Não há dúvidas de que o processo se constitui num meio para a realização do direito material e não um fim em si mesmo[1]. Sob essa perspectiva, ao propor uma ação judicial o jurisdicionado pretende obter o bem da vida que é objeto da controvérsia, sendo essa uma presunção razoável na medida em que o inverso seria supor uma litigância pautada em interesses escusos e dissociados do senso comum, a exemplo da obtenção imotivada de valores altíssimos de multas (astreintes).
Trilhando essa mesma lógica o CPC prevê a busca da efetividade da prestação jurisdicional como regra de conduta processual, a saber:
Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
O mesmo código atribuiu ao magistrado o poder de determinar a imposição de multas a fim de que a obrigação de fazer ou de não fazer seja adimplida, nos termos abaixo:
Art. 536. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente.
§ 1º Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial.
Ocorre, todavia, que o mesmo CPC também esclarece ser possível a modificação ou exclusão da multa acima referida, em determinadas hipóteses, quais sejam:
Art. 537. A multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito.
§ 1º O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou excluí-la, caso verifique que:
I - se tornou insuficiente ou excessiva;
II - o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento.
Portanto, se de um lado o magistrado pode fixar a multa de que trata o artigo 536, § 1º, do CPC, de outro também teria autorização legal para modificá-la ou excluí-la, inclusive se o obrigado demonstrou justa causa para o descumprimento (inciso II, § 1º, do artigo 537 do CPC).
A celeuma que ora se traz à baila para fins de reflexão é justamente quando da ocorrência de situação onde o magistrado determina a conversão da obrigação em perdas e danos diante da tentativa fracassada de cumprimento da referida obrigação. Nesse caso, em geral a conversão ocorre exatamente porque o executado/obrigado não adimpliu a parte que lhe competiria.
E essa omissão pode decorrer tanto de ato voluntário e doloso de inércia do obrigado quanto de justa causa da impossibilidade de cumprimento da obrigação, conforme prevê o CPC, a saber:
Art. 499. A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.
Art. 816. Se o executado não satisfizer a obrigação no prazo designado, é lícito ao exequente, nos próprios autos do processo, requerer a satisfação da obrigação à custa do executado ou perdas e danos, hipótese em que se converterá em indenização.
Art. 823. Havendo recusa ou mora do executado, o exequente requererá ao juiz que mande desfazer o ato à custa daquele, que responderá por perdas e danos.
Parágrafo único. Não sendo possível desfazer-se o ato, a obrigação resolve-se em perdas e danos, caso em que, após a liquidação, se observará o procedimento de execução por quantia certa.
Fixadas essas premissas também é relevante pontuar que é comum ocorrer situação onde o juiz determinou o cumprimento da obrigação e também estabeleceu multa – astreintes – tendo a parte destinatária da ordem judicial incidido em mora. A esse respeito, caso o juízo determine a conversão da obrigação em perdas e danos, o mesmo CPC adverte que:
Art. 500. A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa fixada periodicamente para compelir o réu ao cumprimento específico da obrigação.
No entanto, a aplicação deste artigo 500 do CPC tem causado uma celeuma forense na medida em que muitos operadores do direito têm interpretado tal dispositivo isoladamente, quando, na realidade, a interpretação deve ser sistemática.
Quer-se dizer com isto que quando o legislador previu no artigo 500 do CPC a possibilidade de cumulação da indenização por perdas e danos com a multa fixada periodicamente para compelir o réu ao cumprimento específico da obrigação, fê-lo com a finalidade de esclarecer o seu cabimento.
Porém, não há campo jurídico para, a pretexto de incidência do artigo 500 do CPC, afastar-se a aplicação do artigo 537, § 1º, do CPC, este último que permite a modificação ou exclusão da multa, a depender das nuances do caso concreto.
O que não se pode permitir é uma interpretação literal onde na hipótese de indenização por conversão em perdas e danos o juiz não poderia modificar ou excluir a multa. O legislador pretendeu dizer que a conversão não é prejudicial à multa. E só. Porém, se no caso concreto o magistrado identifica se tratar de uma das hipóteses do artigo 537, §1º, do CPC, poderá aplicá-lo.
Por exemplo, se a obrigação de fazer ou não fazer foi descumprida por 500 dias e gerou uma multa de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) não é porque houve a indenização por conversão em perdas e danos que tal multa é imune à modificação ou exclusão.
Imagine também um caso onde o consumidor de um plano de saúde promoveu demanda em face deste para obter a consulta médica com determinado médico, embora o plano de saúde oferte outros especialistas da área. Se o médico viesse a óbito e o juiz acabasse determinando – cumulativamente com astreintes – que o plano de saúde garantisse a consulta, tratar-se-ia de uma obrigação impossível de ser realizada, pois o médico faleceu.
Assim, se o executado/obrigado demonstrar justa causa – falecimento do médico – para o descumprimento da ordem judicial e o consumidor não quisesse se submeter a consulta com outros especialistas do plano de saúde, este poderia arguir justa causa para o descumprimento. E, nesse caso, se o juiz convertesse a obrigação em indenização por perdas e danos seria possível, em tese, que a conversão se realizasse sem que qualquer multa incidisse.
Diz-se “em tese” porque tal análise deve ser feita caso a caso, inclusive pela averiguação da postura processual das partes, a exemplo da cooperação, da boa-fé, do histórico da parte envolvida (se descumpridora contumaz, por exemplo), entre outras nuances, até para que não se crie uma cultura de desrespeito à autoridade do Poder Judiciário e um estímulo à descrença na justiça brasileira.
Com isto se quer dizer que a interpretação do artigo 500 do CPC não pode ser dissociada dos demais dispositivos processuais, sob pena de uma literalidade absurda e geradora de injustiças e distorções. A lembrar a reflexão inicial deste texto, qual seja a de que o processo é um instrumento para a realização do direito material e não um fim em si mesmo.
Nesse caso, deve ser realizada uma leitura dos citados artigos de modo que a incidência de um não afaste a existência e a relevância do outro, pois cada um deles possui um sentido jurídico e uma finalidade própria no atual sistema processual. Inexiste, pois, motivo para essa confusão recorrente que vem abarrotando o Poder Judiciário em inúmeras celeumas processuais, na medida em que cada instituto jurídico – astreintes e conversão em perdas e danos – possui um campo singular de incidência.
[1] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de conhecimento. Salvador: JusPodivm, 2013.
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. A polêmica das astreintes na indenização por perdas e danos à luz do novo CPC Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 nov 2020, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55451/a-polmica-das-astreintes-na-indenizao-por-perdas-e-danos-luz-do-novo-cpc. Acesso em: 22 nov 2024.
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