Desde o dia 27 de junho – um sábado, vale dizer – o meio jurídico nacional acompanha de forma atônita a decisão monocrática proferida pelo respeitável ministro Gilmar Mendes nas Ações Diretas de Constitucionalidade (ADCs) 58 e 59 que tramitam no Supremo[1].
O eminente julgador deferiu o pedido formulado nas citadas ações constitucionais e determinou, desde já, ad referendum do Pleno (artigo 5º, § 1º, da Lei 9.882/1999 c/c artigo 21 da Lei 9.868/1999) a suspensão do julgamento de todos os processos em curso no âmbito da Justiça do Trabalho que envolvam a aplicação dos artigos 879, § 7º, e 899, § 4º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com a redação dada pela Lei nº 13.467/2017, e o artigo 39, caput e § 1º, da Lei 8.177/1991[2].
A discussão, em essência, trata do índice de correção a incidir sobre débitos trabalhistas resultantes de condenação judicial, quais sejam a Taxa Referencial (TR) ou o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E).
Pois bem.
O objetivo aqui não é chancelar um ou outro índice, mas chamar a atenção – e isto não foi possível passar despercebido – quanto à menção no corpo da decisão judicial ao caso paradigma do Recurso Extraordinário 870.947/SE referente ao Tema 810. Nessa toada, disse o respeitável ministro Gilmar Mendes:
Em relação ao fumus boni iuris, entendo que os precedentes citados pelos requerentes, ARE 1247.402 e a Rcl 37314, ambos de minha relatoria, demonstram a presença deste requisito. Nas referidas decisões, esclareci que as decisões da justiça do trabalho que afastam a aplicação dos arts. 879 e 899 da CLT, com a redação dada pela Reforma Trabalhista de 2017, além de não se amoldarem às decisões proferidas pelo STF nas ADIs 4425 e 4357, tampouco se adequam ao Tema 810 da sistemática de Repercussão Geral, no âmbito do qual se reconheceu a existência de questão constitucional quanto à aplicação da Lei 11.960/09 para correção monetária das condenações contra a Fazenda Pública antes da expedição de precatório. Isso porque a especificidade dos débitos trabalhistas, em que pese a existência de princípios como hipossuficiência do trabalhador, a meu sentir, teria o condão de estabelecer uma distinção que aparta o caso concreto da controvérsia tratada no Tema 810, tornando inviável apenas se considerar débito trabalhista como “relação jurídica não tributária.”[3]
A premissa basilar do festejado julgador é justamente – a seu ver – a similitude entre o Recurso Extraordinário 870.947/SE referente ao Tema 810 e as ADCs 58 e 59. Entendendo, por via de consequência, que o desfecho dado ao primeiro deve ser replicado na questão sub judice.
Esse Tema 810 diz respeito à validade da correção monetária e dos juros moratórios incidentes sobre as condenações impostas à Fazenda Pública, conforme previsto no artigo 1º-F da Lei 9.494/1997, com a redação dada pela Lei 11.960/2009[4].
A par disso, o questionamento que se põe em mesa é o seguinte: se o caso das ADCs 58 e 59 possui – na visão do eminente ministro relator – tamanha similitude quando comparado ao Recurso Extraordinário 870.947/SE referente ao Tema 810, por que, então, suspender a tramitação das demandas trabalhistas?
Essa pergunta tem pertinência jurídica na medida em que o Supremo não determinou a suspensão nacional das ações judiciais que tratavam do Recurso Extraordinário 870.947/SE concernente ao Tema 810.
Ao se realizar uma consulta no site do STF é possível identificar que o Recurso Extraordinário 870.947/SE (Tema 810) ingressou na corte em 10/03/2015, sob a relatoria do ministro Luiz Fux. A chancela do reconhecimento da repercussão geral se deu pelo plenário virtual em 17/04/2015.
Ocorre que o Supremo – inclusive o ministro Gilmar Mendes – na oportunidade do julgamento acima e durante toda a tramitação do Recurso Extraordinário 870.947/SE (Tema 810) não determinou a suspensão nacional da tramitação destas ações de interesse da Fazenda Pública. Mesmo com divergências diárias de âmbito nacional com magistrados de todo o País decidindo a questão de modo diverso entre si. Alguns aplicando a TR, outros o IPCA-E. Houve quem adotasse o Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M) ou mesmo a caderneta de poupança.
E o STF nada disse acerca destas discrepâncias durante anos e anos no aguardo do desfecho do Tema 810. Apenas olhou, do alto da pirâmide do Poder Judiciário, a Fazenda Pública ser submetida a diversos índices de correção monetária e juros moratórios.
Noutras palavras, o recurso acima mencionado ingressou no STF em 10/03/2015 e o trânsito em julgado ocorreu apenas em 31/03/2020. Houve mais de 5 anos nesta discussão sobre a correção monetária e os juros moratórios incidentes sobre as condenações impostas à Fazenda Pública, sem qualquer providência semelhante à adotada monocraticamente pelo ministro Gilmar Mendes nas ADCs 58 e 59.
Nesta concepção, a interpretação e o padrão decisório que se colhem da postura colegiada da corte se resumem no seguinte: tal matéria – discussão sobre índice de correção monetária e juros moratórios – não justifica a suspensão nacional de ações nem mesmo contra a Fazenda Pública. Esta, aliás, que representa a essência do interesse público em juízo, o interesse do Estado.
O que dizer e esperar, então, da pretensão de suspensão nacional de ações onde se discutem dívidas trabalhistas quase que exclusivamente de natureza particular entre empregadores e empregados?
A lógica seria a negativa da suspensão nacional dos feitos na seara das ADCs 58 e 59. Ou não?
Fixadas essas balizas, é evidente, com a devida vênia, que não há componente jurídico de estabilidade, coerência e integridade na decisão monocrática do eminente ministro Gilmar Mendes. Pelo contrário, o comando tomado nas ADCs 58 e 59 reforça a nociva imprevisibilidade dos atos judiciais, rompe a confiança no Poder Judiciário e estimula a quebra do princípio basilar da segurança jurídica.
Nesse particular, o Código de Processo Civil (CPC) precisa ser registrado, na medida em que a clareza solar de seu texto reluz aplicável ao caso em deslinde:
Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
Não por outra razão a Procuradoria-Geral da República (PGR), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)[5] e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA)[6] – entre outros – manifestaram-se de imediato quanto à preocupação com a decisão monocrática do eminente ministro Gilmar Mendes e seus reflexos para a seara da Justiça do Trabalho.
Ato contínuo, em 01/07/2020, o destacado julgador proferiu nova decisão monocrática em resposta ao pleito da PGR para o fim de reforçar o argumento inicial da similitude entre as ADCs 58 e 59 e o Recurso Extraordinário 870.947/SE concernente ao Tema 810[7], reiterando a mesma vinculação entre os assuntos[8].
Frente ao exposto, questionamentos fundamentais não podem ser postos em segundo plano.
Por que o Supremo não suspendeu a tramitação nacional das ações quando a parte interessada era a Fazenda Pública (Tema 810), sem qualquer divergência levantada, durante mais de 5 anos, pelo respeitável ministro Gilmar Mendes?
A título de cogitação argumentativa, não haveria mais razão, nesta hipótese acima, por se tratar da aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular?[9]
Por que aplicar uma regra que soa mais precavida para a Justiça do Trabalho – que lida diariamente com conflitos trabalhistas de interesses jurídicos essencialmente particulares – mas não ter aplicado essa mesma preocupação nas causas envolvendo a Fazenda Pública, vale dizer, o erário mantido pelos tributos de toda a sociedade?
Em palavras mais simples, poderia a Fazenda Pública se submeter a variações frívolas de padrões decisórios de juízes e Tribunais[10], mas os particulares não?
Se as ADCs 58 e 59 possuem tamanha similitude com o tema retro – na visão do órgão julgador – por que mudar a tramitação e adotar uma suspensão nacional inexistente no paradigma suscitado?
Ausente a determinação quanto à suspensão nacional na tramitação de ações referentes ao Tema 810, fazê-la a título monocrático sem a manifestação colegiada não importaria em violação ao artigo 926 do CPC, haja vista se tratar de tese diversa daquela anuída pelo plenário?
Como fica, nesta perspectiva, o respeito ao princípio da colegialidade?
Ante o exposto, não obstante a manifestação última do eminente julgador em 01/07/2020 – na ótica de que a suspensão nacional determinada não impede o regular andamento de processos judiciais, tampouco a produção de atos de execução, adjudicação e transferência patrimonial no que diz respeito à parcela do valor das condenações que se afigura incontroversa pela aplicação de qualquer dos dois índices de correção (TR ou IPCA-E) – ainda restam pendentes as respostas para os questionamentos acima suscitados e que deixaram (e ainda deixam) perplexos os operadores do mundo do Direito.
A lembrar, em arremate, que o Tema 810 passou mais de 5 anos tramitando no Supremo e não se mostrou urgente – segundo a corte – a ponto de exigir a suspensão nacional de tramitação de ações. E, há anos, discutem-se os índices diversos de correção monetária na Justiça do Trabalho, sem que o Supremo tenha entendido como questão de altíssima urgência.
Entretanto, de repente, as orientações mudaram à revelia do artigo 926 do CPC. E, por sinal, monocraticamente sem o aval do plenário do Supremo, bem como sem data certa e próxima para julgamento colegiado, com o justo receio de que sejam mais 5 anos de espera pela prestação jurisdicional como ocorreu com o erário.
Enfim, a sociedade aguarda os próximos capítulos. Brevemente.
[1] Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=446480>. Acesso em: 03 jul. 2020.
[2] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jun-28/gilmar-suspende-acoes-correcao-monetaria-justica-trabalho>. Acesso em: 03 jul. 2020.
[3] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/adc-58.pdf>. Acesso em: 03 jul. 2020.
[4] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4723934&numeroProcesso=870947>. Acesso em: 03 jul. 2020.
[5] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jun-29/paralisia-trabalhista-oab-urgencia-stf>. Acesso em: 03 jul. 2020.
Disponível em: <https://www.oab.org.br/noticia/58254/oab-protocola-no-stf-embargos-de-declaracao-contra-cautelares-que-suspendem-julgamentos-na-justica-do-trabalho>. Acesso em: 03 jul. 2020.
[6] Disponível em: < https://www.anamatra.org.br/imprensa/noticias/30072-correcao-de-debitos-trabalhistas-liminar-do-ministro-gilmar-mendes-paralisa-tramitacao-de-cerca-de-4-milhoes-de-processos-na-justica-do-trabalho>. Acesso em: 03 jul. 2020.
[7] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jul-02/gilmar-esclarece-liminar-acoes-discutem-correcao-monetaria>. Acesso em: 03 jul. 2020.
[8] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/decisao-gilmar-mendes-justica-trabalho.pdf>. Acesso em: 03 jul. 2020.
[9] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 43.
[10] MACCORMICK, Neil. Rethoric and the rule of law – A theory of legal reasoning. New York: Oxford University Press, 2005. p. 188.
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. O artigo 926 do CPC e a postura do STF nas ADCs 58 e 59 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jul 2020, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54967/o-artigo-926-do-cpc-e-a-postura-do-stf-nas-adcs-58-e-59. Acesso em: 22 nov 2024.
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