Resumo: O meio ambiente é um dos bens que mais têm chamado à atenção e causado preocupação em parte da sociedade, em juristas e cientistas, sendo inclusive garantido pelos ordenamentos jurídicos. A preocupação com o coletivo faz com que aconteça uma grande alteração na ordem jurídica, cuja tutela dos interesses massivos começa a ser tratada como interesse maior e essencial para a sociedade como um todo. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é tratar sobre a possibilidade de aceitação da responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público por danos ambientais. A realização deste trabalho demandou o uso de revisão bibliográfica, com abordagem qualitativa, através de artigos, livros, dissertações, revistas e manuais. Observou-se que, à responsabilidade penal que envolve pessoas jurídicas de Direito Público, se impõe não somente em decorrência da necessidade de tratamento isonômico frente às pessoas jurídicas de Direito Privado, mas, principalmente, porque a imputação de pena à pessoa jurídica de direito público revela-se ser importante instrumento de controle das atividades do próprio Estado. Conclui-se que, a responsabilidade penal da pessoa jurídica, cada vez mais tende a ser uma necessária opção, para a boa tutela que envolve o meio ambiente, mesmo porque tem sido a pessoa jurídica aquela que pratica condutas mais nocivas, por proporcionarem danos ambientais de uma maior magnitude.
Palavras Chave: Meio Ambiente. Pessoas Jurídicas. Responsabilidade Penal.
Abstract: The environment is one of the assets that has attracted the most attention and caused concern in part of society, jurists and scientists, and is even guaranteed by the legal systems. Concern with the collective causes a major change in the legal order, whose protection of massive interests is being treated as a major and essential interest for society as a whole. Thus, the objective of this paper is to deal with the possibility of accepting the criminal liability of legal entities governed by public law for environmental damage. The accomplishment of this work demanded the use of bibliographical revision, with qualitative approach, through articles, books, dissertations, magazines and manuals. It has been observed that criminal liability involving legal entities governed by public law is imposed not only because of the need for isonomic treatment vis-à-vis legal entities governed by private law, but mainly because the imputation of punishment to legal entities governed by public law. Proves to be an important instrument for controlling the activities of the state itself. It is concluded that the criminal liability of the legal entity increasingly tends to be a necessary option for the good protection that involves the environment, even because it has been the legal entity that practices the most harmful conduct, for providing environmental damage of a greater magnitude.
Keywords: Environment. Legal entities. Criminal Responsibility.
Sumário: 1. A responsabilidade Penal do Ente Coletivo. 1.1 Natureza Jurídica do Ente Coletivo.1.2 Responsabilidade Penal da Pessoa Juridica.1.3 Da Capacidade de Culpabilidade da Pessoa Jurídica.1.4 Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica de Direito Público. Conclusão. Referências.
Destaca-se que, com o passar do tempo, frequentemente o procedimento produtivo traz em si elementos prejudiciais ao meio ambiente. Isso exige que o poluidor tenha consciência do fato de que aufere lucro e deixa para a coletividade os prejuízos ambientais que necessita reparar.
Os problemas, que passaram a agredir a sociedade nos últimos tempos, característicos de uma sociedade de risco, apresentaram a necessidade de reconstrução de paradigmas. Sabe-se que a discussão quanto à possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica em questões ambientais em âmbito penal recebeu novos contornos com a publicação da Carta Constitucional Brasileira de 1988.
Diante da nova realidade, gerada pela globalização e pela liberalização do comércio mundial, que sobremaneira, estimulam a criminalidade econômica, levada a cabo por organizações empresariais, o Direito Penal não poderia ficar apático no que se refere à punição das pessoas jurídicas. Contudo, a questão é tormentosa e será ainda motivo de muito debate nos meios acadêmicos e profissionais, a começar pela aferição de culpabilidade das pessoas jurídicas.
O objetivo geral, do presente trabalho foi tratar sobre a possibilidade de aceitação da responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público por danos ambientais.
A abordagem desse tema justifica-se, devido ao fato de se entender que, para que sejam mais preservadas as questões ambientais, a pessoa jurídica deve, sim, ser responsabilizada. Trata-se de tema árduo, que está longe de encontrar pontos pacíficos de discussão, sendo, entretanto, de suma importância o seu enfrentamento visando à maior e melhor tutela dos bens jurídicos coletivos no seio da sociedade de risco.
A realização deste trabalho, demandou o uso de revisão bibliográfica, com abordagem qualitativa a qual levou à constituição do quadro teórico, do conjunto de definições, princípios, categorias etc. Para alcançar a proposta da pesquisa, a elaboração do estudo foi realizada através de artigos, livros, dissertações, revistas e manuais, demonstrando os conhecimentos teóricos sobre o assunto, onde foram expostas e analisadas as principais ideias dos autores pesquisados.
1. A RESPONSABILIDADE PENAL DO ENTE COLETIVO
O presente capítulo versa a respeito da responsabilidade penal da pessoa jurídica e contém, por pressuposto, a análise da natureza jurídica do ente coletivo e, como consequência, considerações sobre a sua culpabilidade penal. Ao final, tópico específico aborda a nova e delicada questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito público.
1.1 Natureza jurídica do ente coletivo
Para responsabilizar a pessoa jurídica, a fundamentação dogmática a ser estabelecida necessita ter como marco inicial a definição de sua natureza, pois não se pode idealizar a responsabilidade penal do ente coletivo sem conceituá-lo, mesmo porque tal definição ou justificará a existência dessa responsabilidade ou negará a possibilidade de sua existência.
Segundo o renomado doutrinador Silvio de Salvo Venosa (2016, p.22) entende-se por pessoa aquele ser a quem se confere direitos e obrigações, relacionando-se a pessoa natural ou física aquela que pode ser fidalgo de relação jurídica. Quanto às pessoas jurídicas, estas são entes contemplativos determinados pela vontade e precisão do homem. As pessoas jurídicas aparecem, ora como conjunto de pessoas, ora como destinação patrimonial, com disposição para contraírem direitos e adquirir obrigações.
Desta forma, a pessoa jurídica não pode ser vista somente como a reunião de pessoas ou indivíduos. É preciso que exista, além da simples aglomeração de pessoas, uma vinculação específica que crie um liame de natureza jurídica. Portanto, o que caracteriza primordialmente a pessoa jurídica e a define é a reunião de pessoas ligadas por um fim, com objetivos comuns e unidade orgânica.
Para a teoria da ficção, cujo principal expoente é Savigny (apud PRADO, 2018 p.149), as pessoas jurídicas trazem experiência fictícia. A sua vivência é devida aos seus representantes. A pessoa jurídica não é um ser livre, perspicaz e sensível, mas sim um ser contemplativo:
Ficção (Savigny): as pessoas jurídicas têm vivência fictícia ou imaginária. São entes abstratos capazes de ter, mas impossibilitados de delinquir (precisam de vontade e de ação). Os crimes imputados às pessoas morais são exercidos sempre por seus membros ou diretores (pessoas naturais), mesmo que o empenho da corporação tenha servido de pretexto ou de fim para o crime. (PRADO, 2018, p. 149)
Sustenta a Teoria Institucional defendida por Hariou, citado por Gonçalves (2012 p.99), que a pessoa jurídica é uma organização social desenvolvida para conseguir determinados fins. Partindo da apreciação das relações sociais, não da vontade humana, verifica a vivência de grupos formados para a prática de uma imagem socialmente útil às instituições, sendo estes grupos sociais dotados de ordem e organização próprias.
Pode-se dizer que, a real existência de um ente coletivo, em regra, é a intenção dessa teoria, pois deve-se garantir e evidenciar ainda que não signifique que seja reconhecida a um grupamento uma existência exatamente igual a uma pessoa física. Falando em outros termos, isso significa estabelecer a existência da pessoa jurídica e reconhecer uma vocação de ela ser, como uma pessoa física, um sujeito de direito. A comparação entre o grupamento e o corpo humano careceu de suficientes elementos a justificar o fenômeno da pessoa jurídica. Ao contrário dos seres humanos, os órgãos que integram as pessoas jurídicas possuem vida distinta, socialmente reconhecida (SANCTIS, 2009 p.77).
Quando se fala em responsabilidade penal, adverte Cruz (2008 p.102) que esta não depende excepcionalmente da teoria seguida. Isso porque é cabível a existência de sistemas jurídicos que seguem a teoria da ficção e atribuem à responsabilidade coletiva (Inglaterra e Estados Unidos), ao passo que, em alguns países do Civil Law, observa-se a teoria da realidade sem a correspondente responsabilidade da pessoa jurídica.
1.2 Da responsabilidade penal Da Pessoa juridica
Observa-se hoje um grande incremento da prática criminosa de cunho econômico e ambiental, o que se deve, em grande parte, à participação cada vez maior das empresas para sua efetivação, ao crescimento econômico e, sobretudo, à globalização.
Diante da nova realidade gerada por essa globalização e pela liberalização do comércio mundial que, sobremaneira, estimulam a criminalidade econômica levada a cabo por organizações empresariais, o direito penal não podia ficar apático à punição das pessoas coletivas. De certo, com a explosão que apresentou o liberalismo econômico, as medidas clássicas de controle da economia levadas a cabo pelos Estados não se fizeram eficazes contra a guerra que se criou contra a criminalidade, obrigando o Direito a seguir novas formas de imputação da responsabilidade penal, sobretudo no que diz respeito à responsabilidade das pessoas coletivas no âmbito do direito penal econômico (BRAVO, 2003 p.77).
Muito se debate se a pessoa jurídica pode delinquir. Os mais fervorosos defendem que não e, para tanto, explicam que o Direito no Brasil origina-se do direito romano-germânico, que pontifica: societas delinquere non potest, ou seja, não é aceitável a responsabilidade penal da pessoa jurídica, e ratificam com os Códigos Penal e Processual Penal pátrio, segundo os quais não há como proceder ao interrogatório da pessoa jurídica, não podendo ser ela presa e quiçá ser sujeito de direitos inerentes à pessoa natural.
No Brasil, com a Constituição de 1988, passou-se a conceber que não basta responsabilizar tão somente a pessoa física administradora da empresa, passando também a ser responsabilizada a pessoa jurídica. Sobre isso ensina Rothenburg:
Fora de dúvida, entretanto, que a responsabilidade penal da pessoa jurídica está prevista constitucionalmente e necessita ser instituída, como forma, inclusive, de fazer ver ao empresariado, que a empresa privada também é responsável pelo saneamento da economia, pela proteção da economia popular e do meio ambiente, pelo objetivo social do bem comum, que deve estar acima do objetivo individual, do lucro a qualquer preço. Necessita ser imposta, ainda, como forma de aperfeiçoar-se a perquirida justiça, naqueles casos em que a legislação mostra-se insuficiente para localizar, na empresa, o verdadeiro responsável pela conduta ilícita. (Rothenburg, 2005, p. 12).
Entende-se como responsabilidade penal a obrigação de um autor de um fato típico, ilícito e culpável de responder por este fato perante a justiça criminal, sujeitando-se aos preceitos sancionadores previstos na legislação penal. Para caracterizá-la é necessária à existência de três elementos, quais sejam: conduta dolosa ou culposa, nexo de causalidade e resultado lesivo ao bem jurídico. Estando presentes tais elementos, impõe-se a sanção penal, exceto se inexistir ilicitude, por ter havido legitima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular do direito, bem como pela ausência da culpabilidade, isto é, se o agente era ao tempo da ação inimputável, houve erro de proibição, coação moral irresistível ou obediência hierárquica.
Contudo, conforme ensina Milaré (2013, p. 33), “a doutrina necessitará sempre buscar os meios mais adequados para a efetiva implementação dos desígnios do legislador, pois o jurista não pode esperar por um direito ideal, devendo usar o direito existente buscando soluções melhores”.
No caso específico da Lei 9605/1998, Lecey chama a atenção do leitor para o que se prevê no artigo 3º:
No caput do dispositivo legal, está previsto como requisito da responsabilidade criminal da pessoa coletiva que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado. Sempre, pois, haverá uma ou mais pessoas naturais deliberando pela pessoa jurídica e, pois, concurso de agentes entre a última e a(s) pessoa(s) física(s). Aquele ou aqueles que deliberarem no interesse e benefício da pessoa jurídica serão seus coautores, segundo a teoria do domínio do fato, ou meros mandantes, segundo a teoria forma ou da tipicidade, que restringe a autoria (e a coautoria à execução da figura típica) (Lecey apud MILARÉ, 2013, p. 987).
Outros renomados pensadores, como Schecaira (apud Alves, 2009), ainda apontam, além dos requisitos já delineados, mais três condicionantes implícitos no art. 3º da Lei 9605/98, quais sejam: 1) que a infração seja praticada dentro da esfera de atividade da empresa; 2) que a execução do crime se dê por pessoa estreitamente ligada ao ente coletivo e, por fim, 3) que seja empregado na infração o poder econômico do ente coletivo.
No entendimento de Cruz (2008 p.99), a dignidade penal do meio ambiente é considerada inquestionável e justifica todo o sistema protetivo penal a partir dela construído. O direito penal tem um caráter fragmentário, na medida em que dentre os fatos ilícitos tutelados por diferentes ramos do direito, somente aqueles mais graves são indicados para serem acolhidos pelo ordenamento jurídico-penal, através da sanção penal. E o critério de dignidade penal, quer na doutrina nacional, quer na estrangeira é atribuído pela Constituição. É a Constituição que fixa, explícita ou implicitamente, quais os bens jurídicos fundamentais que deverão ser tutelados pelo direito penal. Em resumo, se a conduta violar bens jurídicos necessários à garantia da dignidade da pessoa humana ela deverá fazer parte do âmbito de incidência do direito penal.
Com isso leciona Silva; Lavorenti; Genofre (2007, p.44) que existe constante desacordo doutrinário quanto à atribuição de responsabilidade penal à pessoa jurídica, sobretudo quando se trata dos crimes ambientais. Conforme entendimento deste autor existe corrente que sustenta a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei dos Crimes Ambientais, declarando que a imputação de responsabilidade penal à pessoa jurídica se confronta com os princípios basilares do Direito Penal. Por outra vertente, existe corrente no sentido contrário, que considera ser sim constitucional o mencionado artigo, aceitando a penalidade à pessoa jurídica, somente excetuando as penas privativas de liberdade, por seu caráter pessoal. Nesta seara, o acima mencionado autor concorda com esta última corrente, percebendo que não existe inconstitucionalidade na Lei 9605/98, sendo possível, quanto à responsabilidade penal da pessoa jurídica, a aplicação das penalidades de multa, restritiva de direitos ou a prestação de serviços comunitários.
A responsabilização penal da pessoa jurídica pressupõe, pois, abandonar a concepção clássica de responsabilização individual e o princípio da culpabilidade individual, pois evidente a incompatibilidade entre os institutos. Mas há quem sustente que a responsabilidade penal de entes coletivos presume uma análise distinta, não obstante válida, do conceito de vontade: a vontade não seria aqui algo resultante da existência natural humana, mas de uma existência em um plano sociológico, que permite à empresa manifestar-se em uma vontade pragmática (MACHADO, 2016 p.44).
Portanto, com o crescimento que se nota da criminalidade empresarial, a doutrina e legisladores da maior parte dos países têm admitido, de modo recente, alguns desvios ao princípio da responsabilidade penal individual, de forma a acolher a punição criminal das pessoas coletivas, baseando-se na necessidade de recorrer ao direito penal para o controle das ameaças protagonizadas por empresas e entidades equiparadas. Seguindo-se de perto o exemplo anglo saxônico, precursor na consagração da responsabilidade criminal das pessoas coletivas, assiste-se, um pouco por todo o mundo, um movimento de aceitação da punição penal das empresas, com expressão preponderante no campo do direito econômico (BRAVO, 2008 p.33).
Em nível jurisprudencial, os tribunais superiores entendem pela possibilidade de atribuição de responsabilidade penal às pessoas jurídicas. Há, no entanto, uma divergência entre eles: enquanto o Superior Tribunal de Justiça entende possível a responsabilidade penal do ente coletivo conjugada sempre com a responsabilidade pessoal do gestor da empresa (teoria da dupla imputação), o Supremo Tribunal Federal entendeu, recentemente, pela possibilidade de responsabilização isolada do ente coletivo, afastando, assim, a teoria da dupla imputação.
A questão é, pois, tormentosa e será ainda motivo de muito debate nos meios acadêmicos e profissionais, a começar pela aferição de culpabilidade das pessoas jurídicas.
1.3 Da capacidade de culpabilidade da Pessoa Jurídica
A culpabilidade por defeito de uma organização pode restar comprovada não apenas pela conduta individual da pessoa física representante do ente coletivo ou empresarial, mas também quando demonstrado que a infração penal provém de um acúmulo de orientações indevidas ou operações individuais impróprias de pessoas físicas que compõem a estrutura social do ente coletivo. A culpabilidade, diz-se, poderia ocorrer, ainda, quando da falta de vigilância ou regular orientação da pessoa física que deveria praticar a conduta de modo adequado.
Sabe-se que, em regra, a responsabilidade penal que é considerada consagrada pelo Código Penal pátrio apresenta como princípio fundamental o da culpabilidade: nullum crimen sine culpa, sendo que a imputação de uma infração penal a alguém estaria sujeita à existência de uma vontade, a qual necessita estar coligada a um conhecimento sobre a ilicitude do fato, bem como a probabilidade de se determinar do agente outra conduta, nas circunstâncias do cometimento da infração. Tais elementos, somados à imputabilidade do agente, formam para a Teoria Geral do Delito o conceito de culpabilidade (BITENCOURT, 2016, p.66).
Igualmente, pontua Schecaira (2011, p.44), que a culpabilidade é eminentemente valorativa e faz depender sua apreciação unicamente do ser humano que é objeto de exame. Trata-se de analisar o homem desigualmente, como desigual que ele é. A análise da culpa do homem por meio de um conceito geral de culpabilidade, comparando-se com um hipotético sujeito, imaginário, que serve como referência padrão a todos os autores do delito, é um evidente retrocesso. O “homem médio” ou o “bom pai de família” não podem ser referência para o moderno conceito de culpa, pois esta depende de uma série de condicionantes pessoais exteriores, como deficiências educativas, carência de formação, dificuldades familiares, influencias sociais, etc.
Enquanto princípio, a culpabilidade é empregada como sinônimo de início da responsabilidade penal pessoal/subjetiva, e estabelece que nenhuma pena passará da pessoa do delinquente, motivo pelo qual só precisa responder pela infração penal o seu referente autor, coautor ou partícipe. Desse modo, ela própria estabelece um postulado político-criminal que impede, inclusive, a responsabilidade penal objetiva e/ou presumida, abrangendo o dolo e a culpa (PRADO, 2018, p.55).
No tocante aos entes coletivos, Kist há muito, vem defendendo a aplicação do princípio da culpabilidade a eles:
[...] as dificuldades dogmáticas tradicionais para acolher penalmente a criminalidade das agrupações reside no contido das noções fundamentais da doutrina penal: ação, culpabilidade e capacidade penal. Se a pessoa moral pode concluir um contrato, por exemplo, de compra e venda, ela é que é sujeito de obrigações que se originam destes contratos e ela é quem pode violar essas obrigações. Isso quer dizer que a pessoa moral pode atuar de maneira antijurídica (Kist, 1999, p. 89).
E, ainda, com Gómez-Jara Díez:
Considerando-se esta perspectiva, a circunstância de que as organizações empresariais possam gerar uma cultura empresarial de fidelidade ou infidelidade ao Direito, que a referida cultura empresarial possa questionar gravemente a vigência das normas no ordenamento jurídico e que se esteja reconhecendo paulatinamente um mínimo de cidadania à empresa no que diz respeito à liberdade de expressão – corporate speech – contribuem para que, na sociedade moderna, a culpabilidade empresarial e a culpabilidade individual se mostrem como funcionalmente equivalentes. (Díez, 2012, p. 334)
Contudo, no caso da pessoa jurídica, pode-se dizer que a culpabilidade está adstrita à reprovabilidade do comportamento da instituição. Passa-se, então, a analisar se, além de ter um comportamento institucional reprovável, determinado pelo meio das lesões que o desenvolvimento da atividade causa ao meio ambiente, a pessoa jurídica tem capacidade de atribuição.
Sobre isso Araújo Júnior ressalta:
A admissão da capacidade de agir conduz, necessariamente, à da capacidade de culpa. Podemos, entretanto, agregar que a teoria do risco da empresa, consequente da culpa na própria organização e atuação, legitima a responsabilidade penal da pessoa jurídica e justifica a atribuição a ela, cumulativa ou isoladamente, do crime cometido por seus representantes em proveito da empresa. É esta a teoria da vantagem econômica, que fundamenta o juízo de reprovação pelo crime. Trata-se, assim, de uma categoria nova que a jurisprudência portuguesa e as propostas da Comunidade Europeia chamam de ‘responsabilidade própria da empresa (Araújo Júnior, 1999, p. 77).
A capacidade de atribuição da pessoa jurídica está para sua responsabilização penal assim como a culpabilidade está para a responsabilidade criminal da pessoa natural. A exigibilidade de conduta diversa, verificada através de um juízo de reprovação social e de conhecimento técnico da empresa somado à capacidade de atribuição, implica na responsabilidade penal da pessoa jurídica.
1.4 Da responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito público
Se grande é a celeuma quanto à possibilidade da pessoa jurídica responder penalmente por seus atos, maior ainda é a discussão concernente à pessoa jurídica de direito público.
Exemplo disso pode ser obtido, com a ajuda de Machado (2016, p.99), que em um de seus textos vem destacando, se determinado Município, com o fim de desempenhar atividade de saneamento básico, lança esgoto público em determinada praia, dificultando o uso desta pela população, incidindo assim nas penas do art. 54, § 2º, IV, da Lei 9605/98. Outro exemplo ocorre em hipótese de a União, por meio das Forças Armadas, vir a praticar exercícios militares em área de proteção ambiental, com o fim de manter suas tropas preparadas para a defesa nacional, praticando com isso degradações ambientais criminosas, puníveis na forma da Lei 9605/98.
Rocha (2002 p.34), por exemplo, sustenta que o Estado tem o monopólio do direito de punir e não seria apropriado falar, assim, que ele possa punir-se a si mesmo. Por outro lado, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as fundações instituídas pelo Poder Público, chamadas paraestatais, não se confundem com o Estado e podem ser criminalmente responsabilizadas. Nas palavras do autor, a própria denominação parestatal deixa claro que tais entidades não se confundem com o Estado, coexistindo paralelamente com ele.
Noutro sentido, há quem sustente não ser possível atribuir ao ente público qualquer responsabilidade pela prática de crime. Dispõe Mahmoud (2008, p. 279), nesse sentido, que “nunca um ente público pode ter como interesse, nem pode se beneficiar de uma conduta criminosa”. E, com o fito de justificar sua conclusão, externa:
Antes, a Administração Pública submete-se à disciplina do art. 37 da Constituição Federal, que impõe o respeito aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Ademais, destaca a doutrina o princípio da supremacia do interesse público, que não pode ser confundido com o atendimento das aspirações da maioria. Desta forma, com a vênia devida dos que pensam em sentido diverso, deve prevalecer à oposição à responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público (MAHMOUD, 2008, p. 279).
Tem-se conhecimento que nos processos de nº 200204010372656/SC, nº 200004010159253/SC e nº 200004010891195/SC, alguns municípios foram apontados pela prática de crimes ambientais, porém, as denúncias forma consideradas rejeitadas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região por motivos que precederam a análise da questão relativa à responsabilização penal da pessoa jurídica de direito público, atipicidade das condutas imputadas, e a questão não chegaram a ser discutida. O mesmo restou registrado de modo recente pelo Desembargador Paulo Afonso Brum Vaz que, ao rejeitar denúncia contra o Município de Paulo Lopes por atipicidade, manifestou-se referindo que:
O reconhecimento da atipicidade da conduta torna desnecessário o enfrentamento da questão relacionada com a possibilidade, ou não, de punição da pessoa jurídica de direito público em matéria de crime ambiental. A questão é complexa. Há entendimentos doutrinários consistentes em uma ou outra direção. Não há porque discuti-la em tese (BRASIL, 2006).
A doutrina, igualmente, caminha na discussão de questões quanto à possibilidade de responsabilização do ente público, como o fazem Santiago e Lobo (2008). Tais autores creem que é possível a aplicação do sursis processual ao ente estatal nos crimes ambientais.
Pode-se dizer que a probabilidade de acontecer suspensão condicional do processo criminal pela prática do delito ambiental já seria compreendida pelo disposto no art. 89 da Lei n. 9.099/95, mas o legislador ambiental percebeu por bem em mencionar expressamente no art. 28 da Lei n. 9.605/98 a aplicação do referidos benefícios aos delitos de menor potencial ofensivos nela previstos, com algumas modificações. As mudanças são por demais pertinentes, pois o caráter técnico do direito ambiental demanda providências na seara criminal diverso das existentes de maneira geral, uma vez que o objetivo principal da concessão do sursis processual ao infrator ambiental é propiciar a efetiva reparação do dano causado pela conduta delituosa.
Como dispõe Araújo:
O Estado de nossos dias, fruto da concepção de Estado do bem estar social, intervém direta ou indiretamente em uma infinidade de atividades de natureza econômica e social, produzindo quantidades expressivas de condutas potencialmente lesivas ao ambiente. As pessoas jurídicas de direito público movimentam orçamentos gigantescos e empregam milhões de pessoas para satisfazer necessidades coletivas das mais variadas espécies em áreas como as de transporte, comunicações, habitação, saneamento básico, biotecnologia, mineração, recursos hídricos, energia, defesa, além de inúmeras outras. Tais atividades, assim como as que são exercidas pelas pessoas jurídicas privadas, oferecem riscos ambientais, que devem ser controlados pelo ordenamento jurídico por meio de tutela penal (ARAÚJO, 2005, p. 01).
Em resumo entende-se que, das condições que são previstas na Lei n. 9.099/95 para que se tenha á concessão do sursis processual, a única aplicável às pessoas jurídicas de direito público é aquela consistente na reparação do dano, com a observação de que exclusivamente em casos excepcionais necessita ser extinta a sua punibilidade sob o pálio da impossibilidade da reparação do dano, eis que sempre presente a probabilidade de conversão da obrigação em perdas e danos.
Monografista do assunto, Santiago (2005, p. 18) intercede pela responsabilização criminal do ente público, já que entendimento contrário, no seu entender, representaria violação ao princípio constitucional da isonomia, mesmo porque ao ente público seriam aplicadas sanções de natureza administrativa e civil, “ao passo que a uma pessoa jurídica de direito privado, além de tais sanções, seria admissível ainda a imposição de uma pena”.
E, conduzindo a questão sob a ótica da publicidade e transparência, revela Araújo:
Muito mais importante do que infligir severas punições ao Estado é a possibilidade de se levar ao conhecimento da sociedade o reconhecimento pelo Poder Judiciário da prática de ilícitos criminais pelo Poder Público, especialmente com relação aos delitos que ofendem bens jurídicos tão caros à humanidade, como são os bens jurídicos ambientais. É a publicidade que se dá ao reconhecimento formal das condutas criminosas do Estado que permite fazer surgir na sociedade a irresignação necessária a que pressões democráticas surjam e determinem mudanças nos rumos da máquina pública, evitando assim a prática de novos delitos. Eis a essência do Direito Penal direcionado às pessoas jurídicas de direito público (Araújo, 2005, p. 12).
Nesse aspecto, o rol de sanções passíveis de aplicação aos entes coletivos em geral encontra-se inserido no artigo 21, da Lei 9605/98 que dispõe serem elas a multa, penas restritivas de direitos e prestação de serviços à comunidade.
Quanto a tais penas, prevalece na doutrina o entendimento de serem cabíveis a multa e a prestação de serviços à comunidade, embora haja vozes em sentido contrário ao argumento de que a primeira reverteria em favor do próprio Estado enquanto que a segunda traduziria um dever que já é inerente ao poder público.
No tocante à multa, destaca Alves (2009) que ela, na medida em que é revertido para o Fundo Penitenciário Nacional, consoante o disposto no artigo 49 do Código Penal, acaba por se tornar verdadeira prestação social, que reverte em proveito da população. Igualmente, quanto à prestação de serviços à comunidade, se em prol desta também se voltam às políticas públicas em geral, problema algum haveria em uma aplicação orientada segundo os fins da pena e de forma a guardar pertinência com a infração penal perpetrada.
Trata-se, pois, de tema árduo que, longe de encontrar pontos pacíficos de discussão, é, no entanto, de suma importância para uma maior e melhor tutela dos bens jurídicos coletivos no seio da sociedade de risco.
Observou-se, pelo até agora exposto, que as pessoas jurídicas têm sim, como muitos hoje também defendem capacidade de conduta, o que permite sustentar que a vontade de ação ou vontade de conduta não é exclusiva dos seres humanos, mas inteiramente aplicável aos entes coletivos, que se submetem, no entanto, assim como as pessoas físicas, às responsabilidades inerentes às condutas, inclusive a penal.
A função do Direito Penal é, inequivocamente, a proteção dos bens jurídicos essenciais aos cidadãos, tanto individual como coletivamente considerados, e sua orientação necessariamente deve voltar-se para a prevenção de ofensas a esses bens jurídicos.
Sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica, esta revela-se ser uma necessária opção para a boa tutela do ambiente, mesmo porque tem sido a pessoa jurídica aquela que pratica condutas mais nocivas por proporcionarem danos ambientais de uma maior magnitude. Notou-se, no entanto, que normalmente os argumentos contrários à tese da responsabilização penal da pessoa jurídica se prendem a pontos de ordem meramente dogmática, com relevo às inspirações individualistas sob as quais nasceram os princípios do garantismo penal e os conceitos jurídico-penais clássicos.
Os conceitos de culpabilidade são repensados e reformulados para envolver não apenas pessoas naturais, mas também as pessoas jurídicas. Deixa-se para trás a ideia de proteção a bens jurídicos concretos, palpáveis, determinados e intimamente ligados ao ser humano para abarcar a proteção de bens universais, indeterminados e, por vezes, distantes da ideia antropocêntrica.
Conclui-se ao final dessa pesquisa, à responsabilidade penal que envolve pessoas jurídicas de direito público, esta se impõe não somente em decorrência da necessidade de tratamento isonômico frente às pessoas jurídicas de direito privado, mas principalmente porque a imputação de pena à pessoa jurídica de direito público revela-se importante instrumento de controle das atividades do próprio Estado, o que, no entanto, pressupõe, para a boa defesa do bem jurídico coletivo penalmente tutelado, a aplicação de penas adequadas à pessoa jurídica infratora.
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Estudante de direito
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Rosiclerk Ottilo Cavassani. Crimes ambientais e a responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 ago 2020, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55124/crimes-ambientais-e-a-responsabilidade-penal-da-pessoa-jurdica-de-direito-pblico. Acesso em: 22 nov 2024.
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