JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL[1]
(orientador)
Resumo: O Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) trouxe, em 2017, que 63,6% da população carcerária nacional são de pessoas de cor/etnia pretas e pardas, para além disso, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, apontou que 74,4% das vítimas de mortes violentas intencionais provocadas pelas Polícias no ano de 2018 eram negros. Partindo disso, o presente artigo tem por escopo a seletividade no sistema penal brasileiro em decorrência do racismo institucional a partir da teoria criminológica do Labeling Approach a fim de compreender como essa teoria explica a relação existente entre o racismo estrutural, a opressão do sistema penal e as consequências do etiquetamento aos sujeitos. Nessa esteira, a pesquisa é de natureza qualitativa de cunho bibliográfico. Como resultado, percebeu-se que, a violência racial no Brasil é fruto de uma política racista iniciada com o tráfico de negros da África, na colonização, depois, com o fim da escravidão, ganhou suporte no racismo científico, com isso, a sociedade brasileira se moldou a partir da discriminação do corpo negro, que recebeu o rótulo de criminoso ao ser representado, historicamente, como um sujeito violento e criminoso. Indo além, a teoria da etiquetagem explica que o rótulo é peça fundamental para a construção do criminoso e, em consequência, das repressões por parte do sistema penal. Por fim, conclui-se que, o Estado propaga um estereótipo criminal ao imaginário social no passo que o sistema penal pune e criminaliza, inúmera das vezes, o negro, já etiquetado/rotulado, por questões raciais e não por suas práticas.
Palavras-chave: Direito Penal. Encarceramento. Racismo. Labeling Approach.
Summary: Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penintenciárias or National Survey about Penitential Info) in 2017 showed that 63,6% of the national prison population is made of the brown and black ethnicity. Besides, the Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Brazilian Annuary of Public Security) pointed out in 2019 that 74,4% of the victims of violent deaths intentionally provoked by police officers in 2018 were black. From that premise, this article’s scope is the selectivity of the Brazilian penal system caused by institutional racism on a foundation of the criminological theory about the Labeling Approach. This concept explains the relation between structural racism, the Brazilian penal system’s oppression, and the consequences of labeling individuals. The research’s nature is qualitative and based on bibliographies. As a result, it was noticed that racial violence in Brazil is caused by its racist policy that initiated with the slave trade in Africa, then, in the colonization and when slavery ended, gathered support with scientific racism. Based on those facts, it is clear that Brazilian society casted itself over the discrimination of the black body, which was labeled as a criminal in its representation. Historically, black individuals are seen as violent and criminal. Also, the labeling approach theory explains that the label is fundamental for the criminal’s construction, and as a consequence, there are the repressions made by the criminal justice system. It is concluded that the State spreads the stereotype of a criminal in the social imaginary. At the same time, the penal system punishes and criminalizes black individuals that are already labeled for racial reasons and not for their actions.
Key-words: Criminal Law. Incarceration. Racism. Labeling Approach.
Sumário: Introdução – 1. As Raízes do Racismo Institucional. 1.1 A escravidão negra. 1.2 O corpo negro no pós-abolição. 1.3 O “embranquecer” do Brasil. 2. Criando o Etiquetamento. 2.1 Criminalização Primária. 2.2 Criminalização Secundária. 2.3 As “cifras negras” ou “cifras ocultas” do Direito Penal. 3. Racismo e o Etiquetamento: teoria do Labeling Approach. 3.1 Teoria criminológica do Labeling Approach. 3.2 Seletividade do sistema penal e o Labeling Approach. 3.3 Consequências do estigma ao sujeito negro. 4. Considerações Finais. Referências.
O artigo 5º, caput, da Constituição Federal preconiza a igualdade das pessoas ao dizer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (BRASIL, 1988). Partindo disso, o sistema penal (a tríade formada pela atuação legislativa penal, os agentes de segurança pública e o Poder Judiciário) tem como objetivo o controle e punição de determinadas ações e omissões. Ele se utiliza do artigo 5º da Constituição como pilar sustentador para o tratamento igualitário, sem que sejam feitas discriminações.
Entretanto, a realidade do sistema penal vai de encontro ao discurso que o Direito Penal é igualitário e imparcial, pelo contrário, o sistema penal é discriminatório e seletivo, recrutando de forma majoritária as camadas menos desfavorecidas: a população pobre e negra. Isso fica evidente nas estatísticas, que comprovam que a população carcerária é majoritariamente constituída de negros.
De acordo com o “Mapa do Encarceramento: os jovens do Brasil”, realizado no período de 2005 a 2012, existia mais negros presos no Brasil, que brancos. Em 2005 a porcentagem da população negra encarcerada era de 58,4%, já em 2012 a porcentagem subiu para 60,8% da população prisional. Tais dados deixam evidente que quanto mais a população prisional no Brasil cresce, mais cresce o número de negros encarcerados.
Indo além, o Departamento Penitenciário Nacional através do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) traz informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro e em relação ao dado sobre a cor ou etnia da população prisional, o levantamento realizado em 2017 trouxe que 63,6% da população carcerária nacional são de pessoas de cor/etnia pretas e pardas.
Outro dado importante está no Atlas da Violência de 2019 em que se verificou a continuidade de um processo já existente, o aprofundamento da desigualdade racial no que diz respeito aos indicadores de violência letal no Brasil, pois no ano de 2017, o Atlas mostrou que 75,5% das vítimas de homicídios eram de indivíduos negros (aqui corresponde a soma de indivíduos pretos ou pardos, conforme classificação do IBGE) ao passo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16%. Outro ponto a se observar através do Atlas é que no período de uma década (2007 a 2017), a taxa de negros cresceu 33,1%, enquanto a de não negros apresentou um pequeno crescimento de 3,3%.
Tais dados relevam que a população negra possui o maior índice de encarceramento, ademais, sabe-se que, historicamente, os negros sofrem diversas opressões por parte do Estado, seja pelo não acesso às políticas públicas e aos direitos mais elementares ou por parte da polícia, que é considerada e constatada como uma das polícias mais violentas do mundo, de acordo com a edição de 2019 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O levantamento aponta que 11 a cada 100 mortes violentas intencionais foram provocadas pelas Polícias no ano de 2018, destaca ainda que ocorreram 6.220 mortes causadas por policiais nesse mesmo ano, sendo que 74,4% das vítimas eram negros.
Isso deixa evidente a existência de um racismo institucionalizado, que diz respeito a um tratamento diferenciado entre raças e dessa maneira, a cor da pessoa é determinante seja para a realização de abordagens policiais como para realização de outros procedimentos correspondentes.
Dessa maneira, de acordo com o exposto, a presente pesquisa tem como foco central a seletividade da justiça criminal. Tem-se, ainda, a seguinte problematização: Como o racismo institucional cria estereótipos criminais? E para responder tal questionamento, utilizar-se-á da teoria do Labeling Approach ou teoria do etiquetamento social, que é uma teoria criminológica que procura explicar o porquê da seletividade existente no sistema penal.
No intuito de alcançar a resposta da problematização, tem-se como objetivo principal, compreender como o racismo institucional influencia na seletividade do sistema penal à luz da teoria do Labeling Approach. Assim, para que tal objetivo seja alcançado, tem-se como objetivos específicos: analisar a relação existente entre o racismo e a seletividade do sistema penal; conceituar a teoria criminológica do Labeling Approach ou etiquetamento social; e, identificar os reflexos do racismo institucional na sociedade brasileira.
A presente pesquisa busca suporte em um referencial teórico pautado nas mais modernas doutrinas do Direito Penal e da Criminologia, bem como em pesquisas bibliográficas como periódicos e publicações científicas. Nesse sentido, procura-se apoio nos seguintes autores: Baratta (2013), Shecaira (2014), Vianna (2015), Silva (2015), Romano (2016), Leal e Vechi (2016), Borges (2019), entre outros autores que reúnem as ferramentas essenciais e eficazes para o desenvolvimento da pesquisa.
No que tange à metodologia, trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, que “[...] trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes” (MINAYO, 2007, p. 21), isto é, esse tipo de abordagem investiga os fenômenos que fazem parte da realidade social dos sujeitos pesquisados, que podem ser observados e analisados pelo pesquisador. Quanto aos procedimentos técnicos, trata-se de uma pesquisa bibliográfica, desenvolvida a partir de uma base já elaborada, isto é, a partir de documentos (livros, manuais, códigos, artigos científicos e periódicos) que servem como base para a construção da pesquisa, bem como para as conclusões do autor (GIL, 2008).
Quanto a motivação, o interesse pessoal pelo tema surgiu a partir de uma palestra assistida no X Congresso Piauiense de Ciências Criminais em que um professor convidado ao término de sua explicação disse que se pedisse para a plateia fazer o perfil de um criminoso, não seria retratado um branco e ruivo como ele. Outro fator decisório para justificar a pesquisa foi a minissérie estadunidense “Olhos que condenam” (When they see us, no original) sobre a condenação de cinco adolescentes negros, sem provas forenses ou testemunhas, por um estupro brutal em Nova York em 1989, do qual acabaram inocentados apenas em 2002.
A presente pesquisa visa contribuir, do ponto de vista acadêmico, ao buscar explicar o porquê certas pessoas e condutas são consideradas criminosas para o sistema penal enquanto outras passam à margem de qualquer perseguição. Dessa maneira, a relevância do tema está na procura por apresentar os reflexos do racismo institucionalizado na sociedade brasileira e a sua influência no sistema penal, que se apresenta de maneira discriminatória.
Num primeiro momento, apresenta-se um contexto histórico da construção do racismo na sociedade brasileira, que se inicia no tráfico de negros do continente africano, para serem escravizados no Brasil colônia, assim, tendo em vista que o sistema criminal foi instituído a partir da subjugação e extermínio do corpo negro, que refletem até os dias de hoje, na sequência, traz-se a criminalização primária e criminalização secundária, bem como as “cifras negras” do Direito Penal, que estão associadas à teoria do Labeling Approach ou do etiquetamento e explicam como são definidos os “clientes” do sistema penal. Por fim, apresenta-se o conceito e o contexto histórico em que se fundou a teoria do Labeling Approach, bem como sua relação com as questões raciais com o intuito de demonstrar como o racismo atua no Direito Penal e é percebido na violência institucional oriunda das agências repressoras, que agem de maneira seletiva e parcial.
1.AS RAÍZES DO RACISMO INSTITUCIONAL
No Brasil, o Estado, de maneira velada, utiliza um discurso de medo ao indivíduo negro, o que incentiva e corrobora com a violência a esses sujeitos, visto que a sociedade brasileira “escuta” esse discurso genocida desde a colonização, em que, inicialmente, utilizou-se um discurso religioso para justificar a exploração do corpo negro (BORGES, 2019), tendo em vista que “o papel da Igreja, nesse contexto, foi alimentar a idéia [sic] de que o negro deveria obediência em resignação à condição de escravo e que estava necessitado de catequização pelo cristianismo” (CAÇÃO; REZENDE FILHO, 2010, p. 2-3).
Diante de tais constatações, é mister trazer o contexto histórico em que o Brasil se fundou para entender a relação existente entre racismo e sistema penal e compreender como e quando iniciou esse genocídio da população negra, no país. Ou seja, para se discutir sobre justiça criminal no Brasil é preciso “mergulhar” na história, tendo em vista que o racismo, nos dias atuais, é resultado de uma política do Estado historicamente fundada no controle e extermínio das populações negras e indígenas (FLAUZINA, 2006). Em outros termos, Borges (2019) explica que a questão racial é o pilar sustentador para a instalação da justiça criminal no Brasil, que se inicia no Brasil Colônia, com o tráfico de africanos.
A escravidão negra se tornou um negócio lucrativo no Brasil por volta do século XVII. Quanto ao início do tráfico de africanos para o Brasil, conforme explana Borges (2019), o tráfico iniciou em 1549, no século XVI, com o intuito substituir a mão de obra indígena, pois, Flauzina (2006) explana que a Coroa Portuguesa reconheceu a existência da “alma indígena” e os indígenas poderiam ser catequizados, assim, conforme complementam Cação e Rezende Filho (2010), a Igreja Católica passou a proibir a escravização de índios, salvo por guerra justa. Em outros termos, nas situações em que índios atacavam os portugueses, a escravidão indígena era validada pela Igreja.
Nessa situação, é mister entender que a venda de escravos vindos da África para o Brasil era um comércio lucrativo para a coroa portuguesa, por isso, até a proibição do tráfico transatlântico, por volta de 5 milhões de africanos tenham sido trazidos e escravizados no Brasil (BORGES, 2019). Ademais, para a sociedade da época, os negros, trazidos da África, eram como “coisas” e, consequentemente, propriedade de alguém, por isso, deviam sujeição a outros, por serem sua propriedade (CARVALHO, 2017), o que revela uma sociedade marcada pela desigualdade, violência e objetivação do corpo negro.
O escravo é considerado e colocado na posição de mercadoria, portanto sujeito a relações de alienação idênticas a qualquer coisa que possa ser de propriedade de alguém. O escravo não constitui um bem pessoal vinculado, mas é alienável ao arbítrio do proprietário. [...] Eles somente eram considerados como bem vinculado quando fizesse, tal qual os animais da fazenda, parte da hipoteca, como acessórios (CASTRO, 2016, p. 385-386).
Corroborando com esse entendimento, Nunes (2006) diz que o escravo é visto como uma “peça”, uma “coisa” pertencente ao proprietário e, por isso, pode ser vendido, alugado e comprado, além de entrar na contabilidade da fazenda junto com as cabeças de gado, as ferramentas e outros bens materiais.
Do ponto de vista cultural, não tinha mudanças significativas, na realidade, os negros eram tratados como animais, sem capacidade intelectual, e isso fica evidente na maneira que os senhores de engenho tratavam os recém-chegados da África, chamando-os de boçais, estúpidos, ignorantes, entre outras palavras chulas, pois os negros traficados não conheciam o idioma e nem os costumes do Brasil colônia, ademais, tais insultos instrumentalizava a inferiorização desses indivíduos, que perdiam seu valor humano por conta do seu dialeto, da crença e dos ritos religiosos (CAÇÃO; REZENDE FILHO, 2010).
Dessa maneira, durante vários séculos seguintes, utilizou-se de mão de obra escrava, baseando-se em preceitos de etnia e origem. Em outros termos, o Brasil foi construído a partir do sequestro e da escravidão de pessoas negras advindas do continente africano, tendo em vista que o escravo negro foi a primeira mercadoria do colonialismo (BORGES, 2019).
Nesse período, conforme explana a autora supracitada, a ideologia predominante era do trabalho como uma atividade disciplinadora aos “desalmados”, termo usado pela Igreja Católica para se referir aos negros. Por isso, tanto castigo quanto punição eram práticas adotadas para evitar a desobediência e ensinar a disciplina, entretanto, tais atividades “disciplinadoras” apenas subjugavam esses sujeitos.
Com isso, o escravo ao tentar fugir e buscar sua liberdade era caracterizado como criminoso porque cometia um crime contra o direito de propriedade que a elite branca brasileira detinha, ou seja, a “semente” do Direito no Brasil está atrelada à proteção do patrimônio e a severas punições aos escravos que cometiam crimes - fugas, levantes, entre outros - contra seus senhores (BORGES, 2019).
[...] um aparato da barbaridade que, pela apropriação dos corpos e a imposição de toda sorte de mazelas, que vão da tortura psicológica às mutilações, investiu no disciplinamento da mão-de-obra, no controle das fugas e em todos os episódios de insurreição mais latentes que encontravam a morte como limite de sua expressão (FLAUZINA, 2006, p. 48).
A arquitetura do sistema penal, como se observa, é estruturada a partir da coordenação e controle dos corpos negros como subservientes, herança que, segundo Flauzina (2006, p. 46), “nunca conseguimos nos divorciar”. Nessa linha de pensamento, Nunes (2006) explica que o regime escravista no Brasil apresentava uma violência cotidiana naturalizada, que traduz a espinha dorsal do aparelho repressivo no país. E para o autor, esse cenário trouxe profundas marcas que são significativas pistas para compreender o racismo brasileiro atual, e, nessa mesma linha, Flauzina (2006) complementa ao dispor que a relação existente entre casa-grande e senzala são as matrizes do sistema penal brasileiro, um sistema punitivo.
Apenas no período iluminista, no século XVII, aparecem as primeiras ideias contrárias à escravidão, alguns dos pensamentos da época consideravam a escravidão como uma barbárie. Para além disso, existia um interesse econômico de alguns países, já capitalistas, com o fim da escravidão, um exemplo foi a Inglaterra, que por conta de interesses econômicos, pressionava o Brasil contra a escravidão (CASTRO, 2016).
No século XIX, o sistema tradicional de exploração, ou seja, o escravagista tornou-se obsoleto em favor dos novos valores impressos pelo capitalismo, pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial. [...] Entretanto, a abolição da escravatura e o desenvolvimento do capitalismo não se aplicaram tão facilmente em algumas regiões específicas. Havia muitos interesses por detrás da velha estrutura de poder, sobretudo no Brasil (CAÇÃO; REZENDE FILHO, 2010, p. 4-5).
No Brasil, a escravidão perdurou por mais tempo em razão das políticas e ideologias promovidas pela velha estrutura de poder brasileira, uma vez que os interesses econômicos da elite era conservador tal qual a sociedade. Contudo, uma parte da elite econômica, familiarizadas com a ideia de liberdade aos escravos propagada pela Inglaterra, encontrava na escravidão um sistema maléfico que ia de encontro às disposições morais do homem e, principalmente, inibia o processo de industrialização, consequentemente, inibindo o capitalismo, que na época, já estava em um momento que não poderia ser contido (CAÇÃO; REZENDE FILHO, 2011).
Por conseguinte, de acordo com o autor acima citado, os escravos desejosos por uma nova ordem social, livre dos sofrimentos e do tratamento antinatural que os afligiam, passaram a lutar, também, por suas liberdades, através de rebeliões, fugas em massa, provocando debates, mobilizando a imprensa a fim de conseguir o fim da violência, da subordinação e ter a sonhada liberdade. O autor ainda explica que os conservadores, a partir do momento que perceberam que a abolição já ganhava um corpo sólido e temendo uma revolução tal qual no Haiti, criaram leis moderadas na intenção de enfraquecer o tráfico de escravos e adaptar os proprietários de escravo para a abolição, cada vez mais próxima. Alguns exemplos dessas leis, conforme traz Carvalho (2017), foi a proibição do tráfico negreiro através da lei Eusébio de Queiroz[1], em 1850, a lei do ventre livre[2] ou lei Rio Branco, em 1871, a lei Saraiva-Cotegipe[3] ou lei Sexagenário, em 1885.
Todas essas leis deixam evidente a posição, tímida, do Estado em não reconhecer mais legitimidade na escravidão, por isso, na década de 1870, o fim da escravidão no Brasil é mais do que nunca uma questão de tempo (COSTA, 2007). Nesse período, o abolicionismo se tornou o assunto do momento, trazendo uma agitação popular, principalmente nos centros urbanos, pois ser abolicionista significava ser moderno e favorável à civilização (CASTRO, 2016). Além do número crescente de abolicionistas, que ganhava cada vez mais adeptos, outro fator decisivo para a abolição da escravidão foi o conflito internacional que envolvia o interesse capitalista da Inglaterra (Guerra contra o Paraguai), seguido de revoltas internas e fugas maciças de escravos.
Em consequência, formalmente, em 13 de maio de 1888 a escravidão foi abolida, com a Lei Áurea, sendo, o Brasil, um dos últimos países a abolir a escravidão.
Os abolicionistas cresciam em número, o movimento se agigantava no país, mas o golpe de misericórdia veio mesmo dos próprios escravos que, com o auxílio dos abolicionistas, começaram a abandonar as fazendas causando o caos no trabalho e tornando a situação insustentável. O desespero tomou conta dos escravistas que em vão tentaram incluir o exército no combate às fugas e rebeliões. A saída era única: a abolição [...] (CASTRO, 2016, p. 403-404, grifo nosso).
Aqui, é importante frisar que a princesa Isabel, uma vez que seu pai D. Pedro II estava ausente do país, apenas concordou em assinar a lei que já estava aprovada (CAÇÃO; REZENDE FILHO, 2010) e, assim, promulgou a lei nº 3.353, que aboliu a escravidão no Brasil, entretanto, a escravidão foi abolida apenas no papel, pois continuava ativa de forma clandestina. Para além disso, nenhum suporte foi dado aos negros após a abolição, isto é, eles ainda carregavam o estigma por conta de sua cor, bem como da característica física (CARVALHO, 2017).
1.2 O corpo negro no pós-abolição
A escravidão construiu para o corpo negro a representação de que eram seres biologicamente diferentes, mais próximo a animais e coisas, isto é, os negros eram vistos como objetos de posse dos brancos, estes considerados indivíduos humanos. Por causa disso, os escravos eram excluídos ou apartados do meio social e esse processo não muda nos pós-abolição (BORGES, 2019). Acerca disso, a autora ainda explana que o colonialismo usava uma filosofia religiosa para validar a superexploração do corpo negro, já no pós-abolicionismo, o estereótipo aparece como a nova lógica social para preservar a lógica de exclusão e, consequentemente, o extermínio da população negra.
Tal titularidade constitui mera formalidade, uma vez que, não será recebido como trabalhador livre no mercado de trabalho. [...] Não se nota qualquer providência legal, com vistas à integração dos novos cidadãos, pelo contrário, o jurista Rui Barbosa, Ministro da Fazenda do Governo provisório republicano, promoveu a incineração de documentos referentes à escravidão africana no Brasil. Seu objetivo imediato era impossibilitar cobrança de indenizações prometidas pelos republicanos aos senhores de escravo, mas acabou por causar irreparável prejuízo à recuperação da memória nacional (PRUDENTE, 1988, p. 141).
Nessa esteira, torna-se evidente que o sonho da cidadania, pelos ex-escravos, não chegou com a abolição da escravidão no Brasil, pois aos negros foi dado o direito a ser livre, contudo, foi negado as condições dignas de vida. Em outras palavras, a essência das relações sociais, por conta da desigualdade social arraigada, não mudou em nada (NUNES, 2006). Para além disso, conforme explana Serafim e Azeredo (2011, p. 6), a abolição “engrossou o contingente de subempregados e desempregados”.
A atitude do Estado para a situação do negro “liberto” sempre foi omissa: a miséria material, a discriminação e a humilhação vividas pelos afrodescendentes são reduzidas à culpa deles mesmos, por meio de uma manobra ideológica que transforma o que é da esfera das relações de poder em algo natural, inerente à raça (NUNES, 2006, p. 91).
Tal situação fica evidente quando os negros não tiveram voz para falar sobre o fim da escravidão e muito menos qualquer proteção social, pois a Lei Áurea, como já analisado, foi apenas um papel para satisfazer os interesses da Inglaterra e do capitalismo, que se espalhava como nova ordem econômica.
[...] a cultura da escravidão não foi abolida quando decretado, juridicamente, a liberdade dos negros, e que a mentalidade preconceituosa, permeada de valores racistas da Europa, vigorou por longa data na sociedade brasileira e dificultou, com isso, a integração do negro, ex-escravo, na sociedade vigente desde o fim do século XIX (CAÇÃO; REZENDE FILHO, 2010, p. 14).
Como resultado do desamparo, Carvalho (2017) esclarece que os ex-escravos foram marginalizados e discriminados, tanto pelo Estado quanto pela população em geral, uma vez que a sociedade brasileira estava “inundada” de preconceito. Os ex-escravos deixaram os campos em direção à cidade na busca por melhores condições de vida, o que contribuiu para o crescimento populacional urbano, entretanto, eles esbarraram em dificuldades maiores, por conta do preconceito racial (SERAFIM; AZEREDO, 2011).
Como resultado, foi criado uma norma para controlar e disciplinar esse contingente de negros, isto é, os juristas, que representavam o pensamento da minoria dominante, que deslegitimava o negro, dois anos após a abolição, em 1890, criam o segundo código penal[4], que, ansiando um Brasil “civilizado”, construíam um ordenamento jurídico para disciplinar a população, tanto que, no Livro III, o código trouxe como contravenção a mendigagem, os ébrios, os vadios e a capoeiras, o que evidencia a intenção de criminalizar à ancestralidade do continente africano.
No caminho de eliminação do elemento africano “incivilizado” passa pela exclusão da herança cultural negra no Brasil, que tinha como principais aspectos a Capoeira e os rituais religiosos, colocados em prática em instituto repressivo positivado no ordenamento jurídico pelo estado, apresentado especificamente no Código Penal de 1890. [...] a capoeira e os rituais religiosos africanos foram criminalizados pelo primeiro código penal da República, não tanto porque estes representavam risco à sociedade, mas porque seus principais praticantes, os negros, eram vistos pela sociedade como perigosos, vagabundos, desordeiros (SERAFIM; AZEREDO, 2011, p. 7-8).
Acerca do exposto, Marcelino e Martins (2019, p. 65) trazem que esse código penal trazia essas criminalizações “na tentativa de obstaculizar a evidente expansão da cultura negra, por meio de sua música e dança”. Todavia, para os autores acima citados, a capoeira quando praticada pela elite branca, rica e influente da nova república não causava temor social e nem era vista como uma “doença moral”, pelo contrário, ela era vista como um “esporte”, reafirmando o caráter discriminatório que o Estado promovia entre negros e brancos. Em linhas gerais, de acordo com Theodoro (2008), o Estado brasileiro, por ter se fundado sob bases escravocratas, em nada muda no pós-abolição e isso acontece porque a escravidão negra serve como pilar na construção das estruturas sociais brasileiras. Dessa maneira, para o autor, o racismo nasce associado à escravidão, principalmente no pós-abolição quando começa a se estruturar um discurso fundado em teses de inferioridade biológica dos negros.
De modo geral, o papel do negro após a abolição, resume-se:
a maioria dos negros e mestiços foi mantida nos segmentos mais desfavorecidos da população, não só pela precariedade das oportunidades oferecidas para a sua educação e aprimoramento profissional, como também pela preferência por pessoas de pele mais clara para ocupar os melhores cargos no mercado de trabalho (SOUZA, 2005, p. 142-143 apud CAÇÃO; REZENDE FILHO, 2010, p. 11).
Nessa linha de pensamento, Borges (2019), explica que o racismo atravessou a escravidão e acompanhou as transformações históricas da sociedade brasileira, estando presente e “latente” nas relações sociais e tendo o Estado como (re)afirmador dessas práticas.
Nesse interim, o decreto imperial assinado pela princesa Isabel traz à tona a desigualdade existente no Brasil, antes reconhecida juridicamente entre livres e escravos, e com o fim da escravidão, a equiparação jurídica entre todos os indivíduos fez sociedade se organizar a partir de uma nova visão de mundo, desta feita, o racismo científico é absorvido pela sociedade brasileira para a manutenção do poder e perpetuação da “supremacia” branca (COSTA, 2007).
1.3 O “embranquecer” do Brasil
A partir do racismo científico, surge, no Brasil, uma nova base teórica que traz a ideia de “melhoria genética”, uma corrente científica que versa sobre um mundo em que a raça branca é superior a negra, assim, esta, no ordenamento social, deveria ocupar posições subalternas. Isto é, a partir da “melhoria genética” a elite dominante encontrou uma alternativa para continuar a dominação sobre os negros e manter inalterada as assimetrias raciais criadas pela escravidão africana (FLAUZINA, 2006).
Segundo essa teoria racial, nas palavras de Abreu e Pereira (2011), o ser humano estava dividido e hierarquizado de acordo com sua raça, que passava às futuras gerações, em seu material genético, às características que possuíam e o homem europeu era a representação da superioridade, enquanto a raça negra era a representação da barbárie.
As características físicas e os aspectos culturais são hierarquizadas nesse sistema para garantir a subalternização desses povos por um discurso que contorna todas as esferas: moral, política, social, econômica e jurídica. Os discursos sobre o corpo e a moral da população negra foram fundamentais na constituição do racismo nas Américas e foram cruciais e determinantes para o sucesso da empreitada de hierarquia política e social do novo continente (BORGES, 2019, s/p).
Tais proposições eram pautadas em “[...] um jargão cientificista, evolucionista, determinista, positivista e também as proposições referentes ao racismo científico” (COSTA, 2007, p. 3) e tinha por objetivo “branquear” a sociedade brasileira através de imigração de europeus, a fim de apagar o lado africano e negro da sociedade brasileira, que já estava mestiçada; e colocar o país no mesmo nível das nações desenvolvidas. Assim, para isso acontecer, era preciso substituir os negros, ex-escravos, que traziam na sua cor a marca da “inferioridade”.
A política de imigração adotada pelo Brasil, no fim do século XIX e começo do século XX, é uma marca “palpável” do racismo científico no país, tendo em vista que o país estava aberto para os europeus e fechado para negros e amarelos, raças inferiores para a crença científica da época. Para além disso, no período em questão, essa discussão adentra as famílias brasileiras, tornando-se parte do senso comum, algo altamente difundido e propagado.
Faz-se importante, aqui, lembrar, que o direito privado nasceu na escravidão e carregou consigo o caráter violento sobre os escravos, que eram torturados física e psicologicamente, mutilados, entre outros abusos, desta forma, o discurso político, marcado pela seletividade penal que surgiu no Código Criminal do Império Brasileiro[5], em 1830, é o embrião de uma justiça estereotipada, que demonstra que o Direito e a Justiça Criminal eram um espaço de reprodução do racismo e meio de perpetuar as desigualdades existentes, isto é, a estrutura casa-grande e senzala.
Desta forma, a violência se estabelece a partir do corpo, que representa um espaço ideológico e identitário, por isso, aplica-se a “pedagogia do medo” em que a punição, a violência, o constrangimento e a coerção aparecem como estrutura política para posicionar o corpo negro na sociedade brasileira, como inferior (BORGES, 2019). Nesse ponto, o sociólogo francês Pierre Bourdieu afirmou que o caráter biológico era colocado em pauta para construir um atestado de superioridade do branco, mas é no corpo que se dá a materialidade da dominação (apud BORGES, 2017).
Em Foucault, o corpo é caminho e é por ele que são sentidas as ações das técnicas de poder. Corpo é, portanto, espaço de disputa de disciplinamento e controle. Os aparatos de controle e repressão têm o objetivo de tornar dóceis e moldar os corpos, e eles podem se realizar através de diversas esferas: educação, saúde, sistema carcerário, polícia, etc. É pela disciplina e repressão que as regras sociais são expostas e o corpo sujeitado é obrigado a cumpri-las (BORGES, 2017, on-line).
Nesse linha de pensamento, Cação e Rezende Filho (2010, p. 11), elucidam que, nesse período, “[...] os africanos eram considerados inferiores, primitivos e incapazes de construir civilizações evoluídas como a européia [sic]. E em vista disso, as elites brasileiras buscaram eliminar os laços com as culturas africanas”. Complementando o entendimento, na época, uma produção brasileira que se apoiou no racismo científico foi a obra do médico Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906), que pautado em pressupostos científicos da época explana que as raças negra e amarela são inaptas para diversas atividades, sendo uma delas, o desenvolvimento de uma civilização, por isso, para o médico, a presença negra no país funcionaria como um limitador da capacidade civilizatória brasileira, pois o país estava erguido tendo como pilares negros puros e miscigenados (apud COSTA, 2007).
Em 1894, foi lançado pelo médico eugenista Raimundo Nina Rodrigues o livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. [...] o médico brasileiro critica o Código Penal Brasileiro de 1890 e defende o tratamento diferenciado para o que ele considera “raças inferiores” nas penalizações: o negro e o indígena. (BORGES, 2019, s/p, grifo do autor).
Nessa toada, Marcelino e Martins (2019, p. 62) explicam que “a partir da obra de Nina Rodrigues, surge a premissa de controle social, não só pelo controle de indivíduos, mas também pelo controle e a seletividade de grupos humanos por meio da característica racial”. Em suma, a elite, que carregava os traços conservadores do Brasil colônia, tinha o negro e o indígena como incapazes de civilidade, desta maneira, queria ao longo do tempo “branquear” o Brasil, por isso, marginalizar os negros fazia parte do projeto de “melhoria genética”, por essa razão, a biologia era ponto fundante da ideologia burguesa branca, tendo em vista que, na época, era capaz de explicar as desigualdades humanas e a superioridade branca
Na República, o corpo negro continua sendo visto como instável, inconstante, degenerado, incivilizado, viciosos e ligado à vadiagem, em razão disso, uma raça inferior incapaz de se civilizar.
Com a instauração da República, as idéias [sic] de superioridade da “raça branca”, ganharam força por um conceito conhecido por Eugenia, que outrora era apenas um estudo científico sobre o cruzamento seletivo comum na agricultura e na pecuária, mas com o tempo, e após o surgimento dos estudos genéticos, e somado aos estudos sociais, tornou-se um movimento político (CAÇÃO; REZENDE FILHO, 2010, p. 9, grifo do autor).
Quanto à justiça criminal, Borges (2019) explica que ela não apresenta nenhuma ruptura com o período imperial, que já traz traços discriminatório do colonialismo, pelo contrário, a justiça criminal da república apresentava uma série de políticas que regravam a vida do negro, como, por exemplo, a criminalização do samba e batuques, das religiões com matrizes africanas, das reuniões musicais e da “vadiagem”, termo criado para definir valores morais e raciais, que significava uma pessoa, aqui o negro, preguiçosa, corrupta e imoral. Dessa maneira, o Código Penal de 1890 intensificou o controle social ao trazer a capoeiragem como crime.
Em consequência de tais pensamentos, o país foi preenchido por uma legislação segregacionista, não do tipo codificada, pelo contrário, não havia lei sobre, pois a lei Áurea declara extinta a escravidão, mas a internalização da inferioridade biológica do indivíduo negro como a superioridade do indivíduo branco se naturalizou ao ponto das relações sociais da época serem pautadas nessas máximas, como resultado, tinha-se a dominância de um grupo pelo outro através de relações veladas em que “o negro sabe o seu lugar” (COSTA, 2007).
Essa máxima estava presente no imaginário de todos, brancos e negros, de maneira velada, potencializando à ideia de que a negritude estava ligada ao fracasso e a subserviência, enquanto conferia à brancura a ideia de sucesso. Para a sociedade, através democracia racial[6], o Estado era “neutro” e justo em termos raciais quando este girava a roda da opressão, utilizando-se de mecanismos institucionais para privilegiar os brancos em detrimento dos negros a fim de garantir a manutenção do fosso social existente (FLAUZINA, 2006).
Neste contexto, Goiz (2017) explica que a democracia racial construiu um mito em que brancos e negros viviam em simetria, assim, para garantir tal simetria no imaginário social e ao mesmo tempo silenciar e inviabilizar as denúncias de racismo, os donos da história, a elite branca, não deram espaço para as vozes oprimidas e ainda interiorizaram a ideia da branquitude como marca de sucesso ao passo da negritude como símbolo do fracasso e submissão.
Em outras palavras, o mecanismo ideológico trazido pela democracia racial trazia à sociedade da época uma utópica sensação em que brancos e negros viviam em harmonia porque as teorias científicas colocavam os brancos no topo da cadeia hereditária e as pessoas que compunham a sociedade brasileira reconhecia a hierarquia existente e se posicionava no lugar ao qual pertencia, todavia, um abismo separava a realidade da dinâmica de harmonia que povoava a cabeça da sociedade.
Nesse cenário, o racismo, convertido no grande tabu nacional, ficava adstrito aos casos excepcionais percebidos tão somente na esfera privada, afastando as elites de qualquer tipo de prestação de contas efetiva pelo usufruto de suas vantagens. Não houve método de controle mais eficiente que garantisse o paradoxo entre corpos subjugados e consciências tranqüilas [sic] (FLAUZINA, 2006, p. 39).
As teorias racistas, foram largamente difundidas na sociedade brasileira, e o projeto de branqueamento vigoraram até os anos 30 do século XX. Tais teorias tentaram uma sobrevida visto que, de acordo com Borges (2019), durante os debates para o Código Penal de 1940, o livro de Nina Rodrigues foi relançado, em 1938, com o intuito de pressionar os políticos pela manutenção de diferenciação racial explicitados em lei, isto é, o discurso higienista de “embranquecimento” tentava, novamente, trazer a ideia de “purificamento” dos laços africanos existentes na sociedade, através do novo projeto de Código Penal. Entretanto, essa diferenciação é limpa do Código de 1940 e um exemplo é que a capoeira é descriminalizada porque deixa de estar ligada à raça negra e passa a ser vista como um elemento genuíno da cultura brasileira.
[...] no início do século XX, a capoeira passou a ser vista não mais predominantemente como uma doença moral, mas como um esporte (jogo, ginástica, luta etc) decorrente de uma herança mestiça que compreendia algo positivo, originário da identidade nacional brasileira, ou seja, a capoeira era resultado da mistura de raças, tão singular a identidade nacional do Brasil, não sendo mais observada como algo negativo da cultura inferior dos africanos (REIS, 2010 apud SERAFIM; AZEREDO, 2011, p. 13)
As mudanças no Código Penal aconteceram, novamente, apenas no papel, pois, na prática, não é visualizada tendo em vista que as instituições do Estado brasileiro já têm a ideologia racial enraizada, “afinal, foi na biografia da escravização negra que o sistema penal começou a se consolidar e é na lógica da dominação étnica contemporânea que continua a operar em seus excessos” (FLAUZINA, 2006, p. 41). Essa ideologia foi construída a partir de uma época em que o negro, ainda escravo, para Direito Penal era uma pessoa especial, não para ter sua vida protegida, mas para ser severamente punido através de penas cruéis. Assim sendo, para a autora já citada, é no sistema penal brasileiro que se encontra a maior política estatal de extermínio da população negra, pois a atuação desse sistema nunca se dissociou por completo do seu passado colonial, por isso, ainda atua como herdeiro do estatuto escravocrata.
Além da faceta do controle social vislumbrada no sistema penal, no marco da democracia racial, o caráter racista difundido pelo Estado através das estruturas sociais é visualizado na própria ausência do Estado, que se abstém de promover uma política pública que resguarde esse grupo historicamente desfavorecido.
Dito de outro modo, de maneira velada, mas intencional, a falta de formulação de políticas públicas por parte do Estado como, por exemplo, a promoção de saneamento básico, saúde e criação de empregos dignos a população negra é um fator decisivo e ideológico de como esse grupo ainda está preso em “amarras” vindas do colonialismo, para além disso, conta-se com a perpetuação da ideia deturpada que o negro é um indivíduo violento, lascivo e agressivo, o que acaba por alimentar as desconfianças já impregnadas na sociedade e, também, justificar as violências, as torturas, o encarceramento e as mortes desses sujeitos (BORGES, 2019).
Com isso, por tais ações serem dadas de maneira acobertada, a sociedade brasileira se desenvolve acreditando que o sistema de justiça criminal aparece com uma estrutura que assegure a segurança do indivíduo, quando esse sistema apenas perpetua a repressão ao mesmo alvo desde a época da escravidão, visto que o Direito brasileiro foi pautado por uma elite branca e desenvolvido a partir da subjugação do corpo negro.
[...] o racismo foi rearticulado para manter suas amarras sobre o povo negro. [...] Por mais que políticas sociais tenham realizado mudanças robustas no acesso e na vida da população negra brasileira, é possível enxergarmos como as estruturas racistas se reordenam para que, estruturalmente, pouco se modifique (BORGES, 2019, s/p).
Por essas reflexões, é seguro dizer que a sociedade brasileira se ergueu e foi solidificada a partir da violência, repressão e subjugação do corpo negro, e, nos dias atuais ainda é possível perceber o reflexo da escravidão no vocabulário, nos lugares sociais que se estrutura esse grupo e na dinâmica das relações sociais e, principalmente, na justiça criminal, em que o encarceramento no país segue como uma engrenagem para a manutenção da hierarquia racial e reforço do extermínio, simbólico e físico, da população negra.
O Estado é o ente político abstrato detentor da coação, a partir da monopolização da força, como uma “violência legítima” para oferecer proteção à sociedade, nessa esteira, a teoria do Labeling Approach ou etiquetamento postula que o crime é uma construção social, ou seja, a criminalidade é uma condição atribuída a determinados indivíduos e o criminoso é resultado de um processo chamado etiquetagem, quando dado sujeito, já estigmatizado, através de um ato ganha um uma nova identificação na sociedade. Assim, através da “criminalização”, o Estado impõe uma pena a um determinado grupo de pessoas.
Na perspectiva dessa teoria, a imputação criminosa é o resultado da criminalização primária e da criminalização secundária (ou desvio primário e desvio secundário), pontos centrais para a sua construção visto que juntas constituem a “criminalização”. Nessa linha de pensamento, Piacesi (2016) explica que o Estado seleciona determinados bens para proteger, o que seria a criminalização primária, bem como os indivíduos a serem estigmatizados, que dentre os muitos que ferem a normas, são os definidos como clientes do sistema penal, esse processo consiste na criminalização secundária.
Em outros termos, Vianna (2015) postula que a criminalização primária é um ato dirigido a condutas e ações tidas como “criminosas” enquanto a criminalização secundária é a ação praticada contra a pessoa a quem se atribui a realização da conduta criminalizada primariamente, o que será detalhado a seguir para uma melhor compreensão.
O Direito Penal é tratado pelos juristas como um elemento que interage com a sociedade em que essa interação é percebida no momento em que as normas penais são criadas, sendo elas reflexo da sociedade. Nesse aspecto, “a criminologia não pode se manter isolada das outras disciplinas jurídicas, psicológicas, políticas” (LEAL; VECHI, 2016, p. 240), por isso, Piacesi (2016) explica que a formação da norma incriminadora é um ato reflexo de medos irracionais que a sociedade compartilha quando deveria ter uma adequação técnica movida à racionalidade.
Partindo disso, é preciso ter em mente que “a criminalização primária traz à tona a tarefa legislativa de tipificação de condutas consideradas criminosas pela habitualidade com que são praticadas e pelo rótulo social dado ao suposto criminoso, principalmente, pelo legislador” (LINCK, 2018, on-line).
Em linhas gerais, a criminalização primária diz respeito a criação de crimes e penas, nesse contexto, para Zaffaroni (2002 apud VIANNA, 2015), é o ato e efeito de sancionar uma lei material, criar uma lei penal, que incrimina e, consequentemente, permite a punição, ou seja, a criminalização primária é um ato formal responsável pela definição dos delitos.
Tal função é responsabilidade do poder legislativo conforme apregoa o art. 22, inciso I, da Constituição Federal. Isto é, o Estado, através dos órgãos oficiais de aplicação da Lei Penal, é o responsável pelo processo de criminalização primária, assim, o legislador ao criar leis executa esse processo, definindo uma dada conduta como sendo desvio primário, entretanto, Linck (2018) esclarece que nesse processo, o legislador define algo como crime não porque é uma conduta socialmente inaceitável, mas porque ele deseja que fosse, e nesse processo muitas vezes não respeita os princípios de razoabilidade e proporcionalidade, como consequência, cria penas duras contra as condutas de indivíduos socialmente desfavorecido.
Em outros termos, o legislador, ao criar leis a partir do processo de criminalização primária, deixa em evidência a intolerância à certas condutas, criando ou enfatizando um rótulo social. Reforçando esse pensamento, Linck (2018) diz que a criminalização primária consiste na escolha, pelo legislador, de condutas consideradas criminosas, e, para o autor, essas escolhas não são feitas pelo critério do dano social que tais condutas provocam, mas, sim, pela habitualidade com que essas condutas são praticadas, bem como pelo estigma atribuído pela sociedade ao suposto sujeito que praticou tais condutas. Assim, tais escolhas se traduzem na intolerância legislativa a certas condutas.
Um exemplo que melhor elucida a escolha do legislador, e aqui cabe frisar, seus interesses, bem como a opressão de uma classe por outra, pode-se encontrar na comparação das penas existentes nos artigos 155 (furto) e 129 (lesão corporal), ambos do Código Penal:
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano (BRASIL, 1940, grifo nosso).
A partir desses dois artigos é possível perceber que a pena máxima para o crime de lesão corporal equivale a pena mínima para o crime de furto, o que demonstra o real interesse do legislador, muito mais preocupado com à proteção da propriedade particular que com a integridade física do ser humano, o que demonstra resquícios do Direito colonial, que voltava seus interesses a propriedade privada em detrimento da proteção ao indivíduo humano, principalmente se este fosse um escravo, que tratado como objeto não tinha nenhuma lei assegurando sua proteção, apenas seus “castigos”.
O passado colonial, o passado imperial, o passado mercantilista, o passado escravocrata, o passado de genocídio dos índios, o passado de tráfico negreiro, o passado de neoliberalismo, todo esse passado coloca esta outra variável criminológica no contexto de repressão do sistema penal (ROMANO, 2016, p. 146).
Um outro exemplo que realça a intolerância do legislador está no art. 176, do Código Penal, que aduz: “Tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento: Pena - detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa” (BRASIL, 1940, grifo nosso). Nessa situação, para a configuração de crime é necessário que o agente faça a refeição sem dinheiro para pagar, caso tenha recursos e não queira pagar, configura-se apenas um ilícito civil, também não há crime quando o agente se recusar a pagar por discordar do valor cobrado na conta, e, também, no caso do agente ter esquecido sua carteira em casa (erro), pois inexiste o fato típico por falta do dolo. Isto posto, fica de fácil visualização que o legislador penal elegeu como conduta criminosa a pobreza, pois “o objetivo dessa lei não é, como então fica óbvio, evitar danos ao patrimônio alheio, nem convencer as pessoas a que paguem a refeição tomada, mas evitar que os mais pobres possam se ‘aproveitar’ de sua pobreza” (SELL, 2007, on-line).
Outro exemplo, para consolidar o entendimento acerca do papel do legislador na criminalização primária está no art. 240, do Código Penal (adultério), que só foi revogado, tardiamente, em 2005, pela Lei nº 11.106/2005. O absurdo se encontra no fato da aplicação do Direito Penal para uma questão de natureza moral, que deveria ter sido sempre apreciada no ramo cível, mas por longos anos esteve no ordenamento jurídico como se fosse uma obrigação do cônjuge devida à sociedade.
Posto esses exemplos e esclarecidos algumas das intenções do legislador ao criar um crime, por fim, Linck (2018) pontua que a criminalização primária cria um estigma, isto é, estereotipa o indivíduo, este muitas vezes pertencentes as classes inferiores: homens adultos, jovens e não-brancos. O que deixa evidente e de fácil compreensão é que por trás de um discurso de proteção existe a criação de penas que servem única e exclusivamente para manterem o rótulo ou criar um outro rótulo, a um grupo já estigmatizado e desprotegido, pelo próprio Estado.
A criminalização secundária é a imputação que o sistema penal atribui a alguém que cometeu um crime ou um anto infracional, ou seja, “[...] é a pessoa cuja identidade já está estruturada em torno da desviação” (SHECAIRA, 2014, p. 261, grifo do autor). Trata-se da atuação das agências de controle (polícia, judiciário, imprensa etc.) sobre o indivíduo com o estigma de delinquente (LINCK, 2018), pois dentro do processo de criminalização secundária, o estereotipo é peça decisiva para a construção da criminalização (FLAUZINA, 2006).
Assim, acessando os códigos sociais mais elementares na estigmatização dos indivíduos − dos excessos caricatos da Polícia, à austeridade do Ministério Público e do Judiciário −, a clientela do sistema penal vai sendo regularmente construída de maneira tão homogênea e harmônica que de nada poderíamos suspeitar. Sempre os mesmos, sempre pelos mesmos motivos, os criminalizados parecem mesmo representar a parcela da humanidade que não cabe no mundo (FLAUZINA, 2006, p. 27).
Pelo exposto, percebe-se que as explicações da criminologia a partir do Labeling Approach demonstram que quando o sujeito pratica um ato tido como crime pelo ordenamento jurídico como consequência tem uma “nova” identidade perante a sociedade (SHECAIRA, 2014). Acerca disso, Baratta (2018) explana que essa mudança de identidade social ocorre no momento em que o indivíduo ganha o status de desviante e, segundo Shecaira (2014), esse indivíduo passa a ser sempre rotulado como criminoso/desviante e mesmo que tenha utilizado de apenas um momento da sua vida para realização do ato desviante, ele sempre estará atrelado a conduta desviante para a sociedade e para as agências de controle, o que provoca uma perpetuação do estigma.
Em linhas gerais, os órgãos de controle social voltam seus “olhares” para os indivíduos portadores de grande índice de marginalização, estes já estereotipados como delinquentes, visto que as agências de controle são as instâncias formais que criminalizam e classificam o sujeito e isso fica evidente na atuação da polícia brasileira, que aborda de maneira diferente um sujeito a depender do estereótipo que a ele foi imposto, como uma marca invisível (LINCK, 2018).
2.3 As “cifras negras” ou “cifras ocultas” do Direito Penal
Como já bem evidenciado, a criminalidade primária diz respeito às leis penais criadas pelo legislador, todavia, cumpri-la em toda sua extensão é uma empreitada fadada ao fracasso porque, primeiro, nem todo crime chega ao conhecimento das autoridades e, segundo, a depender do crime, a vítima não vai atrás das autoridades, por diversos motivos. Esses dois fatores já tornam destoante a quantidade de crimes acontecendo no país da quantidade que chega ao conhecimento das agências do sistema, assim, a essa disparidade, dá-se o nome de “cifras negra” ou “cifras oculta” (VIANNA, 2015).
A cifra oculta da criminalidade corresponderia, pois, à lacuna existente entre a totalidade dos eventos criminalizados ocorridos em determinado tempo e local (criminalidade real) e as condutas que efetivamente são tratadas como delito pelos aparelhos de persecução criminal (criminalidade registrada) (GONZAGA, 2018, s/p).
As cifras negras ou cifras ocultas estão relacionadas a crimes que não são descobertos e, por isso, ficam de fora das estatísticas sociais, como, por exemplo, crime de lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e contra a administração, isto é, crimes do colarinho-branco; como consequência, seus autores, por terem seus delitos encobertos gozam do “cinturão da impunidade” (GONZAGA, 2018).
Nesse contexto, fica de fácil compreensão que a criminalidade está em toda parte, em todas as camadas sociais, entretanto, há uma distorção nas estatísticas ocasionadas pelas cifras negras ou cifras ocultas, o que faz parecer que as camadas mais pobres e marginalizadas são as responsáveis pela maior incidência da criminalidade, quando, na verdade, as condutas dos setores mais desfavorecidos são mais criminalizadas e postas em evidências quando comparado com a classe dominante, que acaba tendo suas condutas acobertadas (ANDRADE, 2003 apud ROMANO, 2016). Seguindo esse pensamento, Baratta (2018) explica que a criminalidade é um comportamento, ao contrário do que se pensa, da maioria dos membros da sociedade e não apenas de uma minoria restrita, o que acontece é que as cifras negras corroboram para que uma parcela não faça parte das estatísticas criminais, provando que “[...] a lei não castiga por igual todas as condutas socialmente danosas, independentemente de status e posição social dos que a realizam” (VIANNA, 2015, p. 62, grifo do autor).
Se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as defraudações, todas as falsidade, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças e etc. fossem concretamente criminalizados, praticamente não haveria habitante que não fosse, por diversas vezes, criminalizados (ZAFFARONI, 2001, p. 26 apud ROMANO, 2016, p. 143, grifo do autor).
Nessa toada, o Direito Penal não pune todos os crime, o que seria de certo modo impossível. Então, ele é encarregado de punir os crimes que são conhecidos enquanto os desconhecidos ficam impunes, consequentemente, não são contabilizados nas estatísticas, o que deixa em evidência que a política criminal de punir uns em detrimento de outros recai sobre setores já criminalizados pelos órgãos repressores e pela sociedade, tendo em vista que, condutas idênticas possuem valoração diferente a depender das circunstâncias e dos agentes que a cometem (ROMANO, 2016).
Diante de tais fragilidades, torna-se evidente que o Direito Penal é falho no combate à criminalidade (GONZAGA, 2018). Para além disso, a questão racial emerge como uma pauta importantíssima em relação as políticas punitivas e o controle estatal que pune apenas certa parcela da sociedade, visto que, pelo contexto histórico em que se fundou a sociedade brasileira, a partir da submissão e do extermínio do corpo negro, essa política criminal corrobora com uma maior violência por parte do Estado, através das agências de repressão penal, em face da população negra, suscetíveis à criminalização por conta de um racismo institucionalizado (ROMANO, 2016).
3.RACISMO E O ETIQUETAMENTO: TEORIA DO LABELING APPROACH
Antes de adentrar na teoria criminológica do Labeling Approach é mister fazer breves considerações acerca das escolas criminológicas a fim de compreender em que contexto histórico essa teoria criminológica surgiu e quais escolas criminológicas a precederam.
A Escola Criminológica Clássica, que surgiu a partir de ideias iluministas, trouxe ao Direito Penal a ideia de punição na proporção da conduta criminosa, através de uma dosagem racional, assim, para essa escola criminológica, a importância estava voltada para a conduta e não no autor. Já a Escola Criminológica Positivista, que diferente da escola clássica, desloca para o criminoso o enfoque criminológico, assim, para essa escola, o crime é um reflexo da degeneração do criminoso, isto é, está ligado a sua natureza biológica como se fosse um elemento predeterminante ao sujeito, por isso, o Direito Penal funcionaria apenas como um elemento de contenção dos ímpetos criminosos. No século XX, surgiram as escolas funcionalistas da criminologia que postulavam o crime como algo que poderia ser controlado e até benéfico para a sociedade, pois segundo a teoria dessas escolas, o crime serviria como a balança dos laços sociais visto que uma vez que tais laços estivessem afrouxados, os crimes adentrariam num estado de anomalia, e, respaldada nessa perspectiva, advinda dessa ideia, surgiu um movimento conhecido por Escola de Chicago, que postulava que a criminologia urbana estava entrelaçada com o grau de desorganização social dos centros urbanos. A Escola de Chicago foi o embrião para as modernas teorias criminológicas que se conhece hoje, como a criminológica crítica e a escola do Labeling Approach (ROMANO, 2016), que será apresentado a seguir.
3.1 Teoria criminológica do Labeling Approach
A teoria do Labeling Approach, também conhecida como teoria da rotulação social ou teoria do etiquetamento social ou teoria da etiquetagem ou teoria da rotulagem (conforme as diferentes traduções para a expressão norte-americana), foi desenvolvida no final da década de 1950 e começo da década de 1960 por autores pertencentes à Escola de Chicago, que questionavam o paradigma dominante naquele momento histórico.
Herdeiro do amadurecimento teórico que vai se consolidando desde as décadas de 1920 e 1930 na sociologia criminal norte-americana, no interior da Escola de Chicago, o labeling approach abre um novo capítulo nos estudos sobre a criminalidade. Com o surgimento desse referencial, a partir do final da década de 50 e início da década de 60 do século XX, o ângulo desde o qual se investigam os incidentes criminais se altera radicalmente, consubstanciando o chamado paradigma da reação social e, posteriormente, a criminologia crítica (FLAUZINA, 2006, p. 18-19, grifo do autor).
O Labeling Approach passa a questionar “quem é definido como desviante?”, “que efeito decorre desta definição sobre o indivíduo?”, “em que condições este indivíduo pode se tornar objeto de uma definição” e, por fim, “quem define quem?” (BARATTA, 2018, p. 88-89). Assim, essa teoria, conforme explana Silva (2015), surge como um novo paradigma criminológico ao passar a analisar o indivíduo como um ser pertencente a sociedade e não como um ser individual, desassociado do grupo ao qual pertence e, nesse entendimento, Penteado Filho (2012) explica que a criminalidade é a consequência de um estigma atribuído a uma conduta humana, isto é, o criminoso se difere dos outros sujeitos por carregar um rótulo. Além disso, a teoria do etiquetagem traz o termo “desvio social” que “[...] engloba todas as condutas que não se enquadravam nas definições legais ou psiquiátricas, como a homossexualidade, o uso de drogas, o movimento hippie etc., que, em síntese, atentavam contra o status quo” (SILVA, 2015, p. 103, grifo do autor). Ou seja, para essa teoria o crime não é uma conduta delituosa em si, mas fruto das definições trazidas pelas estereotipagens, isto é, as interpretações sociais sobre dada conduta.
Para melhor compreensão de como funciona a etiqueta, Sell (2007, on-line) traz um exemplo que elucida bem:
Imaginemos uma mulher que tenta sair de uma joalheria com um caro e não pago bracelete quando é barrada pelos seguranças. Se essa aparente tentativa de subtração à coisa alheia móvel (art. 155 do Código Penal) será tomada como crime, sintoma compreensível de cleptomania ou mera distração, vai depender menos dos detalhes da conduta do que do perfil da apontada infratora. A tese da distração cai bem, por exemplo, se a suposta tentativa fosse realizada por uma cliente habitual da joalheria; assim como a tese da cleptomania se adequaria perfeitamente se a acusada fosse uma famosa atriz de novela. Já para uma empregada da loja, a única tese “compatível com a realidade das coisas” é a de tentativa de furto puro e simples. A conduta é a mesma, a ausência de provas também, só o que variará, neste caso, são as suposições socialmente consideradas adequadas ao caso.
Posto o exemplo fica perceptível que “a maneira pela qual as sociedades e suas instituições reagem diante de um fato é mais determinante para defini-lo como delito ou desvio do que a própria natureza do fato” (ANITUA, 2008, p. 588 apud LEAL; VECHI, 2016, p. 237). O exemplo exterioriza como a tese central dessa teoria é definida “pela afirmação de que cada um de nós se torna aquilo que os outros veem em nós” (ZAFFARONI, 2001, p. 60), fica ainda perceptível a compreensão de como a seleção do que seria conduta criminosa ou não é feita com base na etiqueta dada ao indivíduo, dessa maneira, para o autor citado, “a pessoa rotulada como delinquente assume, finalmente, o papel que lhe é consignado, comportando-se de acordo com o mesmo”.
Constata-se, com isso, que muitos cometem crimes, entretanto, o sistema penal persegue, prioritariamente, os mais pobres visto que o desvio não se encontra no ato cometido, nem tampouco em quem o comete, mas é a reação social ao comportamento do indivíduo etiquetado como criminoso (SELL, 2007). Em outros termos, um sujeito ao se enquadrar nas características do estereotipo negativo já é percebido como criminoso sem nada fazer, além disso, as agências de repressão penal são grandes influenciadoras da perpetuação desse estigma, através da criminalização secundária.
[...] quando um jovem-homem-negro é assassinado, quase sempre a sua morte é atribuída ao envolvimento com o tráfico ou consumo de drogas, o que comunica uma regra seguinte, qual seja, esta morte não precisa ser investigada. E, no imaginário coletivo, o mesmo assassinato se resolve com o sentido de que morreu “porque devia” ou “bandido tem mesmo é que morrer” (REIS, 2010, p. 69).
Outra consideração a se fazer é que se um indivíduo negro andar próximo de um lugar com alta incidência de crimes de furto e/ou roubo já tem indícios suficientes, por conta da etiqueta de criminoso, para ser abordado pela polícia (VIANNA, 2015). Assim, conforme postula a teoria em análise, tanto o crime quanto o criminoso surgem da relação social em que se cria um rótulo social à classe criminosa, isto é, o labeling approach busca estudar os efeitos por traz dos signos atribuídos ao sujeito que pratica uma conduta criminosa, uma vez que o sistema criminal não se preocupa em “ressocializar” ou “proteger” o indivíduo submetido a ele, pelo contrário, aplica um estigma ao indivíduo, que tende a fazer com que o agente repita cada vez mais a conduta desviante (ROMANO, 2016).
3.2 Seletividade do sistema penal e o Labeling Approach
A partir da teoria criminológica do Labeling Approach é possível compreender que a criminalização do indivíduo está atrela a dois fatores, a criminalização primária e a criminalização secundária, tendo em vista que a criminalização primária tipifica quais condutas são criminosas e os agentes de controle social são responsáveis pela criminalização secundária. Ainda sobre, Penteado Filho (2012) sustenta que, para essa teoria, a criminalização primária é responsável por produzir a etiqueta ou rótulo (materializados em folha corrida criminal, atestado de antecedentes, divulgação na mídia, entre outros), que faz o indivíduo ganhar uma “nova” identidade estruturada a partir do rótulo, o que corresponde a criminalização secundária. O autor ainda completa que a etiqueta ou rótulo causa uma expectativa social de que a conduta venha a ser praticada ou ocorra uma reincidência, como resultado, aproxima os indivíduos rotulados uns dos outros e esses sujeitos sofrem reações de todos os lados da sociedade.
Diante desse contexto, levanta-se um questionamento: como a questão racial está atrelada à teoria do etiquetamento? Para responder a esse questionamento é preciso reconhecer, primeiro, que a política criminal no Brasil trabalha de maneira velada para afligir dor e tem como principal alvo pessoas negras. Para além disso, essa política se esconde por trás do “conto de fadas” da democracia racial propagado na sociedade brasileira, quando, na realidade, a esfera pública endossa informalmente o racismo institucional (ROMANO, 2016), através de um projeto de extermínio da população negra (FLAUZINA, 2006).
Esse projeto de extermínio está ligado com o passado colonial brasileiro, um passado escravocrata e de dominação dos povos indígenas e negros, construído historicamente a partir da dor, do sangue e do corpo indígena e negro, assim, tem-se, ainda hoje, o racismo como elemento que molda o sistema penal, um sistema que ao invés de “proteger”, “pacificar” e “defender”, acaba por, intencionalmente, punir o pobre e o negro, a classe desfavorecida (ROMANO, 2016). Nesse pensamento, Marcelino e Martins (2019) complementam ao evidenciar que o racismo no sistema penal foi construído a partir da edificação de determinadas condutas como criminosa com o objetivo de “disciplinar” um grupo social, que, pelas teorias do racismo científico, da época, eram atrelados à marginalidade.
A diferença entre a possibilidade de criminalizar uma conduta cometida por uma pessoa branca de classe média, e a mesma conduta, de outra pessoa negra e pobre, é abissal. Não é coincidência que a maioria da população carcerária seja composta de pessoas negras, e não é coincidência que a fúria penal deságue prioritariamente sobre a população negra (ROMANO, 2016, p. 143).
Urge, diante do exposto, entender a inimputabilidade imposta ao homem branco, pois, muitas vezes ele após cometer crimes tem suas penas suavizadas, principalmente se pertencente à classe média, diferente do que acontece com o homem negro, que recebe o rótulo de perigoso, violento e agressivo (BORGES, 2019). Nessa linha, Silva (2015) explica que a criminalização incorre de maneira diferente para cada setor social e a teoria do etiquetamento explana justamente sobre a valoração diferenciada a diversas condutas, pois, algumas passam pelo crivo da criminalização enquanto outras não compõem as estatísticas e isso é reflexo de uma cultura de racismo já enraizada onde, segundo Vianna (2015), a cor é característica fundante para o indivíduo portar o rótulo de criminoso, principalmente para as corporações policiais.
Marcelino e Martins (2019, p. 70) trazem um exemplo que deixa evidente a estigmatização ora explanada, assim, para entender o exemplo, precisa-se saber antes que a Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), que diferencia usuário de traficante, traz a prática de traficância como crime hediondo e, portanto, apenada com um maior rigor; nessa mesma lei, seu art. 28 trouxe as penas de “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo” para “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamenta” (BRASIL, 2006), nesse momento é perceptível a criminalização primária, já abordada ao longo dessa pesquisa, quando o legislador escolhe quais condutas são crimes e, consequentemente suas penas, já a criminalização secundária é visível quando o local e circunstância sociais são os determinantes para enquadrar em “tráfico de drogas” ou “usuário de drogas ilícitas”:
Nesse momento, não restam dúvidas de que o agente flagrado com drogas em um local conhecido pelos índices de violência, sendo pobre e negro, seguramente será enquadrado no artigo 33[7] da referida lei de drogas, sendo identificado como traficante. Enquanto isso, o jovem branco, bem-apessoado, surpreendido com substâncias ilícitas nas redondezas de sua residência em um bairro residencial de classe média alta, se enquadrará na figura do usuário, não sendo, portanto, apenado.
Essa maior severidade da justiça criminal é explicada por Borges (2019, s/p), que esclarece que “o racismo foi se rearticulando para manter suas amarras sobre o povo negro” e ainda completa que esse racismo institucional tem o objetivo de inferiorizar para, por fim, exterminar esse grupo. Aliás, a autora ainda complementa ao dizer que as ideologias punitivista e racista atuam de maneira articulada e estão internalizadas no imaginário brasileiro, em que muitas pessoas simplesmente não conseguem conceber uma realidade sem aprisionamento, quando, de fato, as prisões são um depósito do que a própria sociedade marginaliza, isto é, o sistema penitenciário é um local onde o racismo é reproduzido. Portanto, para a autora, historicamente, punição, raça e criminalização estão intimamente ligados.
Nesse bojo, não resta dúvida que a questão racial está atrelada à teoria criminológica do etiquetamento, pois esta busca explicar o tratamento diferenciado do sistema penal enquanto o racismo no Brasil é evidenciado quando certas características de alguns sujeitos são percebidas pelo Estado e pela sociedade como desviante mesmo que o sujeito não tenha praticado nenhuma conduta desviante, o que deixa em evidência que o controle social é discriminatório e seletivo e essa seletividade é externada pelas agências de repressão, principalmente pela polícia, o que propaga um estereótipo ao imaginário social de forma a perdurar o preconceito e a desigualdade social ao criar ao negro a imagem pública de delinquente (VIANNA, 2015).
3.3 Consequências do estigma ao sujeito negro
O Labeling Approach vê o sistema penal como um aparelho repressor sobre dada população, já estigmatizada. Segundo Baratta (2018) as agências formais (polícia, judiciário etc.) e informais (família, escola, opinião pública etc.) são as responsáveis por definirem o que é crime e quem terá o status de criminoso, ou seja, o poder de estigmatização está a cargo dos órgãos oficiais e das agências informais, refletindo em como o sujeito será visto na sociedade. Com isso, conforme Silva (2015), o indivíduo ser torna delinquente por circunstâncias sociais tendo em vista que a rotulação tem um efeito danoso ao indivíduo, que passa a ser socialmente excluído.
Quando os outros decidem que determinada pessoa é non grata, perigosa, não confiável, moralmente repugnante, eles tomarão contra tal pessoa atitudes normalmente desagradáveis, que não seriam adotadas com qualquer um. São atitudes a demonstrar a rejeição e a humilhação nos contatos interpessoais e que trazem a pessoa estigmatizada para um controle que restringirá sua liberdade. É estigmatizador, porque acaba por desencadear a chamada desviação secundária e as carreiras criminais (SCHECAIRA, 2014, p. 291, grifo do autor).
Nessa diapasão, os mecanismo de controle social, no Brasil, são estruturados a partir de um racismo velado (às vezes até escancarado), um fenômeno histórico, como já analisado, construído sob a égide da elite branca e da opressão aos negros, “afinal, foi no contexto da escravidão que o sistema penal iniciou sua consolidação e é no fundamento da sujeição étnico racial vigente que permanece atuar sem precedentes” (GOIZ, 2017, p. 170). Tais argumentos deixam visíveis as marcas da rotulação no sistema penal, pois, “na realidade brasileira essa teoria se aplica na medida em que os quadros das desigualdades sobressaem” ou quando “a morte de um jovem negro nas periferias ou o encarceramento em massa desse grupo não choca, sequer intriga as elites brasileiras” (MARCELINO; MARTINS, 2019, p. 55 e 59).
[...] no caso da violência institucional que se manifesta através das ações dos agentes do Estado, a questão passa por ações de desconstrução do racismo na esfera pública que, controlado pela elite política, influencia o comportamento de diferentes segmentos da sociedade, deixando caminho aberto para a naturalização da imagem estereotipada da pessoa negra na vida cotidiana (REIS, 2010, p. 69).
Assim, no intuito de compreender as consequência do rótulo ao sujeito negro, é importante lembrar que a escravidão contribuiu com o controle e submissão desses sujeitos a partir de uma rotulação pautada em um fundamento religioso:
De fato, a segregação racial operada pelo sistema escravista, realizada pela clausura e punição dos corpos então controlados por um modelo privado de segurança, se perpetuou com um sistema penal que reproduzia, analogamente, violência e encarceramento sem que isso fosse tido com estranhamento. Ao contrário, os indivíduos desprovidos de personalidade, cujos corpos eram a todo tempo vilipendiados e observados, não teriam tratamento diverso, uma vez libertos (SOUZA, 2016, p. 617).
Depois, adotou-se o cientificismo para justificar distinção entre negros e brancos, nesse intuito, o médico legista Nina Rodrigues se utilizou do racismo científico, amplamente divulgado na época, para justificar a “criminalidade” do negro, colocando a raça negra como vetor da criminalidade, o que justificava as constantes punições que esses sujeitos sofriam.
Através do exposto, tem-se as primeiras ideias que ligam racismo e a criminologia, no Brasil, pois os discursos e estereótipos criado sobre o corpo negro ao decorrer dos séculos se tornaram indissociáveis da estrutura política e social existente, principalmente do sistema penal, que se ergueu a partir do controle físico e moral do sujeito negro. Assim, por conta do contexto histórico no qual o país se fundou e das estruturas discriminatórias que perduram até o momento, as estatísticas de encarceramento refletem, na verdade, escancaram, as consequências do rótulo ao sujeito negro: 63,6% da população carcerária são de pessoas de cor/etnia pretas e pardas (dados do levantamento realizado em 2017 pelo Infopen).
Com o exposto, pode-se dizer que existe uma íntima ligação entre as teorias racistas e a maneira como o Direito Penal age, bem como quais pessoas têm probabilidade de receber o estigma de criminoso, o que demonstra a sua seletividade. Em suma, para Marcelino e Martins (2019), o contexto histórico demonstra que as elites brasileiras, tentando coibir a ascensão da população negra, implantaram ao decorrer dos anos, após o fim da escravidão, políticas de cunho discriminatório, que servem como pano de fundo para entender o porquê das violências institucionais e a existência de estereótipos criminais, bem como o tratamento diferenciado de uns em detrimento de outros.
A realidade do sistema penal mostra sua faceta discriminatória e seletiva, isso pode ser observado nas estatística, pois o “Mapa do Encarceramento: os jovens do Brasil”, em 2012, mostrou que a porcentagem da população negra encarcerada era de 60,8% de todo o contingente prisional, além disso, o levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional, em 2017, trouxe que 63,6% da população carcerária eram de pessoas de cor/etnia pretas e pardas, já o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, na edição de 2019, apontou que 74,4% das mortes causadas por policiais, as vítimas eram negros. Diante desses dados alarmantes, esse artigo teve como problematização: Como o racismo institucional cria estereótipos criminais? Assim, no intuito de explicar o porquê da seletividade existente no sistema penal, utilizou-se da teoria criminológica do Labeling Approach.
Nessa esteira, pode-se concluir que a violência racial no Brasil atinge um nível tão complexo que chega a parecer mesmo (se não é) um projeto de extermínio da população negra. Isso fica explícito no fracasso das políticas públicas e até mesmo na ausência delas na vida da população negra, o que reflete um padrão colonial, ora modernizado, em que o racismo cria desigualdades básicas e o Estado endossa tais desigualdades, através de omissões e ações veladas; para além, a sociedade continua a reproduzir uma imagem criada no racismo científico do negro como um ser desestruturado, “vadio”, violento, e, consequentemente, criminoso. Todas essas ações assolam a vida da população negra e aprofunda um fosso social, construído no início da colonização do Brasil, a partir do tráfico de negros advindos da África, e que perdura até hoje.
Nesse interim, percebe-se, também, que a seletividade do sistema penal é reflexo do racismo que se estruturou ao longo dos anos na sociedade brasileira. Em suma, a relação existente entre a seletividade do sistema penal e o racismo é resultado de uma relação histórica, especificamente, de um movimento arquitetado e executado pelo Estado, que se protegia pelo véu do racismo científico e, como resultado, tem-se um encarceramento em massa de jovens-homens-negros-pobres, como demonstram as estatísticas.
Pelo todo demonstrado, compreende-se, através dos elementos históricos apresentados, que a estrutura do sistema penal não pode ser dissociada do racismo, pois ele foi construído tendo como pilar a subjugação do indivíduo negro; indo além, é possível afirmar, também, que a falácia da democracia racial é um mecanismo usado para a manutenção de uma estrutura opressora em que o sistema penal absorve e reproduz uma seletividade ao aplicar suas normas preferencialmente em indivíduos que carregam a etiqueta de criminoso.
Por fim, ao estudar o encarceramento da população negra sob a ótica da teoria criminológica do Labeling Approach ou teoria do etiquetamento social, que postula que o criminoso é fruto de uma construção social a partir de um rótulo dado a determinados indivíduos, fica evidente que a rotulação do sujeito negro como um criminoso em potencial é fruto de um sistema opressor, que se iniciou com a colonização e se desenvolveu ao decorrer dos anos, sendo fundamentado por um argumento biológico e científico altamente racista, como consequência, ganhou o contorno de um racismo estrutural e, hoje, continua a prender e oprimir negros, não pelo tipo penal que pratica, mas por ser quem é.
Conclui-se, diante de todo o exposto, que o sistema penal não opera de maneira igualitária, pelo contrário, é seletivo e discriminatório, punindo e criminalizando, inúmera das vezes, o negro por questões raciais e não por suas práticas. É uma constatação fática, corroborada por estatísticas, que o Estado, que deveria ser o responsável pela proteção da sociedade, não o faz, pelo contrário, o Estado brasileiro age de maneira indiferente ou faz uso das diversas facetas do aparelho institucional para manter a atual estrutura social. Em suma, o sujeito negro, que é historicamente vulnerável, carrega o estereótipo que a sociedade “desenhou” como a imagem de um criminoso, e, em razão desse estigma, continua a sofrer opressões e violências, física e moral.
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[1] Lei nº 581, resultado da pressão inglesa, proibia a entrada de africanos escravos no Brasil.
[2] Lei n 2.040, dispunha que os filhos de escrava nascidos a partir da data da lei, eram considerados livres.
[3] Lei nº 3.270, preconizava que os escravos com 60 anos completos antes e depois da data da lei eram alforriados.
[4] O Código Penal da República foi elaborado para atender aos anseios da elite brasileira tendo como objetivo construir uma nação civilizada nos moldes europeu através da “disciplina”.
[5] É uma peça fundante para a construção do fosso social no Brasil, pois nele, o escravo é considerado como um objeto, por isso, várias garantias reservadas aos cidadãos lhe eram negadas.
[6] Termo difundido a partir da obra “Casa Grande & Senzala”, do sociólogo Gilberto Freyre, que nega a existência de uma desigualdade racial entre brancos e negros no Brasil e afirma a existência de uma igualdade de oportunidade e tratamento (GOIZ, 2017).
[7] Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa (BRASIL, 2006).
Pedagoga pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Especialista em Informática na Educação pelo Centro de Educação Aberta e a Distância (CEAD-UFPI). Cursando Direito no Centro Universitário Santo Agostinho (UNIFSA).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUSA, Cinthya Raquel de Moura. A seletividade da Justiça Criminal: um reflexo do racismo no sistema penal brasileiro e a teoria do labeling approach Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jul 2020, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54957/a-seletividade-da-justia-criminal-um-reflexo-do-racismo-no-sistema-penal-brasileiro-e-a-teoria-do-labeling-approach. Acesso em: 22 nov 2024.
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