RESUMO: A pesquisa objetiva tecer considerações e reflexões sobre o homicídio culposo ou doloso no trânsito, aludindo especificamente sobre a aplicabilidade do dolo eventual e da culpa consciente. Utilizou-se como metodologia, a pesquisa bibliográfica, sendo possível reunir livros, artigos e monografias com seus respectivos autores que discutem sobre o tema em questão. A pesquisa é justificadamente relevante, tanto para os operadores do Direito quanto pela sociedade, em virtude de debater sobre um assunto que ainda gera muitas discussões e dúvidas no Brasil, por conta das peculiaridades de sua aplicabilidade, que por muitos por ser observado como algo doloso e pra outros, culposo. Daí a importância de discutir e observar como tem se posicionados os tribunais e a doutrina. A pesquisa será dividida em quatro itens, quais sejam, culpa consciente, dolo eventual, posicionamento teórico e jurídico sobre a aplicação do dolo eventual ou culpa consciente em casos de homicídio decorrente de embriaguez, e por fim, uma análise sobre as decisões posteriores ao julgamento do STF.
Palavras-chave: Dolo eventual; culpa consciente; trânsito.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO - 2. CULPA CONSCIENTE - 3. O DOLO EVENTUAL - 4. APLICAÇÃO DO DOLO EVENTUAL OU CULPA CONSCIENTE EM CASOS DE HOMICÍDIO DECORRENTE DE EMBRIAGUEZ - 4.1. HABEAS CORPUS 107.801/SP - 4.2 VOTO PARA DENEGAR O HABEAS CORPUS - 5. DECISÕES DE TRIBUNAIS E DO PRÓPRIO STF POSTERIORES AO HABEAS CORPUS ANALISADO - 6. CONCLUSÃO - 7. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
O tema em questão, vem debater sobre o dolo eventual e culpa consciente nos crimes de trânsito, sendo um tema além de controvertido, repleto de polêmicas.
É imperioso denotar que, se o juiz ao entender que houve dolo, e o fato de tiver resultado morte, o caso será submetido ao Tribunal de Júri, lugar este que tem a competência de julgar homicídio doloso contra a vida.
Já se houver o entendimento que não houve dolo, mas sim culpa, o processo será julgado pelo juiz competente, utilizando-se como legislação pertinente para adequação jurídica, o Código de Trânsito Brasileiro.
Entre os institutos mencionados, há uma grande diferença entre a aplicação da pena, em virtude de que geralmente os crimes cometidos de forma intencional são punidos com maior rigor e severidade, diferentemente dos crimes que são sem a intenção, onde notadamente a aplicação é mais branda.
Insta salientar que, na aplicabilidade da pena, no momento em que houver a decisão, o juiz pode encontrar obstáculos para julgar, no sentido de observar se trata de um crime culposo ou doloso, em virtude das circunstâncias do crime, e dos casos já julgados, por não ter definitivamente um entendimento consolidado sobre o assunto.
Diante disso, tal problemática será discorrida na pesquisa, com o evidente objetivo de tecer considerações de quando será dolo eventual e quando será culpa consciente, discriminando especificamente suas diferenças, aludindo, por consequência, suas características, conceitos e aplicabilidade.
A pesquisa é justificadamente relevante, tanto para os operadores do Direito quanto pela sociedade, em virtude de debater sobre um assunto que ainda gera muitas discussões e dúvidas no Brasil, por conta das peculiaridades de sua aplicabilidade, que por muitos por ser observado como algo doloso e pra outros, culposo. Daí a importância de discutir e observar como tem se posicionados os tribunais e a doutrina.
A pesquisa será dividida em quatro itens, quais sejam, culpa consciente, dolo eventual, posicionamento teórico e jurídico sobre a aplicação do dolo eventual ou culpa consciente em casos de homicídio decorrente de embriaguez, e por fim, uma análise sobre as decisões posteriores ao julgamento do STF.
De acordo com Bittencourt (2010), culpa consciente que é entendida também como culpa com previsão, é vista como uma hipótese, onde o agente prever a possibilidade de se produzir um resultado ilícito, acreditando-se de forma sincera que não há chance de ocorrer o resultado.
Desta forma, não é suficiente a mera previsibilidade para que haja a culpa consciente, é fundamentalmente necessário que haja também a questão da confiabilidade onde agente acredita com veemência que não é possível que ocorra a consequência danosa.
Analisando-se os referidos requisitos, entende-se que o primeiro está atrelado à possível previsão do resultado, consistindo-se na concretude do agente prever verdadeiramente o resultado danoso, ou seja, que sua conduta por si só é possível de haver tal consequência. Interessante notar que tal previsibilidade está adstrito na situação de um homem mediano, não exigindo-se que o agente preveja uma consequência danosa que não seria prevista de maneira normal por qualquer outra pessoa.
Importante mencionar que, o juiz não consegue verificar de forma precisa a presença o requisito mencionado, devendo-se olhar o lugar do autor a partir da ação, levando-se em consideração, desta forma, as circunstâncias da concretude do caso, em conjunto com as circunstâncias conhecidas pelo autor e a experiência comum da época sobre os cursos causais para, somente então, poder precisar se houve ou não previsibilidade objetiva.
Ressalte-se que na decisão sobre a existência ou não do elemento pode ser algo confuso, em virtude forma subjetiva que se ver o conceito, cujo teor está alinhado a “situações previsíveis para um homem de inteligência mediana”, e evidentemente não daria pra ser diferente, isso porque não como fazer uma taxatividade de tais circunstâncias, por conta de haver milhares de situações que podem haver previsibilidade, dependendo-se de interpretações caso a caso.
Juarez Tavares (1985) destaca que, na análise da culpa consciente, deve-se proceder com cautela, já que o que efetivamente caracteriza tal modalidade não é a previsão do resultado, e sim a consciência em relação à lesão ao dever de cuidado.
3. O DOLO EVENTUAL
Neste instituto especificamente, o individuo não deseja de forma direta os elementos no tipo penal, mas evidentemente aceita como provável, admitindo-se, portanto, o risco de produzir. Luiz Regis Prado, ao definir o dolo eventual observa que:
O agente conhece a probabilidade de que sua ação realize o tipo e ainda assim age. Vale dizer: o agente consente ou se conforma, se resigna ou simplesmente assume a realização do tipo penal Diferentemente do dolo direto, no dolo eventual ‘não concorre a certeza de realização do tipo, nem este último constitui o fim perseguido pelo autor’. A vontade também se faz presente, ainda que de forma mais atenuada (PRADO, 2017).
Atente-se, desse modo, à redação ora adotada pelo nosso Código Penal em seu artigo 18, inciso I, segunda parte que especifica que: “Diz-se o crime: doloso, quando o agente (...) assumiu o risco de produzi-lo (o resultado)”. Nelson Hungria, verificar através de sua observação que a a redação do Código vai além do que simplesmente ter consciência de correr o risco, assumir o risco significa algo mais do que simplesmente ter consciência do risco. Assumir o risco é consentir previamente no resultado, caso este venha a ocorrer (HUNGRIA, 2015).
Hungria ainda faz uma análise que, para a existência do dolo eventual, basta que o agente, na dúvida sobre se o resultado previsto aconteceria ou não, não se abstenha da ação, pois quem age mediante tal dúvida assume o risco do que possa vir a acontecer (HUNGRIA, 2015).
Bittencourt, ao observar a questão do dolo eventual afirma que
Haverá dolo eventual quando o agente não quiser diretamente a realização do tipo, mas a aceitar como possível ou até provável, assumindo o risco da produção do resultado (art.l8,1, in fine, do CP). No dolo eventual o agente prevê o resultado como provável ou, ao menos, como possível, mas, apesar de prevê-lo, age aceitando o risco de produzi-lo (BITTENCOURT, ano).
Juarez Tavares (1985), sobre o dolo eventual discorre que, o autor, ao verificar como possível a ocorrência das consequências típicas de suas ações, pode tomar duas posturas distintas: conformar-se com o acontecimento, ou confiar na sua verificação.
No primeiro caso, o autor não se atribui qualquer chance de evitar o resultado, e deixa a sua ocorrência ao acaso. A dependência da atividade futura é menosprezada pelo autor, o que demonstra, ainda que de forma indireta, uma vontade de realização. Nesta situação teríamos a ocorrência do dolo eventual.
Na segunda hipótese, o autor confia em seu poder de evitar o resultado, através da sua condução dos eventos, em virtude da sua habilidade, ou mesmo em razão da sua presença de espírito, atenção ou cuidado. De tal maneira, o autor atua sem vontade de realização, agindo com culpa consciente (TAVARES, 1985).
Para tentar explicar o dolo eventual e diferenciá-lo da culpa consciente, diversos autores citam chamado caso Lacmann. Tal exemplo consiste em um homem que realiza uma aposta de que irá quebrar, com um tiro, uma bola de vidro que uma feirante está encarregada de segurar, sem feri-la. O atirador aceita o desafio e acaba acertando a mão da feirante. Se o autor confiava em sua habilidade com a arma de fogo, estamos diante de uma conduta culposa, por outro lado, se realizou o disparo ciente de sua inabilidade — e, portanto, conformado com a possibilidade de atingir a mulher — estaremos diante do dolo eventual (ROXIN, 2012).
Outro problema relacionado à definição de dolo eventual está na sua determinação em relação aos elementos volitivo e intelectual do dolo. Roxin, ao tentar relacionar o dolo eventual com os dois elementos, afirma que o elemento volitivo está configurado mais fracamente com relação às outras espécies de dolo. O “saber” relativo à produção do resultado também é substancialmente menor. A redução tanto do elemento intelectual com do volitivo demonstra uma diminuição da própria substância do dolo, e, em casos limítrofes se aproxima demasiadamente da culpa consciente.
Na tentativa de relacionar o dolo eventual com o elemento volitivo, Nelson Hungria explicou que: “Quando a vontade, dirigindo-se a certo resultado, não recua ou não refoge da prevista probabilidade de outro resultado, consentindo no seu advento, não pode haver dúvida de que esse outro resultado entra na órbita da vontade do agente, embora de modo secundário ou mediato” (HUNGRIA, 2015).
É possível perceber que uma definição precisa do conceito de dolo eventual é extremamente difícil, e se torna uma tarefa ainda mais complicada no momento de diferenciá-lo da culpa consciente. Diversos exemplos são citados para tentar se esclarecer a questão, além da elaboração de diversas teorias para tal (HUNGRIA, 2015).
4. APLICAÇÃO DO DOLO EVENTUAL OU CULPA CONSCIENTE EM CASOS DE HOMICÍDIO DECORRENTE DE EMBRIAGUEZ
Observados de forma inteligente e concisa sobre os institutos do dolo eventual e da culpa consciente, far-se-á abaixo uma análise sobre sua aplicabilidade no caso concreto.
4.1. HABEAS CORPUS 107.801/SP
No Habeas Corpus 107.801 teve sua impetração em favor de L.A.M. diante do acórdão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, onde anteriormente havia sido denegado a ordem nos autos do Habeas Corpus n. 94.916.
De início, o paciente foi pronunciado pela suposta prática de homicídio doloso qualificado (artigo 121, §2º, inciso IV, combinado com o artigo 18, inciso II, 2ª parte, ambos do Código Penal). Contra tal decisão foi interposto recurso em sentido estrito no Tribunal de Justiça de São Paulo, o qual foi provido parcialmente, corrigindo a tipificação do delito para o artigo 121, §2º, inciso IV, combinado com o artigo 18, inciso I, 2ª parte — dolo eventual —, ambos do Código Penal.
A defesa impetrou, então, no Superior Tribunal de Justiça o Habeas Corpus 94.916, tendo como relator o Ministro Jorge Mussi, que denegou a ordem:
EMENTA: HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EXAME DE ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. ANÁLISE APROFUNDADA DO CONJUNTO FÁTICO- PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE SENTENÇA. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA. 1. A decisão de pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação, exigindo o ordenamento jurídico somente o exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria, não se demandando aqueles requisitos de certeza necessários à prolação de um édito condenatório, sendo que as dúvidas, nessa fase processual, resolvem-se contra o réu e a favor da sociedade. É o mandamento do art. 408 e atual art. 413 do Código Processual Penal. 2. O exame da insurgência exposta na impetração, no que tange à desclassificação do delito, demanda aprofundado revolvimento do conjunto probatório - vedado na via estreita do mandamus -, já que para que seja reconhecida a culpa consciente ou o dolo eventual, faz-se necessária uma análise minuciosa da conduta do paciente. 3. Afirmar se agiu com dolo eventual ou culpa consciente é tarefa que deve ser analisada pela Corte Popular, juiz natural da causa, de acordo com a narrativa dos fatos constantes da denúncia e com o auxílio do conjunto fático- probatório produzido no âmbito do devido processo legal, o que impede a análise do elemento subjetivo de sua conduta por este Sodalício. 4. Na hipótese, tendo a decisão impugnada asseverado que há provas da ocorrência do delito e indícios da autoria assestada ao paciente e tendo a provisional trazido a descrição da conduta com a indicação da existência de crime doloso contra a vida, sem proceder à qualquer juízo de valor acerca da sua motivação, não se evidencia o alegado constrangimento ilegal suportado em decorrência da pronúncia a título de dolo eventual, que depende de profundo estudo das provas, as quais deverão ser oportunamente sopesadas pelo Juízo competente no âmbito do procedimento próprio, dotado de cognição exauriente. 5. Ordem denegada.
Os impetrantes insurgiram contra a referida decisão, alegando que o caso se tratava de homicídio culposo e não doloso, requerendo a desclassificação para o artigo 302, caput, ou inciso V, da Lei n.º 9.503/97 — homicídio culposo na direção de veículo automotor em decorrência de embriaguez. A Procuradoria-Geral da República opinou pelo indeferimento do pedido de habeas corpus.
4.2 VOTO PARA DENEGAR O HABEAS CORPUS
A ministra relatora Cármen Lúcia, apesar da relevância da questão e da grande repercussão na pena do paciente, afirma que o Habeas Corpus não seria a via adequada para apreciar os pedidos realizados pelo impetrante. A ministra afirma que o Habeas Corpus não seria a via adequada para a apreciação do pedido, pois a determinação se o autor teria agido com dolo eventual ou culpa consciente necessitaria de análise profunda do contexto fático e probatório, o que ultrapassaria o âmbito de cognição sumária do Habeas Corpus, e cita:
o instituto do habeas corpus visa amparar direito líquido, que se entende aquele cuja existência não é afetada por dúvidas ou incertezas. É de se ver que tal direito deve ser demonstrado com evidência, sem necessitar de produzir provas, pois no julgamento de habeas corpus não é admissível o exame aprofundado de provas. É claro que o impetrante terá que fornecer de plano os elementos indispensáveis que demonstrem a liquidez de seu direito. O que não se admite é que haja exame aprofundado de prova, para aferir o direito do impetrante ou paciente, que deve fluir naturalmente do próprio pedido (NOGUEIRA, 1977).
Ela, ainda destaca a dificuldade de se apreciar a questão, ao citar a seguinte referência da doutrina:
Diferença entre a culpa consciente e dolo eventual: trata-se de distinção teoricamente plausível, embora, na prática, seja muito complexa e difícil. Em ambas as situações o agente tem a previsão do resultado que sua conduta pode causar, embora na culpa consciente não o admita como possível e, no dolo eventual admita a possibilidade de se concretizar, sendo-lhe indiferente. Em nota anterior, demonstrou-se, através da jurisprudência pátria, no contexto dos crimes de trânsito, como é tênue a linha divisória entre um e outro. Se, anos atrás, um racha, com vítimas fatais, terminava sendo punido como delito culposo (culpa consciente), hoje não se deixa de considerar o desprezo pela vida por parte do condutor do veículo, punindo-se como crime doloso (dolo eventual) (NUCCI, 2003)
No entanto, como demonstrado posteriormente pelos demais ministros que votaram no caso, a via do Habeas Corpus era plenamente possível para se apreciar a questão, já que o exame do caso não se tratava de exame do conjunto fático-probatório e, sim em revaloração dos fatos postos nas instâncias inferiores, o que seria viável em sede de Habeas Corpus.
Finalmente, a Ministra demonstra a sua opinião sobre o caso, a qual gravita a favor da aplicação do dolo eventual no caso, afirmando que a doutrina e a jurisprudência têm admitido em diversos casos a existência do dolo eventual nos crimes graves de trânsito, citando:
tem sido posição adotada, atualmente, na jusrisprudência pátria considerar a atuação do agente em determinados delitos cometidos no trânsito não mais como culpa consciente, e sim como dolo eventual. As inúmeras campanhas realizadas, demonstrando o perigo da direção perigosa e manifestamente ousada, são suficientes para esclarecer os motoristas da vedação legal de certas condutas, tais como o racha, a direção em alta velocidade, sob embriaguez, entre outras. Se, apesar disso, continua o condutor do veículo a agir dessa forma nitidamente arriscada, estará demonstrando seu desapego à incolumidade alheia, podendo responder por delito doloso (NUCCI, 2003).
Ademais, a Ministra ressalta o parecer da Procuradoria-Geral da República:
Há nos autos, portanto, elementos que comprovam a materialidade e demonstram a existência de indícios de autoria de crime de homicídio doloso, vale dizer, as circunstâncias do ocorrido demonstram ter a aparência de dolo eventual. Enfim, para a inversão do quanto — acertadamente — decidido pela instância a quo, seria necessário o reexame dos elementos de convicção produzidos na ação penal, providência essa vedada na estreita via mandamental (BRASIL, 2011).
De tal maneira, apesar de se esquivar da apreciação concreta da matéria em via de Habeas Corpus, a Ministra Carmén Lucia gravita em favor da aplicação do dolo eventual, ao citar passagens neste sentido. Dentre elas se encontra a argumentação de que inúmeras campanhas publicitárias são realizadas no sentido de demonstrar o perigo da direção perigosa, demonstrando ao motorista a vedação da conduta de se conduzir o veiculo sob o estado de embriaguez. Se, apesar de tal conhecimento, o condutor continua a agir dessa forma arriscada, estaria demonstrado o desapego de sua ação — a assunção do risco — configurando-se o dolo eventual.
No entanto, tal argumento se revela raso, e, no final de tudo, baseia a aplicação do dolo eventual no caso, somente em virtude da embriaguez do acusado, sem nenhuma análise mais profunda do contexto fático, ou das teorias relacionadas à distinção entre dolo eventual e culpa consciente
5. DECISÕES DE TRIBUNAIS E DO PRÓPRIO STF POSTERIORES AO HABEAS CORPUS ANALISADO
A decisão analisada aqui foi utilizada em outros processos do Supremo Tribunal Federal, como precedente no sentido de que o crime de homicídio praticado na condução de veículo sob a influência de álcool só é considerado doloso em caso de embriaguez preordenada.
HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE HOMICÍCIO PRATICADO NA CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO PREVISTO NO ARTIGO 302 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. DEBATE ACERCA DO ELEMENTO VOLITIVO DO AGENTE. CULPA CONSCIENTE X DOLO EVENTUAL. CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI. CIRCUNSTÂNCIA QUE OBSTA O ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO. REEXAME DE PROVA. ORDEM DENEGADA. I - O órgão constitucionalmente competente para julgar os crimes contra a vida e, portanto, apreciar as questões atinentes ao elemento subjetivo da conduta do agente aqui suscitadas – o Tribunal do Júri - concluiu pela prática do crime de homicídio com dolo eventual, de modo que não cabe a este Tribunal, na via estreita do habeas corpus, decidir de modo diverso. II - A jurisprudência desta Corte está assentada no sentido de que o pleito de desclassificação de crime não tem lugar na estreita via do habeas corpus por demandar aprofundado exame do conjunto fático-probatório da causa. Precedentes. III – Não tem aplicação o precedente invocado pela defesa, qual seja, o HC 107.801/SP, por se tratar de situação diversa da ora apreciada. Naquela hipótese, a Primeira Turma entendeu que o crime de homicídio praticado na condução de veículo sob a influência de álcool somente poderia ser considerado doloso se comprovado que a embriaguez foi preordenada. No caso sob exame, o paciente foi condenado pela prática de homicídio doloso por imprimir velocidade excessiva ao veículo que dirigia, e, ainda, por estar sob influência do álcool, circunstância apta a demonstrar que o réu aceitou a ocorrência do resultado e agiu, portanto, com dolo eventual. IV - Habeas Corpus denegado. (grifo nosso)(BRASIl, 2013)
HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE HOMICÍCIO PRATICADO NA CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PRETENSÃO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME PREVISTO NO ARTIGO 302 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. DEBATE ACERCA DO ELEMENTO VOLITIVO DO AGENTE. CULPA CONSCIENTE X DOLO EVENTUAL. CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI. CIRCUNSTÂNCIA QUE OBSTA O ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO. REEXAME DE PROVA. WRIT ORDEM DENEGADA. I - O órgão constitucionalmente competente para julgar os crimes contra a vida e, portanto, apreciar as questões atinentes ao elemento subjetivo da conduta do agente aqui suscitadas – o Tribunal do Júri - concluiu pela prática do crime de homicídio com dolo eventual, de modo que não cabe a este Tribunal, na via estreita do habeas corpus, decidir de modo diverso. II - A jurisprudência desta Corte está assentada no sentido de que o pleito de desclassificação de crime não tem lugar na estreita via do habeas corpus por demandar aprofundado exame do conjunto fático-probatório da causa. Precedentes. III – Não tem aplicação o precedente invocado pela defesa, qual seja, o HC 107.801/SP, por se tratar de situação diversa da ora apreciada. Naquela hipótese, a Primeira Turma entendeu que o crime de homicídio praticado na condução de veículo sob a influência de álcool somente poderia ser considerado doloso se comprovado que a embriaguez foi preordenada. No caso sob exame, o paciente foi pronunciado pela prática de homicídio doloso por imprimir velocidade excessiva ao veículo que dirigia, incompatível com a via em que ocorreu o acidente, colocando em risco a incolumidade alheia, situação que demonstra que o réu aceitou a ocorrência do resultado e agiu, portanto, com dolo eventual. IV - Este Tribunal assentou o entendimento de que a demonstração de prejuízo, “a teor do art. 563 do CPP, é essencial à alegação de nulidade, seja ela relativa ou absoluta, eis que, (…) o âmbito normativo do dogma fundamental da disciplina das nulidades pas de nullité sans grief compreende as nulidades absolutas (HC 85.155/SP, Rel. Min. Ellen Gracie). V - Habeas Corpus denegado.” (grifo nosso) (BRASIL, 2013)
No entanto, a análise dos julgados citados, demonstra a grande semelhança entre estes e o primeiro Habeas Corpus analisado. Nos três casos houve a sentença de pronúncia, pronunciando o agente na modalidade dolosa do homicídio cometido no trânsito, por dolo eventual. No primeiro caso, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela possibilidade da intervenção para desclassificar o delito para a modalidade culposa, no entanto, nas outras duas, decidiu de forma diversa, afirmando sobre a impossibilidade de se intervir pela via do Habeas Corpus e decidindo com o intuito de manter a figura do dolo eventual
Há de se notar uma ligeira diferença entre os três casos analisados, no primeiro somente existia o fator da embriaguez na análise do dolo eventual do agente, enquanto no segundo a embriaguez foi somada ao excesso de velocidade, e no terceiro somente havia o excesso de velocidade.
No entanto a presunção de que a adição de excesso de velocidade na análise leva à pretensão de que o agente agiu com dolo eventual em muito se assemelha àquela presunção de que a embriaguez do acusado gera o dolo eventual, a qual foi condenada pelo próprio Supremo Tribunal em primeiro lugar.
O próprio Ministro Fux manteve a figura do dolo eventual em um caso de homicídio no trânsito
PENAL E PROCESSO PENAL. CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. HOMICÍDIO. “PEGA” OU “RACHA” EM VIA MOVIMENTADA. DOLO EVENTUAL. PRONÚNCIA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. ALTERAÇÃO DE ENTENDIMENTO DE DESEMBARGADORA NO SEGUNDO JULGAMENTO DO MESMO RECURSO, ANTE A ANULAÇÃO DO PRIMEIRO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. EXCESSO DE LINGUAGEM NO ACÓRDÃO CONFIRMATÓRIO DA PRONÚNCIA NÃO CONFIGURADO. DOLO EVENTUAL X CULPA CONSCIENTE. PARTICIPAÇÃO EM COMPETIÇÃO NÃO AUTORIZADA EM VIA PÚBLICA MOVIMENTADA. FATOS ASSENTADOS NA ORIGEM. ASSENTIMENTO QUE SE DESSUME DAS CIRCUNSTÂNCIAS. DOLO EVENTUAL CONFIGURADO. AUSÊNCIA DE REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. REVALORAÇÃO DOS FATOS. ORDEM DENEGADA. (...)IV – ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO 11. O caso sub judice distingue-se daquele revelado no julgamento do HC nº 107801 (rel. min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJ de 13/10/2011), que cuidou de paciente sob o efeito de bebidas alcoólicas, hipótese na qual gravitava o tema da imputabilidade, superada tradicionalmente na doutrina e na jurisprudência com a aplicação da teoria da actio libera in causa, viabilizando a responsabilidade penal de agentes alcoolizados em virtude de ficção que, levada às últimas consequências, acabou por implicar em submissão automática ao Júri em se tratando de homicídio na direção de veículo automotor. 12. A banalização do crime de homicídio doloso, decorrente da sistemática aplicação da teoria da “ação livre na causa” mereceu, por esta Turma, uma reflexão maior naquele julgado, oportunidade em que se limitou a aplicação da mencionada teoria aos casos de embriaguez preordenada, na esteira da doutrina clássica. 13. A precompreensão no sentido de que todo e qualquer homicídio praticado na direção de veículo automotor é culposo, desde não se trate de embriaguez preordenada, é assertiva que não se depreende do julgado no HC nº 107801. 14. A diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente encontra-se no elemento volitivo que, ante a impossibilidade de penetrar-se na psique do agente, exige a observação de todas as circunstâncias objetivas do caso concreto, sendo certo que, em ambas as situações, ocorre a representação do resultado pelo agente. 15. Deveras, tratando-se de culpa consciente, o agente pratica o fato ciente de que o resultado lesivo, embora previsto por ele, não ocorrerá. Doutrina de Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, v. 1., p. 116-117); Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal – parte geral, Rio de Janeiro: Forense, 2006, 17. ed., p. 173 – grifo adicionado) e Zaffaroni e Pierangelli (Manual de Direito Penal, Parte Geral, v. 1, 9. ed – São Paulo: RT, 2011, pp. 434-435 – grifos adicionados). 16. A cognição empreendida nas instâncias originárias demonstrou que o paciente, ao lançar-se em práticas de expressiva periculosidade, em via pública, mediante alta velocidade, consentiu em que o resultado se produzisse, incidindo no dolo eventual previsto no art. 18, inciso I, segunda parte, verbis: (“Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo” - grifei). 17. A notória periculosidade dessas práticas de competições automobilísticas em vias públicas gerou a edição de legislação especial prevendo-as como crime autônomo, no art. 308 do CTB, in verbis: “Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada:”. 18. O art. 308 do CTB é crime doloso de perigo concreto que, se concretizado em lesão corporal ou homicídio, progride para os crimes dos artigos 129 ou 121, em sua forma dolosa, porquanto seria um contra-senso transmudar um delito doloso em culposo, em razão do advento de um resultado mais grave. Doutrina de José Marcos Marrone (Delitos de Trânsito Brasileiro: Lei n. 9.503/97. São Paulo: Atlas, 1998, p. 76). 19. É cediço na Corte que, em se tratando de homicídio praticado na direção de veículo automotor em decorrência do chamado “racha”, a conduta configura homicídio doloso. Precedentes: HC 91159/MG, rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJ de 24/10/2008; HC 71800/RS, rel. Min. Celso de Mello, 1ªTurma, DJ de 3/5/1996. 20. A conclusão externada nas instâncias originárias no sentido de que o paciente participava de “pega” ou “racha”, empregando alta velocidade, momento em que veio a colher a vítima em motocicleta, impõe reconhecer a presença do elemento volitivo, vale dizer, do dolo eventual no caso concreto. 21. A valoração jurídica do fato distingue-se da aferição do mesmo, por isso que o exame da presente questão não se situa no âmbito do revolvimento do conjunto fático-probatório, mas importa em mera revaloração dos fatos postos nas instâncias inferiores, o que viabiliza o conhecimento do habeas corpus. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 17/8/1990. 22. Assente-se, por fim, que a alegação de que o Conselho de Sentença teria rechaçado a participação do corréu em “racha” ou “pega” não procede, porquanto o que o Tribunal do Júri afastou com relação àquele foi o dolo ao responder negativamente ao quesito: “Assim agindo, o acusado assumiu o risco de produzir o resultado morte na vítima?”, concluindo por prejudicado o quesito alusivo à participação em manobras perigosas. 23. Parecer do MPF pelo indeferimento da ordem. 24. Ordem denegada. (grifo nosso) (BRASIL, 2011)
É claro que este último caso em muito difere dos outros analisados, já que se trata da prática de “racha” ou corrida em plena via pública. Tal fator parece apontar com muito mais eficiência a existência do dolo eventual no caso concreto do que somente a presença da embriaguez ou do excesso de velocidade.
6. CONCLUSÃO
A diferenciação do dolo eventual e da culpa consciente não se mostra das tarefas mais fáceis do Direito Penal, sendo que diversas teorias já foram criadas para solucionar o tema. Quando se passa ao campo da prática a dificuldade da matéria em muito se eleva, já que a sua definição passa pelo campo da psique do autor, sendo necessário investigar-se se este assumiu ou não o risco por ele previsto.
A dificuldade prática se revela através da análise da jurisprudência atual, que não mantém entendimentos totalmente uniformes em relação à questão, apesar de se notar uma tendência a aplicação da culpa consciente
Muito cuidado é necessário no momento de manejar estes institutos. Não pode haver uma banalização do dolo eventual, sob o risco de se causar descrédito nas decisões judiciais. No entanto, é necessário encontrar uma forma concreta e mais uniforme de se tratar o tema, haja vista a insegurança jurídica causada pela presente indecisão de qual instituto a ser aplicado.
7. REFERÊNCIAS:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. parte geral. 1 vol. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2010).
TAVARES, Juarez. Direito Penal da negligência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 172.
PRADO, Luis Regis. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 9 ed. p. 336. 2010.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. I. Tomo 2º.p. 119. 2017
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. p. 320. 2010.
ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. Tomo I. p. 438. 2000.
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Questões processuais controvertidas. São Paulo: Sugestões Literárias, 1977. p. 325.
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Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Manaus - CEULM/ULBRA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SCHAEFER, Barbara Cristina Valois. Homicídio culposo/doloso no trânsito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 nov 2020, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55498/homicdio-culposo-doloso-no-trnsito. Acesso em: 22 nov 2024.
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