RESUMO: Este artigo tem como objetivo verificar a formação de um Estado paralelo frente à atuação do crime organizado no Brasil. Discorre sobre o crime organizado como um fenômeno mundial, analisando conceito e características do crime organizado como fenômeno mundial, e sua evolução, inicialmente, frente ao panorama internacional, e, mais especificamente, quanto ao seu surgimento no Brasil, avaliando as origens do Comando Vermelho. Aborda a transnacionalidade do crime organizado, os delitos diretamente implicados, e, finalmente, discute o Estado paralelo, como consequência direta das atividades das organizações criminosas, tendo em vista que, para alguns autores, a sua existência é questionável. Conclui que a existência de um Estado paralelo como decorrência da criminalidade organizada é inegável e que a legislação vigente no país não está sendo suficientemente eficaz quanto ao seu combate e repressão. Oferece, como sugestão, que o Estado afaste a função social das organizações criminosas, retirando delas o poder que exercem sobre as comunidades em que se inserem, restringindo, ao mesmo tempo, a internacionalização de capitais, porque é através da lavagem de dinheiro que as organizações criminosas se fortalecem.
Palavras-chaves: crime organizado, lavagem de capitais, Estado paralelo
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO - 2. CRIME ORGANIZADO - 2.1 CONCEITOS E CARACTERÍSTICAS - 3. O CRIME ORGANIZA DO E O ESTADO PARALELO - 3.1 CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL - 3.2 O ESTADO PARALELO E O CRIME ORGANIZADO - 4. CONCLUSÃO - 5. REFERÊNCIAS
1. INTRODUÇÃO
O crime organizado apresenta peculiaridades que o aproximam das grandes organizações comerciais. Se caracteriza por possuir divisão de trabalho e ordenamento hierárquico, por orientar-se segundo uma lógica de empreendimento capitalista, reinvestindo seus ganhos em atividades criminosas ou em negócios lícitos, o que acentua a importância da lavagem de dinheiro, constituindo-se, assim, em uma rede de relações que se estende além do espaço local e até mesmo das fronteiras de um país, que, para atingir seus objetivos, captura, controla e utiliza setores do próprio Estado.
Embora para alguns o surgimento do crime organizado no Brasil tenha sido o cangaço, o poder das organizações criminosas, na atualidade, começou a tomar forma com o Comando Vermelho e com o Primeiro Comando da Capital, indicando que a principal atividade do crime organizado é o tráfico de drogas. Entretanto, também são relevantes a corrupção generalizada que produz o tráfico de influência, o contrabando, o tráfico de armas de fogo, e os furtos e roubos de automóveis e de cargas.
O enfoque da atividade criminosa organizada mais preocupante, além do tráfico de drogas, é o comércio de seres humanos, que se expande com a globalização. Principalmente no que se refere ao tráfico de drogas, o desenvolvimento dos mercados transformou o comércio ilegal em fator econômico, criando postos de trabalho, tanto nos países produtores quanto nos consumidores, beneficiando populações de países pobres.
Assim, a atribuição de um caráter social ao tráfico e a substituição do Estado oficial (ou legal) em muitas das funções que lhe seriam inerentes, motiva a criação de um Estado paralelo, cujo estudo é o objetivo principal do presente trabalho.
Com este intuito, o primeiro item versará sobre o crime organizado, analisando conceito e características do crime organizado como fenômeno mundial, e sua evolução, inicialmente, frente ao panorama internacional, e, mais especificamente, quanto ao seu surgimento no Brasil, avaliando as origens do Comando Vermelho.
O segundo item abordará a transnacionalidade do crime organizado, os delitos diretamente implicados, e, finalmente, discutirá o Estado paralelo, como consequência direta das atividades das organizações criminosas, tendo em vista que, para alguns autores, a sua existência é questionável.
Frente ao que será exposto, a realização do presente estudo se justifica na gravidade do problema e, principalmente, na necessidade de ações mais enérgicas dos governos, de uma maneira geral, e da edição de leis que viabilizem coibir a atividade criminosa organizada no Brasil e em outros países do mundo.
2. CRIME ORGANIZADO
2.1 CONCEITOS E CARACTERÍSTICAS
Referindo-se a uma enorme variedade de delitos (tráfico de drogas, de armas, de mulheres e crianças, fraudes financeiras, falsificações de remédios e cartões de crédito), a expressão “criminalidade organizada”, na concepção de Graziela Palhares Torreão Braz, “ganha, cada vez mais, popularidade, apesar de a doutrina não haver logrado formular, ainda, um conceito único que permita abarcar toda a pluralidade e complexidade inerentes ao problema”. (BRAZ, 1999)
De qualquer forma, para a autora nominada, a falta de um conceito repercute negativamente, não apenas porque a inexistência de seu exato significado enseja uma dupla margem de liberdade ao legislador no que se refere à escolha dos meios de intervenção a serem usados para o seu enfrentamento, como também provoca incerteza quanto à sua adequada utilização (BRAZ, 1999)
O crime organizado é conceituado, por Antônio Carlos de Lima, como sendo:
[...] uma atividade de grupo, estável, permanente, disciplinada e estruturada, tendo por fim obter proveito econômico, através de uma atividade criminosa, a longo termo e contínua, conduzida além das fronteiras nacionais, gerando proveitos que são disponibilizados para fins lícitos (LIMA, 2017).
André Callegari afirma que a criminalidade organizada, com base na doutrina, significa a criminalidade de vários membros da sociedade, que associam-se geralmente por tempo indeterminado e organizam sua atividade criminal como se fosse um projeto empresarial (CALLEGARI, 2003).
Para Eugenio Raúl Zaffaroni, crime organizado é um fenômeno de mercado desorganizado, desenvolvido por uma atividade empresarial nem sempre lícita. Assim, considera justificada a impossibilidade de conceituação, na medida em que teria de abranger toda a dinâmica do mercado, rotulando-o, por conta disso, de “categoria frustrada” (CALLEGARI, 2003).
Diante do que já foi dito, parece óbvio que a conceituação do crime organizado será mais exitosa se embasada nas características peculiares às organizações criminosas. Nesse sentido, Marco Antônio Desgualdo et al. consideram que:
O crime organizado é qualitativamente diverso, possui caráter transnacional, detém um imenso poder baseado numa estrutura complexa que explora as fraquezas do sistema estatal e penal; causa danosidade social de alto vulto, dispõe de moderna tecnologia, possui conexões com outros grupos delinqüenciais e ligação com autoridades da ordem social, econômica e política, possuindo grande poder de corrupção (DESGUALDO, 2012).
Para Marcelo Batlouni Mendroni (2002), condições políticas, policiais, territoriais, econômicas e sociais diversas fazem com que as organizações criminosas assumam características próprias e peculiares, amoldadas às próprias necessidades e facilidades que encontram no âmbito territorial em que atuam.
Alberto Silva Franco elenca como características presentes na criminalidade organizada: o caráter transnacional; o amplo poder proveniente do seu alto grau de organização, o qual lhe permite aproveitar as fraquezas pertinentes ao sistema penal; a capacidade de provocar danos de alto vulto; a capacidade de expandir-se por meio de diferentes condutas infracionais, atingindo ou não vítimas difusas; o uso de instrumentos modernos de tecnologia; os esquemas de conexões com outros grupos criminosos e com os setores da vida social, econômica e política do local onde se desenvolve; a produção de atos violentos; o poder de corrupção facilmente perceptível; e a capacidade de paralisar e fragilizar os poderes do Estado (FRANCO, 2004).
Luiz Vicente Cernicchiaro (2007) afirma que a caracterização desenvolvida pela doutrina abrange: a tendência transnacional; o caráter difuso, sem vítimas individuais, onde o dano não se restringe a uma ou mais pessoas, mas alcança toda a sociedade; a hierarquia dos integrantes, dentro de uma organização empresarial, na qual as responsabilidades encontram-se definidas e os procedimentos são rígidos; a divisão territorial; a preocupação permanente de fazer cessar a eficácia dos controles formais de combate à criminalidade, buscando atrair agentes do Estado para anular a atuação, obtendo, assim, verdadeira impunidade; a utilização da violência, como forma de, através do silêncio, não serem importunados; o acobertamento por atividade comercial lícita; e a exploração de atividade proibida que, no entanto, não recebe censura da sociedade.
Luiz Flávio Gomes e Raul Cervini (1997) entendem que são várias as espécies de organizações criminosas em atuação nos dias atuais.
Guaracy Mingardi (1998), no entanto, aponta a existência de pelo menos dois tipos distintos, embora aparentados, de organização criminosa: o tradicional ou territorial, que é o mais conhecido; e o empresarial.
A organização criminosa tradicional, segundo Luiz Vicente Cernicchiaro, “pode ser concebida como um organismo ou empresa, cujo objetivo seja a prática de crimes de qualquer natureza – ou seja, a sua existência sempre se justifica porque – e enquanto estiver voltada para a prática de atividades ilegais” (1997).
Complementando o que diz Cernicchiaro, Marcelo Batlouni Mendroni (2012) observa que uma forma de atuação clara nos dias de hoje, é aquela da organização criminosa que substitua o Estado em qualquer de suas funções inerentes, que não funcionam ou funcionam mal. Nesse contexto, a ausência ou má prestação de um serviço público acarreta a criação de um “Estado Paralelo” que passa a executar e controlar tais serviços. Embora ilegal, essa atividade demanda certo grau de organização, infiltrando-se nas veias estatais e estabelecendo uma disputa com o Estado, “mas atuando ao arrepio da Lei e trazendo a reboque a prática de tantas quantas forem as infrações penais necessárias ao seu sucesso”.
Para Guaracy Mingardi, as organizações criminosas tradicionais podem ter origem: na cadeia, a partir de uma liga de presos, como o Comando Vermelho, no Brasil, ou a Camorra, na Itália: pela união de pequenas quadrilhas, criando um conselho ou empossando um chefão, como a Yakuza; através de laços de sangue que unem grupos numa terra dominada por estranhos, num modelo parecido com o da Máfia de Nova Iorque; ou, ainda, pela união de grupos interessados na manutenção do monopólio de uma mercadoria ou serviço, como o Cartel de Cali (MINGARDY, 1998).
Visto sob esta ótica, o controle territorial é uma característica importante de um determinado modelo de Crime Organizado. Isto porque as organizações criminosas que tendem a se estabelecer em determinada região têm algumas características que aumentam a probabilidade do emprego da violência e da visibilidade da organização criminosa. Exemplifica com um modelo brasileiro, como se observa a seguir:
Normalmente, esta forma de Crime Organizado possui um nicho ecológico no qual são recrutados seus membros. Algumas vezes o local tem uma população comparativamente pobre e segregada. O exemplo típico são as favelas brasileiras, onde a integração ao tecido urbano por parte da população é problemático. [...] Outra característica normalmente presente em tais locais é a ausência da proteção por parte do Estado (MINGARDI, 2012).
O domínio territorial, para Marcelo Batlouni Mendroni (2012), é condição para que uma organização criminosa tenha bases mais sólidas. Inicialmente, esse domínio parte do seu Quartel General, o que não impede que, com o seu crescimento, venha a aventurar-se em territórios neutros, sem domínio de qualquer outra organização, ou até em territórios de domínio de outras, o que acarretará conflito.
Segundo Guaracy Mingardi (2012), o modelo empresarial de organização criminosa é menos definido que o tradicional e mais difícil de diferenciar das simples quadrilhas ou de uma empresa legal. Sua característica mais marcante é transpor para o crime métodos empresariais, ao mesmo tempo em que deixa de lado conceitos morais, como a honra, a lealdade e a obrigação.
André Callegari (2005) confirma que a profissionalização do trabalho é uma das características das organizações criminosas, definidas pela doutrina como entidades ordenadas em função de estritos critérios de racionalidade:
Seria como peças que se integram numa sólida estrutura em que cada um dos seus membros desempenha um determinado papel para o qual se encontra especialmente capacitado em função de suas capacidades aptidões. Atuando assim, a corporação alcança características próprias de uma sociedade de profissionais do crime na qual se manifesta um sistema de relações específicas definidas a partir de deveres e privilégios recíprocas.
Marcelo Batlouni Mendroni anota que o uso de violência é aceitável e utilizado sempre e quando seja necessário para que o objetivo seja alcançado. Entretanto, normalmente é determinada pelo chefe, que determinará a pessoa que deve cumprir, contra quem deve ser aplicada a violência e a maneira de execução. Em organizações criminosas bem estruturadas, é recurso extremo, na medida em que a prática de crimes violentos causa repulsa à população e aos investigadores, provocando um sentimento de revolta que alimenta a vontade da atuação firme da justiça.
Como característica comum aos modelos de organização criminosa, segundo Guaracy Mingardi, cabe menção ao segredo:
O silêncio sobre um crime específico praticado por membros da organização é necessário, mas silenciar sobre a própria organização também é. Para o Crime Organizado um dos ingredientes essenciais para manter as boas relações com o Estado é o segredo. Não tanto sobre a existência da organização, pois muitas delas são por demais conhecidas, mas sim de seu tamanho, poder, atividades e relacionamentos (MINGARDI, 2012).
Mas a característica mais marcante e cruel das organizações criminosas é a lavagem do dinheiro, tendo em vista que toda organização criminosa visa, especificamente, a obtenção de lucros fáceis e ilícitos. Também é responsável pela internacionalização, ou transnacionalização, da atividade criminosa organizada, uma vez que as receitas auferidas necessitam sair do país de origem e retornar, mais tarde, como “dinheiro limpo”.
Por outro lado, as organizações criminosas tipicamente brasileiras revelam estrutura hierárquico-piramidal, com no mínimo três níveis: chefes, gerentes e aviões. Segundo Marcelo Batlouni Mendroni (2012), chefes são pessoas que ocupam cargos públicos importantes, que possuem dinheiro e posição social privilegiada. Nas organizações criminosas que adotam o “sistema presidencialista”, embora possa conter chefe e subchefes, apenas um comandará, cabendo aos subchefes transmitir as ordens da chefia para os gerentes e tomar decisões na eventual ausência do chefe.
Gerentes são pessoas de confiança do chefe, com capacidade de comando, a quem é delegado algum poder. No contexto das organizações criminosas brasileiras, recebem as ordens da cúpula e as repassam aos aviões. Tratando-se de tarefa especial, eles mesmos podem ser designados para a execução. Entretanto, o papel mais relevante dos gerentes é servir como “testas de ferro” ou “laranjas”, emprestando seus nomes à abertura de empresas que serão utilizadas para a lavagem de dinheiro.
Aviões são pessoas com algumas qualificações para as funções de execução, dependendo dos ramos de atividades a que se dedique a organização. Assim, por exemplo, dedicando-se ao tráfico de entorpecentes, serão pessoas com atribuições específicas para a venda da droga no varejo, ou, pretendendo roubar veículos, serão contratados “puxadores”, especialistas em roubo ou furto.
Ademais, observa Marcelo Batlouni Mendroni (2012) que os agentes públicos participantes ou envolvidos em organizações criminosas é uma característica bastante evidente no Brasil. No mesmo diapasão, esclarece Guaracy Mingardi (2012) que:
(...) setores do Estado tendem a se manter em bons termos com determinadas organizações criminosas visando angariar influência em determinados locais. Numa democracia a influência normalmente se traduz em votos. É claro que isto não exclui a corrupção propriamente dita. Ainda mais porque nem todo tipo de Crime Organizado tem controle territorial. Sendo assim sua aproximação com o Estado tem de se dar de outra forma. Eles têm de corromper, no mínimo, o aparelho repressivo do Estado.
As organizações criminosas que atingem um certo grau de desenvolvimento já não conseguem sobreviver sem o auxílio de agentes públicos. Entre as incontáveis formas utilizadas para roubar o dinheiro público, na criminalidade brasileira, um dos mais presentes é a fraude em licitações, permissões e concessões públicas, mas também serve de exemplo o superfaturamento de obras e serviços.
3. O CRIME ORGANIZA DO E O ESTADO PARALELO
3.1 CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL
Segundo Dálio Zippin Filho (2003), “os crimes internacionais movimentam-se com a velocidade do jato e a instantaneidade da Internet”, e esse é o motivo pelo qual existe uma flagrante defasagem entre os escassos instrumentos de prevenção e repressão e a multiplicação dos ilícitos no plano internacional.
Para o citado autor, as dificuldades não dizem respeito unicamente aos crimes clássicos de alcance transnacional, tais como o narcotráfico, a prostituição, a lavagem de dinheiro e a corrupção. Elas atingem também os delitos cometidos no território de um Estado, que se referem ao Direito Internacional quando o autor presumido busca escapar da sanção correspondente, abrigando-se sob a jurisdição de outro Estado (ZIPPIN FILHO, 2003).
Hans-Jorg Albrecht (2001 )diz que a criminalidade transnacional é o mesmo que a criminalidade internacional ou que a criminalidade sem fronteiras, e que se caracteriza pelo delinqüente que aproveita as oportunidades que se oferecem para cometer delitos, transferir bens ilegais ou assumir riscos não permitidos além das fronteiras, subtraindo da definição de caráter transnacional da rede criminal qualquer referência à tipologia delitiva.
Entretanto, esclarece Dálio Zippin Filho que a transnacionalização não é o mesmo que globalização, que tem um sentido reducionista, indicando um processo de unificação total, no qual as partes se ajustam e se submetem a algo esférico, envolvente e dominante a exemplo da aldeia global. Já a mundialização possui mais um sentido expressionista, estendendo-se às nações. (ZIPPIN FILHO, 2003).
Já na concepção do jornalista hispânico J. Luís Andrade, a globalização é a mola propulsora da criminalidade organizada transnacional, pois os sucessivos acordos econômicos multilaterais, reduzindo barreiras comerciais na Europa, na América do Norte, na Ásia e em outras regiões do Globo, têm aumentado significativamente o volume do comércio internacional legítimo. Grupos organizados de criminosos têm podido tirar partido desse fato para traficar drogas, armas, diamantes e outros produtos. Tornaram-se peritos em explorar a complexidade das redes internacionais de transportes para esconder qualquer tipo de comércio ilegal, chegando mesmo a conseguir ocultar ou camuflar a verdadeira origem e propriedade da carga. Ao mesmo tempo, nesse panorama de transição para economias mais abertas, vão estabelecendo companhias de fachada e negócios para-legais ou quase-legais, de forma a facilitar o contrabando, a lavagem de dinheiro, a fraude financeira, a pirataria dos direitos de propriedade intelectual e outras iniciativas criminosas que lhes possam proporcionar lucro (ANDRADE, 2004).
Para Dálio Zippin Filho (2003), a informática é a grande facilitadora e agilizadora do crime organizado transnacional. Isto porque o impacto e a rapidez das informações correlacionam os Estados e as coletividades, permitindo com o conhecimento recíproco que também sejam reveladas e aproveitadas contribuições valiosas, antes ignoradas, de nações até então marginalizadas. Assim:
O que impõe desde logo reconhecer é que a informática, graças aos gigantescos meios eletrônicos postos à sua livre disposição, cria um sistema de relações internacionais que até agora tem escapado ao controle, quer dos Estados nacionais, quer das entidades por eles constituídas para disciplinar e reprimir abusos perpetrados por indivíduos e por empresas atuantes à margem das estruturas políticas existentes, causando irreparáveis danos aos povos (ANDRADE, 2004).
Em concordância, J. Luís Andrade assevera que, nos últimos anos, tem-se testemunhado os avanços revolucionários nas tecnologias de informação e das comunicações, o que tem contribuído, inevitavelmente, para aproximar mais o mundo, mas, como reverso da medalha, os criminosos têm hoje uma capacidade sem precedentes para, através do recurso a computadores, obter, processar e proteger informação, ultrapassando todos os esforços das forças policiais e de segurança. Podem mesmo utilizar as capacidades interativas de computadores degrande porte e de sistemas de telecomunicações para desenvolver estratégias de comercialização para drogas e outros bens de consumo ilícito. Ou para encontrar as rotas e métodos mais eficientes para introduzir e movimentar dinheiro nos sistemas financeiros mundiais, sendo capazes de criar rastros falsos para evitar a eventual detecção pelas estruturas de segurança. Também podem tirar partido da velocidade e magnitude das transações financeiras e do fato de que, na realidade, poucos obstáculos existem que, de forma eficaz, evitem processar grandes quantidades de dinheiro sem detecção. Segundo o autor ora comentado:
Efetivamente, uma das características mais marcantes do acelerado mercado global de hoje é a sua espinha dorsal de telecomunicações, fomentada por uma atividade empresarial cada vez mais exigente. Equipamentos avançados de telecomunicações, comercialmente disponíveis, fiáveis e flexíveis, facilitam grandemente as transações criminosas internacionais, garantindo aos seus operadores considerável segurança e imunidade face às operações das forças anti-crime (ANDRADE, 2004).
Por outro lado, a proliferação das ligações por transporte aéreo e o abrandamento das restrições de concessão de vistos de entrada para promover o comércio internacional, especialmente dentro de espaços econômicos regionais, têm facilitado a atividade criminosa. No passado, opções de viagem mais limitadas e um controle de fronteiras mais apertado, tornavam-lhes a passagem de fronteiras mais difícil. Agora, têm escolhas múltiplas para as rotas de viagem, o que lhes permite definir itinerários otimizados, tendo em vista a minimização do risco. Hoje, o controle de fronteiras dentro de espaços políticos e econômicos unificados é muitas vezes inexistente (ANDRADE, 2004).
No campo do narcotráfico, as atividades de distribuição e venda encontram-se terceirizadas, ou seja, quadrilhas e bandos atuam, preservando-se as organizações maiores, transnacionais. Aliás, para Antônio Sergio A. de Moraes Pitombo, a internacionalização do crime organizado deveu-se ao tráfico ilícito de entorpecentes, que incrementou as atividades criminosas transnacionais (ANDRADE, 2004).
A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional determina que delitos são transnacionais na sua natureza quando: cometidos em mais de um estado; parte substantiva da preparação, planejamento, direção ou controle é realizado em outro estado; envolve um grupo criminal organizado envolvido em atividades criminais em mais de um estado; ou têm resultados substantivos em outro estado (UNODC, 2004).
3.2 O ESTADO PARALELO E O CRIME ORGANIZADO
Para Mauro Chaves (2014), em matéria de crime organizado, o Brasil já alcançou a terceira onda. As duas primeiras ondas não ocorreram de maneira sucessiva. Têm convivido simultaneamente e agora começam a integrar-se numa terceira. A primeira onda diz respeito a amplos esquemas de corrupção institucionalizada, na política e na administração pública: o tráfico de influência, o sistema de propinas patrocinado por empreiteiras, a malversação de recursos, o superfaturamento e tudo o mais que se ilustrou com o Esquema PC, a atuação dos anões do orçamento etc.
A segunda onda se refere ao poder de um verdadeiro Estado delinqüencial, um Estado Paralelo que se instalou em muitas regiões do País e se agigantou, por causas diversas, em determinadas unidades da federação, como Rio de Janeiro e Estados Amazônicos. Diferentes são as avaliações quanto às origens desse fenômeno. No Rio, para muitos o jogo do bicho começou como uma prática ingênua e foi se transformando, ao longo do tempo, graças à conexão com o narcotráfico, nas modalidades mais pesadas de criminalidade. Nos Estados Amazônicos, onde a cumplicidade dos órgãos policiais com a criminalidade tem levado à violência, sujeitando tais Estados a permanente risco de intervenção federal, as conexões do mundo oficial com o das drogas fazem lembrar a Colômbia, cada vez mais marginalizada da comunidade das Nações, justamente por causa desse tipo de associação com os cartéis do narcotráfico (CHAVES, 2014).
Já a terceira onda do crime organizado se refere ao crescimento avassalador do poderio das associações criminosas em tempos de economia globalizada. Da mesma forma que os sistemas de produção industrial, de serviços e de comercialização deram um salto estrutural, com a pulverização dos fornecimentos e a rapidez da informação on line, as organizações criminosas se sofisticaram e aumentaram exponencialmente sua participação no mercado global. Já se fala não mais em dezenas mas em centenas de bilhões a dólares, que vão sendo lavados no mundo inteiro, camuflando-se em empresas de fachada dos mais diferentes setores de atividade. E o mais grave é que, no mundo inteiro, as organizações criminosas potencializam seu grau de influência - ou de infiltração - nos organismos e instituições do Estado. Sabendo-se o grau de vulnerabilidade das instituições públicas brasileiras a um esforço delinquencial organizado em vasta rede (e aqui bastaria citar o exemplo da gigantesca fraude à Previdência), é fácil avaliar os novos riscos que corre a sociedade (CHAVES, 2014).
Assim, fica claro que a ousadia das organizações criminosas no Brasil faz brandir uma nova bandeira: a do Estado paralelo. Sobre o alto dos morros cariocas, tremula o pendão de um estado-maior desafiador, cujo poder coercitivo lembra o do Estado legítimo. Pela voz de parentes e de amigos, que expressam sua dor em atos cívicos cada vez mais frequentes, as vítimas da violência do crime organizado clamam justas providências ao Estado de direito contra aquele Estado que impera à margem da lei. Para José Leite de Oliveira Júnior, “o clamor é sincero, mas a interpretação de suas causas, particularmente amplificada pelas lentes do noticiário especializado no crime, pode-se degenerar numa retórica falaciosa” (OLIVEIRA JUNIOR, 2004).
A ideia do Estado paralelo, como faz ver o autor nominado, não é nova na história do Brasil. Faz exatos cem anos que Euclides da Cunha a demonstrou no clássico "Os Sertões". Fruto de um quadrissecular abismo entre o Brasil do litoral e o Brasil do sertão, o episódio de Canudos é uma prova - lavrada com sangue humano - de que a histeria não traz soluções históricas.
Euclides da Cunha lembra o alto grau de organização do banditismo como fato bem anterior à guerra civil. Ensina o modo como o jagunço se fez guerrilheiro em nome de uma bandeira plantada na impagável dívida social do Estado, monarquista ou republicano: uma guerra santa. A investida do Estado apenas oficializou e protocolou, em forma de guerra civil, o abismo entre o Estado e o estado de miséria do povo sertanejo. A imprensa da época somou-se às cornetas de um exército que se viu estrangeiro em solo nacional, quando deveria motivar a sociedade brasileira a uma tomada de consciência. Será que a história se reedita? Não, a história não se repete. Os erros, sim, parecem suceder-se, quando se mantém um equívoco histórico (BOBBIO, 1982).
Desde os tempos mais antigos a ideia de um poder soberano chefiando determinado território foi concebida. Com o surgimento do Estado moderno, essa ideia se consolidou. Neste Estado, o poder soberano é o sujeito que põe as regras em um determinado território, e consequentemente, os membros da sociedade que ali estão estabelecidos, se sujeitam a elas. Deve-se compreender o poder soberano como aquele que está acima de qualquer grupo social e que possui o monopólio da força (OLIVEIRA JUNIOR, 2004).
O Estado Paralelo, para Guaracy Mingardi (2012), surge do estigma ligado à condição de morador em uma favela, separando seu habitante dos demais moradores da metrópole, fazendo com que a população favelada desenvolva tradições de autonomia político-social.
Para Michel Misse, tal afirmação não procede, pois considera que a associação entre pobreza e crime organizado existe apenas no imaginário social e na literatura sociológica, e esclarece que:
Como o ‘crime organizado’ preferiu as favelas para se instalar, e recruta quase todo o seu pessoal (inclusive lideranças) ali e nos conjuntos habitacionais pobres da cidade e da Baixada, a ‘associação’ do crime com a pobreza ganha uma nova dimensão, que por um lado se distingue da convencional, reproduzida nos roteiros típicos da polícia, dos tribunais e da penitenciária, e por outro volta a qualificá-la [...] (MISSE, 1993).
O crime organizado, instalado nas favelas e morros, costuma assumir o papel de árbitro e a exercer a pacificação que caberia ao Estado. Assim, como refere Guaracy Mingardi:
É moda falar que o tráfico só encontrou acolhida nas favelas porque atemoriza ou compra a população com algumas benesses, como bicas, campos de futebol etc. Há que se lembrar, porém, de criminosos pobres que muitas vezes encontram a mesma acolhida porque aparentemente mantêm a região livre dos pequenos meliantes. (MINGARDI, 2012)
Conquanto seja inadiável a ação punitiva, a intervenção do poder constituído sobre esse suposto Estado e seus escritórios de segurança máxima, não se pode errar o alvo principal do combate: as causas sociais que tornam fértil qualquer semeadura perversa, como é a do narcotráfico. A simples repressão, reivindicada por expressivos setores da opinião pública, tem sido uma prática ineficaz, não passando de uma forma espetacular de adiamento dos deveres sociais do Estado (OLIVEIRA JUNIOR, 2004).
Segundo Adriano Oliveira, o narcotráfico surge como problema sério na sociedade contemporânea, passando a ser compreendido como uma das variáveis causais para outros problemas. Dentre esses, encontram-se as práticas violentas na sociedade, a corrupção, a saúde pública, e mais recentemente a formação de uma narcorede institucional pública, caracterizada por práticas e atividades criminais, e o desenvolvimento de um Estado paralelo ilícito (OLIVEIRA, 2002.
No que concerne ao Estado paralelo ilícito, este se caracteriza pela existência de dois ordenamentos jurídicos. Um legal e outro ilegal. O ordenamento legal é representado pelo Estado oficial, o qual é estabelecido pelo poder constitucional. Esse poder estabelece direitos e deveres para a população e para as instituições existentes em certo território. Com isso surge o Estado de Direito. Inerente a esse território encontra-se o Estado paralelo ilícito, com as suas regras próprias, as quais concorrem com as oficiais. Nessa relação de concorrência, as regras do Estado paralelo ilícito se sobrepõem as do Estado oficial, ocorrendo uma descaracterização do Estado de Direito democrático. Assim, conclui que, no Estado paralelo ilícito existe um poder soberano, e onde existe um poder soberano existe o Direito. Portanto, esse Direito é denominado de paralelo ao Direito oficial. Tendo em vista que o Direito é um conjunto de regras que se fazem valer por diversos meios, inclusive pela força, o Estado paralelo ilícito possui as suas regras próprias, e as submete a população de certo território (OLIVEIRA, 2002).
4. CONCLUSÃO
Portanto é possível inferir que o crime organizado, pelas suas características e peculiaridades, que possui uma estrutura muito parecida com a das grandes organizações, e que, assim como os grandes conglomerados, exercem uma função social nas comunidades em que estão inseridas, com vistas a obter o silêncio destas populações.
Assim, pode-se dizer que é inegável a existência de um Estado paralelo como decorrência da criminalidade organizada, uma vez que o Estado oficial deixa a desejar no cumprimento das funções as que lhe são inerentes, sendo “coberto” pela atividade das organizações criminosas que necessitam da colaboração da comunidade onde se localizam.
Em âmbito mundial, as atividades das organizações criminosas se fortalecem na globalização e no desenvolvimento tecnológico, que possibilita a ampliação das atividades de lavagem de dinheiro, ao mesmo tempo em que se inflam no desequilíbrio econômico das nações, que viabiliza a criação do Estado paralelo e até do aumento do produto interno bruto de alguns países mais pobres, como a Colômbia, por exemplo.
Outra forma de atacar a criminalidade organizada é desestabilizando o poder econômico dessas associações, frente ao combate efetivo à lavagem de capitais. Se elas em muito se assemelham às grandes empresas formais, a falta de capital provocará a um desequilíbrio, levando a falência destas organizações
Por fim, é preciso ter em mente que o alastramento das atividades da criminalidade organizada pode levar a uma situação irreversível, afastando, cada vez mais o Estado dos cidadãos, o que já se viu em outros países, cujo caso mais famoso é o da Itália
5. REFERÊNCIAS
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Graduando em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Manaus - CEULM/ULBRA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FELIPE, GEISE BORGES. O Estado paralelo como consequência do crime organizado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 nov 2020, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55564/o-estado-paralelo-como-consequncia-do-crime-organizado. Acesso em: 22 nov 2024.
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