RESUMO: As atividades dos chamados “Clubes do Carimbo” incluem relações sexuais denominadas “roletas-russas” com a atuação de indivíduos portadores do vírus HIV e pessoas sadias, sendo que alguns dos participantes têm conhecimento da presença da doença em seus companheiros e outro não, o que acarreta em dúvidas quanto à punibilidade quando existe consentimento. A legislação penal brasileira não estabelece um tipo penal exato em desfavor do indivíduo que propositalmente transmite o vírus da Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida (SIDA) para outrem. Tal condição dá origem a uma lacuna sobre qual seria a tipificação penal adequada. Em meio às probabilidades, podem ser presumidos os crimes de perigo de contágio de moléstia grave (art. 131 do CP), perigo de contágio venéreo (art. 130 do CP), lesão corporal de natureza grave (art. 129, §2º, inciso II do CP) e tentativa de homicídio (art. 121 c/c art. 14, II do CP), bem como as condições que ocasionam agravantes que podem ser aplicados a situação. Tratando-se de um grupo de muitos soropositivos, manifesta – se o questionamento se é possível enquadrar como organização criminosa os participantes dos denominados “Clubes do Carimbo”.
Palavras-chave: Direito Penal; Clubes do Carimbo; Transmissão dolosa da SIDA; Sanção penal.
ABSTRACT: The activities of the so-called "Stamp club" include sexual relations called "Russian roulette" with the actions of HIV-positive individuals and healthy people, with some of the participants being aware of the presence of the disease in their partners and others not, which leads to doubts about the punishability when there is consent. The Brazilian penal legislation doesn´t establish an exact penal type to the disadvantage of the individual who intentionally transmits the Acquired Human Immunodeficiency Syndrome (AIDS) virus to another. Such condition gives rise to a gap as to what would be the appropriate criminal typification. Between the probabilities, can be presume the crimes of danger of contagion of serious illness (art. 131 of PC), danger of venereal contagion (art. 130 of PC), serious bodily harm (art. 129, §2, item II of PC) and attempted murder (art. 121 c/c art. 14, II of PC), as well as the conditions that cause aggravating factors that can be applied to the situation. When it comes to a group of many seropositive individuals, it is questionable whether it is possible to classify the participants of the so-called "Stamp clubs" as a criminal organization.
Keywords: Criminal law; Stamp clubs; willful transmission of AIDS; criminal punishment.
Sumário: 1. Introdução. 2. Clubes do Carimbo. 3. Caracterização de Organização Criminosa. 4. Saúde Pública. 5. Possibilidade de Aplicação das Circunstâncias Agravantes. 6. Consentimento do Ofendido. 7. SIDA – Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida. 8. Enquadramento Jurídico-Penal da SIDA. 9. Perigo de Contágio Venéreo.10. Perigo de Contágio de Moléstia Grave. 11. Lesão Corporal de Natureza Grave. 12. Tentativa de Homicídio. 13. Considerações Finais. 14. Referências.
1. Introdução
A AIDS, sigla que designa a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, é uma doença crônica ocasionada pelo vírus HIV, que causa danos ao sistema imunológico e interfere nas funções do organismo de lutar contra outras infecções. O HIV é uma infecção sexualmente transmissível, que pode ser contraída tanto pelo contato com o sangue infectado quanto de forma vertical, ou seja, uma mulher que é portadora do vírus HIV pode transmitir ao filho, através da gravidez e/ou amamentação.
Com o primórdio da AIDS e sua, na década de 80, ocorreu à difusão do conhecido por “sexo seguro”, ou seja, a prática de relações sexuais com o uso de preservativo para se evitar a doença. Dentre outro parâmetro, com a grande quantidade de pessoas já portadoras da doença e o aumento expressivo da taxa de mortalidade, uma conduta perigosa em conformidade a atenção aos cuidados da transmissão do vírus foi – se observada globalmente.
Em associação as condições e relações entre as pessoas oriundas deste no espectro, originaram – se as atividades de coletivos criminosos, sob a égide do sistema normativo jurídico-penal brasileiro, cujos membros participam dos conhecidos pela denominação de “Clubes de Carimbo” que propõe – se, de maneira intencional, transmitir o patógeno da AIDS a pessoas sadias que não possuem conhecimento acerca da condição dos participantes do clube, assumindo desta maneira, os riscos de possível contágio.
O vigente artigo tem por propósito expender o enquadramento conveniente na legislação penal brasileira da prática de propagação dolosa do vírus do HIV, causador da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida, conhecida como AIDS, nesses encontros sexuais grupais impulsionados pelos referidos clubes.
A legislação penal brasileira não estabelece tipificação penal particular gerando uma lacuna sobre qual seria a tipificação apropriada. Portanto, delinear-se-á os institutos aplicáveis à prática citada e se realizará uma análise profunda no intuito de estipular a sanção que mais se adequá com o objetivo de desestimular a prática de disseminação do vírus da SIDA.
Ademais, será esclarecida a repercussão jurídica das atividades envolvendo denominadas de “roletas-russas”, organizadas pelos “Clubes do Carimbo”, com atuação de pessoas soropositivos e indivíduos sedáveis, que podem ter ou não conhecimento acerca da condição de alguns membros do grupo. Existem também pessoas que se sujeitam de maneira consciente à exposição ao vírus, o que gera questionamento sobre o cabimento ou isenção de sanção penal ao soropositivo que transmitiu a SIDA a uma vítima que intencionalmente assumiu o risco de contágio.
2. Clubes do Carimbo
Clubes do Carimbo são associações de pessoas homogeneamente homossexuais soropositivos, que se designam como “vitaminados”, e se conectam através da internet para induzir alguém a aceitar em manter relação sexual sem fazer uso de preservativo e/ou formas de inutilizar o mesmo, caso não se obtenha sucesso na primeira proposta.
A argumentação empregue é de que se todos forem infectados, a moléstia deixará der um problema social. A estratégia utilizada por esses indivíduos para a transmissão o vírus ocorre por meio de relações sexuais coletivas, denominadas “roletas-russas”, em alusão ao perigoso jogo de azar que implica em deixar uma só bala no tambor de uma arma, girá-lo, e apontar o cano da arma para esses encontros grupais ocorrem em casas noturnas e envolvem pessoas HIV positivos e pessoas sadias. (CLUBE…, 2015).
Existem nesses grupos, membros que possuem conhecimento da condição de outros participantes, conhecidos pelo termo “bug-chaser”, que implica em “colecionador” de doenças sexualmente transmissíveis, e há também pessoas que não sabem sobre a situação de outros envolvidos na relação (HOMENS…, 2015).
Tais práticas configuram crime, conforme seu conceito material, implicando em “desvalor da vida social” (FRAGOSO, 1995, p. 144), e fundamentam-se na “violação dos sentimentos altruísticos fundamentais de piedade e probidade, na medida média em que se encontram na humanidade civilizada, por meio de ações nocivas à coletividade” (MACHADO, 1987,p. 78).
3. Caracterização de Organização Criminosa
É cabível a caracterização do crime de organização criminosa disposta no artigo 2º da Lei 18.850/2013 aos participantes dos “Clubes do Carimbo”. E conforme a Lei nº 12.850 de 02 de agosto de 2013, é considerado criminosa a associação de 04 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 04 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
Os membros que integram os “Clubes do Carimbo” são muitos e seguem instruções estabelecidas on-line acerca de como “carimbar” as vítimas. Há sites exclusivos aos participantes orientando sobre como persuadir jovens a não praticarem sexo seguro, não fazendo uso de preservativo, e nos casos que não conseguem, indicam como deixar sem uso o preservativo entre outros meios de transmissão.
O propósito é o motivo indigno de realizar a disseminação do vírus, com o intuito de popularizar a SIDA, tornando a doença como normal e inofensiva, sendo vista como uma vantagem para os infectados, culminando em uma maior aceitação dos HIV/positivos no meio social.
4. Saúde Pública
Antes de abordamos a competência das atividades realizadas pelos “Clubes do Carimbo”, se faz necessário o conhecimento do conceito de saúde pública para compreender os motivos pelos quais o judiciário brasileiro deve assumir medidas penais como forma de punição para tais práticas.
Em seu artigo 6º A Constituição da República Federativa do Brasil, determina a saúde como um direito social, além de possuir uma seção que trata especificamente sobre saúde, em seus artigos 196 a 200. Estipulando, assim, no caput do artigo 196:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Interpretando este dispositivo, podemos analisar o explícito intuito do legislador em instituir o direito à saúde a todos e, além do mais, concerne ao Estado o dever de proteção e manutenção deste direito. Estando ainda em evidência, em norma constitucional originária, em seu artigo 24, inciso XII, a competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal de legislar a respeito da proteção e defesa da saúde.
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
XII – previdência social, proteção e defesa da saúde;
É notória a preocupação estatal com a saúde pública, tal como o encargo da sua responsabilidade em preservá-la, motivo pelo qual são criadas ferramentas para a sua defesa, como as políticas públicas, o Sistema Único de Saúde – SUS e sanções penais para atos que atuem contra a constância de sua conservação.
Também sobre o tema em tela, é significativo destacar que a dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental previsto na Constituição da República Federativa de 1988 e a inviolabilidade do direito à vida é uma garantia constitucional:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Analisando o dispositivo acima, compreende – se que qualquer ato que atente a vida do cidadão brasileiro ou para garantir o direito à vida digna, o Estado também oferece a assistência a todos, sem distinções, por meio da assistência pelo SUS.
De acordo, com o Dr. Dráuzio Varella – Médico oncologista, cientista e escritor brasileiro, formado pela Universidade de São Paulo – o Brasil possui “um dos melhores programas de HIV/AIDS do mundo – um programa que revolucionou o tratamento e reduziu a velocidade de disseminação da epidemia mundial ao adotar, em 1996, uma política de distribuição gratuita de medicamentos”, tendo ainda destacado que “se não tivesse adotado essa política, hoje, ao invés de 860 mil, o Brasil teria 18 milhões de brasileiros com HIV – mais ou menos a mesma prevalência da África do Sul”.
5. Possibilidade de Aplicação das Circunstâncias Agravantes
Tendo conhecimento de que os “Clubes do Carimbo” proporcionam festas denominadas roleta-russa com intuito de propagar a SIDA para pessoas sadias tendo ou não seu consentimento, é fundamental a análise dos agravantes dispostos no art. 61 do Código Penal para especificar as probabilidades de aplicação na sanção penal do criminoso.
Art. 61. São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:
(…)
II – ter o agente cometido o crime:
a) por motivo fútil ou torpe;
(…)
c) à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido.
d) com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultar perigo comum.
(…)
A fim de melhor compreensão do que é uma circunstância agravante genérica:
“As agravantes genéricas são assim chamadas por estarem previstas taxativamente na Parte Geral do Código Penal (arts. 61 e 62), e a exasperação da pena, que deve respeitar o limite máximo abstratamente cominado pelo legislador, é definida pelo juiz no caso concreto, uma vez que a lei não indica a quantidade de aumento. Incidem na segunda fase de aplicação da pena”. (MASSON, 2017, P.748)
Conforme Cleber Masson (2015), o motivo fútil, é o insignificante, de pouca importância, completamente desproporcional à natureza do crime praticado, ou seja, se trata daquele em que a prática do crime não possui justificativa de forma alguma, a apreciação do comportamento exercido, faz jus a um juízo de proporcionalidade entre o motivo da prática criminosa e o resultado lesivo causado à vítima. A insignificância do motivo é o que estabelece a aplicação deste agravante. “O motivo fútil só ocorre quando claramente desproporcional ou inadequado, traduzindo-se em egoísmo intolerante, prepotente e mesquinho” (TJDFT, RSE 19990310011039, 2ª T. Crim., Rel. Des. Aparecida Fernandes, j. 15-9-2005).
Para Rogério Grecco (2017), torpe é o motivo desprezível, vil, que nos causa repugnância, pois atenta contra os mais básicos princípios éticos e morais. É notado no meio social como imoral o que causa a reprovação da prática. Os “Clubes do Carimbo” operam a partir do pensamento de que “se todos forem soropositivos, ninguém mais será”, ou seja, eles têm por finalidade a disseminação global da molesta com o objetivo de não precisarem ser tratados com resguardas mediante aos indivíduos sadios, razão pela qual não é o bastante ou socialmente permitido para transmitir doença incurável onde seu portador ficará sujeito aos tratamentos pelo resto da vida.
De acordo com Guilherme de Souza Nucci (2005), a dissimulação acontece quando o indivíduo camufla seu real propósito, com a intenção de pegar a vítima desprevenida. Caso que acontece nas atividades desenvolvidas nos “Clubes do Carimbo”, as festas onde são promovidas relações sexuais, são oferecidas com o intuito de para propagar a doença, já que grandes parcelas das pessoas não aceitariam se tivessem conhecimento que entre os membros existiam soropositivos.
Contudo, “a dissimulação só ocorre quando a vítima não tinha motivo para desconfiar da conduta do réu” (TJSC, RCrim 2002.008499-4, 1ª Câmara Criminal, Rel. Des. Sérgio Paladino, j. 31-1-2006), o que pode gerar incertezas acerca de um indivíduo que participa de relações sexuais com pessoas que não conhece deveria possuir dúvidas ou ao menos utilizar algum dos métodos preventivos. Entretanto, a agravante traição transcorre da quebra de confiança depositada em alguém (NUCCI, 2005), no caso em questão seria os membros das festas, sendo de senso comum que pessoas soropositivas devem advertir de sua condição antes de manter relações sexuais com pessoas saudáveis.
6. Consentimento do Ofendido
Como já mencionado no capítulo 2, entre os participantes das “roletas-russas”, existem pessoas soropositivas e pessoas saudáveis, sendo que entre estas algumas sabem da condição de seus companheiros e outras não.
Tal circunstância carrega a dúvida quanto à punibilidade do ofensor se a vítima concordou em ser ofendida. O consentimento da prática de relações sexuais com um soropositivo não elimina a ilicitude do crime, uma vez que a integridade corporal é um bem indisponível e ao adquirir a doença irá, casualmente, levar quem a possui ao óbito. Neste ângulo:
“Entre os bens particulares renunciáveis, que podem, portanto, sujeitar-se à sua atuação, há quase unanimidade em mencionar-se a honra, a liberdade pessoal, a integridade corporal, assim como todos os bens jurídicos patrimoniais. Quanto à vida, esta é evidentemente irrenunciável. O consentimento quanto ao homicídio poderá atenuar a culpabilidade, mas jamais refletir-se na caracterização do injusto”. (TAVARES, 1969, p. 261)
Faz-se necessário destacar ainda que, conforme Arrubla, a criminalização da conduta mesmo com consentimento do ofendido também ocorre devido ao interesse público, sendo mais promissor à saúde pública que esta prática seja passível de pena.
É primordial também ressaltar que caso o ofendido perdoe o ofensor, isso não configura motivo para que o crime seja perdoado, já que a ação penal é promovida pelo Ministério Público, não tendo a vítima competência para tal feito.
7. SIDA – Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida
Antes de adentrarmos ao âmbito jurídico, faz-se importante destacar, sob perspectiva médico-legal, o que é a Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida (SIDA), bem como aspectos únicos relacionados com sua patogenicidade, transmissibilidade, evolução e prevenção.
A AIDS trata - se do estágio mais avançado da infecção por HIV. É uma doença crônica, que causa danos ao sistema imunológico e prejudica a habilidade do organismo de lutar contra outras infecções. O HIV é uma infecção sexualmente transmissível, que pode ser também adquirida através do contato com o sangue de um indivíduo infectado e de forma vertical, ou seja, a mulher que é portadora do vírus HIV o transmite para o filho durante a gestação, parto ou amamentação.
O HIV é transmitido de maneira mais massiva por meio de relações sexuais (vaginais, anais ou orais) realizadas sem proteção, isto é, sem fazer o uso do preservativo; e através da partilha de seringas o que é comum entre usuários de drogas ilícitas. Outra via de transmissão é entre a transfusão sanguínea, sendo esta, entretanto, mais rara de acontecer.
Levando em consideração que a maior parcela dos casos de SIDA transcorre da transmissão sexual do vírus, a doença tem uma atuação epidemiológica que, em nas mais variados características, assim como efeito, os casos também sobrevém massivamente em áreas metropolitanas, onde é mais comum que ocorra a diversificação de parceiros.
Segundo Schechter (2013), com base em evidências disponíveis, o vírus possui mais facilidade em penetrar através da mucosa retal do que pela mucosa genital, dado que a mucosa retal é mais frágil, que a vaginal, por isso, sendo mais suscetível a microlesões, o que facilita o contato do vírus com a corrente sanguínea. Como consequência dessa característica, o risco de infecção da SIDA é mais alto para os homossexuais e bissexuais masculinos do que para homens e mulheres heterossexuais.
Conforme a Organização Panamericana de Saúde (2015), as seguintes circunstâncias são apontadas de risco para infectar-se pelo vírus HIV:
– não fazer uso de preservativos em relações sexuais com penetração;
– variação com frequência de parceiros sexuais;
– ser parceiro de pessoa portadora de HIV ou que se apresente a situações de risco de contágio;
– ser portador de outras doenças sexualmente transmissíveis ou ter história recente desse tipo de doença;
– fazer uso de produtos hemoderivados (por exemplo, hemofílicos e portadores de outros distúrbios da coagulação);
– fazer uso de drogas injetáveis;
– criança nascida de mãe portadora de HIV e;
– criança amamentada por mulher portadora de HIV.
8. Enquadramento Jurídico-Penal da SIDA
O Código Penal Brasileiro foi desenvolvido em 1940, período em que a sociedade enfrentava uma realidade bem diferente da qual vivemos atualmente. Desta forma, o vírus da Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida não era, ainda, uma possível situação a ser considerada pelo legislador. Contudo, com o passar dos anos, a SIDA tornou-se uma real preocupação devido ao fato de ser uma doença que não possui cura podendo resultar em eventual morte.
Felizmente, com a evolução da medicina foram desenvolvidos medicamentos que proporcionam ao soropositivo a possibilidade de viver normalmente, entretanto, este sempre será dependente desses remédios, caso contrário, certamente, irá a óbito.
A transmissão dolosa de doença de tamanha força e consequência não poderia passar impune, por conseguinte, utilizando-se dos costumes, analogia e princípios gerais do direito, manifestaram-se entendimentos jurisprudenciais e doutrinários a respeito da punição adequada para esse caso. Não obstante, o entendimento não é pacífico, havendo divergências entre perigo de contágio venéreo (art. 130 do CP), perigo de contágio de moléstia grave (art. 131 do CP), lesão corporal de natureza grave (art. 129, §2º, inciso II do CP) e tentativa de homicídio (art. 121 c/c art. 14, II do CP).
9. Perigo de Contágio Venéreo
Conforme o artigo 130 do Código Penal, o crime de Perigo de Contágio Venéreo:
Art. 130. Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.
§ 1º. Se é intenção do agente transmitir a moléstia:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 2º. Somente se procede mediante representação.
A SIDA pode ser transmitida por meio de relações sexuais, contudo esta não é a única forma de transmissão, sendo possível a disseminação através de variadas maneiras, como visto no capítulo 2 do presente artigo. Em relação ao artigo em destaque é “por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso” e “contágio de moléstia venérea”. Nessa perspectiva, o ilustre doutrinador Fernando Capez anuncia que “busca-se mediante este dispositivo legal evitar e sancionar o contágio e a consequente propagação de doenças sexualmente transmissíveis” (CAPEZ, 2014, p.281).
Além disto, para Fernando Capez (2014), o parágrafo primeiro deste mesmo artigo demonstra a forma qualificada do crime, assegurando uma pena mais gravosa para aqueles indivíduos que possuem o animus dolandi, ou seja, o intuito de transmitir a moléstia, sendo o contágio a materialização do crime tornando-se necessário o resultado eficaz da transmissão da doença.
Em conformidade ao ponto de vista médico, a SIDA é classificada, também, uma moléstia venérea. No entanto, sob o ponto de vista jurídico, pôr a SIDA poder ser disseminada de formas diversas ao ato sexual, não é considerada moléstia venérea. De acordo com este ângulo, o doutrinador Luiz Regis Prado (2000, p. 141), dispõe:
“A AIDS não é moléstia venérea, ainda que passível de contágio através de relações sexuais ou de outros atos libidinosos. A prática de ato capaz de transmiti-la poderá configurar, segundo o propósito do agente, o delito insculpido no art. 131 (perigo de contágio de moléstia grave), lesão corporal grave ou homicídio, se caracterizando o contágio”. (PRADO, 2000, p. 141)
Em resumo, a SIDA, para o direito, não é apontada como moléstia venérea pelo fato de não ser transmitida exclusivamente através do ato sexual ou libidinoso, não podendo ser aplicado o crime de perigo de contágio venéreo para quem, de maneira dolosa, transmite o vírus HIV.
10. Perigo de Contágio de Moléstia Grave
Havendo as moléstias que não são somente transmitidas através de maneira direta, entendendo por isto como contato físico por meio do agente e a vítima, o Código Penal tratou de tutelar também aquelas que podem ser difundidas através da forma indireta, ou seja, por consequência de utilização de objetos (seringas de injeção, talheres, etc.). Havendo o legislador criado, desta forma, o crime de perigo de contágio de moléstia grave: “Art. 131. Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir contágio: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.”
A conduta típica deste crime é nitidamente praticar conduta capaz de causar contágio de moléstia grave (CAPEZ, 2014). Um exemplo adequado para o enquadramento do caso nesse tipo penal seria do viciado em tóxico, portador do vírus HIV, que compartilha sua seringa com outros viciados, desta forma disseminando a SIDA; ou até mesmo uma mãe que sendo soropositiva, no momento do parto, não informa sua condição aos médicos, podendo transmitir a doença tanto para o bebê quanto aos envolvidos no parto se não forem tomadas as devidas precações.
Este tipo penal é bastante extensivo devido ao fato de não haver limites pré estabelecidos de sua aplicação, apenas o fato de praticar ato capaz de produzir contágio é punível, podendo servir como exemplos de moléstias graves a tuberculose, cólera, lepra, etc. Sendo necessário frisar que para ser considerada moléstia grave independe de constar ou não no Regulamento do Ministério da Saúde.
11. Lesão Corporal de Natureza Grave
Segundo o douto Ministro Ricardo Lewandowski (HC 98.712/RJ) o enquadramento adequado para a transmissão dolosa da SIDA não seria como crime de perigo de contágio de moléstia grave, tendo em vista que “no atual estágio da ciência, a enfermidade é incurável, quer dizer, ela não é apenas grave, nos termos do art. 131”. Por ser uma enfermidade incurável, é necessário a observação do crime de lesões corporais de natureza grave:
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: (...)
§ 2º. Se resulta:
II – enfermidade incurável;
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.
§ 3º. Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo: Pena – reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.
Desta forma, a qualificadora é aplicável àquele que acarretar qualquer tipo de doença que a ciência médica ainda não encontrou a cura.
Conforme Cezar Roberto Bitencourt (2001, p.174):
“Lesão corporal consiste em todo e qualquer dano produzido por alguém, sem animus necandi, à integridade física ou à saúde de outrem. Ela abrange qualquer ofensa à normalidade funcional do organismo humano, tanto do ponto de vista anatômico quanto do fisiológico ou psíquico. Na verdade, é impossível uma perturbação mental sem danos à saúde, ou um dano à saúde sem uma ofensa corpórea. O objeto da proteção legal é a integridade física e a saúde do ser humano”. (BITENCOURT, 2001, p.174)
É nítido ainda que a pena para transmissão de enfermidade incurável é maior do que a de contágio de moléstia grave, já que a vítima terá que se contentar com a sua nova condição devido ao fato de não haver cura. No entanto, é importante destacar que “a vítima não está obrigada a submeter-se a tratamentos incertos ou operações cirúrgicas avançadas”. (CAPEZ, 2014, p.275).
No presente, o entendimento da 5ª Turma do STJ é de que a transmissão dolosa da SIDA enquadra – se no art. 129, §2º, II do Código Penal.
“É de notória sabença que o contaminado pelo vírus do HIV necessita de constante acompanhamento médico e de administração de remédios específicos, o que aumenta as probabilidades de que a enfermidade permaneça assintomática. Porém, o tratamento não enseja a cura da moléstia”. (STJ, 5ª Turma, HC 160.982 – DF)
Dessarte, tal entendimento encontra-se contexto de que o bem indisponível tutelado, ou seja, a vida está em perigo, vez que a enfermidade ora em questão não há cura. Tendo, assim, a 5ª Turma do STJ no julgado do Habeas Corpus supracitado adotado o firmamento de que a transmissão dolosa da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida é considerada como lesão corporal de natureza grave devido se tratar de enfermidade incurável.
12. Tentativa de Homicídio
Levando em conta que não há cura e que, eventualmente, o seu portador virá a óbito, há a corrente que defende que o melhor enquadramento para a conduta de transmitir dolosamente a SIDA é a de tentativa de homicídio (artigo 121, §2º, II e IV, C/C art. 14, do Código Penal). "Se alguém pratica ato capaz de transmitir não apenas moléstia grave, mas moléstia eminentemente mortal e o faz dolosamente, incide em tentativa de homicídio". (TJSP, RT 784/587). Sendo esta corrente defendida, também, pelo douto Procurador-Geral de Justiça do Estado do Amazonas, Carlos Fábio Braga Monteiro.
Ainda nesse sentido, os “Clubes do Carimbo” atuam sem a consciência da vítima que, indefesa, torna a conduta insidiosa. Desta forma, defende o notório doutrinador
Antônio Sérgio Caldas de Camargo Aranha (1994, p. 13):
“Ora, sabendo o contaminado que praticar atos idôneos pode transmitir a moléstia a outrem, que de eventual contágio e transmissão decorrerá a morte da vítima, é de questionar-se se o delito não passa a ser o de tentativa de homicídio qualificado (meio insidioso de conduta), que poderá consumar-se se o ofendido vem a falecer em período curto de tempo e antes do próprio agente, transmissor da doença”. (ARANHA, 1994, p.13).
O enquadramento como tentativa de homicídio enfrenta a problemática de que o vírus do HIV por si só, como visto previamente em outro tópico, não causa diretamente a morte de seu portador, sendo entendida para Capez como “cessação do funcionamento cerebral, circulatório e respiratório”, tornando somente vulnerável para que outras doenças transpassem o sistema imunológico e estas sim ocasionem a morte da vítima.
Tal problemática, de a morte do portador ser causada por motivo diverso da conduta do agente, mesmo sendo causada efetivamente por esta conduta que ocasionou o resultado, gera conflito com a Teoria da Atividade, a qual, conforme Fernando Capez, “tem como consequência primordial a imputabilidade do agente que deve ser aferida no exato momento da prática do delito, pouco importando a data em que o resultado venha se efetivar”. Desarmonizando, assim, com a interpretação de que a prática em si não gera a morte, sendo que há formas de coibir a doença, com o efetivo óbito devido à doença diversa causada pela ação do agente.
A jurisprudência ainda não chegou a um consenso quanto a tipificação correta para a transmissão dolosa da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (REZENDE, 2014), ainda seria possível enquadrar a conduta em Infração de Medida Sanitária Preventiva (art. 268, CP) e epidemia (art. 267, CP), entretanto as correntes majoritárias dividem-se entre tentativa de homicídio e lesão corporal de natureza grave.
13. Considerações Finais
Os “Clubes do Carimbo” são organizações criminosas que têm por objetivo disseminar da Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida (SIDA) com o motivo torpe de popularizar a moléstia com o intuito de diminuir a discriminação que indivíduos sadios fazem de pessoas soropositivas, usando como fundamento a busca da “igualdade” entre as pessoas para que não haja necessidade de preocupação de adoção de políticas sociais a fim de reduzir a transmissão da doença.
A perpetuação dolosa da SIDA implica em riscos tanto para a saúde individual quanto à saúde pública, pois quanto mais infectados, maiores serão as chances de disseminação da doença, aumentando, assim, a taxa de mortalidade e afetando diretamente a qualidade de vida do cidadão brasileiro. Desta forma, faz-se necessária a intervenção do Estado para manter a sua responsabilidade de competência constitucional de proteger e defender a saúde, impedindo as práticas atentatórias à sua manutenção ao enquadrar a transmissão dolosa da doença em questão no Código Penal.
A maior parte das correntes tende ao enquadramento da transmissão dolosa da SIDA como lesão corporal de natureza grave (art. 129, §2º do Código Penal) e, para os mais severos, tentativa de homicídio (artigo 121, §2º, II e IV, C/C art. 14, CP); enquanto a minoria acredita se enquadrar no perigo de contágio venéreo (art. 130, CP) e perigo de contágio de moléstia grave (art. 131, CP).
O consentimento do ofendido não elimina a punibilidade do ofensor visto que a vida é um bem indisponível e, tratando-se da SIDA, uma doença incurável, seu portador poderá eventualmente vir a falecer se não seguir corretamente o tratamento, bem como poderá vir a infectar outras pessoas, colocando, assim, em perigo a saúde pública, a qual a garantia é dever do Estado conforme a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
14. REFERÊNCIAS
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Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Manaus.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARQUES, Bruna Muniz. “Clubes do Carimbo” sob a luz do sistema normativo penal brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 out 2020, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55401/clubes-do-carimbo-sob-a-luz-do-sistema-normativo-penal-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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