige, antes de uma condenação, o transcurso de todo o processo penal. E, a busca para se alcançar um devido processo deve estar em conformidade com a constitucionalização dos direitos humanos, fazendo uma análise convencional e constitucional, e, assim, resultar em um processo penal humanitário. Conforme afirma Leonel apud Leonel & Magalhães (2016, p. 300):
para que o poder punitivo tenha legitimidade é imperioso que ao réu tenha sido garantido o devido processo legal, com todos os seus consectários, previstos não só na Constituição Federal, mas, também, no Pacto de São José da Costa Rica.
Com isso, fica claro que é necessária, também, a conformidade do processo penal com o Pacto de São José da Costa Rica, como dispõe Leonel apud Leonel & Magalhães (2016, p. 314):
Portanto, é inegável a necessidade de rompimento desses entraves, na direção da construção de um processo penal constitucional e humanitário, que necessariamente passa pela análise de conformidade das regras do Código de Processo Penal com o Pacto de São José da Costa Rica, dentro daquilo que se chama de controle de convencionalidade, até porque hierarquicamente o CPP, enquanto lei ordinária, está baixo da CADH, que segundo o STF possui status de norma supralegal.
Entretanto, não é isso que vem acontecendo em terra brasilis, pois vários são os exemplos de crises das fontes, ou seja, de aplicação de dispositivos de matriz autoritária do CPP, que são claramente violadores do texto constitucional e do pacto de São José da Costa Rica.
E, se já não bastasse esse, já preocupante, corte autoritário e fascista do processo penal brasileiro, recentemente tivemos a edição da lei nº 13.964/19, também conhecida como pacote anticrime, que, em diversos pontos, se mostra contrária à Constituição Federal e aos tratados internacionais de direitos humanos, como no caso da possibilidade de execução provisória da pena no Tribunal do Júri, ex vi a redação dada ao Art. 492, I, “e” (BRASIL, 1941):
Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que: (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008)
I – no caso de condenação: (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008)
e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos; (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
Com a alteração do art. 492, I, “e”, do CPP, ficou estabelecida a execução antecipada da pena, antes do trânsito em julgado, vem gerando diversos questionamentos sobre sua (in)constitucionalidade. Visto que, como é possível determinar a execução antecipada imediata da pena, após decisão de primeiro grau, sendo que o STF já reconheceu ser inconstitucional a execução antecipada, após decisão de segundo grau? É errado considerar o réu culpado, uma vez que ainda cabem recursos da aludida condenação, em primeiro grau de jurisdição.
Além disso, Lopes Jr (2020, p. 901) leciona que:
É errado afirmar que alguém é considerado “culpado” após a decisão de segundo grau, porque dela somente cabem recursos, especial e extraordinário, que não permitem reexame de provas. Primeiramente há que se compreender que no Brasil adotamos a “culpabilidade normativa”, ou seja, o conceito normativo de culpabilidade exige que somente se possa falar em (e tratar como) culpado após o transcurso inteiro do processo penal e sua finalização com a imutabilidade da condenação. E, mais, somente se pode afirmar que está “comprovada legalmente a culpa”, como exige o art. 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, com o trânsito em julgado da decisão condenatória.
A CADH consagra o princípio da presunção de inocência, até o momento em que o acusado for comprovadamente considerado culpado.
Portanto, conforme se demonstrará a seguir, a execução antecipada da pena compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal e o princípio do duplo grau de jurisdição, violando tanto os Direitos Fundamentais como a CADH.
3.A LEGITIMIDADE DA SENTENÇA CONDENATÓRIA PELO TRIBUNAL DO JÚRI SOB FUNDAMENTO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Uma sentença condenatória só é legítima depois de esgotados todos os recursos, já que, todos só serão considerados culpados após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, bem como ninguém será privado de sua liberdade, senão depois de respeitado o devido processo legal, nos exatos termos do texto constitucional brasileiro.
Como é cediço, um réu é levado ao Tribunal do Júri quando, supostamente cometeu um crime doloso contra a vida, consumado ou tentado, crimes como homicídio, infanticídio, ou seja, crimes onde o bem jurídico protegido é a vida. Esses casos são julgados por um tribunal popular, ou seja, cidadãos comuns, escolhidos por meio de sorteio e, assim formarão o conselho de sentença.
O conselho de sentença decidirá se o réu é inocente ou culpado e o Juiz fixará a pena, conforme vontade do Tribunal popular, em caso de condenação. Caso o réu seja condenado, ele poderá interpor recursos, como por exemplo, quando a decisão dos jurados for, manifestamente, contrária às provas dos autos.
Mas, para que se tenha uma sentença condenatória legítima, mister se faz assegurar o respeito à todas as regras democráticas do jogo, conforme dito alhures. Desse modo, o devido processo legal exige o respeito de todos os demais princípios processuais, direitos e garantias fundamentais. Portanto, o indivíduo deve ser considerado inocente, até o trânsito em julgado, até não haver mais nenhuma possibilidade de comprovarem sua culpabilidade.
O que se observa, em verdade, é que o cumprimento imediato da pena após condenação pelo Júri representa violação aos princípios constitucionais, em especial ao princípio da presunção de inocência, e, a execução provisória da pena pelo Tribunal do Júri gera a proteção insatisfatória de direitos fundamentais do indivíduo, e, um processo injusto.
3.1 Art. 492, I, “e”, do CPP em observância ao princípio da presunção de inocência.
O Princípio da Presunção de Inocência se encontra previsto no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição de 1988, bem como pela CADH, que estabeleceu por meio do art. 8º, 2 que: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa” (CONVENÇÃO, 1969).
Da presunção de inocência exsurge verdadeira regra de tratamento: todo investigado/acusado deve ser tratado como inocente ao longo da persecução criminal.
Portanto, a prisão de alguém pode se dar de forma cautelar ou em decorrência de sentença penal transitada em julgado. Por isso, fala-se em prisão sem pena (prisões processuais) e prisão-pena.
Com isso, não se nega a possibilidade de se prender algum acusado, que responde a processo perante o Tribunal do Júri, antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, desde que tal prisão seja devidamente fundamentada pelo magistrado, em razões de ordem cautelar (prisão temporária ou preventiva, conforme o caso).
Todavia, a alteração do art. 492, I, “e”, do CPP viola essa regra de tratamento, que decorre da presunção de inocência, uma vez que, estabeleceu a execução antecipada da pena ao acusado que recebe uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão, em primeira instância. Ou seja, ainda que caiba recurso e sem qualquer cautelaridade e fundamentação, mesmo sendo ainda inocente, pois não teria havido o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o acusado já iniciará o cumprimento de uma pena, como se culpado fosse.
De acordo com Fernandes (2019, p. 1):
Não há nenhuma justificativa constitucional ou legal que autorize a relativização do direito à presunção de inocência nesses casos, pois é previsto recurso de apelação em face dessa decisão, cujo resultado do julgamento em segunda instância pode ser a cassação do veredicto, em virtude de haver possibilidade de plena reanálise fática do caso, diferentemente dos recursos aos Tribunais Superiores.
A questão é: como começar a execução antecipada da pena, sendo que o acusado ainda tem direito de recorrer da respectiva sentença? Isso, por óbvio, seria presumir sua culpabilidade, antes do trânsito em julgado de sentença condenatória e não sua inocência.
3.2 Art. 492, I, “e”, do CPP em observância ao princípio da soberania dos veredictos.
O princípio da soberania dos veredictos se encontra elencado no Artigo 5º, XXXXIII e é considerado uma garantia constitucional do acusado de ser julgado por um Tribunal popular (BRASIL, 1988).
A soberania dos veredictos representa a alma do Tribunal do Júri. Nesse contexto, o veredicto popular é quem vai decidir o caso no julgamento do Tribunal do Júri. E, o princípio da soberania dos veredictos irá garantir aos jurados que não haverá interferência do Poder Judiciário, conferindo a eles uma decisão imodificável. Assim, Tourinho Filho (2002, p. 246) declina que:
Júri sem um mínimo de soberania é corpo sem alma, instituição inútil. Que vantagem teria o cidadão de ser julgado pelo Tribunal popular se as decisões deste não tivesse o mínimo de soberania? Porque o legislador constituinte esculpiu a instituição do Júri no capitulo pertinente aos direitos e garantias individuais? Qual seria a garantia? A de ser julgado pelos seus pares? Que diferença haveria em ser julgado pelo Juiz togado ou pelo Tribunal leigo? Se o Tribunal ad quem, por meio de recurso, examinando as quaestionesfacti e as quaestiones Júris, pudesse como juízo rescisório, proferir a decisão adequada, para manter o Júri. O legislador constituinte entregou o julgamento ao povo, completamente desligado das filigranas do direito criminal e das súmulas e repositórios jurisprudenciais para que pudesse decidir com a sua sensibilidade, equilíbrio e independência, longe do princípio segundo o qual o que não está nos autos não existe. A soberania dos veredictos, ainda que reduzida à sua expressão mais simples, é a essência do Júri. Ainda que a Lei das leis silencie a respeito, não pode o legislador ordinário omiti-la. Nada impede, contudo, possa ele reduzir a amplitude que o atual CPP lhe conferiu, contendo-a dentro nos seus indispensáveis e inevitáveis limites: Já mais suprimi-la exradice.
Portanto, o princípio da soberania dos veredictos confere aos jurados decidir sobre o mérito da causa e impede o Tribunal de modificar o mérito dessa decisão.
No entanto, ainda assim, é conferido ao Tribunal uma única possibilidade de anular essa decisão e determinar um novo julgamento pelo júri, no caso de apelação quando a decisão dos jurados for contrária às provas dos autos.
Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: (Redação dada pela Lei nº 263, de 23.2.1948)
III - das decisões do Tribunal do Júri, quando: (Redação dada pela Lei nº 263, de 23.2.1948)
d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos. (Incluído pela Lei nº 263, de 23.2.1948)
§ 3º Se a apelação se fundar no III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação. (Incluído pela Lei nº 263, de 23.2.1948) (BRASIL, 1941)
É possível, ainda, o questionamento da decisão proferida pelos jurados, por meio de revisão criminal, de acordo com o Artigo 621 (BRASIL, 1941):
Art. 621: A revisão dos processos findos será admitida:
I – Quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos;
II – Quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos;
III – Quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição da pena.
O art. 492, I, “e”, do CPP vem gerando grande polêmica, por prever a possibilidade de execução provisória da pena, sempre que houver condenação pelo júri, sustentando-se, nesse caso, que não haveria inconstitucionalidade, uma vez que a condenação é resultado de veredicto dos jurados, sendo aplicado o princípio da soberania dos veredictos. Portanto, a execução provisória da pena seria uma decorrência da soberania dos veredictos.
Nesse sentido, tem-se o posicionamento do Ministro Luís Roberto Barroso no julgamento do Habeas Corpus nº 118.770 (STF, 2017):
Direito Constitucional e Penal. Habeas Corpus. Duplo Homicídio, ambos qualificados. Condenação pelo Tribunal do Júri. Soberania dos veredictos. Início do cumprimento da pena. Possibilidade. 1. A Constituição Federal prevê a competência do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida (art. 5º, inciso XXXVIII, d). Prevê, ademais, a soberania dos veredictos (art. 5º, inciso XXXVIII, c), a significar que os tribunais não podem substituir a decisão proferida pelo júri popular. 2. Diante disso, não viola o princípio da presunção de inocência ou da culpabilidade a execução da condenação pelo Tribunal do Júri, independentemente do julgamento da apelação ou de qualquer outro recurso. Essa decisão está em consonância com a lógica do precedente firmado em repercussão geral do ARE 964.246-RG, Rel. Min. Teori Zavascki, já que, também no caso de decisão do Júri, o Tribunal não poderá reapreciar fato e provas, na medida em que a responsabilidade penal do réu já foi assentada soberanamente pelo Júri. 3. Caso haja fortes indícios de nulidade ou de condenação manifestamente contrária à prova dos autos, hipóteses incomuns, o Tribunal poderá suspender a execução da decisão até o julgamento do recurso. 4. Habeas corpus não conhecido, ante a inadequação da via eleita. Não concessão da ordem de ofício. Tese de julgamento: “A prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não-culpabilidade”.
No entanto, é nítido que o princípio da soberania dos veredictos não é uma garantia absoluta, como explana Capez (2018, p. 654) “trata-se de princípio relativo, logo não exclui a recorribilidade de suas decisões, limitando-se, contudo, a esfera recursal ao juízo rescindente (judicium rescindem)”.
No mais, a soberania dos veredictos é uma garantia constitucional dos jurados e do próprio réu, a assegurar que o Tribunal não poderá reformar o mérito da decisão do júri popular.
Desse modo, percebe-se de plano o equívoco da posição defendida pelo Min. Barroso, que, a rigor, invoca uma garantia do réu (a soberania dos veredictos) para soterrar outra garantia sua: a presunção de inocência. Note-se que, assim, o que se está fazendo é transformar uma garantia do acusado e do jurado (a soberania dos veredictos) em verdadeira antigarantia, numa perigosa viragem discursiva.
4.A (IN)CONSTITUCIONALIDADE E O PACOTE ANTICRIME
A lei nº 13.964 foi nomeada como “Pacote Anticrime”, sancionada em 24 de dezembro de 2019, trazendo alterações na legislação penal e processual e na lei de execuções penais (BRASIL, 2019). Conforme Vivas (2020, p.1) “O pacote é resultado da reunião de propostas elaboradas pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, e por uma comissão de juristas, coordenada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF)”.
A lei em questão iria apenas “aperfeiçoar” a legislação, no entanto, trouxe modificações substanciais. Uma delas é a mudança nas regras do Tribunal do Júri, que tinha como objetivo aumentar a efetividade no Tribunal do Júri. A mudança trazida pelo pacote anticrime, de acordo com Rocha (2020, p. 2) “a execução provisória da pena para quem for condenado a uma pena igual ou superior a 15 anos”. Ou seja, o réu começará a cumprir a pena assim que for determinada a sentença, mesmo que ainda haja espaço para recursos.
Antes da vigência da lei nº 13.964, o réu poderia ser preso após determinada sentença, no entanto, era necessário que estivessem presentes requisitos da prisão preventiva. Assim, dispõe o Artigo 312 e 313 (BRASIL, 1941):
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.
Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva:
I – nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;
II – se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal;
III – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;
Ademais, se não estivessem presentes nenhum dos requisitos, o réu, mesmo que tivesse sido condenado pelo tribunal do júri, aguardaria o trânsito em julgado da sentença em liberdade. No entanto, com a nova redação do pacote anticrime, caso a condenação da pena seja igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, o réu terá na sentença, desde já, a expedição do mandado de prisão, saindo do Tribunal do Júri, preso.
Dessa forma, conclui-se que a execução antecipada da pena é inconstitucional. Afirma Silva (2005, p. 46): “todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as normas da Constituição Federal”. Com isso, a execução antecipada da pena não foi recepcionada pela Constituição.
4.1.Da (in)constitucionalidade do art. 492, I, “e”, do CPP perante a supremacia das normas constitucionais e dos tratados internacionais de direitos humanos.
O nosso ordenamento jurídico é formado por um plexo de normas jurídicas e, dentro dele, estas normas jurídicas estão organizadas em uma relação de hierarquia. Ou seja, possuem espécies normativas superiores, como é o caso da Constituição Federal e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e, espécies normativas inferiores, que estão abaixo das normas delas (NOVELINO, 2014).
Diante disso, é nítido que a Constituição Federal é dotada de supremacia constitucional, em razão de sua rigidez. E, devido isso, todas as normas infraconstitucionais devem estar em sintonia com o texto constitucional. Pois, é da Constituição que as normas infraconstitucionais retiram seu fundamento de validade. E se, eventualmente, uma espécie normativa estiver em dissonância com a Constituição, ela será considerada inválida e inconstitucional. Afirma Silva (2005, p. 49) “normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a Constituição”.
Assim sendo, não deveria ser possível a execução provisória da pena após condenação pelo tribunal do júri, alteração prevista no Art.492, I, “e” do CPP pela lei Anticrime nº 13.964/2019, se tal alteração se encontra em desobediência ao comando constitucional, correndo o risco da decisão ser reformada, por meio de recurso especial. Ora, o acusado é preso provisoriamente, após condenação pelo tribunal do júri, sendo que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) pode reconhecer que existe uma nulidade no júri, declarar essa nulidade e reformar a decisão, levando o réu a um novo julgamento. Durante todo esse processo, o acusado deveria permanecer preso? (LOPES, 2020)
Em decorrência do que foi dito, reitera Lopes Jr apud Tatemoto (2019, p. 2): "A questão é que agora temos alguém preso, e que amanhã pode ser absolvido, ou a pena pode ser reduzida, podem modificar regime, podem anular o processo inteiro e a pessoa ficou presa anos sem trânsito em julgado, sem fundamento cautelar".
Há de se compreender que no Brasil foi instituído o princípio da presunção de inocência, com o intuito de assegurar a liberdade dos indivíduos e proteger inocentes de terem uma prisão prematura, sem uma sentença definitiva. E, mesmo estando consagrada no art. 5º, LVII (BRASIL, 1988) e, sendo dotada de supremacia constitucional, não é absoluta, por poder ser relativizada pela aplicação das prisões cautelares. Portanto, segundo Lopes Jr (2020, p. 901), “somente se possa falar em (e tratar como) culpado após o transcurso inteiro do processo penal e sua finalização com a imutabilidade da condenação”.
Repetidamente, é demonstrado que a execução antecipada da pena após condenação pelo tribunal do júri é inconstitucional. Esclarece Lopes Jr (2020, p. 900): “pois não se reveste de caráter cautelar e não foi recepcionada pelo art. 283 do CPP, além de violar a presunção de inocência ao tratar alguém de forma análoga à de um condenado, antes do trânsito em julgado”.
Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado. (BRASIL, 1942)
Ademais, o princípio da isonomia também é violado, e também é um princípio constitucional, ou seja, também é dotado de supremacia constitucional. Previsto no Art. 5º caput CF (Brasil, 1988), “Todos são iguais perante a lei”. Dessa forma, não existe coerência, uma vez que o legislador estabeleceu a prisão obrigatória para réu condenado pelo tribunal do júri a uma pena igual ou superior a 15 anos, ou seja, réu acusado de crimes dolosos contra a vida, sendo que réus condenados por latrocínios, estupro com resultado morte e, outros crimes com penas superiores a 15 anos, a prisão não é obrigatória? Porque uma prisão impositiva para uns e para outros não? Debate Streck (2020, p.3):
Isto quer dizer o quê? Simples. Que o júri é absolutamente soberano. Quer dizer: alguém comete um latrocínio, é julgado por juiz togado e pega 16 anos de prisão. Pode recorrer. A prisão não é obrigatória. Poderá ser preso, é claro. Provavelmente será e não recorrerá em liberdade. Mas, tecnicamente, a prisão não é impositiva. Mas no júri, acima de 15 anos, sim.
Por fim, a inconstitucionalidade do art. 492, I, “e” do CPP também fere os tratados internacionais de direitos humanos, que determina, conforme o art. 8, 2, h da CADH (CONVENÇÃO, 1969):
2.Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
h. direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.
Logo, por conseguinte, a Constituição Federal trouxe garantias ao réu, através do princípio da presunção de inocência e do princípio da isonomia, da mesma forma a CADH. O Tribunal do Júri foi instituído para dar uma maior proteção aos acusados. Nesse sentido, a inconstitucionalidade do art. 492, I, “e”, do CPP, suprimiu o objetivo do Tribunal do Júri, princípio da presunção de inocência, o princípio da isonomia e o princípio do duplo grau de jurisdição, violando, tanto os Direitos Fundamentais, como os Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Garantias que atendiam as necessidades do acusado, o legislador usou para atingir negativamente o réu.
4.2 Entendimento dos tribunais em relação a (in)constitucionalidade da execução antecipada após decisão de 1º e 2º grau.
O tema acerca da execução provisória da pena gera inúmeras discussões jurisprudenciais. Dado que, como é possível admitir a execução antecipada da pena após uma decisão de 1º grau, se o STF reconheceu ser inconstitucional a execução antecipada após decisão de 2º grau?
O julgamento ocorrido em 07 de novembro de 2019, no STF, alterou o entendimento acerca da prisão em 2ª instância, que prevalecia de 2016 a 2019. A condenação em 2ª instância autorizava a execução provisória da pena, entendimento esse que foi alterado e, a partir de 07 de novembro de 2019, não é mais possível a prisão provisória da pena de condenação em 2ª instância.
Um dos casos de maior repercussão durante esse período foi o do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado com mais de 08 anos de prisão, pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. O ex-presidente foi solto em 08 de novembro de 2019. Reitera Gomes (2019, p. 1) “O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi solto na última sexta-feira (8), um dia depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir que réus só podem ser presos depois de esgotados todos os recursos”.
Ora, foi reconhecido ser inconstitucional a execução antecipada, após decisão de 2º grau, e a execução antecipada da pena, após julgamento pelo tribunal do júri? Afirma Lopes Jr (2020, p. 905) “É igualmente inconstitucional, com agravante de que se trata de execução antecipada em primeiro grau”. No entanto, entendimentos jurisprudenciais contrariam a afirmação de Lopes Jr. Como elucida o il. Ministro Joaquim Barbosa, em seu voto no Habeas Corpus nº 84.078/MG (STF, 2009):
[...]. Considero que as decisões proferidas pelo juízo de primeiro e/ou segundo graus de jurisdição, no sentido da condenação do réu, como é o caso presente, devem ser respeitadas e levadas a sério, pois os órgãos judiciários prolatores de decisões de mérito são presumidamente idôneos para o ofício que lhes compete exercer. [...]. Considerando, assim, a legitimidade das instâncias ordinárias para proferir decisões condenatórias dotadas de efetividade, penso ser necessário que esta Corte permita sua execução provisória, sob pena de as tornarmos despiciendas. É de se ter em conta a possibilidade de execução provisória do julgado vem da necessidade de dar efetividade ao processo, evitando que se frustre a condenação já exaustivamente determinada nas instâncias ordinárias, em que a ação penal tramitou e foi submetida à análise percuciente pelos órgãos competentes para análise dos fatos. Veja-se que não se trata de relegar à inoperância o princípio da presunção de inocência do acusado, mas se estará a velar pelo cumprimento provisório de provimento condenatório, já exaustivamente decidido nas instâncias ordinárias. Volto a frisar, as instâncias competentes para exame dos fatos. Ora, o princípio do estado de inocência não é absoluto e incontrastável em nosso ordenamento jurídico; foi com base na sua ponderação que, por exemplo, esta Corte sempre entendeu e continua entendendo legítimos os institutos da prisão preventiva e da prisão temporária. Relativamente ao condenado, a execução provisória da pena também é de ser admitida, considerada não a culpa inconteste do réu, mas a existência de decisões judiciais condenatórias, calcadas nos exames dos fatos, que tornam legítima a privação da sua liberdade [...]
Fica nítido, portanto, que a posição do il. Ministro se mostra favorável à execução provisória da pena, antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, sob fundamento, que tal decisão não fere a Constituição Federal, não fere, particularmente, o princípio da presunção de inocência.
No julgamento do Habeas Corpus nº 118.770, a posição do Ministro Luís Roberto Barroso, foi similar ao posicionamento do Ministro Joaquim Barbosa. Em sua tese, o Ministro afirmou que a prisão de sentença condenatória do Tribunal do Júri não viola o princípio da presunção de inocência e que a decisão dos jurados é soberana.
Em seu voto, no HC nº 118.770, Ministro Luís Roberto Barroso, fundamenta (STF, 2009):
[...] 9. A Constituição Federal de 1988 prevê a competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art. 5º, inciso XXXVIII, d). Prevê, ademais, a soberania dos seus veredictos (art. 5º, inciso XXXVIII, c), a significar que os tribunais não podem substituir a decisão proferida. 10. Ao discorrer sobre a soberania da deliberação do Tribunal popular, Guilherme de Souza Nucci afirma que “o veredicto popular é a última palavra, não podendo ser contestada, quanto ao mérito, por qualquer Tribunal togado...”. É certo que a legislação e a jurisprudência admitem a invalidação do julgamento, notadamente em caso de decisão manifestamente contrária à prova dos autos ou de nulidade ocorrida no processo, nos termos do artigo 593, inciso III, do Código de Processo Penal. Veja-se, nessa linha, o RHC 132.632-AgR, Rel. Min, Celso de Mello, em que a decisão absolutória do júri foi invalidada a pedido da acusação. Porém, como regra geral, o Tribunal não poderá substituir uma decisão do júri, mas apenas determinar a realização de novo julgamento. 11. À vista deste quadro constitucional e legal, nada impede o imediato cumprimento de decisão condenatória pelo Tribunal do Júri. 12. Como já assentei, a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes. No caso específico da condenação pelo Tribunal do Júri, na medida em que a responsabilidade penal do réu já foi assentada soberanamente pelo Júri, e o Tribunal não pode substituir-se aos jurados na apreciação de fatos e provas (CF/1988, art. 5º, XXXVIII, c), o princípio da presunção de inocência adquire menor peso ao ser ponderado com o interesse constitucional na efetividade da lei penal, em prol dos bens jurídicos que ela visa resguardar (CF/1988, arts. 5º, caput e LXXVIII e 144). Assim, interpretação que interdite a prisão como consequência da condenação pelo Tribunal do Júri representa proteção insatisfatória de direitos fundamentais, como a vida, a dignidade humana e a integridade física e moral das pessoas. [...]. 14. Por esse conjunto de razões, como regra geral quase absoluta, prevalecerá a decisão do Tribunal do Júri. Ademais, no caso de crimes dolosos contra a vida, mais notoriamente nos de homicídio, a celeridade da resposta penal é indispensável para que a Justiça cumpra o seu papel de promover segurança jurídica, dar satisfação social e cumprir sua função de prevenção geral. 15. Anote-se, por importante, que, no caso haja indícios fortes de nulidade do processo ou de condenação manifestamente contrária à prova dos autos, hipóteses incomuns, o Tribunal competente para o julgamento do recurso de apelação, no exercício do poder geral de cautela, poderá suspender a execução da decisão condenatória até o julgamento final do recurso. Isto sem contar a permanente possibilidade de impetração de habeas corpus, “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (art. 5º, inciso LXVIII).
Em seu voto, o Ministro fundamentou três questões: o princípio da soberania dos veredictos, o princípio da presunção de inocência e a proteção dos direitos fundamentais (PACE, 2018).
Em relação ao princípio da soberania dos veredictos, ele argumentou não ser possível substituir decisão proferida pelo Tribunal do Júri, mesmo podendo ocorrer um novo julgamento, em caso de a decisão estar contrária às provas dos autos (PACE, 2018).
Posteriormente, ele fundamentou que o princípio da presunção de inocência não é uma regra, e sim um princípio, e que ele pode ser relativizado, em prol dos bens jurídicos que a Constituição assegurou resguardar, com o objetivo de que a lei penal seja efetiva (PACE, 2018).
Por fim, sua última argumentação foi sobre a execução imediata da pena, sob proteção dos direitos fundamentais. O Ministro Luís Roberto Barroso afirma que o impedimento para o cumprimento imediato da pena implica na proteção insatisfatória dos direitos fundamentais, isto é, viola o direito à vida, à dignidade humana e à integridade física e moral das pessoas. Segundo o Ministro, essa é a resposta penal, para que a Justiça cumpra seu papel de segurança pública (PACE, 2018).
Pois bem, ele fundamentou que o princípio da presunção de inocência não é uma regra, e pode ser relativizado. E o princípio da soberania dos veredictos? Não é um princípio? Não pode também ser relativizado? Diante desses argumentos, fica claro que o Ministro tratou o princípio da soberania dos veredictos como absoluto e, que está convertendo garantias, que deveriam ser usadas em favor dos acusados, contra eles.
Sobre o argumento de que o impedimento para o cumprimento imediato da pena implica na proteção insatisfatória dos direitos fundamentais, é totalmente incabível. E o acusado? Não tem direito à vida? À liberdade? Onde fica a dignidade humana dele?
É injusto. O acusado tem direito a ser tratado como inocente, até o trânsito em julgado. Ele não pode ter sua liberdade privada, sob fundamentos que contrariam a Constituição Federal.
O tribunal do júri, o princípio da soberania dos veredictos, o princípio da presunção de inocência são garantias constitucionais, que não podem ser usadas contra o réu. É totalmente inconstitucional.
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível compreender, ante o apresentado, que a execução antecipada da pena após condenação, em 1º grau, pelo tribunal do júri, atestou ser inconstitucional, na medida em que viola o princípio da presunção de inocência, que exige o trânsito em julgado da decisão, como condição para executar a pena, uma vez ponderado com o interesse constitucional, na efetividade de lei penal.
A respeito do princípio da soberania dos veredictos, observou-se que o legislador tentou manipular uma garantia constitucional do réu em desfavor dele e, assim, conseguir anular o princípio da presunção de inocência, tendo, dessa forma, o princípio da soberania dos veredictos como absoluto.
A aplicação do cumprimento imediato da pena, após condenação, pelo tribunal do júri, gerou diversos entendimentos doutrinários e jurisprudências. Como os posicionamentos dos Ministros Joaquim Barbosa e Luís Roberto Barroso, nos quais ambos se posicionaram favoráveis à aplicação da execução provisória da pena, através de fundamentos, claramente equivocados, afirmando que tal aplicação não fere o princípio da presunção de inocência, e que pode ser relativizado, por se tratar de um princípio, e não regra. Em contrapartida, o mesmo argumento não foi utilizado em relação ao princípio da soberania dos veredictos.
Portanto, entende-se que, o legislador, através do Pacote Anticrime, tinha o objetivo de buscar uma maior efetividade nas decisões condenatórias. No entanto, a aplicação da execução provisória da pena contraria a Constituição Federal, o Art. 283 do CPP e a Convenção Americana de Direitos Humanos, que também exige a comprovação legal da culpa como condição para o início da execução da pena.
Por fim, conclui-se que a discussão acerca do tema está longe de chegar ao fim. À vista disso, torna-se urgente a reinterpretação da alteração do art. 492, I, “e” do CPP, com intuito de resguardar o princípio da presunção de inocência, previsto no texto constitucional e, assim, não afetar o significado de trânsito em julgado.
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Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário – UNINOVAFAPI
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SABOIA, ROSSANA SANTOS. Pacote anticrime e a inconstitucionalidade da execução provisória da pena após condenação em 1º grau pelo Tribunal do Júri Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jul 2020, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54902/pacote-anticrime-e-a-inconstitucionalidade-da-execuo-provisria-da-pena-aps-condenao-em-1-grau-pelo-tribunal-do-jri. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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