ALICE ARLINDA SANTOS SOBRAL[1]
(coautora)
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a possibilidade de existência do habeas corpus coletivo no direito pátrio, buscando bases na Constituição Federal, legislação infraconstitucional, doutrina e, mais recentemente, jurisprudência. Neste mesmo passo, busca-se mostrar que a utilização do habeas corpus coletivo é um meio de acesso à justiça àqueles que mais carecem da tutela jurisdicional, já que seu aceite rompe barreiras estruturais que impedem muitos custodiados de terem acesso à jurisdição. Por fim, se fará uma análise dos benefícios que vão além daqueles auferidos pelos pacientes, como economia, celeridade e eficiência do sistema judicial brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Habeas corpus coletivo. Acesso à Justiça.
ABSTRACT: This article aims to analyze the possibility of the existence of collective habeas corpus in Brazilian law, seeking bases in the Federal Constitution, infraconstitutional legislation, doctrine and, more recently, jurisprudence. In this same step, we seek to show that the use of collective habeas corpus is a means of access to justice for those who most lack jurisdictional protection, since its acceptance breaks structural barriers that prevent many custodians from having access to the jurisdiction. Finally, an analysis will be made of the benefits that go beyond those received by patients, such as economy, speed and efficiency of the Brazilian judicial system.
KEYWORDS: Collective Habeas Corpus. Access to justice.
SUMÁRIO: Introdução. 1. A posição tradicional do habeas corpus. 2. Viabilidade jurídica do habeas corpus coletivo. 2.1 Da tendência moderna de defesa coletiva de direitos. 2.2 Da convenção Americana de Direitos Humanos. 2.3 Das disposições no Código de Processo Penal Brasileiro. 2.4 Do resgate à doutrina brasileira do habeas corpus. 2.5 Da analogia ao mandado de injunção coletivo. 2.6 Da calamidade do sistema prisional brasileiro e o estado de coisas inconstitucionais. 2.7 Do direito comparado. 3. As barreiras ao acesso à justiça. 3.1 Das barreiras econômicas. 3.2 Das barreiras culturais. 3.3 Da barreira temporal. 3.4 Da barreira geográfica. 4. O habeas corpus coletivo como instrumento de acesso à justiça e seus benefícios. 5. Considerações finais. 6. Referências.
INTRODUÇÃO
O remédio constitucional do habeas corpus tem esteio constitucional garantido. Contudo, sua modalidade coletiva não foi prevista positivamente pelo constituinte originário, como foi feito com o mandado de segurança coletivo e outros instrumentos de defesa dos direitos difusos e coletivos. Assim, passou-se a questionar a perspectiva de utilizar o habeas corpus de maneira coletiva, a fim de garantir direitos de grupos maiores de pacientes, baseando-se numa interpretação sistemática da Constituição Federal e regramentos insertos no Código de Processo Penal, tendo o próprio STF já aplicado o referido instituto, conforme se verá adiante.
Nesta linha, é observável que a aplicação do habeas corpus coletivo serve como instrumento eficaz, eficiente e hábil para garantir o direito ao acesso à justiça, dado seu caráter supraindividual, o que quebra barreiras históricas que impedem os cidadãos em geral e certos grupos (especialmente os presos) de acessarem dignamente o Poder Judiciário, com enfoque na seara penal.
Ademais, a possibilidade de aplicação do habeas corpus coletivo promete resultados favoráveis que vão além da defesa da liberdade das pessoas de maneira coletiva, como obtenção de eficiência na prestação jurisdicional, celeridade processual, diminuição de acúmulo de acervo processual e afins.
Deste modo, objetiva-se, com este trabalho, demonstrar que o habeas corpus coletivo possui fundamento na sistemática processual brasileira e, a partir disso, é um instrumento eficaz e capaz de romper as barreiras do acesso à justiça.
No presente trabalho, incialmente se fará uma análise da posição tradicional do habeas corpus no direito brasileiro, de modo a observar seus conceitos e aplicações já admitidas e pacificadas. Em seguida, se apresentará os diversos fundamentos que dão supedâneo à existência do habeas corpus coletivo. Em terceiro plano, se abordará as espécies de barreira ao acesso à justiça e, em seguida, se apresentará os o habeas corpus coletivo como instrumento de acesso à justiça e seus benefícios.
Por fim, em conclusão, o artigo englobará a essência dos tópicos anteriores, de modo a consolidar a hipótese incialmente proposta.
1. A POSIÇÃO TRADICIONAL DO HABEAS CORPUS
Antes de se tratar efetivamente nos fundamentos do habeas corpus coletivo, é necessário fazer uma análise do instituto em sua espécie tradicional, isto é, o habeas corpus individual, sobre o qual não piram controvérsias, já que a sua modalidade coletiva é consequência de sua concepção individual.
O termo habeas corpus, conforme explica Mirabete (2000, p. 709), significa “tome o corpo”, tome a pessoa presa e apresente-a ao Juiz, sendo, hodiernamente, compreendida como ordem de liberação.
Não há consenso sobre a origem do habeas corpus. A esse respeito, ensina Bulos (2015, p. 738) que alguns acreditam que suas origens provêm do instituto romano interdictum de libero homine exhibendo (que defendia o direito de ir e vir); outros mencionam seu nascimento em 1628, no Petition of Rights, que culminaria no Habeas Corpus Act, datado de 1679; mas, efetivamente, surge em 1215, na chamada Magna Charta Libertatum, concedida pelo famoso rei João Sem Terra.
No Brasil, o instituto do habeas corpus esteve presente na maioria dos momentos históricos, marcando presença em todas as constituições brasileiras, com a ressalva da Carta Imperial de 1824.
Segundo Lenza (2019, pág. 1959 e 1960),
No Brasil, a primeira manifestação do instituto deu-se em 1821, através de um alvará emitido por Dom Pedro I, pelo qual se assegurava a liberdade de locomoção. A terminologia ‘habeas corpus’ só apareceria em 1830, no Código Criminal. Foi garantido constitucionalmente a partir de 1891, permanecendo nas Constituições subsequentes, inclusive na de 1988, que, em seu art. 5.º, LXVIII, estabelece: ‘conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.
Em síntese da análise histórica e conceito constitucional vigente, o habeas corpus é uma espécie de remédio constitucional disposto a qualquer indivíduo que se ache ameaçado (ou efetivamente ofendido) em seu direito de liberdade de locomoção, por razões de ilegalidade ou abuso de poder.
Atualmente, o habeas corpus encontra previsão no art. 5º, LXVIII, da Constituição Cidadã de 1988, conforme visto na citação anterior. Além da previsão constitucional, também foi consignado no Código de Processo Penal, em seu livro III, título II, capítulo X.
No CPP, o habeas corpus foi inserto no livro destinado para recursos, embora possua natureza jurídica de ação autônoma de impugnação (AVENA, 2015, pág. 1.374).
A concepção tradicional e histórica do habeas corpus sempre se deu em sua modalidade individual, isto é, servindo apenas para um paciente específico, considerando que a interpretação literal dos dispositivos a ele pertinentes indicam sempre a singularidade daquele que sofre a ameaça ou coação da liberdade e, por essa interpretação, muitos negam a possibilidade de existência do habeas corpus coletivo, já que ultrapassaria a individualização do paciente e da coação ilegal.
Assim, diferente de outros remédios e ações constitucionais, o habeas corpus, até pouco tempo, era tido como remédio constitucional ou ação autônoma de impugnação de caráter estritamente individual, não havendo previsão expressa de sua modalidade coletiva no ordenamento jurídico pátrio.
Com o passar do tempo, o avançar da doutrina, a complexidade cada vez mais intensa das relações jurídicas entre cidadãos e estado e a necessidade de tutela coletiva de direitos, iniciou-se discussões sobre a possibilidade da existência do habeas corpus coletivo.
2. VIABILIDADE JURÍDICA DO HABEAS CORPUS COLETIVO
Como já sobredito, o habeas corpus tradicionalmente sempre teve viés individual, isto é, procedimentalmente, o habeas corpus costuma ser utilizado por apenas um paciente, visando tutelar o direito de locomoção de um único indivíduo.
No entanto, frente ao movimento necessário de tutela coletiva de direitos, a ciência jurídica deparou-se com o desafio de criar e adequar o habeas corpus coletivo. A esse respeito, é importante mencionar que o instituto de habeas corpus foi formado mediante um longo processo de mudança, precedentes, novas teses e mutações.
Inclusive, a ciência jurídica brasileira foi aquela que mais readequou o remédio heroico para suprir as demandas do plano fático. Essa forma elástica de tratar o habeas corpus, defendida por Rui Barbosa, é chamada de doutrina brasileira do habeas corpus e, por ela, o habeas corpus foi usado, por anos, como remédio constitucional hábil a tutelar diversos direitos fundamentais, e não apenas a liberdade de locomoção, conforme lembra Lenza (2019, pág. 1959 e 1960):
O habeas corpus foi inicialmente utilizado como remédio para garantir não só a liberdade física como também os demais direitos que tinham por pressuposto básico a locomoção. Tratava-se da chamada ‘teoria brasileira do habeas corpus’, que perdurou até o advento da Reforma Constitucional de 1926, impondo o exercício da garantia somente para os casos de lesão ou ameaça de lesão à liberdade de ir e vir
Assim, apresenta-se, adiante, os diversos fundamentos que sustentam a possibilidade de existência do habeas corpus coletivo no direito brasileiro.
2.1 DA TENDÊNCIA MODERNA DE DEFESA COLETIVA DE DIREITOS
É fato notório o desenvolvimento de uma forte tendência de tutela coletiva de direitos, a exemplo das ações civis públicas, mandado e injunção coletivos, as novas atribuições em direitos coletivos do Ministério Público e Defensoria Pública, a inovação da Constituição Federal ao prever diversos direitos coletivos e difusos e etc. Todo esse movimento, em suma, materializa os direitos de terceira geração.
Acompanhando esse desenvolvimento, a ciência processual teve de criar mecanismos a fim de tutelar coletivamente os direitos previstos. A defesa da existência do habeas corpus coletivo, defendida neste trabalho, vai nessa linha de dar uma resposta a necessidade de tutela coletiva de direitos.
Inclusive, esse foi um dos fundamentos apresentados pelo Ministro Relator do HC 141.641 / SP (BRASIL, 2018, pág. 16):
É que, na sociedade contemporânea, burocratizada e massificada, as lesões a direitos, cada vez mais, assumem um caráter coletivo, sendo conveniente, inclusive por razões de política judiciária, disponibilizar-se um remédio expedito e efetivo para a proteção dos segmentos por elas atingidos, usualmente desprovidos de mecanismos de defesa céleres e adequados.
Acompanhando esse movimento e nele encontrando supedâneo, o habeas corpus coletivo concretiza e oportuniza a defesa de direitos, frente a um clamor das coletividades carentes de jurisdição.
2.2 DA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Um segundo argumento que fundamenta o habeas corpus coletivo pode ser extraído do artigo 25, I, da Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, que informa o seguinte (BRASIL, 1992, n.p):
ARTIGO 25
Proteção Judicial
1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízos ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercícios de suas funções oficiais.
2. Os Estados-Partes comprometem-se:
a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;
b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e
c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competente, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.
Da análise deste dispositivo da Convenção Americana de Direitos Humanos, é patente o direito de qualquer indivíduo, dentro do Estado brasileiro, se valer de qualquer recurso efetivo perante o Judiciário para proteger direitos fundamentais. E mais: é dever do Estado signatário o acesso à justiça, mediantes esses recursos.
Com isso, nota-se uma imposição convencional de aceite da tutela coletiva de direitos via habeas corpus coletivo, mesmo que sem previsão legal específica, eis que a convenção, como norma de direito interno, já seria, em conjunto com os demais fundamentos, suficiente para permitir a existência do habeas corpus coletivo.
2.3 DAS DISPOSIÇÕES NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO
Um terceiro pilar na defesa do habeas corpus coletivo é a previsão existente no Código de Processo Penal de concessão da ordem de habeas corpus de ofício por qualquer autoridade competente para fazê-la, além da existência de dispositivo que permite a extensão dessa ordem concessiva àqueles que se encontrarem submetidos às mesas circunstâncias fáticas e jurídicas, o que, na prática, sustenta as facetas básicas do habeas corpus coletivo.
Essas duas previsões processuais encontram-se insertas nos artigos 654, § 2º e 580, ambos do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941, n.p):
Art. 654. O habeas corpus poderá ser impetrado por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério Público.
[...]
§ 2º Os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.
[...]
Art. 580. No caso de concurso de agentes (Código Penal, art. 25), a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros.
Ora, se a ordem de habeas corpus pode ser conhecida – e mais: estendida a outros pacientes – de ofício, sem rigidez quanto a pedido, instância e momento, não haveria razão para negar o direito de concessão da ordem para coletividades, desde que a coação ou ameaça de coação a abrangesse e que fosse possível identificar a coletividade com direito violado ou ameaçado, a fim de determinar o alcance da ordem.
O próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº 143.641 / SP, por meio do voto do relator do remédio, Ministro Ricardo Lewandowski, utilizou este como um dos argumentos para admissão do habeas corpus coletivo (BRASIL, 2018, pág. 18):
Nessa linha, destaco o art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal, que preconiza a competência de juízes e os tribunais para expedir, de ofício, ordem de habeas corpus, quando, no curso de processo, verificarem que alguém sofreu ou está na iminência de sofrer coação ilegal. A faculdade de concessão, ainda que de ofício, do writ, revela o quanto o remédio heroico é flexível e estruturado de modo a combater, de forma célere e eficaz, as ameaças e lesões a direitos relacionados ao status libertatis.
Indispensável destacar, ainda, que a ordem pode ser estendida a todos que se encontram na mesma situação de pacientes beneficiados com o writ, nos termos do art. 580 do Código de Processo Penal.
Esse também é o entendimento da grandes nomes da doutrina brasileira, tal como neste trecho de um parecer jurídico feito em nome da Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ, que tem como objeto a análise da possibilidade de existência do habeas corpus coletivo, subscrito por Sarmento, Borges e Gomes (2015, pág. 18):
Ora, se todo magistrado dispõe de competência para conceder de ofício ordem de habeas corpus, não há razão para insistir na defesa da tese de que o remédio somente pode ser veiculado judicialmente em sua versão individual. Se o próprio Judiciário, diante da impetração de habeas corpus em favor de pessoas determinadas, pode ampliar, por iniciativa própria, a extensão subjetiva da proteção à liberdade de locomoção -flexibilizando com isso o princípio da inércia da jurisdição -, por mais razões ainda se deve admitir que a tutela jurisdicional seja perseguida, desde o início, em termos coletivos.
Certamente este é um dos argumentos mais lógicos e convincentes quanto a possibilidade da utilização do habeas corpus coletivo.
2.4 DO RESGATE À DOUTRINA BRASILEIRA DO HABEAS CORPUS
Outra justificativa utilizada pelos defensores do habeas corpus coletivo já foi inclusive mencionado neste trabalho: a existência da doutrina brasileira do habeas corpus. Ou melhor: o resgate dessa doutrina, que prega a maleabilidade do writ para tutelar violações à liberdade de locomoção.
Esse foi um dos fundamentos apresentados pelo Ministro do STF, Ricardo Lewandowski, relator do HC 143.641 / SP (BRASIL, 2018, pág. 16):
Com maior razão, penso eu, deve-se autorizar o emprego do presente writ coletivo, dado o fato de que se trata de um instrumento que se presta a salvaguardar um dos bens mais preciosos do homem, que é a liberdade. Com isso, ademais, estar-se-á honrando a venerável tradição jurídica pátria, consubstanciada na doutrina brasileira do habeas corpus, a qual confere a maior amplitude possível ao remédio heroico, e que encontrou em Ruy Barbosa quiçá o seu maior defensor. Segundo essa doutrina, se existe um direito fundamental violado, há de existir no ordenamento jurídico um remédio processual à altura da lesão.
À toda a evidência, quando o bem jurídico ofendido é o direto de ir e vir, quer pessoal, quer de um grupo pessoas determinado, o instrumento processual para resgatá-lo é o habeas corpus individual ou coletivo.
E compartilhando deste mesmo pensamento, complementam Sarmento, Borges e Gomes (2015, pág. 12 e 13):
Logo no início de nossa trajetória constitucional republicana, influente corrente doutrinária, que se imortalizaria sob o nome de doutrina brasileira do habeas corpus, propôs sua utilização para a proteção do indivíduo contra qualquer tipo de violência ou coação que tivesse por origem ilegalidade ou abuso de poder, independentemente da existência de constrangimento corporal ou de afetação à liberdade de locomoção.
[...]
Pode-se identificar na doutrina brasileira do habeas corpus uma perspectiva pragmática: na ausência de instrumentos processuais específicos contra atentados a direitos individuais, ela pretendia ampliar o âmbito de aplicação do writ para assegurar a sua garantia.
Esse resgate à teoria, consolidada no país no século XX, pode-se concluir ser ela base sólida para a admissão do habeas corpus coletivo, eis que já foi endossada pelo STF e por grandes juristas, a exemplo de Rui Barbosa, mas, muito além disso, dá suporte histórico e estatal ao acolhimento de um remédio capaz de atender às necessidades de grupos coletivos ameaçados em sua liberdade ambulatorial.
2.5 DA ANALOGIA AO MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO
A Constituição Federal de 1988 previu um remédio inovador chamado “mandado de injunção”, que serve para suprir a falta de norma regulamentadora, a fim de viabilizar o pleno e integral dos direitos fundamentais.
Contudo, tal como o habeas corpus, o constituinte originário não consignou, positivamente, sua versão coletiva, a exemplo do mandado de segurança coletivo.
Com o tempo, em parte pela mesma necessidade de tutela coletiva de direitos, a sociedade e as relações jurídicas cada vez mais complexas e transindividuais, exigiu que se cogitasse, na seara doutrinária e jurisprudencial, o aceite do mandado de injunção coletivo, mesmo sem previsão constitucional ou infraconstitucional específica.
O Supremo Tribunal Federal, percebendo a necessidade de garantir a tutela coletiva de direitos, especialmente pela essencialidade dos direitos a serem resguardados (os fundamentais), aceitou, em 1994, a utilização da espécie coletiva do mandado de injunção, mesmo que sem previsão positiva no ordenamento jurídico pátrio, conforme lembrou o Ministro Ricardo Lewandowski, no julgamento do HC 143.241 / SP (BRASIL, 2018, pág. 15 e 16):
De forma coerente com essa realidade, o Supremo Tribunal Federal tem admitido, com crescente generosidade, os mais diversos institutos que logram lidar mais adequadamente com situações em que os direitos e interesses de determinadas coletividades estão sob risco de sofrer lesões graves. A título de exemplo, vem permitindo a ampla utilização da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), assim como do Mandado de Injunção coletivo. Este último, convém lembrar, foi aceito corajosamente por esta Corte já em 1994, muito antes, portanto, de sua expressa previsão legal, valendo lembrar o Mandado de Injunção 20-4 DF, de relatoria do Ministro Celso de Mello, em que este afirmou:
“A orientação jurisprudencial adotada pelo Supremo Tribunal Federal prestigia (...) a doutrina que considera irrelevante, para efeito de justificar a admissibilidade de ação injuncional coletiva, a circunstância de inexistir previsão constitucional a respeito (...)”.
Posteriormente, inclusive, foi editada a Lei n.º 13.300, de 23 de junho de 2016, que, em seu bojo, formalizou a decisão do STF e previu o mandado de injunção coletivo.
Do mesmo modo como ocorreu com o mandado de injunção coletivo, é possível estender o entendimento ao habeas corpus, permitindo sua espécie coletiva, principalmente por existir, neste caso, além do fundamento da necessidade de tutela coletiva de direitos, outros argumentos que atestam sua possibilidade, os quais estão sendo apresentados neste trabalho.
2.6 DA CALAMIDADE DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAIS
Embora o habeas corpus não sirva de remédio apenas para aqueles que se encontram segregados no sistema prisional, já que a tutela da liberdade de locomoção se entende a várias hipóteses, inclusive a preventiva, é fato que o writ em comento é, por excelência, o remédio mais viável e célere para garantir o direito das populações carcerárias.
Assim, na verificação da admissibilidade do habeas corpus coletivo, é essencial rememorar em quais condições se encontra o sistema prisional pátrio, já que, uma vez negada sua admissibilidade, relegará centenas de milhares de presos a um sistema de encarceramento falido.
Ante essa falência e constatação de graves violações de direitos no sistema prisional brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, em medida cautelar na ADPF 347, reconheceu o estado de coisas inconstitucionais no sistema penitenciário brasileiro, o que foi um importante marco na jurisprudência pátria (BRASIL, 2015, n.p).
O habeas corpus coletivo, como meio de proteção à liberdade de locomoção cerceada por violações de direitos, ilegalidades e abusos de poder, tem a capacidade processual de mitigar e auxiliar o Estado brasileiro na solução dessa grave crise do sistema prisional, que, neste caso, serve também como fundamento para admissão da espécie coletiva do writ.
2.7 DO DIREITO COMPARADO
Impasse semelhante ao brasileiro (quanto à admissibilidade ou não do habeas corpus coletivo) viveu a Argentina, há alguns anos. Lá, tal como aqui, o habeas corpus coletivo não possui previsão específica, o que, em tese, inviabilizaria sua existência.
A Suprema Corte argentina, contudo, julgou pela admissibilidade do instituto do habeas corpus coletivo, conforme indicou o Ministro Ricardo Lewandowski, no julgamento do HC 143.241 / SP (BRASIL, pág. 16 e 17):
Foi com semelhante dilema que se deparou a Suprema Corte argentina no famoso “caso Verbitsky”. Naquele país, assim como no Brasil, inexiste previsão constitucional expressa de habeas corpus coletivo, mas essa omissão legislativa não impediu o conhecimento desse tipo de writ pela Corte da nação vizinha. No julgamento em questão, o habeas corpus coletivo foi considerado, pela maioria dos membros do Supremo Tribunal, como sendo o remédio mais compatível com a natureza dos direitos a serem tutelados, os quais, tal como na presente hipótese, diziam respeito ao direito de pessoas presas em condições insalubres.
[...]
Vale ressaltar que, para além de tradições jurídicas similares, temos com a República Argentina também um direito convencional comum, circunstância que deve fazer, a meu juízo, com que o STF chegue a conclusões análogas àquela Corte de Justiça, de modo a excogitar remédios processuais aptos a combater as ofensas maciças às normas constitucionais e convencionais relativas aos direitos das pessoas, sobretudo aquelas que se encontram sob custódia do Estado.
Considerando a identidade das mesmas circunstâncias e a similaridade de ordenamentos jurídicos e regramentos internacionais, o caso argentino é mais um indicador da necessidade do aceito pleno do habeas corpus coletivo no direito pátrio.
3. AS BARREIRAS AO ACESSO À JUSTIÇA
As sociedades, quando organizadas em Estados soberanos, entregam a este ente fictício poderes, dentre eles, um dos mais importantes é oferta de jurisdição, com o objetivo de solucionar conflitos e evitar a autofagia social.
Com esse poder, surge para membro do Estado o direito de acessar os meios de oferta de jurisdição e, para o Estado, nasce o dever de ofertar esses meios, não causar embaraços e empecilhos desnecessários ao gozo desse direito.
A República Federativa do Brasil, alinhada a essa lógica, previu, em sua Constituição Federal de 1988, o direito ao acesso à Justiça e à assistência jurídica, em seu artigo 5º, incisos XXXV e LXXIV (BRASIL, 1988, n.p):
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
[...]
LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;
Apesar dessas previsões positivadas na Lei Maior, na prática, o direito de acesso à jurisdição (inafastabilidade jurisdicional) e à assistência jurídica não são conferidos de maneira suficiente a grande parte da população brasileira, já que diversas barreiras e entraves se apresentam obstaculizando a acesso à jurisdição e concretização de direitos, principalmente das populações vulneráveis e mais pobres.
3.1 DAS BARREIRAS ECONÔMICAS
A barreira mais evidente e que se impõe com maior severidade à sociedade carente de concretização de direitos é a limitação econômica. Tal obstáculo é potencializado no Brasil, por tratar-se de uma país econômico e socialmente desigual, o que priva as pessoas das condições necessárias para o exercício elementar de direitos fundamentais.
O processo judicial, seja ele de qualquer natureza, custa caro. Em uma sociedade onde grande parte das pessoas luta para alimentar-se e têm dificuldade de obter utilidades mínimas para a sobrevivência, o custo financeiro do processo é, sem dúvida, uma barricada difícil de superar.
Esses custos processuais se referem, no geral, a honorários advocatícios, verbas de sucumbência, taxas, preparo de recursos, despesas com provas e peritos, emolumentos e demais despesas atreladas às ações.
No caso do habeas corpus, embora seja uma ação gratuita e que dispense a capacidade postulatória, isto é, a presença de advogado, é fato que nem todo cidadão tem conhecimento e capacidade para exigir corretamente a tutela da liberdade. Daí se evidencia a necessidade de admitir o habeas corpus coletivo, que, numa só ação, poderia comportar os reclames de um grande grupo de hipossuficientes.
Sobre as barreiras econômicas, certeiro o pronunciamento de Marinoni, Arenhart e Mitiero (2016, pág. 120 e 121):
O mais óbvio obstáculo para um efetivo acesso à justiça é o do “custo do processo”. Esse problema relaciona-se com o das custas judiciais devidas aos órgãos jurisdicionais, com as despesas para a contratação de advogado e com aquelas necessárias para a produção das provas.10 É evidente que o custo do processo constitui um grave empecilho para boa parte da população brasileira, pois todos conhecem as dificuldades financeiras que a assola. Na verdade, as custas processuais, as despesas para a contratação de advogados e relativas à produção de provas dificilmente poderão ser retiradas das disponibilidades orçamentárias das partes e assim terão de obrigá-las a economias sacrificantes.
Assim, salta aos olhos que a ausência de recursos financeiros, desigualdades sociais e hipossuficiência são determinantes àqueles que carecem de medidas judiciais.
Por fim, é importante registrar que, via de regra, os pacientes que dependem de habeas corpus são pessoas pobres, carentes, socialmente excluídas. Muitas vezes esse segmento sequer tem condições de contratar advogado para defesa criminal. Além disso, outras coletividades (além das populações carcerárias) também podem sofrer coação da liberdade de locomoção e podem – como de fato, em sua maioria, o são – ser igualmente carentes de recursos financeiros.
3.2 DAS BARREIRAS CULTURAIS
Para se buscar um direito é necessário, antes de mais nada, conhecê-lo. O gozo pleno da cidadania e dos direitos fundamentais somente se opera quando a sociedade, ou parte dela, tem gnose destes direitos e possui condições para buscá-los. Sem esse conhecimento inicial, o processo de busca de justiça não se inicia.
Essa carência cultural e educacional se acentua nas camadas mais carentes da população brasileira, impedindo-a de acessar à justiça, conforme ressalta Santos (1994, pág. 148, apud BOLESINA e RODRIGUES, 2014, pág. 4):
Estudos revelam que a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é o estrato social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas factores económicos, mas também factores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades económicas. Em primeiro lugar, os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como sendo problema jurídico.
A existência desta barricada cultural e educacional faz com que direitos se percam no meio de tantas injustiças, reforçando a conjuntura de descaso com o respeito às garantias fundamentais e aumenta o distanciamento de grupos vulneráveis de sua dignidade anunciada pela Constituição.
Além disso, a associação desta barreira com a primeira (a econômica) torna ainda mais difícil o acesso à jurisdição.
3.3 DA BARREIRA TEMPORAL
É fato notório que o Poder Judiciário está assoberbado de milhões de processos, o que torna a atividade jurisdicional do Estado morosa, lenta e cheia de entraves, principalmente pela cultura litigante do povo brasileiro.
Como corolário dessa morosidade, surge mais uma barreira ao acesso à justiça: a barricada temporal.
De um lado, a busca pela tutela de direitos é tremendamente desestimulada pela demora e morosidade presente nos Tribunais brasileiros, o que faz com que o cidadão, se vencer as primeiras duas barreiras, repense se vale a pena buscar justiça nessas circunstâncias. De outro, aqueles que ainda se arriscam na caçada pelo direito, tem de aguardar, lentamente, a manifestação do Poder Judiciário, o que, na prática, torna perecível os direitos pleiteados, com enfoque aqueles mais urgentes, como a liberdade ambulatorial, objeto de excelência do habeas corpus.
A esse respeito, vale a pena observar a brilhante manifestação de Barbosa (1998, pág. 33, apud ANDRADE, 2007, pág. 134 e 135):
Justiça, para o povo, é sinônimo de demora, de morosidade. Há processos que permanecem em tramitação ano após ano. A Justiça era tardia antes e depois de Ruy Barbosa. Em seu tempo afirmava ele: “Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito das partes e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinquente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente”.(8) O atraso na prestação jurisdicional, o que equivale a dizer, a Justiça tardia, prejudica especialmente os pobres, para os quais a longa espera traz prejuízos irreparáveis. A péssima sistemática da organização judiciária, o constante deslocamento de juízes, a escassez de recursos materiais, a falta de uma aplicação mais sensata dos recursos, tudo isto implica em prejuízo para a celeridade da prestação jurisdicional.
(grifos nossos)
O lento transcorrer do tempo para recebimento de jurisdição afeta mais severamente as populações carentes (já fragilizadas pelas barreiras econômicas e culturais), fazendo com que, muitas vezes, direitos básicos sejam perdidos ou concedidos em partes.
Ressalte-se que mesmo as matérias urgentes (como as criminais, incluindo o habeas corpus) encontram grande dificuldade no tange à celeridade. Tal circunstância exige, assim, meios rápidos, eficazes e eficientes de oferecimento de justiça, como, por exemplo, o habeas corpus coletivo.
Com isso, os aqueles que mais precisam e que mais encontram barreiras para acessar a justiça, terão, mais concretamente, vez e voz na garantia de direitos básicos, sobretudo o da liberdade de ir e vir.
3.4 DA BARREIRA GEOGRÁFICA
O Brasil é um país de grandes dimensões territoriais, com parte considerável da população vivendo em pequenas cidades e zonas rurais, que geralmente são desprovidas de profissionais que possam intermediar o acesso à justiça, principalmente advogados e defensores públicos.
Com isso, na busca de justiça, essas pessoas, quando conseguem, se deslocam por grandes trajetórias geográficas a fim de buscar tutela jurisdicional, enfrentando dificuldades de todas as ordens (distâncias, carência financeira, deficiência de profissionais, demora no cumprimento das diligências judiciais e etc.).
Tal como as demais barreiras já mencionadas alhures, a distância da justiça se impõe mais intensamente às classes mais carentes da sociedade brasileira, conforme ressalta Santos (1994, pág. 74, apud CRUZ e GONÇALVES, 2017):
A distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é o estado social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades econômicas. Em primeiro lugar, os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, têm mais dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como sendo problema jurídico. Podem ignorar os direitos em jogo ou as possibilidades de reparação jurídica.
Especificamente sobre a barreira geográfica e carência de profissionais que garantem acesso à justiça, aponta Santos (1985, pág. 127, apud CRUZ e GONÇALVES, 2017):
Quanto mais baixo é o estrato socioeconômico do cidadão menos provável é que conheça advogado ou que tenha amigos que conheçam advogados, menos provável é que saiba onde e como e quando pode contatar o advogado, e maior é a distância geográfica entre o lugar onde vive ou trabalha e a zona da cidade onde se encontram os escritórios de advocacia e os tribunais.
Deste modo, diversas pessoas, muitas vezes ameaçadas em seus direitos, principalmente no interior e zonas rurais, composto por uma maioria de pessoas sem instrução ou pouca escolaridade, local propício para inobservância da lei, ficam expostas a toda sorte de tolhimentos de seus direitos básicos.
4. O HABEAS CORPUS COLETIVO COMO INSTRUMENTO DE ACESSO À JUSTIÇA E SEUS BENEFÍCIOS
Considerando a existência das diversas e grandes barreiras de acesso à justiça, todas potencializadas na realidade da sociedade brasileira, é necessário – e dever – dos Poderes do Estado viabilizarem meios de transpor essas barricadas e oferecer, tanto quanto possível, jurisdição rápida e eficiente àqueles que carecem de justiça.
A admissão do habeas corpus coletivo no sistema judiciário brasileiro vai ao encontro dessa necessidade e dever de garantir acesso à justiça, principalmente às populações carcerárias, que é, certamente, o grupo que mais enfrenta as barreiras de acesso à justiça.
O habeas corpus coletivo auxilia no rompimento da primeira barreira (a econômica), na medida em que, por meio de uma ação apenas, se pode tutelar direitos de uma grande coletividade, que não precisará desistir de luta pela liberdade por ausência de recursos financeiros para pagar advogados, despesas processuais, recursos e etc. Os gastos para se obter uma manifestação de judicial em favor de muitas pessoas serão tremendamente reduzidos, muitas vezes pagos pelo próprio Estado (considerando a atuação singular da Defensoria Pública nos habeas corpus coletivo), o que elimina, pelo menos em parte, a dificuldade econômica dos pacientes.
No que tange à barreira cultural (ou educacional), o habeas corpus coletivo serve para viabilizar a cessação rápida de situações de violação da liberdade de locomoção que os próprios pacientes desconheciam e, por isso mesmo, não buscaram a tutela jurisdicional. Muitas violações de direito não são percebidas pelos pacientes e suas famílias ou, quando o são, não sabem eles como agir ou onde buscar socorro. Assim, um grupo de profissionais ou uma instituição (como a DPE) pode, pela expertise que lhes são próprias, visualizar as violações de direitos e buscar, mediante habeas corpus coletivo, a garantia do direito de ir e vir daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade cultural e educacional.
O habeas corpus coletivo, respeitante à limitação temporal, é uma inteligente solução para a grande demora na prestação judicial e acúmulo de acervo processual nos tribunais. É, também, um brilhante meio de concretizar os princípios da eficiência, razoabilidade, duração razoável do processo e economicidade. Em apenas um habeas corpus coletivo, se pode resolver questões relativas a um grande grupo de pessoas que, numa conjuntura onde writ coletivo é inadmitido, poderiam, cada uma por si, propor habeas corpus individuais e com isso encher o Poder Judiciário de ações baseadas em uma mesma circunstância fática, comprometer pautas de julgamentos e atrasar ainda mais o oferecimento de justiça. Além do mais, nem todos os integrantes deste grupo conseguiriam acessar jurisdição, o que feriria de morte o princípio do acesso à justiça e igualdade.
A barreira geográfica é, de igual modo, substancialmente mitigada com a presença do habeas corpus coletivo, já que os efeitos das decisões nessa espécie de remédio coletivo se irradiam mais facilmente – e com força determinante – aos locais mais longínquos e de difícil acesso, bastando que o próprio Juiz singular, com base da decisão do writ coletivo, reconheça aquilo já decidido e conceda a liberdade de locomoção aos pacientes que se enquadrarem nos requisitos da concessão da ordem. Assim, por exemplo, um habeas corpus coletivo que teve a ordem concedida pelo STF, STJ ou outro Tribunal, em favor de pessoas que encontrem em determinada situação, pode ser facilmente executado numa comarca de difícil acesso no Estado do Amazonas e, deste modo, rompe uma grande disparidade de acesso à justiça ocasionada pela limitação geográfica.
Além de romper com essas barreiras mencionadas, a admissão do habeas corpus coletivo tem outros benefícios, anunciados em diversos ambientes e momentos.
O Ministro Ricardo Lewandowski, relator do HC 141.641 / SP, menciona diversos benefícios da admissão do writ coletivo (BRASIL, 2018, pág. 16):
Considero fundamental, ademais, que o Supremo Tribunal Federal assuma a responsabilidade que tem com relação aos mais de 100 milhões de processos em tramitação no Poder Judiciário, a cargo de pouco mais de 16 mil juízes, e às dificuldades estruturais de acesso à Justiça, passando a adotar e fortalecer remédios de natureza abrangente, sempre que os direitos em perigo disserem respeito às coletividades socialmente mais vulneráveis. Assim, contribuirá não apenas para atribuir maior isonomia às partes envolvidas nos litígios, mas também para permitir que lesões a direitos potenciais ou atuais sejam sanadas mais celeremente. Ademais, contribuirá decisivamente para descongestionar o enorme acervo de processos sob responsabilidade dos juízes brasileiros.
(grifos nossos)
Essa melhora da máquina judiciária pela presença do habeas corpus coletivo é lembrada por Sarmento, Borges e Gomes (2015, pág. 5):
Em primeiro lugar, a tutela supraindividual de direitos é medida necessária para se evitar o congestionamento ocioso da máquina judiciária. A reunião em um único processo de questões que poderiam estar diluídas em centenas ou milhares de ações importa economia de tempo, esforço e recursos indispensável para que se possa a atender ao crescente desafio de tornar a prestação jurisdicional mais célere e eficiente.
A admissão do habeas corpus coletivo também prestigia a isonomia e a garantia de acesso à justiça, como reafirma Sarmento, Borges e Gomes (2015, pág. 5 e 6):
A coletivização de demandas de origem comum traduz, ainda, uma preocupação com a isonomia no tratamento entre os jurisdicionados. A um vasto contingente de ações corresponderia um elevado número de decisões, capazes de oferecer soluções contraditórias a um mesmo problema. Em tais circunstâncias, o recurso ao Judiciário pode se converter em verdadeira loteria, em que a maior ou menor sorte do litigante é determinada no momento da distribuição da ação. Ainda mais importante, o tratamento coletivo de litígios individuais desempenha a relevante função na promoção do efetivo acesso à justiça, notadamente em relação aos mais necessitados. Em um país marcado por graves desigualdades sociais, o acesso real a direitos também continua profundamente assimétrico. A carência econômica impõe obstáculos materiais no acesso ao Judiciário, e a hipossuficiência cultural leva a que muitos lesados, pertencentes a grupos vulneráveis, sequer tenham consciência da violação ao seu direito e dos meios para remediá-la. Nesse cenário, os instrumentos processuais de proteção coletiva de direitos se afiguram fundamentais para a viabilização do efetivo acesso à justiça, pois permitem que indivíduos sejam beneficiados por decisões judiciais, sem terem o ônus de recorrer ao Poder Judiciário.7
Assim, o habeas corpus coletivo se mostra instrumento hábil para tutelar a liberdade de locomoção de coletividades, quebra substancialmente as barreiras ao acesso à justiça e, ainda, tem diversos outros benefícios.
5. CONSIDERAÇÃO FINAL
A partir da profunda pesquisa realizada na produção deste trabalho, pôde se observar que o instituto do habeas corpus coletivo encontra respaldo no ordenamento jurídico brasileiro, com bases sólidas no direito convencional, legislação infraconstitucional e doutrina, além de posicionamentos favorável do Supremo Tribunal Federal e precedentes no direito comparado.
Observamos que a admissão do habeas corpus coletivo, mais do que uma possibilidade, revela-se, atualmente, uma necessidade para sociedade brasileira, que carece de remédios constitucionais à altura de ameaças à liberdade que podem ser operadas coletivamente.
Compreendemos, também, diante das diversas barreiras ao acesso à justiça, que o instituto em comento é capaz de auxiliar populações vulneráveis a transpor essas barreiras ferrenhas que limitam o pleno exercício da cidadania e dos direitos fundamentais, essencialmente o da liberdade.
Por derradeiro, constatou-se que os benefícios da admissão do habeas corpus coletivo vão muito além da garantia da liberdade de ir e vir, mas fazem grande obséquio ao Poder Judiciário em sua função típica, melhora e otimiza a máquina judiciária, garante a duração razoável do processo, prestigia a eficiência, razoabilidade e economicidade, traz segurança jurídica às decisões judiciais e, de maneira geral, é mais um instrumento de concretização de justiça, igualdade e acesso ao gozo dos direitos fundamentais.
6. REFERÊNCIAS
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BORGES, Ademar; GOMES, Camila; SARMENTO, Daniel. O cabimento do habeas corpus coletivo na ordem constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ, 2015. Disponível em:< https://www.conjur.com.br/dl/parecer-hc-coletivo.pdf>. Acesso em: 3 de outubro de 2020.
BOLESINA, Iuri; RODRIGUES, Thais Brugnera. O DIREITO FUNDAMENTAL AO ACESSO À JUSTIÇA E A SUA (NÃO)CONCRETIZAÇÃO DIANTE DA CRISE DE EFETIVIDADE DO PODER JUDICIÁRIO. Revista XI Seminário Internacional de Demandas Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contemporânea. VII Mostra de Trabalhos Jurídicos Científicos. [S.I.] 2014. Disponível em < https://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/article/view/11680/1612>. Acesso em: 14 de outubro de 2020.
BRASIL. DECRETO Nº 678, DE 6 DE NOVEMBRO DE 1992, Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em <http:/www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm>. Acessado em: 2 de outubro de 2020.
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BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acessado em: 21 de outubro de 2020.
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BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2015.
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LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 23ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
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[1] Advogada. Professora Titular da Universidade Estadual do Amazonas – UEA. Doutora pela Universidad del Museo Social Argentino – UMSA (2015)
Acadêmico do Curso de Direito na Universidade do Estado do Amazonas – UEA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Guilherme Messias do Nascimento. Habeas corpus coletivo: uma possibilidade no direito brasileiro como instrumento de acesso à Justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 out 2020, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55390/habeas-corpus-coletivo-uma-possibilidade-no-direito-brasileiro-como-instrumento-de-acesso-justia. Acesso em: 22 nov 2024.
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