RESUMO: O princípio da insignificância consiste na atipicidade material da conduta que viola bem-jurídico de forma ínfima. Como ocorre atipicidade, há absolvição do agente. Não há previsão legal do princípio. Foi criado pela doutrina e jurisprudência, responsáveis por lapidar sua aplicação. Nesse sentido, Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu requisitos para aplicá-lo: mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social, grau reduzido de reprovabilidade do comportamento, inexpressividade da lesão jurídica e ausência de habitualidade delitiva. Neste artigo, será apresentado julgado recente do STF em que se reconheceu a aplicação do princípio, mesmo com réu respondendo a uma outra ação penal em curso. O Tribunal entendeu que, como ação penal em curso não pode ser utilizada como antecedente por violar a presunção de inocência, também não pode ser utilizada para afastar a insignificância. Além disso, foi essencial para decisão do Tribunal o fato de se tratar de furto famélico, de o indivíduo ser hipossuficiente, de os bens serem restituídos e de todos os outros requisitos estarem presentes. Por fim, concluiu-se pelo acerto da decisão do STF, que atendeu ao princípio da intervenção mínima e se atentou à realidade do sistema penitenciário brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: princípio da insignificância; furto famélico; hipossuficiência; ação penal em curso.
ABSTRACT: The principle of insignificance consists in the material atypicality of the conduct that violates very little legally. As atypicality occurs, the agent is absolved. There is no legal provision for the principle. It was created by doctrine and jurisprudence, responsible for refining its application. In this sense, the Supreme Federal Court (STF) established requirements to apply it: minimal offense of conduct, no social hazard, reduced degree of reprobability of behavior, inexpressiveness of legal injury and absence of criminal habit. In this article, a recent STF judgment will be presented in which the application of the principle was recognized, even with the defendant responding to another ongoing criminal action. The Court found that, as an ongoing criminal action cannot be used as a precedent for violating the presumption of innocence, it also cannot be used to rule out insignificance. In addition, it was essential for the Court's decision that it was a family theft, that the individual was underfunded, that the assets were returned and that all other requirements were present. Finally, it was concluded that the STF's decision was correct, which met the principle of minimum intervention and paid attention to the reality of the Brazilian prison system.
KEYWORDS: principle of insignificance; familial theft; hyposufficiency; ongoing criminal action.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Princípio da Insignificância; 2.1 Requisitos para aplicação do Princípio da Insignificância. 3. STF: Aplicação do princípio em caso de ação penal em curso e crime patrimonial. 4. Do acerto da decisão do STF no Habeas Corpus 141440. 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo analisará julgado do Supremo Tribunal Federal (STF), em que se aplicou o princípio da insignificância em delito de furto, apesar de o réu responder a uma outra ação penal em curso. Tal julgado aparenta conflitar com a jurisprudência do Tribunal que não permite a incidência do princípio em crime patrimonial quando há habitualidade delitiva.
Para isso, inicialmente, será abordado o conceito do princípio da insignificância de acordo com a doutrina, seus requisitos traçados pelo STF e, em seguida, será apresentado o mencionado julgado da Suprema Corte, com os fundamentos utilizados para aplicar o princípio ao caso e, consequentemente, absolver o réu.
Por fim, será analisada a compatibilidade do julgado com o ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo com o princípio penal da intervenção mínima, com a crise do sistema penitenciário e com as medidas adotadas pelo STF para amenizá-la, como o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional.
2. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Com a aplicação do princípio da insignificância, é considerada atípica a conduta que se amoldou perfeitamente ao tipo penal, mas que não violou o bem jurídico tutelado por esse tipo penal de forma significativa.
É o caso do sujeito que subtrai para si coisa alheia móvel, consistente em 1 (um) pirulito de determinado supermercado. No caso, a conduta se encaixou perfeitamente ao delito de furto, já que houve a subtração de coisa alheia móvel. Entretanto, a lesão ao patrimônio (bem jurídico tutelado por esse delito) foi muito ínfima, o que não justifica a persecução penal.
Nesse caso, houve tipicidade formal (adequação da conduta ao crime de furto), mas não ocorreu tipicidade material (lesão significativa ao bem jurídico considerado pelo delito). Portanto, pela aplicação do princípio da insignificância, há atipicidade material da conduta, o que enseja absolvição do agente, nos termos do artigo 386, III, do Código de Processo Penal (CPP).
Nesse sentido, é a lição de Bitencourt (2018):
(...) a tipicidade penal exige ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos tutelados, pois não é qualquer ofensa a tais bens suficiente para configurar o injusto típico. É indispensável uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal (pena aplicável). Não raro condutas que se amoldam, formalmente, a determinado tipo penal não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode não se configurar a tipicidade material porque, a rigor, o bem jurídico não chegou a ser lesado.
(BITENCOURT, 2018, p. 84).
Importante ressaltar, ainda, que, para a jurisprudência, certos delitos não podem ser objeto do princípio da insignificância em razão do bem jurídico que tutelam, ainda que a lesão a esse bem seja inexpressiva. É o caso dos crimes contra a Administração Pública, conforme Súmula 599 do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Tal posição é criticável, porque o devido processo legal e o princípio da ofensividade demandam uma análise de cada caso concreto, para se verificar se houve ou não lesão significativa àquele bem jurídico, sendo repudiável uma análise abstrata.
Ainda, necessário informar que o princípio da insignificância, também chamado de princípio da bagatela, não está previsto no ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se de criação da doutrina e da jurisprudência, fontes responsáveis por lapidar sua aplicação.
2.1 Requisitos para aplicação do princípio da insignificância
O Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu quatro requisitos que devem ser observados, cumulativamente, para aplicação do princípio da insignificância, são eles: mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, grau reduzido de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.
EMENTA: PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. FURTO QUALIFICADO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.
1. O entendimento do STF é firme no sentido de que o princípio da insignificância incide quando presentes, cumulativamente, as seguintes condições objetivas:
(i) mínima ofensividade da conduta do agente;
(ii) nenhuma periculosidade social da ação;
(iii) grau reduzido de reprovabilidade do comportamento;
(iv) inexpressividade da lesão jurídica provocada, ressaltando, ainda, que a contumácia na prática delitiva impede, em regra, a aplicação do princípio.
Hipótese de paciente condenado pelo crime de furto qualificado pelo abuso de confiança, não estando configurados, concretamente, os requisitos necessários ao reconhecimento da irrelevância material da conduta.
2. Agravo regimental desprovido.
(HC 175945 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 27/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-119 DIVULG 13-05-2020 PUBLIC 14-05-2020)
É nesse sentido que a Suprema Corte considera que delitos cometidos com violência ou grave ameaça não podem ser objeto de aplicação do princípio da insignificância, ainda que a lesão ao bem jurídico seja inexpressiva.
EMENTA RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL. ROUBO QUALIFICADO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INCOMPATIBILIDADE.
É inviável reconhecer a aplicação do princípio da insignificância para crimes praticados com violência ou grave ameaça, incluindo o roubo. Jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal. Recurso ordinário em habeas corpus não provido.
(RHC 106360, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 18/09/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-195 DIVULG 03-10-2012 PUBLIC 04-10-2012)
Além disso, há também a questão da habitualidade delitiva quando se trata de princípio da insignificância. Em julgamento do Habeas Corpus 123734, o Pleno do STF decidiu que, em crime patrimonial, a habitualidade, apesar de não ser determinante, deve sim ser considerada.
Ementa: PENAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME DE FURTO TENTADO. RÉU PRIMÁRIO. QUALIFICAÇÃO POR ROMPIMENTO DE OBSTÁCULO E ESCALADA.
1. A aplicação do princípio da insignificância envolve um juízo amplo (“conglobante”), que vai além da simples aferição do resultado material da conduta, abrangendo também a reincidência ou contumácia do agente, elementos que, embora não determinantes, devem ser considerados.
2. Por maioria, foram também acolhidas as seguintes teses:
(i) a reincidência não impede, por si só, que o juiz da causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso concreto; e
(ii) na hipótese de o juiz da causa considerar penal ou socialmente indesejável a aplicação do princípio da insignificância por furto, em situações em que tal enquadramento seja cogitável, eventual sanção privativa de liberdade deverá ser fixada, como regra geral, em regime inicial aberto, paralisando-se a incidência do art. 33, § 2º, c, do CP no caso concreto, com base no princípio da proporcionalidade.
3. Caso em que a maioria formada no Plenário entendeu por não aplicar o princípio da insignificância, nem abrandar a pena, já fixada em regime inicial aberto e substituída por restritiva de direitos.
4. Ordem denegada.
(HC 123734, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-019 DIVULG 01-02-2016 PUBLIC 02-02-2016)
Tais requisitos estabelecidos pelo STF vêm sendo aplicados pelos juízes e tribunais brasileiros, de modo que, ausente qualquer deles, não se tem reconhecido a insignificância da conduta do agente.
3. STF: APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO EM CASO DE AÇÃO PENAL EM CURSO E CRIME PATRIMONIAL
Tal como mencionado acima, o Pleno do STF decidiu que, nos crimes patrimoniais, a habitualidade delitiva deve ser considerada para aplicação da insignificância, mas não pode ser determinante para afastá-la.
Ocorre que, na prática e mesmo após a decisão do Pleno, as Turmas do STF, raramente, aplicam a insignificância em crime patrimonial quanho há habitualidade delitiva. Isso pode ser visto em julgados da Primeira e da Segunda Turma do Tribunal.
EMENTA: PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. CRIME DE FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. REITERAÇÃO DELITIVA.
1. O recorrente não se desincumbiu do seu dever processual de impugnar, especificamente, todos os fundamentos da decisão agravada, o que inviabiliza o conhecimento do recurso. Precedentes.
2. A jurisprudência do STF consolidou o entendimento de que a reiteração delitiva impossibilita a adoção do princípio da insignificância. Paciente que ostenta em sua folha de antecedentes várias ocorrências pelo mesmo crime de furto.
3. Agravo regimental não conhecido.
(HC 123199 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 17/02/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-047 DIVULG 10-03-2017 PUBLIC 13-03-2017)
Agravo regimental em habeas corpus.
2. Furto (artigo 155, caput, do Código Penal Brasileiro).
3. Princípio da insignificância. Afastamento de aplicação. Reincidência delitiva específica.
4. Precedentes no sentido de afastar o princípio da insignificância a reincidentes ou de habitualidade delitiva comprovada.
5. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada.
6. Agravo regimental a que se nega provimento.
(HC 147215 AgR, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 29/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-153 DIVULG 31-07-2018 PUBLIC 01-08-2018)
Tal como nos julgados acima, no acordão abaixo, o STF, novamente, afastou a insignificância, mesmo reconhecendo que se tratava de furto de bem avaliado em R$130 (cento e trinta reais), o que ocorreu com fundamento no fato de o réu ser reincidente.
EMENTA: HABEAS CORPUS. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. REITERÂNCIA DELITIVA. ABRANDAMENTO DE REGIME INICIAL DE CUMPRIMENTO DA PENA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
1. A orientação firmada pelo Plenário do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL é no sentido de que a aferição da insignificância da conduta como requisito negativo da tipicidade, em crimes contra o patrimônio, envolve um juízo amplo, que vai além da simples aferição do resultado material da conduta, abrangendo também a reincidência ou contumácia do agente, elementos que, embora não determinantes, devem ser considerados (HC 123.533, Relator Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, DJe de 18/2/2016).
2. Busca-se, desse modo, evitar que ações típicas de pequena significação passem a ser consideradas penalmente lícitas e imunes a qualquer espécie de repressão estatal, perdendo-se de vista as relevantes consequências jurídicas e sociais desse fato decorrentes.
3. A aplicação do princípio da insignificância não depende apenas da magnitude do resultado da conduta. Essa ideia se reforça pelo fato de já haver previsão na legislação penal da possibilidade de mensuração da gravidade da ação, o que, embora sem excluir a tipicidade da conduta, pode desembocar em significativo abrandamento da pena ou até mesmo na mitigação da persecução penal.
4. Não se mostra possível acatar a tese de atipicidade material da conduta, pois não há como afastar o elevado nível de reprovabilidade assentado pelas instâncias antecedentes, ainda mais considerando os registros do Tribunal local dando conta de que o paciente é contumaz na prática delituosa, o que desautoriza a aplicação do princípio da insignificância, na linha da jurisprudência desta CORTE.
5. Quanto ao modo de cumprimento da reprimenda penal, há quadro de constrangimento ilegal a ser corrigido. A imposição do regime inicial semiaberto, com arrimo na reincidência e nos maus antecedentes, parece colidir com a proporcionalidade na escolha do regime que melhor se coadune com as circunstâncias da conduta de furto de bem pertencente a estabelecimento comercial, avaliado em R$ 130,00 (cento e trinta reais). Ainda, à exceção dos antecedentes, as demais circunstâncias judiciais são favoráveis, razão por que a pena-base fora estabelecida pouco acima do mínimo legal (cf. HC 123.533, Tribunal Pleno, Rel. Min. ROBERTO BARROSO), de modo que o regime aberto melhor se amolda à espécie.
6. Ordem de Habeas Corpus concedida, de ofício, para fixação do regime inicial aberto para cumprimento da reprimenda.
(HC 135164, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 23/04/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-170 DIVULG 05-08-2019 PUBLIC 06-08-2019)
Nos raros casos em que o STF aplica insignificância em crime patrimonial quando há habitualidade delitiva, nota-se a presença de elementos específicos que indicam pela aplicação, além do preenchimento dos requistos clássicos postos pelo Tribunal. Foi o que ocorreu em julgado de 2018, transcrito abaixo e objeto de análise deste artigo.
Agravo regimental em habeas corpus. Penal. Furto qualificado (CP, art. 155, § 4º, inciso IV). Pretendido reconhecimento do princípio da insignificância. Possibilidade excepcional, à luz das circunstâncias do caso concreto. Agravo provido.
1. À luz dos elementos dos autos, o caso é de incidência excepcional do princípio da insignificância, na linha de precedentes da Corte.
2. As circunstâncias e o contexto que se apresentam permitem concluir pela ausência de lesão significativa que justifique a intervenção do direito penal, mormente se considerarmos a inexpressividade dos bens subtraídos (avaliados em R$ 116,50) e o fato de o ora agravante não ser, tecnicamente, reincidente específico, já que a única ação penal à qual responde não transitou em julgado.
3. Há de se ponderar, ainda, a condição de hipossuficiência do agente, além do fato de que a sua conduta foi praticada sem violência física ou moral a quem quer que seja, sendo certo, ademais, que os bens furtados foram restituídos à vítima, afastando-se, portanto, o prejuízo efetivo.
4. Agravo regimental ao qual se dá provimento.
(HC 141440 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 14/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-024 DIVULG 06-02-2019 PUBLIC 07-02-2019)
No caso, o réu foi denunciado pelo furto qualificado de 1 galo, 4 galinhas caipiras, 1 galinha garnizé e 3 kg de feijão, bens avaliados em R$ 116,50. O delito foi praticado sem nenhum tipo de violência e com restituição dos bens à vítima.
O STF entendeu que se tratava de furto famélico, que a lesão ao bem jurídico foi ínfima e que não houve periculosidade por parte do réu. O entrave para aplicação da insignificância ao caso foi o fato de o réu possuir ação penal em curso, o que aparentava colidir com a ausência de habitualidade delitiva.
Conforme salientou o Ministro Gilmar Mendes em seu voto, o próprio STF já decidiu que ação penal em curso não pode ser utilizada como antecedente criminal por violar a garantia constitucional da presunção de inocência. Assim, ressaltou o ministro que, como não se admite ação penal em curso para caracterizar maus antecedentes, não se mostra razoável utilizá-la para afastar o princípio da insignificância no caso concreto.
(...) registro que, em sessão realizada em 17.12.2014, o Pleno do STF, ao julgar o RE 591.054, com repercussão geral, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, firmou orientação no sentido de que a existência de inquéritos policiais ou de ações penais sem trânsito em julgado não pode ser considerada como maus antecedentes para fins de dosimetria da pena. Na ocasião, ficou consignado que, para efeito de aumento da pena, somente podem ser valoradas como maus antecedentes decisões condenatórias irrecorríveis, sendo impossível considerar para tanto investigações preliminares ou processos criminais em andamento, mesmo que estejam em fase recursal, sob pena de violação ao artigo 5º, inciso LIV (presunção de não culpabilidade), do texto constitucional. (...). Na espécie, consta tão somente uma outra ação penal instaurada em desfavor do paciente, ainda em trâmite. Desse modo, entendo que as circunstâncias do caso concreto demonstram a presença dos vetores traçados pelo Supremo Tribunal Federal para configuração do mencionado princípio (...).
(HC 141440 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 14/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-024 DIVULG 06-02-2019 PUBLIC 07-02-2019)
Neste caso, a ação penal em curso não foi entrave para aplicação da insignificância. Isso se deu não apenas por conta da presunção de inocência, como também pelo fato de o réu ser hipossuficiente, de ter praticado furto famélico, de não ter havido qualquer tipo de violência à vítima e de ter ocorrido restituição dos bens subtraídos, tal como manifestou o Ministro Dias Toffoli em seu voto.
(...). Na espécie, as circunstâncias e o contexto que se apresentam permitem concluir pela ausência de lesão significativa a invocar a intervenção do direito penal, mormente se considerarmos a inexpressividade dos bens subtraídos (avaliados em R$ 116,50) e o fato de o ora agravante não ser, tecnicamente, reincidente específico, já que a única ação penal à qual responde não transitou em julgado. Há de se ponderar, ainda, a condição de hipossuficiência do agente, além do fato de que a sua conduta foi praticada sem violência física ou moral a quem quer que seja, sendo certo, ademais, que os bens furtados foram restituídos à vítima, afastando-se, portanto, o prejuízo efetivo.
(HC 141440 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 14/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-024 DIVULG 06-02-2019 PUBLIC 07-02-2019)
Com fundamento em todas essas questões, o STF aplicou o princípio da insignificância ao caso, reconhecendo a atipicidade material da conduta do agente e, por consequência, absolvendo-o.
Com isso, nota-se que o STF, nos raros casos em que aplica a insigficância em crime patrimonial havendo habitualidade delitiva, o faz amparado em circunstâncias específicas do caso concreto e no preenchimento dos demais requisitos do princípio.
4. DO ACERTO DA DECISÃO DO STF NO HABEAS CORPUS 141440
A decisão do STF mencionada acima está plenamente de acordo com o princípio penal da intervenção mínima, além de se fazer necessária no atual cenário do sistema penitenciário brasileiro.
Conforme sustenta o princípio da intervenção mínima, o Direito Penal somente deve atuar quando há, de fato, uma necessidade de tutela do bem jurídico, já que sua aplicação culminará na restrição de um dos direitos mais essenciais do individuo: sua liberdade.
Nesse sentido, é, novamente, a lição de Bitencourt (2018):
O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a prevenção de ataques contra bens jurídicos importantes.
(BITENCOURT, 2018, p. 72).
No caso concreto trazido acima, observa-se que a subtração de bens foi ínfima, além de ter sido cometida para saciar a fome de indivíduo hipossuficiente, o que sequer ocorreu, já que houve devolução dos bens à vítima.
Além disso, tal caso concreto retrata bem a seletividade do Direito Penal brasileiro, que seleciona, em sua maioria, pessoas mais vulneráveis para ser objeto de punição, criminalizando delito patrimonial, como o furto, com a mesma pena de delito muito mais grave, como o de tortura.
Tal seletividade ocorre não só na criminalização das condutas, mas também na escolha das pessoas que são alvo da persecução penal, o que é claramento visto no sistema penitenciário brasileiro atualmente, composto em sua maioria por pessoas hipossuficientes, como é o caso do HC em questão.
A repressão é tamanha que há um superencarceramento no Brasil, de modo que as prisões possuem um número muito maior de presos do que é capaz de receber. Isso gera um cumprimento de pena sem respeito a garantias fundamentais e que vem se mostrando ineficaz, diante da alta reincidência dos egressos.
A situação é tão crítica que o próprio STF já reconheceu que há um estado de coisa inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro, estabelecendo medidas para amenizar a situação, como a obrigatoriedade da audiência de custódia.
CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO.
Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”.
FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional.
AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA.
Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.
(ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016)
Diante desse cenário, é necessário que os aplicadores do Direito Penal se atentem ao princípio da intervenção mínima, aplicando pena restritiva de liberdade apenas quando haja real necessidade, como fez o STF no julgado em comento.
5. CONCLUSÃO
Diante do que foi exposto, conclui-se que o STF permite a aplicação do princípio da insignificância em crime patrimonial quando há contumácia delitiva, desde que haja elementos específicos no caso concreto que indiquem pela aplicação, além do preenchimento dos quatro requisitos clássicos traçados pela Corte.
Com acerto, o Tribunal, no Habeas Corpus 141440, absolveu réu de furto famélico com aplicação do princípio da insignificância, reconhecendo que ação penal em curso não pode se caracterizar como habitualidade delitiva por violar a presunção de inocência.
Assim, considerando o princípio penal da intervenção mínima e a atual crise do sistema penitenciário brasileiro, necessário que os aplicadores do Direito Penal analisem com cautela a necessidade de se aplicar pena privativa de liberdade, tal como foi feito pelo STF no HC mencionado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal : parte geral 1. 24. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018.
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https://scon.stj.jus.br/SCON/sumulas/enunciados.jsp?&b=SUMU&p=true&l=10&i=41. Acesso em: 20 jul. 2020.
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm
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Acesso em: 18 jul. 2020.
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Acesso em: 18 jul. 2020.
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CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Estado de Coisas Inconstitucional. Buscador Dizer o Direito, Manaus.
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Pós-graduada em Ciências Criminais pela Faculdade Damásio, pós-graduanda em Direitos Humanos pela Faculdade UniAmérica, graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, IZABELA SEDLMAIER. Princípio da insignificância: análise da jurisprudência do STF em caso de habitualidade delitiva e crime patrimonial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 ago 2020, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55068/princpio-da-insignificncia-anlise-da-jurisprudncia-do-stf-em-caso-de-habitualidade-delitiva-e-crime-patrimonial. Acesso em: 22 nov 2024.
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