RESUMO:O presente artigo aborda a configuração do crime de receptação culposa, utilizando-se de dados contidos no sistema “Alerta Celular”, desprezando hipóteses alternativas e diversas variáveis que podem interferir no caso concreto, desviando a condução e o entendimento do operador do Direito para muito longe da intenção delituosa alcançada pela figura penal do Art. 180,§ 3º do Código Penal Brasileiro, ampliando, assim, o debate em relação a sua aplicação.
Palavras-chave: Receptação Culposa. Alerta Celular. IMEI.
ABSTRACT: This article addresses the configuration of the crime of wrongful reception, using data contained in the “Cellular Alert” system, ignoring alternative hypotheses and several variables that may interfere in the specific case, diverting the conduct and understanding of the Law operator far from the criminal intention reached by the penal figure of Art. 180, § 3 of the Brazilian Penal Code, thus expanding the debate in relation to its application.
Keywords: Culpous Reception. Cell Alert. IMEI.
SUMÁRIO:1. Introdução – 2. Da busca pessoal e do conceito de “Fundada Suspeita”. 3. Das situações concretas relacionadas à verificação do IMEI, suas limitações e repercussões. 4. Das repercussões do direito civil e do consumidor em face do crime de receptação culposa. 5. Conclusão. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A presente reflexão se debruça sobre os limites de utilização de informações contidas em sistemas – bancos de dados – conhecidos como “Alerta Celular”, a fim de configurar o crime de receptação culposa de aparelhos celulares, sem que sejam obrigatoriamente observadas nuances, que podem se revelar da análise de casos concretos, desconfigurando o ilícito penal, quando apreciadas de maneira superficial pelo operador do Direito.
O trabalho analisa hipóteses que, dentro dos limites legais, resguardam a aplicação do Art. 180,§ 3º do Código Penal Brasileiro, fundamentalmente no que toca à legalidade da ação policial em contraponto a direitos individuais conferidos ao cidadão, bem como os problemas relacionados a esta temática, além das soluções possíveis para aplicação segura da Lei.
Repercutindo pontos como limites para a busca pessoal e conceito de “fundada suspeita”, passando pela sensível questão da devassa de dados contidos em dispositivos de telefonia móvel sem autorização judicial, o conteúdo da presente análise avança sobre temas relacionados ao International Mobile Equipment Identity – IMEI, a exemplo da sua clonagem, visitando ainda pontos relacionados a praticas comerciais informais e aspectos correlatos ao Código de Defesa do Consumidor.
Ao final, o texto humaniza e personaliza a aplicação da lei penal, contribuindo para evitar a elaboração desatenta de procedimentos descabidos, cuja gênese equivocada acaba por abarrotar o sistema criminal com demandas estéreis, consumindo recursos materiais e humanos de maneira equivocada.
2. DA BUSCA PESSOAL E DO CONCEITO DE “FUNDADA SUSPEITA”
Não há, nos dias atuais, como dissociar nossa vida dele. Os aparelhos de telefonia móvel, são ícones da sociedade moderna e, com o número crescente de smartphones habilitados pelas operadoras no Brasil, foram reveladas diversas questões jurídicas ligadas ao uso desses aparelhos, que, por aqui, já superou a marca de um smartphone por habitante e hoje conta com 230 milhões de celulares inteligentes ativos[1].
Como visto, os números relacionados à telefonia móvel são gigantescos, e, enquanto operador do direito, tenho me deparado frequentemente com ocorrências que trazem o que teoricamente funciona (ou pelo menos deveria funcionar) como ferramenta hábil no auxílio ao cidadão que teve seu celular furtado ou roubado, mas que, na prática, tem se transmutado em fonte de enganos jurídicos, os quais, invariavelmente, deságuam nos plantões policiais, para em seguida abarrotar as prateleiras dos Juizados Especiais Criminais, alargando o passivo desse tipo de celeuma para Juízes, Defensores e serventuários. A questão tem nome e sobrenome e se chama Alerta Celular.
Ocorrências envolvendo celulares “queixados”, termo usado no jargão policial para designar um celular que teve seu IMEI incluso no sistema Alerta Celular e posteriormente ativado como roubado/furtado, tem se multiplicado sem que se atente para alguns pontos determinantes e atinentes à questão, os quais passo a enumerar, sem ter a pretensão de exaurir o debate sobre o tema em discussão.
A primeira observação diz respeito ao tipo de procedimento adotado para que haja amparo legal na ação policia. Desta forma, conforme determina o artigo 244 do CPP, deverá haver fundada suspeita. Vejamos:
Artigo 244 – “A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar”.
Assim, para aqueles doutrinadores que tem a revista pessoal como meio de prova, resta claro que a “ausência de justificativa” pode tornar a prova adquirida, desta maneira, ilícita. Neste passo, Rogério Sanches aponta que, “a busca pessoal, ou revista pessoal, realizada no corpo da pessoa, tem por objetivo encontrar alguma arma ou objeto relacionado com a infração penal” e, segundo Guilherme Nucci, “a suspeita para a revista pessoal sem mandado judicial há de ser “fundada”, ou seja, baseada em elementos visíveis e concretos, passíveis de confirmação por testemunhas”.
Esclarecemos que, dentro do universo compreendido pela busca pessoal,está inserida a revista a veículos em geral, pastas, mochilas, malas, lanchas etc., restando excluídos deste hall os veículos que proporcionam abrigo para o indivíduo (trailer, boleia de caminhão, barco com cabine, etc.), os quais se inserem na modalidade de busca domiciliar. Assim, a fundada suspeita não deve basear-se apenas em critérios subjetivos, pois em virtude do caráter lesivo a direitos individuais, deve ser conduzida primordialmente pelo respeito ao princípio da legalidade, como visto em decisão do Supremo Tribunal Federal:
A “fundada suspeita”, prevista no art. 244 do CPP, não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. A ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente, um “blusão” suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder. Habeas corpus deferido para determinar-se o arquivamento do Termo[2].
Cabe pontuar que a expressão “fundada suspeita” é permeada de alto grau de subjetividade, além de não possuir definição legal, o que pode dar margem a interpretações duvidosas a fim de patrocinar condutas ilícitas, sendo intuitiva por natureza e juridicamente frágil, a não ser quando se ergue sob a materialidade da consolidação da “suspeita” traduzida em determinado comportamento que influi diretamente em sua formação, inadmitindo-se busca que não observe esta diferenciação, sob pena de caracterização de crime de abuso de autoridade que, de fato, irá aderir à conduta do agente policial, caso proceda à abordagem com base em uma opinião de quem se aborda, nas roupas que veste, por sua orientação sexual, pela cor da sua pele ou por estar numa região de periferia, tendo, entretanto, o abordado o dever legal de se identificar (informando nome completo, filiação e data de nascimento), cabendo exceção nos casos flagranciais, onde o suspeito tenha acabado de perpetrar o delito e se observem, naquele local ou áreas adjacentes, indivíduos que se enquadrem na descrição do autor, seja através de características físicas e/ou vestimentas.
Destarte, cabe, neste ponto, rememorar que a presente discussão versa tão somente sobre a possibilidade de verificação do IMEI do aparelho celular em decorrência de abordagem de rotina e busca pessoal no indivíduo abordado, ou seja, fora do escopo dedicado a um estado flagrancial, no qual instrumentos e objetos relacionados ao crime podem e devem ser apreendidos, incluindo-se aparelhos celulares.
Neste diapasão, como não extravasar o limite da busca pessoal do indivíduo sob fundada suspeita, obrigando-o ou compelindo-o a informar a Identificação Internacional de Equipamento Móvel (International Mobile Equipment Identity – IMEI) de seu aparelho de telefone celular a fim de saber se o mesmo foi objeto de queixa e respectivo registro positivo no banco de dados do Alerta Celular?
Entendo que a referida verificação vai além da busca pessoal e que, ao aproximar-se de subjetivismos, incrementa-se à possibilidade de caracterização de crime de abuso de autoridade ou discriminação de todo gênero e espécie que podem compreender desde a violência gratuita, através de agressões, abusos e humilhações físicas e morais, além de outros procedimentos inoportunos. Hely Lopes Meireles cita que abuso de autoridade é gênero, do qual são espécies o desvio de finalidade e o excesso. O excesso de poder torna o ato arbitrário, ilícito e nulo, razão pela qual reiteramos que a busca pessoal só é autorizada diante de uma suspeita tangível e fundamentada em algo concreto.
Assim, em um caso real de abordagem policial que convirja para esta situação fática, observo alguns caminhos possíveis para a sua resolução, minimizando os riscos de que o policial incorra no crime tipificado na Lei 4.898/65.
3. DAS SITUAÇÕES CONCRETAS RELACIONADAS À VERIFICAÇÃO DO IMEI, SUAS LIMITAÇÕES E REPERCUSSÕES
A primeira delas e mais óbvia é que o próprio possuidor do aparelho celular permita, espontaneamente, a quem está procedendo à busca o acesso ao IMEI, seja através da numeração gravada no chassi do aparelho (no compartimento da bateria) ou pela da inserção do código *#06# nos casos em que a bateria é incorporada ao aparelho, formando peça única, não permitindo sua remoção, existindo ainda a hipótese de apresentação do documento fiscal de aquisição e embalagem do aparelho, onde também constam apostos os dados relativos ao mesmo, dentre os quais o IMEI.
E, caso o possuidor não permita acesso ao aparelho celular, qual a atitude que se espera do policial? Antes de gerar polêmicas desnecessárias, é preciso compreender que os aparelhos celulares são muito mais que meros telefones, agregando inúmeros aplicativos e funções, dentre os quais os de mensagem instantânea, tais como Whatsapp, Viber, Line, Wechat, Telegram, BBM, SnapChat, etc., todos com as mesmas funcionalidades de troca de mensagens, fotos, vídeos e documentos, os quais, após baixados, ficam arquivados automaticamente no aparelho celular, armazenados na memória do telefone.
Hodiernamente o acesso a aparelho de telefonia móvel do tipo smartphone possibilita não só o conhecimento da lista dos números discados e chamadas recebidas pelo seu usuário, mas também a visualização de dados contidos em sua agenda telefônica, além de outros os mais diversos, ai compreendidos os já mencionados arquivos de imagem, som, planilhas, documentos, e-mails, ou seja, informações diversas compiladas em um verdadeiro dispositivo de armazenamento que, por acaso, também realiza chamadas telefônicas.
Diante da realidade imposta, a 6ª Turma do STJ – Superior Tribunal de Justiça decidiu, por unanimidade, em sede de Recurso Ordinário[3] (art. 105, II, “a”, da CF) que: “Ilícita é a devassa de dados, bem como das conversas de WhatsApp, obtidas diretamente pela polícia em celular apreendido no flagrante, sem prévia autorização judicial”, ou seja, à luz da Carta Magna, é garantia fundamental e direito maior do indivíduo, a inviolabilidade dos dados de aparelho celular, bem como a interceptação de e-mail, cartas, mensagens e conversas telefônicas, sendo inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, tal qual ordena o inc. XII do art. 5º de nossa Constituição Federal.
Portanto, infere-se que, se eivada de ilicitude a devassa telefônica de aparelho apreendido por oportunidade de prisão em flagrante sem ordem judicial, maior proibição se impõe quando realizada por ocasião de meras abordagens policiais em situações de rotina, sendo indiscutível, pois, que a ordem para o desbloqueio compulsório do celular com o fito de verificação de seu IMEI, manuseio e possível devassa de dados do aparelho, sem autorização do seu possuidor, é terminante proibida e ilícita, sob pena de se afrontar a lei maior (CF/88), bem como legislação infraconstitucional, a exemplo da Lei 9.296 de 96, conhecida como a Lei da Interceptação Telefônica. Neste caso, resguardando-se direitos e garantias fundamentais, resta à autoridade de polícia judiciária, conhecendo da ocorrência, instaurar procedimento preliminar de investigação e/ou inquérito policial, encaminhando ao juízo competente representação a fim de que se tenha acesso aos dados/conteúdo do aparelho (especificamente ao seu IMEI), e, após deliberação judicial procedente, conduzir os demais atos no bojo do procedimento inquisitorial, inclusive intimação da vítima (nos casos em que o equipamento tenha sido roubado ou furtado) para que, existindo suspeito, proceda com o reconhecimento fotográfico deste, encetando outras diligências que julgar necessárias, para só então alcançar o relatório final com seus enquadramentos legais, alinhando-se, a depender do caso concreto, com os tipos penais de roubo, furto, receptação, inclusive em sua forma culposa ou, sendo as investigações inconclusivas, pugnar pelo seu arquivamento.
Desta forma, superado este primeiro ponto, cabe adentrar em outro questionamento com relação ao sistema Alerta Celular, a saber, o fato deste não permitir que o cidadão, antes de adquirir o aparelho, consulte diretamente sua base de dados objetivando afastar ou dirimir qualquer dúvida a respeito da condição do mesmo, decidindo só a partir de então pela sua aquisição ou não, ou seja, apesar do usuário poder efetuar o cadastramento de um aparelho celular a fim de que seja possível gerar um alerta, estranhamente não lhe é facultada a consulta a lista dos IMEIS cadastrados na base do sistema, deixando a ferramenta a desejar neste particular, cabendo aqui a crítica.
Atentemos para o fato de que, pelo menos no Estado de Pernambuco, somente policiais e pessoas ligadas à área de segurança possuem acesso ao sistema e consequente consulta ao seu respectivo banco de dados através do IMEI, gerando resultados negativos ou positivos (os quais podem indicar furto ou roubo), não tendo o cidadão comum possibilidade de realizar essa checagem no momento da aquisição de um aparelho usado, o que, como já mencionado, poderia sem dúvida ser um fator decisivo para a não realização da operação, a exemplo do banco de dados relativos a automóveis, o qual é consultado pelo cidadão através dos mais diversos meios – inclusive utilizando aplicativos para celular – definindo assim pela aquisição do bem diante de um resultado negativo para furto ou roubo.
Destacamos, sob esse ângulo, que o Estado não deve tutelar apenas os deveres impostos aos cidadãos, mas tem também a obrigação de pensar meios para amparar seus direitos, responsabilidade que, nos termos das questões levantadas pelo presente artigo, não é cumprida. Atualmente, no caso dos celulares “queixados”, o Estado empenha-se apenas em reprimir, gerando, ao utilizar o rigor da Lei, estatísticas policiais positivas, sem, entretanto, preocupar-se em municiar e cercar de meios e condições que afastem uma aquisição indesejada àqueles que pretendem, com boa fé, adquirir um aparelho celular usado.
Torna-se ainda imperativo afirmar que a data do registro do BO pela vítima que teve seu aparelho celular roubado, furtado ou extraviado não se confunde com a data em que esta cadastrou o aparelho no sistema Alerta Celular, tampouco com a data em que o sistema será ativado pela mesma quando da ocorrência de um sinistro, ou seja, muitos usuários do Alerta Celular imaginam que o simples registro da ocorrência em BO automaticamente aciona o alerta do aparelho, o que absolutamente não é verdade. Assim, é perfeitamente plausível que, entre a data do registro do BO e a ativação do alerta, transcorra grande lapso temporal, dias, meses e até anos, e, obviamente, dentro desse período, estando o aparelho celular roubado/furtado/extraviado, sem o devido acionamento do alerta e, por conseguinte, ausente qualquer restrição em relação ao mesmo, a compra, venda ou troca do aparelho compreendida também neste ínterim, aos olhos do Alerta Celular, dá-se de maneira regular, autorizando a sua negociação.
Ademais, examinamos casos, nos plantões policiais, onde o IMEI consta como “positivo” para o Alerta Celular em razão de roubo, furto ou extravio, tendo sido o aparelho recuperado e negociado posteriormente, sem as devidas cautelas mínimas, quais sejam, baixa no sistema de alerta e confecção de BO complementar que documentasse o fato (recuperação de aparelho celular), podendo ensejar uma responsabilização criminal ao adquirente de boa fé por conduta omissiva que não lhe toca.
Portanto, existem celulares cadastrados na base de dados do Alerta Celular que foram recuperados após terem sido furtados, roubados ou extraviados e, posteriormente, comercializados sem que tivessem os respectivos registros da ocorrência baixados pelos antigos proprietários, ocasionando um “falso positivo”. Tal conduta pode ainda se configurar dolosa quando se intenta fraudar companhias seguradoras que trabalham com a modalidade de sinistros desses aparelhos, situação que desnatura, a princípio e, irreparavelmente, a aplicação do tipo penal consolidado no Art. 180, § 3º do CPB com a conduta de quem os adquire, devendo, pois, e por tais razões, serem verificadas também essas hipóteses antes de adequar a norma penal ao fato concreto.
Para além das situações acima descritas, iremos nos deparar com outra possibilidade ainda mais espinhosa, a clonagem de aparelhos celulares. Aqui cabe uma observação preliminar e crucial: No Brasil, o funcionamento de aparelhos com o mesmo IMEI é possível porque não se exige a numeração exclusiva, existindo celulares diferentes com a mesma identificação.
Imperioso pontuar que este detalhe interfere diretamente nos registros do Cadastro de Estações Móveis Impedidas – CEMI, banco de dados dedicado à inserção pelas operadoras dos IMEIS gravados com queixa de roubo, furto, perda ou extravio (portanto bloqueados), devendo a vítima solicitar à sua respectiva operadora o bloqueio do aparelho para impedir sua utilização, de forma indevida, na rede nacional de telecomunicações, por qualquer outro usuário.
Assim, há aparelhos desbloqueadores de IMEI fabricados na China e na Coréia do Sul, obtidos no Paraguai por cerca de US$ 350 (cerca de R$ 1.130), que efetuam a supressão do código registrado no CEMI, fazendo com que o sistema reconheça novamente o celular e libere o seu funcionamento.
Portanto, é fato que o IMEI do aparelho adquirido pode ser adulterado antes de ser vendido, induzindo o comprador em erro, sem que este vislumbre a possibilidade de estar na posse de um aparelho roubado/furtado, passível de bloqueio pela Agencia Nacional de Telecomunicações – ANATEL, ou, em via reversa, que tem seu IMEI regular “clonado” em um aparelho roubado/furtado, havendo, em ambos os casos, dois celulares com o mesmo IMEI, passíveis de bloqueio.
As estatísticas apontam que o Brasil possui hoje 8,2 milhões de aparelhos bloqueados registrados no CEMI. O cadastro centraliza informações de todas as operadoras, em um esforço para impedir o uso de celulares de forma irregular, no entanto, o desbloqueio criminoso acaba reduzindo a eficácia do bloqueio feito em decorrência de denúncia de roubo, furto ou perda[4].
Nesse diapasão, afirmo que, na esmagadora maioria dos casos, as vítimas de furto/roubo de aparelhos de telefonia móvel não efetuam o bloqueio do IMEI junto a sua operadora, o que possibilita a sua livre utilização, mesmo após ter sido “queixado”. Ocorre que o referido bloqueio é compulsório, conforme determinação do art. 8º, inciso VII, alínea “a” da Resolução n° 477 de 7/8/2007 da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), que atribui como dever do usuário de SMP (Serviço Móvel Pessoal) comunicar à operadora de serviços de telefonia móvel o roubo, furto ou extravio de aparelhos de telefone celular[5].
Assim sendo, bloqueado o aparelho através da inclusão do IMEI no CEMI – estando as informações sobre impedimento disponíveis para consulta em até 72 horas, a partir da solicitação de bloqueio - restará o mesmo inservível para realizar e receber ligações (salvo na possibilidade já mencionada de adulteração do International Mobile Equipment Identity – IMEI), sendo possível, nos casos de recuperação, mediante comprovação pelo solicitante da propriedade do aparelho de telefone celular, a solicitação de desbloqueio à mesma operadora que o realizou. Atente-se que o IMEI está visível na nota fiscal da compra do telefone, na etiqueta colada no aparelho, que é avistada ao retirar-se a bateria (nos casos em que essa remoção é possível), ou ainda (nos casos das baterias blindadas) ao digitar, no teclado do referido equipamento, o código *#06#.
Nesse contexto, surgiu o projeto Celular Legal[6], que tem por objetivo fortalecer o combate a celulares adulterados, roubados e extraviados e inibir o uso de aparelhos não certificados pela Anatel, ou seja, desde maio de 2016, o consumidor pode solicitar o impedimento do seu aparelho móvel que tenha sido roubado, por meio da central de atendimento das operadoras ou diretamente nas Delegacias de Polícia dos Estados que já aderiram ao projeto, cabendo destacar que os aparelhos hoje incluídos na lista nacional de terminais irregulares por roubo, furto ou extravio estarão impedidos de acessar as redes móveis nacionais.
Diante da problemática posta, não se pode tratar o assunto em tela de forma leviana, sem que sejam analisadas as várias vertentes e possibilidades que produzem desalinhamento com a prática criminosa prevista pelo § 3º do Art. 180 do Código Penal (receptação culposa), sendo esta, para além dos pontos trazidos no presente artigo, por si só de difícil caracterização.
4. DAS REPERCUSSÕES DO DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR, EM FACE DO CRIME DE RECEPTAÇÃO CULPOSA
Deixamos para o final o aspecto mais básico a ser analisado diante do fato concreto, ou seja, em muitíssimos casos, simplesmente não há desproporção entre o valor informado como sendo o de aquisição do aparelho e aquele cobrado pelo mercado de usados, tampouco há como se falar da “condição” do vendedor como determinante para definição da forma de obtenção criminosa do produto, já que existem relatos, inclusive de aparelhos “queixados” adquiridos em grandes magazines. Nestes termos, mensurar a condição econômica humilde de quem negocia um aparelho celular usado configuraria um salvo conduto para inferências preconceituosas.
Por consequência, não há como confundir preço baixo ou acessível com vil, como sói ocorrer. O preço vil obviamente não guarda correlação com a média praticada em aparelho de mesma marca, modelo e, importantíssimo, com a condição de conservação. Assim, revela-se totalmente factível, analisada principalmente esta última condição, a aquisição de um aparelho celular por R$ 50,00 ou mesmo R$ 30,00, sem que possa lhe atribuir como “vil” o preço, não possuindo tal fato o condão de comprometer a negociação, presumindo-a idônea e não se reputando o objeto obtido por meio criminoso.
Ainda na seara das práticas comerciais informais, cabe aduzir que se aperfeiçoa o contrato verbal de compra e venda de bem móvel com o ajuste acerca do objeto e do preço e transfere-se a propriedade com a tradição, conforme dicção do art. 482 c/c art. 1.267, ambos do Código Civil Brasileiro, não havendo, pois, a possibilidade de exigir de pessoa física, que oferta e vende algum produto, emissão de nota fiscal ou qualquer outro documento fiscal ante a total inexigibilidade legal neste sentido, sendo exatamente essa a esmagadora modalidade de transação comercial onde o bem objeto da transação é um aparelho celular, sem mencionar aqui os inúmeros casos de simples troca não onerosa entre produtos, conhecida como escambo.
Assim, se estamos diante da compra equivocada de um aparelho irregular, é importante saber que o Código de Defesa do Consumidor (CDC – Lei nº 8.078/1990) protege a transação, garantindo os direitos do adquirente de boa fé, lembrando que, nas compras fora do estabelecimento comercial (pela internet, por telefone), o consumidor tem um prazo de sete dias, do ato de recebimento do produto, para exercer seu direito de arrependimento e devolver o mesmo. Por fim, destaque-se que, nos casos de venda de produtos adulterados/falsificados, a responsabilidade poderá ser atribuída também ao comerciante (art. 13º CDC).
Para compras feitas no estabelecimento comercial, não há direito de arrependimento. Porém, o fornecedor responde pela venda de produtos impróprios para o consumo, tais como produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação.
O prazo que o consumidor tem para reclamar no fornecedor é de 90 dias a contar da data da compra (para vícios aparentes) ou da data do conhecimento do defeito (para vícios ocultos). Nos casos em que o IMEI informado está impedido por perda, roubo ou furto pela sua inclusão no Cadastro de Nacional de Aparelhos Móveis Roubados, somente o solicitante do impedimento pode requisitar o desbloqueio, sendo imprescindível o contato do consumidor com a empresa de telefonia móvel.
Caso o bloqueio por roubo, furto ou extravio não tenha sido solicitado pelo consumidor, ele deve entrar em contato com quem lhe vendeu o equipamento e buscar a troca e/ou ressarcimento do valor pago pelo aparelho celular.
5. CONCLUSÃO
Aplicar o Direito ao caso concreto não é ser autômato, simplesmente alinhando o fato ao dispositivo penal, ao contrário, significa analisar o fato e, com inteligência, dentro dos limites legais, humanizar e personalizar a sua aplicação, resguardando fundamentalmente a integridade moral dos tutelados e evitando assim uma verdadeira epidemia de procedimentos descabidos, cuja gênese equivocada, acaba por abarrotar o Judiciário de demandas estéreis, absorvendo desnecessariamente energia de todo o sistema criminal, ai compreendidos os advogados, técnicos e analistas judiciários e do Ministério Público, Oficiais de Justiça, Defensores Públicos, membros do parquet, magistrados e operadores do Direito e geral.
Por fim, é preciso reafirmar que as hipóteses lançadas no presente trabalho não esgotam, nem pretendem esgotar a discussão sobre os limites impostos aos operadores do Direito a respeito do tema, mas sim auxiliar na tomada de decisão, trazendo à tona algumas nuances que podem desconfigurar por completo uma análise mais rasa sobre casos concretos envolvendo aparelhos celulares ditos “queixados”, desviando a condução e o entendimento para muito longe da intenção delituosa contida e alcançada pela figura penal da receptação culposa, ficando aqui um alerta ao Alerta Celular.
6. REFERÊNCIAS
CUNHA, Rogério Sanches. Processo penal: doutrina e prática. São Paulo: JusPodivm.
NUCCI, Guilherme de Souza. Disponível em: https://www.facebook.com/guilhermenucci2.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 38ª Ed. 2012.
7. NOTA SOBRE O AUTOR
Fábio Luiz Rebelo de Carvalho é Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, Pós Graduado em Inteligência Policial pela UNIBRA e Delegado de Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
[1]30ª Pesquisa Anual de Administração e Uso de Tecnologia da Informação nas Empresas, realizada pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP)
[2] (Habeas Corpus nº 81.305-4. Relator (a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 13/11/2001, DJ 22-02-2002)
[3]Habeas Corpus nº 51.531, oriundo do Estado de Rondônia,
[4] Dados fornecidos pelo Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel e Pessoal (SindiTelebrasil)
[5]https://consultaaparelhoimpedido.com.br/public-web/welcome
[6]https://www.anatel.gov.br/celularlegal/
Bacharel Em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, Pós Graduado em Inteligência Policial pela UNIBRA, Delegado de Polícia Civil no Estado de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Fábio Luiz Rebelo de. Receptação culposa de aparelhos celulares (um alerta ao alerta celular) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 ago 2020, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55125/receptao-culposa-de-aparelhos-celulares-um-alerta-ao-alerta-celular. Acesso em: 22 nov 2024.
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