O tema da inadmissibilidade das provas ilícitas no processo penal frequenta, com recorrência, as sessões dos Tribunais brasileiros, sendo, ainda, objeto de intensas discussões no campo doutrinário.
Para contextualizar, vale mencionar que a prova no processo penal evoluiu muito nos últimos séculos, bastando para isto citar exemplos trazidos pela doutrina de como, antigamente, àquela era utilizada na seara criminal:
As principais provas eram: a prova da água fria: jogando o indiciado na água, caso submergisse era inocente, caso viesse à tona, era culpado. A prova do ferro em brasa: o pretenso culpado, com os pés descalços, teria de passar por uma chapa de ferro em brasa; caso nada lhe acontecesse, era inocente, porém, se queimassem os seus pés, a culpa era manifesta. A prova do judicium affae: o indivíduo deveria engolir de uma só vez grande quantidade de alimento, que era farinha de trigo. Se não conseguisse, era culpado. Prova do pão e queijo: acusado deveria engolir um pedaço de pão e queijo, em não conseguindo era culpado. Essa ordália era aplicada aos velhos, jovens, crianças, mulheres, doentes: destinava-se especialmente aos suspeitos de furto. Prova da cruz: quando alguém fosse morto em rixa, escolhiam-se sete rixadores, que eram levados à frente de um altar; sobre este se colocavam duas varinhas, uma das quais marcadas com uma cruz e ambas envolvidas em pano. Em seguida tirava-se uma delas; se saísse a que não tinha marca, era o sinal de que o homicida era um dos presentes. Repetia-se a experiência em relação a cada um deles, até sair à vara com a cruz, que se supunha apontar o criminoso.
A par disso, a Constituição Federal de 1988 enquanto norma fundamental garantidora de direitos fundamentais resolveu estipular que:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
No mesmo norte, o Código de Processo Penal (CPP) advertiu o seguinte:
Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
Interpretando estes dispositivos a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece que, de fato, são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos:
Interceptações telefônicas realizadas em primeiro grau de jurisdição. Operação Vegas. Surgimento de indícios do envolvimento de senador da República, detentor de prerrogativa de foro, em fatos criminosos em apuração. Competência do STF para processar e julgar originariamente a causa (...). Necessidade de imediata remessa dos autos à Corte. Não ocorrência. Usurpação de sua competência constitucional configurada. Prosseguimento das investigações em primeiro grau. Tentativa de arrecadar maiores elementos de informação por via oblíqua sem a autorização do STF. Violação do princípio do juiz natural (...). Operação Monte Carlo. Surgimento de indícios do envolvimento de detentor de prerrogativa de foro nos fatos em apuração. Sobrestamento em autos apartados dos elementos arrecadados em relação ao referido titular de prerrogativa. Prosseguimento das diligências em relação aos demais investigados. Desmembramento caraterizado. Violação de competência exclusiva da Corte, juiz natural da causa. Invalidade das interceptações telefônicas relacionadas ao recorrente nas operações Vegas e Monte Carlo e das provas diretamente delas derivadas. Teoria dos frutos da árvore envenenada (fruit of the poisonous tree). [RHC 135.683, rel. min. Dias Toffoli, j. 25-10-2016, 2ª T, DJE de 3-4-2017.]
Nada obstante, ainda é frequente a tentativa de condenação no campo criminal a partir de provas ilícitas, daí porque chegou ao Supremo o Recurso Extraordinário (RE) nº 1.116.949/PR, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.041).
Segundo narra o STF, no caso concreto, um policial militar, lotado na Coordenadoria de Defesa Civil do Paraná, durante o expediente, deixou no protocolo geral na sede do governo estadual uma caixa para remessa pelo serviço de envio de correspondência da administração pública. Os servidores responsáveis pela triagem, desconfiados do peso e do conteúdo da embalagem, abriram o pacote e constataram a existência de 36 frascos com líquido transparente. Ficou constatado que os frascos continham ácido gama-hidroxibutírico e cetamina, substâncias entorpecentes sujeitas a controle especial.
Assim, de acordo com o Supremo, o juízo do Conselho Permanente da Justiça Militar de Curitiba condenou o policial a três anos de reclusão, substituídos por penas restritivas de direitos, em razão da prática do crime de tráfico de drogas cometido por militar em serviço. O Tribunal de Justiça do Paraná (TJ/PR) considerou a prova lícita e manteve a condenação.
A questão, portanto, chegou à Corte Suprema via recurso extraordinário – o qual recebeu a chancela de repercussão geral. Em agosto de 2020, a maioria dos Ministros entendeu que a abertura da correspondência não observou as cautelas legais nem foi precedida de autorização judicial, a indicar que a prova que fundamentou a condenação foi incompatível com a garantia do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas (artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal).
Ainda, o STF decidiu que o atual regulamento dos Correios (Lei Federal nº 6.538/1978) prevê que não constitui violação de sigilo da correspondência postal a abertura de carta, entre outras hipóteses, que apresente indícios de conter substância proibida, mas prevê que a abertura será feita obrigatoriamente na presença do remetente ou do destinatário, o que não ocorreu no caso.
Por fim, o Supremo ressaltou que, após a Constituição Federal de 1988, o sigilo de correspondência deve também ser lido à luz dos direitos previstos nos tratados de direitos humanos e, consequentemente, na interpretação dada a eles pelos órgãos internacionais de aplicação. Para tanto citou que o Pacto de São José da Costa Rica prevê que ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação e que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos estabelece garantia idêntica.
Ao julgar o caso com repercussão geral, o STF fixou a seguinte tese referente ao Tema 1.041: “Sem autorização judicial ou fora das hipóteses legais, é ilícita a prova obtida mediante abertura de carta, telegrama, pacote ou meio análogo”. Nessa senda de ideias, é importante pontuar o aceno que o Supremo faz no sentido da reafirmação dos direitos e garantias fundamentais dos acusados à luz de um garantismo penal.
Se é certo que deve haver um combate incessante e implacável aos desvios de conduta que infrinjam as normas penais, de outro também o é que o Estado possui limites no exercício desse poder punitivo, sendo os direitos e garantias fundamentais um arcabouço protetivo inquebrantável dos cidadãos.
Daí exsurge a necessidade de o Estado aperfeiçoar os seus mecanismos persecutórios a fim de ajustá-los aos ditames constitucionais, visando a punir os transgressores de modo efetivo e sem a mácula de nulidades processuais que venham a gerar futuras injustiças e impunidades no campo criminal.
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