RESUMO: O presente trabalho analisa se os princípios do contraditório e da ampla defesa, incluídos no texto constitucional no rol dos direitos fundamentais, podem ser aplicados, ainda que de uma forma mitigada, já na fase de investigação criminal, assegurando-se, com isso, maiores garantias aos investigados na etapa pré processual. Realça a importância da investigação criminal e, em virtude disso, a necessidade de se reconhecer, a partir do indiciamento, a incidência dos direitos de informação, primeiro momento do contraditório, e da defesa, de acordo com as implicações e as limitações que serão estabelecidas.
Palavras-chave: Investigação criminal. Defesa. Contraditório. Princípios. Aplicação.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO - 2. INVERTIGAÇÃO CRIMINAL CONFORME A CONSTITUIÇÃO FEDERAL - 2.1 A NECESSIDADE DA INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR - 3 OS PRINCIPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA - 4 O CONTRADITÓRIO E O INQUÉRITO POLICIAL - 5 O DIREITO DE DEFESA E O INQUÉRITO POLICIAL - 6. CONCLUSÃO - 7. REFERÊNCIAS
1. INTRODUÇÃO
Entre as discussões doutrinárias que visam a introduzir melhorias no âmbito do Direito Processual Penal, certamente existe uma que diz respeito à fase préprocessual, assunto que será objeto desta pesquisa.
Nos debates sobre mudanças positivas na investigação criminal, surgem como soluções possíveis a simplificação na fase preliminar ou a inserção de novas garantias aos investigados.
No Brasil, ainda não se está preparado para uma simplificação na etapa pré processual, que aumentaria o risco de se submeter um inocente, desnecessariamente, a um processo penal, que se apresenta como sancionatório. Além disso, as polícias judiciárias não dispõem de equipamentos tecnológicos que permitam, por exemplo, a substituição dos termos de declarações de testemunhas, vítimas ou investigados por gravações.
Nem se pode cogitar, também, em trocar os termos de declarações por relatórios de investigações, circunstância que poderia aumentar, ao menos em tese, o arbítrio por parte de alguns policiais. Hoje, em algumas situações concretas, já são colocados em dúvida determinados depoimentos formalizados em um inquérito policial, ainda que contenham a assinatura do investigado, de duas testemunhas de leitura e, até mesmo, do advogado. Portanto, não seria prudente a simplificação da investigação criminal com a substituição dos termos de declarações, v.g., por relatórios firmados apenas por investigadores.
Além disso, um enxugamento na etapa pré-processual faria com que os milhares de inquéritos policiais que tramitam nas delegacias de polícia fossem enviados, a curto prazo, ao Poder Judiciário, que não possui, atualmente, estrutura para analisar, além da demanda que já possui, os procedimentos policiais referidos. O mesmo raciocínio vale para o Ministério Público. Assim, o problema não seria resolvido e os procedimentos de investigação hoje existentes, com a simplificação, em vez de prescreverem na polícia, prescreveriam na fase judicial.
O outro caminho possível – a inclusão de maiores garantias aos investigados – também pode trazer prejuízos. Não se olvida que a inserção de garantias que, hoje, na prática, não são asseguradas aos investigados, se não houver investimentos na fase da persecução penal, fará com que os inquéritos policiais demorem um pouco mais para serem enviados ao Poder Judiciário. Em conseqüência disso, obviamente, poderá haver um maior número de procedimentos tramitando nos órgãos policiais.
Todavia, é a linha que será adotada neste trabalho. Em vez da simplificação, fez-se opção na presente pesquisa pelo aperfeiçoamento da investigação criminal, afastando-se, ao máximo, o caráter inquisitorial do inquérito policial, com a inserção de garantias já na fase pré-processual.
Na atual pesquisa, pretende-se demonstrar que, à luz da Constituição Federal e em prol de um tratamento digno aos investigados, podem (e devem) ser aplicados na etapa preliminar, a partir de um dado momento, ainda que de uma maneira mitigada, os princípios da ampla defesa e do contraditório. Reforça-se a tese de que as pessoas submetidas a investigações não são apenas objetos, mas sujeitos de direitos.
2. INVERTIGAÇÃO CRIMINAL CONFORME A CONSTITUIÇÃO FEDERAL
No Brasil, ocorrendo uma situação típica, deve o Estado, através das polícias judiciárias, apurar a situação com o intuito de comprovar a existência do fato e de demonstrar quem são os seus prováveis autores, podendo a etapa preliminar servir de base para um juízo acusatório.
Em razão disso, torna-se imperioso que a investigação criminal assuma um papel constitucional e garantista importante: evitar acusações injustas e infundadas contra alguém sem que o fato com aparência de infração penal esteja comprovado e sem que haja indícios suficientes de autoria, pois a simples instauração de um processo penal já gera efeitos indesejáveis aos acusados da prática de crimes, mesmo que sejam, ao final, absolvidos.
Dessa forma, cabe estabelecer, preliminarmente, qual o sentido que se dará ao termo garantismo, para se esclarecer o que significa dizer que a investigação criminal deve ser um instrumento constitucional e garantista.
A teoria garantista, como ensina Ferrajoli, possui três significados. Por primeiro, significa um “modelo normativo de direito”, que serve para limitar a “função punitiva do Estado” e para assegurar a legalidade estrita do direito penal. Por segundo, “designa uma teoria jurídica da ‘validade’ e da ‘efetividade’ como categorias distintas”, ou seja, “exprime uma aproximação teórica que mantém separados o ‘ser’ e o ‘dever ser’ no direito”. Sintetizando, é uma teoria que evidencia a divergência entre normatividade e práticas operacionais (realidade, efetividade). Por fim, o garantismo indica uma “filosofia política que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade”, pressupondo a “separação entre direito e moral, entre validade e justiça” (FERRAJOLI, 2012).
De acordo com Carvalho, o modelo garantista busca a racionalidade do sistema jurídico, baseado “no máximo grau de tutela dos direitos e na fiabilidade do juízo e da legislação, com intuito de limitar o poder punitivo e garantindo a(s) pessoa(s) contra qualquer tipo de violência arbitrária, pública ou privada” (CARVALHO, 2003).
No decorrer do texto, quando se falar em garantismo, estar-se-á afirmando que se deve assegurar a todos os indivíduos, principalmente àqueles que sejam acusados da prática de uma infração penal, os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, levando-se em conta, sempre, a proteção da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil, segundo se verifica no art. 1.°, inciso III, do texto constitucional, e que o poder estatal deve ser limitado.
Hodiernamente, a investigação criminal também deve alcançar esse papel de proporcionar o respeito à dignidade da pessoa humana, ou seja, de assumir uma função constitucional e garantista, considerando que os direitos fundamentais também incidem na etapa pré-processual, devendo o Código de Processo Penal ser adaptado à CF (e não o contrário).
Como bem registra Dias Neto, os fins do processo penal podem ser simbolizados por “um pêndulo que se move entre duas posições fundamentais: o interesse de investigação (eficientismo) e o de proteção da personalidade do acusado (garantismo).”6 Impostos limites aos princípios constitucionais que serão abordados, para que não haja prejuízo à elucidação de uma situação típica e, em decorrência disso, impunidade,7 a polícia judiciária pode agir, perfeitamente, respeitando a dignidade dos investigados e aplicando os direitos fundamentais previstos no texto constitucional.
2.1 A NECESSIDADE DA INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR
O simples início de um processo penal, por si só, já gera ao réu uma sensação de desconforto, restando atingido seu estado de dignidade. Representa uma espécie de pena ou punição8 e coloca em risco a liberdade das pessoas acusadas do cometimento de uma infração penal. Independentemente do resultado final, o réu sofre os efeitos sociais do processo criminal, que emerge sancionatório (CARNELUTTI, 1995).
O processo criminal produz efeitos indeléveis em quem o sofre, ainda que venha o réu a ser absolvido. Conforme lembra Jardim, o mero fato de ser instaurado um processo penal, em virtude do streptus fori, “causa dano social irreparável ao réu” (PASTOR, 2007).
A respeito do assunto, já lembrava Carnelutti que o processo nunca acaba, principalmente nas hipóteses em que o réu seja absolvido por insuficiência de provas. Para o autor, o denunciado continua a ser acusado por toda a vida, recebendo da sociedade o estigma de criminoso (CARNELUTTI, 1995).
Além disso, também são cargas do processo a angústia causada no réu, os gastos, a perda de tempo e de trabalho, bem como a humilhação e o descrédito a que são submetidos os acusados.
Qualquer processo penal, conforme registra Tovo, “traz consigo uma carga de dor e sofrimento” que não mais será apagada pela sentença, razão pela qual o inocente não deverá sofrer com “uma acusação manifestamente injusta” (TOVO, 1995).
Dessa forma, a persecução penal em juízo deverá ser precedida de uma fase preparatória, destinada a comprovar a existência de um fato que se apresenta como infração penal e a identificar a sua autoria (MORAIS FILHO, 2000).
Levando em consideração esse aspecto, pode-se afirmar que a investigação criminal assume um caráter garantista, pois busca a restaurar um fato típico, “evitando que acusações levianas arrastem inocentes às barras dos tribunais” (FERREIRA, 2003).
É uma garantia contra juízos “apressados e errôneos”,16; servindo como um instrumento de garantia para evitar acusações injustas contra os investigados e agindo como um filtro processual (LOPES JUNIOR, 2006).
Então, para a abertura de um processo criminal contra alguém, faz-se necessário um juízo de probabilidade da autoria e da materialidade. Surge, pois, a essencialidade de uma fase pré-processual, em que sejam levados ao órgão acusador, após uma investigação preliminar, elementos necessários para a dedução da pretensão punitiva em juízo,19 evitando-se que alguém seja submetido ao processo penal sem prova da existência da infração penal e sem indícios suficientes de autoria.
Em outras palavras, deve haver um suporte probatório mínimo para que seja instaurado um processo criminal contra alguém, com o objetivo de evitar acusações infundadas em juízo e gastos desnecessários. Isso pouparia eventual suspeito “das agruras de um processo açodadamente instaurado sem um mínimo de elementos a justificarem a persecução penal em juízo” (CABETTE, 2001).
Pitombo, ao analisar a necessidade de prévia apuração de fato que se apresenta como “ilícito e típico, bem como de sua autoria, co-autoria e participação”, afirma ser a persecução penal preliminar meio que reduz os riscos de “acusações formais, infundadas, temerárias e até caluniosas”. Dessa forma, atende a investigação preliminar, ao evitar acusações e processos infundados, a um claro interesse garantista (PITOMBO, 2010).
Não obstante, é incompreensível o começo de um processo penal sem que a peça acusatória esteja amparada, ao menos, em dados capazes de tornar a acusação verossímil, coletados através de uma instrução preliminar. Devem existir, em suma, indícios27 de que o acusado é o provável autor do delito e prova de que ocorreu a infração penal. Essa é, pois, a lição de Lopes Júnior:
A investigação preliminar serve – essencialmente – para averiguar e comprovar os fatos constantes na notitia criminis, isto é, a autoria e a materialidade. Neste sentido, o poder do Estado de averiguar as condutas que revistam a aparência de um delito é uma atividade que prepara o exercício da pretensão acusatória que será posteriormente exercida no processo penal (LOPES JUNIOR, 2001).
Uma dúvida que pode surgir neste instante é se o melhor é ser suspeito da prática de uma infração penal durante a investigação criminal (investigado ou indiciado) ou acusado em um processo penal (réu).
Não se nega, desde já, que o fato de alguém figurar, no curso de um inquérito policial, como investigado também gera a essa pessoa intranquilidade e efeitos indesejáveis. De acordo com os antecedentes criminais e com as peculiaridades do fato que se investiga, o investigado poderá, por exemplo, ser preso a qualquer momento. Além do mais, já pode ser rotulado como criminoso no meio social em que vive.
3 OS PRINCIPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA
A Constituição Federal, em seu artigo 5.°, inciso L V, assegura aos litigantes e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa.
Tais princípios constitucionais são manifestações da garantia do devido processo legal, 56 prevista no artigo 5.°, inciso LIV, da Magna Carta . Efetivamente, não se pode falar em devido processo legal se não forem observados o contraditório e a ampla defesa.
Alguns doutrinadores sustentam que o contraditório se insere na ampla defesa. Para Bastos, por exemplo, o contraditório é a “exteriorização da própria defesa”, cabendo à parte contrária o direito de oposição, tanto apresentando versão diferente, como fornecendo interpretação diversa da feita pelo autor (BASTOS, 2011).
Cretella Júnior, na mesma linha, menciona que a ampla defesa inclui o contraditório e a produção de toda espécie de prova, desde que obtida de maneira lícita (JUNIOR, 1997).
Outra não é a posição de Ferrajoli, para quem a defesa é um “instrumento de solicitação e controle do método de prova acusatório, consistente precisamente no contraditório entre hipótese de acusação e hipótese de defesa”, bem como entre as provas e as contraprovas, assegurando a paridade de armas das partes (FERRAJOLI, 2002).
Por outro lado, também há quem sustente o contrário, afirmando que o direito de defesa é uma manifestação do contraditório.
Não resta dúvida de que existe uma forte ligação entre esses dois princípios, razão pela qual Grinover, Fernandes e Gomes Filho (2014) afirmam o seguinte:
Defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro momento, da informação) que brota o exercício da defesa; mas é essa – como poder correlato ao de ação – que garante o contraditório. A defesa, assim, garante o contraditório, mas também por este se manifesta e é garantida. Eis a íntima relação e interação da defesa e do contraditório.
Apesar de estarem interligados, prefere-se analisar os princípios em comento distinguindo-os, pois ampla defesa não se confunde com contraditório. Aliás, a própria Constituição Federal os separa.
No processo civil, como ensina Nery Junior, o contraditório impõe que seja dado “conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis” (NERY JUNIOR, 2012).
Ainda no âmbito do processo civil, como observa Fernandes, existem duas orientações acerca da extensão do princípio do contraditório. A primeira delas é no sentido de que se basta assegurar a bilateralidade da audiência. A outra posição, porém, estabelece um conceito restritivo ao contraditório, afirmando que o princípio se expressa pela citação, que é o ato que dá ciência da ação, com a possibilidade que é conferida ao réu de, querendo, se defender.
Tem-se que, no processo civil, efetivamente, a citação válida já satisfaz o princípio do contraditório, porque dá a oportunidade para que o réu, se assim entender, conteste a ação e as provas produzidas pela parte contrária.
Já em matéria penal, entretanto, o contraditório deve ser real, efetivo, sendo tal princípio indisponível. Como registra Nery Junior (2012), se a defesa for, por exemplo, desidiosa, insuficiente, o feito deve ser anulado e deve ser designado novo defensor ao réu.
No processo penal, o princípio do contraditório caracteriza-se, preliminarmente, por assegurar ao sujeito passivo o direito de ser informado sobre a acusação,69 com o objetivo de que possa oferecer, em um segundo instante, resistência à imputação. Assegura à pessoa apontada como provável autora de uma infração penal o conhecimento acerca da acusação e a possibilidade de reação. Em síntese, o contraditório abrange dois momentos: o direito de informação e a possibilidade de contraposição.
Lopes Júnior (2010) refere que, com o contraditório, nasce para o sujeito passivo, após tomar conhecimento da existência e do teor da imputação (direito de informação), a possibilidade de resistência “à pretensão investigatória e coercitiva estatal”.
Assim, como consigna Fernandes, “são elementos essenciais do contraditório a necessidade de informação e a possibilidade de reação”. De acordo com ele, o princípio se caracteriza pelo fato de oportunizar a uma das partes contrariar os atos praticados pela que está em lado oposto na relação processual (FERNANDES, 2015).
O direito à ampla defesa também está previsto no mesmo dispositivo constitucional (art. 5.°, inciso LV, da CF) que ass egura o contraditório. Além disso, o direito à defesa se encontra estabelecido no art. 8.°, item 2, da Convenção Americana dos Direitos Humanos, que ficou conhecida como Pacto de São José da Costa Rica e foi incorporada ao direito brasileiro pelo Decreto Federal 678/92.95
No processo penal, a ampla defesa consubstancia-se sob dois aspectos: a defesa técnica e a autodefesa. O direito de defesa compreende, dessarte, a assistência de letrado, constituído livremente pelo acusado ou nomeado de ofício, que caracteriza a defesa técnica, e a possibilidade de o imputado defender-se pessoalmente.
Defesa técnica, também chamada de defesa pública, é aquela exercida por advogado, profissional habilitado em Direito para proteger os interesses dos acusados da prática de infração penal, com poderes postulatórios, e indispensável à administração da justiça, conforme dispõe o art. 133 da CF.
Tal garantia é indisponível, indeclinável, por ser uma condição de igualdade de armas entre acusação e defesa. Além disso, implica a escolha pelo acusado de advogado de sua confiança.
Esse direito que o acusado possui de constituir um profissional para a sua defesa, que se poderia designar de assistência letrada, tem as finalidades precípuas de garantir uma atuação mais conveniente para seus direitos e interesses jurídicos e de assegurar uma igualdade entre as partes.
A autodefesa, por sua vez, outra etapa do direito de defesa, é renunciável e pode ser dividida em positiva e negativa.
Por autodefesa positiva se entende o direito que o acusado possui de comparecer pessoalmente aos atos processuais (direito de presença) e de ser interrogado (direito de audiência).
Novamente o magistério de Grinover, Fernandes e Gomes Filho (2005), ao explicarem os direitos de audiência e de presença:
O primeiro traduz-se na possibilidade de o acusado influir sobre a formação do convencimento do juiz mediante o interrogatório. O segundo manifesta-se pela oportunidade de tomar ele posição, a todo momento, perante as alegações e as provas produzidas, pela imediação com o juiz, as razões e as provas.
Para Tucci, a ampla defesa abrange o direito de informação (nemo inauditus damnari potest), a bilateralidade de audiência (contrariedade) e o direito à prova legitimamente obtida ou produzida. Vê-se, assim, que o autor também insere o contraditório na ampla defesa, única ressalva que se faz a essa definição.
De acordo com Pedroso (1986), a defesa é o direito insofismável que o acusado tem de se opor à pretensão do autor, visando a proteger a tutela jurídica de interesses do réu, “pelas vias da tutela jurisdicional”.
Vargas, por sua vez, faz uma classificação curiosa, partindo da premissa de que grande parte da doutrina confunde contraditório e ampla defesa. Para ele, a ampla defesa compreenderia as intimações, as motivações das decisões judiciais, a individualização da pena, o duplo grau de jurisdição, a personalidade de responsabilidade penal e, por ser sua obra anterior a recentes reformas que ocorreram na legislação processual penal, a necessidade de se nomear curador ao acusado e ao indiciado.
No magistério de Oliveira, a ampla defesa assegura, além da defesa técnica e da autodefesa, uma defesa efetiva e realizada “por qualquer meio de prova hábil para demonstrar a inocência do acusado” (OLIVEIRA, 2008).
4 O CONTRADITÓRIO E O INQUÉRITO POLICIAL
A doutrina nacional, principalmente em razão da ausência de partes na fase preliminar, ainda é majoritária em afirmar que não se aplica o princípio constitucional do contraditório durante o inquérito policial (FERNANDES, 2015).
Para Silveira (2006), as investigações criminais não se submetem, em virtude da própria natureza, ao contraditório e à ampla defesa, postulados que são reservados aos acusados na fase judicial.
Afirma Salles Júnior (2008) que o princípio do contraditório é próprio do processo penal, única fase em que existem partes (acusação e defesa), motivo pelo qual não se aplica na fase preliminar.
Parecido é o pensamento de Coutinho, autor que expõe que a regra constitucional que assegura o contraditório somente se aplica quando houver processo, não incidindo tal princípio durante o inquérito policial (COUTINHO, 2001).
Tourinho Filho (2003) também adverte que, por não existir acusação na investigação criminal, o contraditório é inaplicável em tal etapa, devendo ser considerado apenas em juízo.
Marques (2008), seguindo a mesma postura, sustenta que não se poderia “tolerar um inquérito contraditório, sob pena de fracassarem as investigações policiais”, principalmente em situações de difícil elucidação. Para ele, uma investigação com contraditório “seria uma verdadeira aberração, pois inutilizaria todo o esforço investigatório que a polícia deve realizar para a preparação da ação penal”.
Para Moraes (2009), o inciso LV do art. 5.° da CF, que as segura o contraditório e a ampla defesa aos litigantes e aos acusados em geral, em processo administrativo, somente se aplica aos processos administrativos stricto sensu, mas não ao inquérito policial, pois a Constituição não faz qualquer menção a tal expediente de investigação.
Carvalho também refere que, por não se proferir nos autos do inquérito policial “alguma decisão meritória administrativa” e que a finalidade do procedimento investigativo “não se encerra em si mesmo”, deve prevalecer a sua natureza inquisitiva (não contraditória).
Semelhante tem sido, igualmente, a posição jurisprudencial. Inclusive, encontram-se decisões do STF no sentido de que a investigação criminal, em razão de sua característica inquisitorial e de seu caráter informativo, não é contraditável por natureza.
Com relação à admissibilidade em juízo de provas definitivas que são colhidas durante o inquérito policial, como as perícias, por exemplo, aceita-se na doutrina, como visto no capítulo anterior, o contraditório diferido, cabendo às partes, na etapa judicial, impugnarem os laudos periciais.
Sabida e efetivamente, não existem partes na etapa pré-processual. No entanto, faz-se imperiosa a aplicação do direito à informação, primeiro momento do contraditório, nessa fase de persecução penal, pelas razões que se passa a expor, assim como uma adaptação do modelo vigente no CPP à CF.
A Constituição Federal, no artigo 5.°, inciso LV, 12 assegura a ampla defesa e o contraditório aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral.
Em princípio, como o texto constitucional usa as expressões processo e acusado, poder-se-ia chegar à conclusão precipitada de que o inciso citado não se aplicaria ao inquérito policial, procedimento em que não existem acusados, mas indiciados.
5 O DIREITO DE DEFESA E O INQUÉRITO POLICIAL
Muitos doutrinadores, em virtude, basicamente, de não existir acusado na fase preliminar e do caráter inquisitorial do inquérito policial, ainda seguem afirmando que o direito de defesa não se aplica aos investigados.
Explica Rangel que o investigado, por ser mero objeto de investigações e por não estar sendo acusado de nada na etapa preliminar, não possui o direito de defesa (RANGEL, 2004).
Na mesma linha, refere Tornaghi (2016) que, por não haver acusação formal contra alguém no inquérito policial, a defesa não se faz presente na etapa de mera apuração. Semelhante é o pensamento de Lima (2006), para quem não existe ampla defesa no inquérito, haja vista que o procedimento de investigação não é processo.
Hoje, na prática, conforme observa Giacomolli (2006), o inquérito policial traduz-se em um procedimento “eminentemente inquisitorial, sem contradição, com a defesa limitando-se à escuta do suspeito, ao final”.
No entanto, não se pode negar a incidência do direito de defesa na fase do inquérito policial. Até mesmo autores que negam a incidência do contraditório no inquérito policial admitem a observância do direito de defesa nessa etapa.
Cabe verificar, preliminarmente, quais seriam as razões para se assegurar o direito de defesa durante o inquérito policial.
Como adverte Fernandes (2015), admitir a atuação da defesa na fase preliminar não significa, porém, que se irá garantir ao suspeito da prática de um crime uma defesa irrestrita, mas de resguardar os seus interesses mais relevantes, como, por exemplo, reconhecer ao investigado o direito de postular diligências à autoridade policial. Além disso, conforme será visto, deve-se assegurar a presença física do advogado na realização de determinados atos e o direito de acessar os autos do inquérito policial.
A limitação da defesa ao indiciado na etapa pré-processual pode trazer reflexos no processo penal, gerando prejuízos ao réu que possam redundar em sua condenação.
Deve-se ter presente, igualmente, que a investigação criminal assume o papel de “descartar acusações insustentáveis”, protegendo o ius libertatis do investigado, razão pela qual é prudente que se assegure a defesa já na fase preliminar.
Ao analisar o modelo pré-processual argentino, refere Edwards que é em tal instante que são recolhidos os elementos de prova e que se toma o primeiro contato com o investigado, razão pela qual devem ser assegurados o direito de defesa técnica e outras garantias em favor do imputado, como forma de controle das diligências policiais.
Para Silva (2010), se o inquérito é processo ou procedimento, ou se a conclusão que se pretende chegar é outra, isso é irrelevante, sendo essencial que se assegure ao investigado, na etapa inicial, o direito de defesa. Afirma o autor que, em um Estado de Direito, os atos estatais devem ser controlados, “sejam eles praticados pelo Estado-polícia, seja pelo sistema de administração da Justiça”.
Para Lopes Júnior, a justificativa para se garantir a defesa na investigação criminal está na presunção de hipossuficiência dos imputados, consubstanciada na dificuldade de compreensão sobre a atividade desenvolvida por uma autoridade estatal. Conforme o autor, “a presença do defensor deve ser concebida como um instrumento de controle da atuação do Estado” (2006).
Reconhecer-se a aplicação do direito de defesa ao indiciado possibilita avanços no sentido de se superar a estrutura inquisitória do inquérito policial, característica apontada por Coutinho como ponto crítico da investigação criminal. Não obstante, mesmo que ainda permaneçam resquícios de inquisitoriedade na investigação criminal, não existe incompatibilidade em se assegurar ao indiciado o direito de defesa.
6. CONCLUSÃO
Pelo que se viu no transcorrer do presente trabalho, não existem dúvidas de que a investigação criminal é uma fase carregada de significados (e não uma etapa meramente informativa). Serve, pois, como um anteparo para evitar ações penais contra inocentes, que não devem ser submetidos, injustamente, a um processo criminal, que emerge, por si só, sancionatório. Ainda que sejam absolvidos ao final do processo, já foram estigmatizados como criminosos pelo fato de estarem sentados no banco dos réus, sofreram uma prolongada e desnecessária angústia e tiveram sua liberadade de locomoção, ao menos, ameaçada.
Embora o inquérito policial possua essa destacada motivação de evitar que alguém responda a um processo criminal sem que haja prova da existência do fato e elementos que demonstrem que o investigado é o provável autor de uma infração penal, é importante realçar que tal procedimento possui, entre outras, a finalidade de esclarecer na íntegra uma situação com aparência de delito. Assim, a polícia judiciária não deve colher somente provas que sirvam para acusação, mas também aquelas que possam ser úteis para a defesa.
Saliente-se, por derradeiro, que não se afirmou, em momento algum, que o mais importante na fase preliminar não seja o completo esclarecimento de uma infração penal, que atinge a vítima, a sua família e, em última análise, toda a sociedade. Contudo, a elucidação pode ocorrer, dentro dos limites estabelecidos, com a participação do investigado a partir do momento em que passa a ser “acusado em geral”. Tão necessário quanto apurar uma infração penal e punir adequadamente os seus responsáveis é a criação de mecanismos que tentem evitar injustiças contra pessoas submetidas a uma investigação criminal. E é para minimizar os riscos de se prender e punir inocentes que se deve assegurar um mínimo de contraditório e defesa antes mesmo da abertura de um processo criminal.
7. REFERÊNCIAS
BASTOS, Marcelo Lessa. A Investigação nos Crimes de Ação Penal de Iniciativa Pública. Papel do Ministério Público. Uma Abordagem à Luz do Sistema Acusatório e do Garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. “O papel do Inquérito Policial no sistema acusatório – o modelo brasileiro”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 35, p. 185-201, jul.-set. 2001.
CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. Traduzido por José Antonio Cardinalli. Campinas: CONAM, 1995. Tradução da edição de 1957, da Edizioni Radio Italiana.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “Introdução aos Princípios Gerais do Direito Processual Penal Brasileiro”. Revista de Estudos Criminais, ITEC, Porto Alegre, n. 1, p. 26-51, 2001.
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 530, v. I.
DIAS NETO, Theodomiro. “O Direito ao Silêncio: Tratamento nos Direitos Alemão e Norte-americano”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 19, p. 179-204, jul.-set. 1997.
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3.ed. São Paulo: RT, 2015.
FERREIRA, Orlando Miranda. “Inquérito Policial e o Ato Normativo 314-PGJ/CPJ”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 45, p. 257-68, out.-dez. 2003.
GGRINOVER, Ada Pellegrini. FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. 8.ed. São Paulo: RT, 2010.
LOPES JÚNIOR, Aury Celso Lima. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 2008, v. 1.
MORAES, Bismael B. “Inquérito Policial e Falta de Prevenção”. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, n. 88, p. 5, mar. 2009
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 7.ed. São Paulo: RT, 2012.
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. “A Garantia do Contraditório”. Revista da AJURIS, Porto Alegre, n. 74, p. 103-20, nov. 2008.
PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo Penal, o Direito de Defesa: Repercussão, Amplitude e limites. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. “Inquérito Policial: Exercício do Direito de Defesa”. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, n. 83, ed. especial, p. 14, out. 2010
SALLES JÚNIOR, Romeu de Almeida. Inquérito Policial e Ação Penal. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
SILVEIRA, José Néri. “Aspectos do Inquérito Policial na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”. Revista da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 21, p. 7-32, set. 2006.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 25.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1.
Graduando em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Manaus
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, ANTONIO IVAN OLIMPIO DA SILVA. Os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa na investigação criminal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 nov 2020, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55565/os-princpios-constitucionais-do-contraditrio-e-da-ampla-defesa-na-investigao-criminal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
Precisa estar logado para fazer comentários.