ANA ISABEL RODRIGUES RIBEIRO DE SOUSA
(coautora)
ROGÉRIO SARAIVA XEREZ
(orientador)
RESUMO: O Código Processual Penal obteve algumas alterações inseridas pela Lei 13.964/2019 – Pacote Anticrime - dentre as quais se encontra a vedação à concessão da liberdade provisória prevista em seu art.310, §2º. Tal vedação automática já foi rechaça pelo Judiciário em outras oportunidades sob o fundamento da violação do Princípio da Presunção de Inocência, o do Devido Processo Legal e o Instituto da Liberdade Provisória. Nesse sentido, objetiva-se analisar a (in)constitucionalidade dessa alteração, coletando informações em torno do Instituto da Liberdade Provisória, paralelo à prisão preventiva, que sirvam de base para sinalização de inconstitucionalidade do mencionado dispositivo. Se por um lado essa inovação cumpre a finalidade a que foi destinada de reduzir a sensação de impunidade nos casos referidos, por outro lado pode ferir direitos e princípios constitucionais. Portanto, almeja este artigo reunir argumentos da literatura e jurisprudência em direção da inconstitucionalidade, diante da existente divergência sobre o tema.
Palavras-chave: liberdade, pacote anticrime, prisão, cautelar, provisória.
Abstract: The Criminal Procedure Code, received some changes inserted by the Law 13.964/2019 - Anti-crime Law - which is founded the prohibition on granting provisional contained in the article 310, §2º. This automatical prohibition already was rejected by the Judiciary in others opportunities under the explanation of Principle of Presumption of Innocence, Due Process of Law and the Provisional Freedom Institute violation. Following this reasoning, the objective is analyse the (un) constitutionality of this change collecting informations about the Provisional Freedom Institute, parallel to pre-trial detention, that could be used as base for an unconstitutionality signaling from the mentioned law. If, on the one hand, this innovation fulfills its intended purpose of reducing the sense of impunity in the cases referred to, on the other hand, it can hurt constitutional rights and principles. Therefore, this article aims to gather arguments from the literature and jurisprudence towards unconstitutionality, given the existing divergence on the topic.
Keywords: freedom, anti-crime law, prison, precautionary, provisional.
Sumário: 1 Introdução. 2 Liberdade Provisória. 2.1 Fundamentos constitucionais. 2.2 Conceito e classificação. 2.3 Espécies. 3. Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019). 3.1 Aspectos gerais. 3.2 Alteração na liberdade provisória. 4. Vedação Compulsória da Liberdade Provisória. 4.1 Presunção de inocência e devido processo legal. 4.2 Ausência de análise concreta. 4.3 Prisão ex lege. 4.4 Inversão da excepcionalidade. 4.5 Inconstitucionalidade em leis específicas. 5 Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A liberdade sempre esteve em xeque desde os primórdios da civilização humana, inúmeras e bárbaras foram às justificativas para restringir o direito de ir e vir do ser humano, desde critérios de raça, cor ou religião até dívidas civis.
Contudo, evoluções e progressos foram atingidos, mesmo que a ritmo lento, e a atual visão geral, compactuada com moldes modernos civilizatórios, inadmitem obstáculos abstratos ao direito fundamental a liberdade.
Com efeito, no Brasil não foi diferente, ao se falar do Direito Penal brasileiro, a prisão é medida sancionatório de ultima ratio, e depende, por força constitucional expressa, de sentença condenatória transitada em julgado. Nesse viés se consolidada constitucionalmente o instituto da liberdade provisória, respaldando o direito de ir e vir e, principalmente, o Princípio da Presunção de Inocência como primordial em Estado Democrático de Direito
A liberdade provisória é um instituto processual penal acautelatório concedido pelo magistrado que permite ao réu aguardar o trâmite penal em liberdade quando não se verificarem os requisitos que ensejem a conversão do flagrante em prisão preventiva, podendo ser acompanhada de fiança, medidas cautelares diversas da prisão ou ambas.
Em regra, o momento de concessão do benefício se dá em audiência de custódia, após a prisão em flagrante (pré-cautelar) e antes de conversão em preventiva, ao passo que é neste instante a análise imprescindível dos requisitos enunciados no art. 312 do Código de Processo Penal.
Tais requisitos devem ser observados à luz das circunstâncias concretas do caso em exame, para que, diante de crivo discricionário, o Magistrado possa se manifestar pela necessidade ou não de encarceramento cautelar. Logo, a liberdade provisória é uma medida alternativa, de caráter substitutivo em relação à prisão preventiva (LOPES JR, 2019).
Outrossim, a adição do §2º ao art. 310 do mesmo diploma pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), vetou o benefício àqueles que são reincidentes ou que integrem organizações criminosas armadas ou milícias, ou que portem armas de fogo de uso restrito. Significa dizer, portanto, que os pacientes aí enquadrados, estariam sujeitos a uma prisão ex lege, sem análise de necessidade de segregação de liberdade a título cautelar frente ao caso concreto, ao visto que o veto à concessão de liberdade provisória culmina na aplicação de plano da prisão preventiva.
O Supremo Tribunal Federal já enfrentou situações análogas, senão idênticas, a exemplo da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), que na redação original de seu art. 2º, inciso II, empregava como insuscetível de fiança e liberdade provisória os crimes hediondos, a prática de tortura e o tráfico ilícito de entorpecente, todavia, o texto foi revogado retirando-se a expressão liberdade provisória (Lei nº 11.464, de 2007).
No mesmo sentido, outro exemplo que será aqui analisado, é o do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03), que dispõe em seu art. 21 a vedação ao benefício da liberdade provisória para alguns crimes enunciados na mesma norma, apesar de já haver posicionamento contrário dos Ministros do STF na ADI 3112/DF.
E mais recentemente, o enfrentamento ao art. 44 da Lei de Tóxicos (Lei 11.343/06), outro dispositivo restritivo a concessão da liberdade provisória, também já analisada pela Suprema Corte em HC 104.339/SP, mantendo idêntico posicionamento.
Desta forma, como será desenvolvida adiante, o Supremo Tribunal Federal argumenta que a vedação em abstrato à concessão de liberdade provisória é inconstitucional visto que o texto magno não autoriza a prisão ex lege, em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente (BRASIL, 2012).
Assim, incialmente aborda-se o Instituo da Liberdade Provisória, desde seu conceito às espécies, adentrando logo após nos aspectos gerais do Pacote Anticrime e sua respectiva alteração referente à liberdade provisória. Em seguida, para melhor esmiuçar o assunto, trabalha-se a vedação da liberdade provisória no ordenamento jurídico brasileiro e seus reflexos, para chegar a uma conclusão com base no estudo realizado.
Apesar das manifestações anteriores a favor da inconstitucionalidade da vedação em abstrato à concessão da liberdade provisória em leis especiais, o legislador inseriu “novas” situações de vedação apriorística através do Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/19) no Código Processual Penal. Portanto é imprescindível observar os princípios e garantias constitucionais em todo o ordenamento jurídico e descartar toda e qualquer disposição em contrário, e é sobre isso que o presente estudo tratará.
2 LIBERDADE PROVISÓRIA
2.1 Fundamentos Constitucionais
A Constituição Federal de 1988 consagrou o direito à liberdade como um direito fundamental. Dentre as derivações de liberdade presentes em seu artigo 5º, está positivado o instituto da liberdade provisória - inciso LXVI - ao declarar que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.
Isso se deve à necessidade de impedir o abuso ou desvio de finalidade das prisões através de inobservância de requisitos legais, de direitos intrínsecos a pessoa humana, e dos dois importantes princípios que regem mais de um desdobramento do Direito e, principalmente, o Direito Processual Penal.
O primeiro princípio trata-se do Princípio da Presunção de Inocência, princípio base do processo penal, positivado no art.5º, LVII, da CF/88, pelo qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Nesse sentido, Aury Lopes Júnior afirma que:
“[…] é um princípio reitor do processo penal e seu nível de eficácia denota o grau de evolução civilizatória de um povo. Do “não tratar o réu como condenado antes do trânsito em julgado”, podemos extrair que a presunção de inocência é um “dever de tratamento processual”, que estabelece regras de julgamento e de tratamento no processo e fora dele”. (LOPES JR., 2019)
Seguindo o raciocínio do autor, por ser um dever de tratamento, manifesta-se tanto interna como externamente. Seu aspecto interno diz respeito à produção de provas, tendo a responsabilidade para tal encargo o julgador, à limitação da incidência das prisões cautelares – impedindo a utilização delas como meio de antecipação da pena e manutenção de duração das mesmas – e a imposição do “in dubio pro reo”, expressando que em caso de dúvidas favorecerá o réu. Já o seu aspecto externo encontra-se na proteção contra a publicidade e infamação abusiva do acusado quanto a imagem, dignidade e privacidade do réu, garantindo-se sua proteção (LOPES JR., 2019).
O segundo princípio é o devido processo legal, também positivado na Constituição Federal em seu artigo 5º, LIV, o qual diz “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Sobre ele, afirma Fernando Capez:
“[…] garante ao acusado a plenitude de defesa, compreendendo o direito de ser ouvido, de ser informado pessoalmente de todos os atos processuais, de ter acesso à defesa técnica, de ter a oportunidade de se manifestar sempre depois da acusação e em todas as oportunidades, à publicidade e motivação das decisões, ressalvadas as exceções legais, de ser julgado perante o juízo competente, ao duplo grau de jurisdição, à revisão criminal e à imutabilidade das decisões favoráveis transitadas em julgado” (CAPEZ, 2019)
Dessa forma, verifica-se que o princípio do devido processo legal visa proteger todas as garantias e direitos do acusado, principalmente a liberdade, para que o processo se dê em conformidade com a Lei Maior, e assim obtenha-se um julgamento dentro dos parâmetros legais.
Portanto, denota-se a nítida necessidade de obediência ao Instituto da Liberdade Provisória, que está amparada constitucionalmente não só pela sua positivação explícita, direta, como também através dos Princípio da Presunção de Inocência e o do Devido Processo Legal, que lhe aperfeiçoa e resguarda.
2.2 Conceito e Classificação
A liberdade provisória é um instituto processual que tem como objetivo garantir ao acusado o direito de aguardar em liberdade o transcorrer do processo até que seja proferida a sentença. Esse benefício pode ser vinculado ou não a algumas obrigações, e caso ocorra o descumprimento delas, poderá ser revogado a qualquer tempo (CAPEZ, 2019).
Tal instituto serve para atenuar tanto a prisão que já foi decretada – prisão em flagrante - como a que poderia ser – prisão preventiva - pois no lapso temporal ela se insere entre esses dois momentos, todavia, o segundo, por depender dos requisitos exigidos nem sempre se realizará.
Nas palavras de Edilson Mougenot Bonfim (2019) obre o Instituto da Liberdade Provisória, “[…] prevê a lei um sucedâneo à prisão provisória – uma contramedida que possibilita seja o réu ou indiciado mantido em liberdade, geralmente lhe restringindo direitos e impondo-lhe obrigações”.
Dessa forma, personifica uma situação de meio-termo, que aduz o ditado popular “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, já que o sujeito não está preso, mas, também, não está livre, porque não goza de uma liberdade plena (BONFIM, 2019).
Embora seja uma liberdade restrita, sua vantagem se vislumbra pela não necessidade do encarceramento do agente, o que é mesmo um benefício diante da realidade do precário sistema carcerário brasileiro.
Classifica-se em Liberdade Provisória Obrigatória, Permitida e Vedada. A obrigatória transfigura o direito subjetivo incondicional do acusado, concedida nas infrações penais que não se cominam pena privativa de liberdade e infrações penais de menor potencial ofensivo (CAPEZ, 2019).
Nesse caso, a parte deve se comprometer a comparecer espontaneamente à sede do juizado, nos termos da Lei nº 9.099/95, art. 69, parágrafo único. Em outras palavras, Edilson Mougenot Bonfim diz:
“[…] será obrigatória a concessão de liberdade provisória nas hipóteses em que a lei determina que o réu deva livrar-se solto, independentemente de fiança, em razão de circunstâncias objetivas (isto é, independentemente da condição pessoal do acusado ou investigado” (BONFIM, 2019).
Por outro lado, A permitida é aquela concedida nos casos em que não cabe a prisão preventiva, aplicando as medidas contidas no art. 319, do CPP, de acordo com as necessidades da análise do caso concreto – se não necessitar, não aplica- observando sempre os requisitos constantes do art.282, do mesmo dispositivo, assim como explicita o art. 321, do CPP.
Logo, ela é facultativa, autorizada por lei e precisa atender aos requisitos das medidas cautelares caso seja necessário que o benefício da liberdade provisória esteja acompanhado delas como meio de manutenção daquele; como a entrega do passaporte (art. 320, do CPP), a proibição de sair de sua Comarca sem autorização judicial, dentro outros (CAPEZ, 2019).
Já a vedada, como o próprio nome diz, é aquela proibida por lei, inexistindo. Não poderá ser aplicada se presente os requisitos da prisão preventiva, porque ao preencher os requisitos, não poderá mais o sujeito gozar do benefício da liberdade provisória, pois sua liberdade já não poderá mais ser apenas restrita, e terá que enfrentar o encarceramento (CAPEZ, 2019).
2.3 Espécies
Depreende-se da própria lei, no art. 5º, LXVI, as duas espécies de Liberdade Provisória, sendo elas a concedida por meio de fiança e a que não necessita de fiança para sua concessão, e podem ser vinculadas a algumas obrigações. A realização de uma ou outra dependerá da análise do caso concreta (BOMFIM, 2019).
As duas espécies de liberdade provisória dependem da inexistência dos requisitos que ensejam a prisão preventiva, conforme o artigo 321, do CPP. No caso da liberdade provisória sem fiança, sua concessão dá-se diante de infrações penais às quais não se cominem penas privativas de liberdade (CPP. Art. 223, §1º) e infrações de menor potencial.
Nesse último caso ocorre quando a parte se comprometer a comparecer a sede do Juizado Especial Criminal, (Lei Nº 9.099/95, art. 69, parágrafo único), quando o juiz verificar que, evidentemente, o agente praticou fato acobertado por causa de exclusão de ilicitude; a competência é do juiz, depois de ouvido o Ministério Público, cabendo recurso.
A fiança criminal é a prestação de caução de natureza real que visa garantir o cumprimento das obrigações processuais do réu ou indiciado, e se dá por meio de depósito de dinheiro, pedras, objetos ou metais preciosos, títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou em hipoteca inscrita em primeiro lugar, conforme o art.330, caput, do CPP (CAPEZ, 2019).
É importante destacar que a legislação não especificou as hipóteses em que se trata de crimes afiançáveis, mas, sim, hipóteses de crimes inafiançáveis, portanto aplica-se uma análise “a contrario sensu”, pela determinação das hipóteses em que a fiança não é vedada.
A fiança destina-se ao pagamento das custas, da indenização do dano, da prestação pecuniária e da multa. Ocorre se o réu for condenado, e só será aplicada se condicionada a garantir o processo, devendo ser fundamentada pelo juiz quanto à sua necessidade cautelar, sob pena de padecer de justa causa.
Quanto ao momento à sua concessão, dispõe o art.322 c/c 335, do CPP.
Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos.
Art. 335. Recusando ou retardando a autoridade policial a concessão da fiança, o preso, ou alguém por ele, poderá prestá-la, mediante simples petição, perante o juiz competente, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas.
Assim a concessão pode ocorrer em qualquer fase do inquérito ou do processo, até a sentença. Tanto autoridade policial quanto o juiz competente poderão conceder a fiança, devendo, contudo, respeitar seus momentos estabelecidos por lei.
A autoridade policial só concede em casos de infração em que a pena privativa de liberdade máxima não ultrapasse 4 (quatro) anos, e em caso de recusa ou retardamento da autoridade policial, o juiz decidirá, depois que o preso, ou um representante, prestá-la através de uma petição.
No que tange ao valor da fiança, deverá ser analisado a natureza da infração, as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acusado, as circunstâncias indicativas de sua periculosidade e a importância provável das custas do processo, até o final do julgamento, consoante o art.326, do CPP, não podendo ser tão alto e nem irrisório.
Essa medida pode passar por algumas situações particulares, quais sejam o quebramento, o perdimento e a cassação. Sobre o quebramento preleciona Edilson Mougenot Bonfim: “Considera-se quebrada a fiança quando seu beneficiário deixa de cumprir certas obrigações que lhe são impostas como condição para que se mantenha livre” (BONFIM, 2019).
Os casos que geram o quebramento da fiança estão previstos no artigo 321, do CPP, e acarretará na perda da metade do valor da fiança, podendo gerar também a decretação da prisão preventiva.
Já o perdimento da fiança ocorre quando da condenação, no caso de o condenado não se apresentar para o cumprimento da pena definitiva. Já a cassação ocorre quando houver o reconhecimento do não cabimento na espécie e da existência do delito inafiançável, no caso de inovação da classificação do delito (CAPEZ 2019).
3 PACOTE ANTICRIME (LEI Nº 13.964/2019)
3.1 Aspectos Gerais
A lei nº 13.964/2019 originou-se do projeto de lei de 2019, aprovado em janeiro de 2020, que surgiu com o intuito de adequar a legislação à realidade atual, assim tornaria o Estado mais eficiente ao dar mais agilidade no cumprimento das penas e redução da sensação de impunidade presente no cenário brasileiro.
Para isso trouxe uma série de alterações em leis como Código Penal, Código de Processo Penal, Lei de Execução Penal, e Código Eleitoral, entre outras, com o objetivo de tornar mais efetivo o combate à corrupção, ao crime violento e ao crime organizado, criando também novos métodos de investigação, mudando a legislação processual a fim de evitar processos que nunca são concluídos.
Algumas dessas alterações apenas positivaram o que a jurisprudência e a doutrina vinham argumentando há anos. Pela nova redação do artigo 311, do CPP, por exemplo, o juiz não pode decretar mais de ofício a prisão preventiva – característica do sistema inquisitório – mas, sim, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.
No artigo seguinte, 312, adicionaram-se parágrafos, e em seu §2º, positiva uma necessidade básica e essencial para a decretação da prisão preventiva, qual seja a indispensabilidade da fundamentação e motivação que justifiquem a medida adotada.
Entretanto, existem alterações que têm o único condão de fortalecer a ideia de justiça por meio de punições mais severas. Estipula-se por exemplo, penas mais duras para a posse, porte, uso e comercialização de armas ilegais e, também prevê a vedação abstrata da Liberdade Provisória, constante do art.310, §2º, do CPP, objeto de debate do presente artigo.
3.2 Alterações na Liberdade Provisória
O artigo 310, do CPP, que trata da prisão em flagrante continha em seu inciso III, a seguinte redação:
Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:
III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Com o Pacote Anticrime, o referido artigo teve sua estrutura mudada. O caput passou a explicitar mais detalhes da prisão em flagrante, houve acréscimos de mais parágrafos e, entre eles a mais importante, e intrigante, novidade. Assim expressa a redação do artigo 310, §2 do Código Processual Penal.
Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente:
§ 2º Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares.
Assim, de acordo com essa nova redação, a liberdade provisória que antes seria concedida independente de fiança, agora tem uma vedação expressa aos casos de reincidência, de composição do agente a uma organização criminosa armada ou milícia, ou se há porte de arma de fogo de uso restrito.
4 VEDAÇÃO COMPULSÓRIA DA LIBERDADE PROVISÓRIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO
Uma das “inovação” no âmbito da liberdade provisória trazida pelo legislador no Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019) foi a inserção do § 2º com a seguinte redação: “Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares.” (BRASIL, 2019).
Daí infere-se que o legislador infraconstitucional impôs a autoridade o dever de agir de uma única forma quando deparar-se em audiência de custódia com agente que se enquadre em uma daquelas situações.
Com efeito, nos casos de réu reincidente, que integre organização armada ou milícia, que porte arma de fogo de uso restrito, o juiz não teria outra opção senão denegar a liberdade provisória, acarretando, portanto, na decretação da prisão preventiva sem qualquer análise de fumus commissi delicti e periculum libertatis.
Como vimos, a liberdade provisória tem caráter substitutivo da prisão preventiva, sua não concessão culmina na aplicação da medida cautelar mais gravosa. Nas lições de Aury Lopes Jr.:
“[…] o disposto no art. 282, § 6º, do CPP, que expressamente consagra a prisão preventiva como ultima ratio do sistema cautelar, oportunizando no art. 319, um rol de medidas alternativas a serem impostas pelo juiz conforme a necessidade do caso.” (LOPES JR. 2019, p. 704)
Com efeito, é sabido que em um Estado Democrático de Direito a prisão é sempre a exceção e diferente não poderia ser em nosso ordenamento, um vez que a Carta Magna a consagra no art. 5º, inciso LXVI ao afirmar que ninguém será preso quando admitida a liberdade provisória, o que se intensifica ao falarmos de prisão anterior a sentença condenatória.
Dito isto, cumpre analisar em seguida alguns argumentos que vão de encontro com a hipótese de vedação compulsória a liberdade provisória, e ao fim, expor decisões do Superior Tribunal Federal acerca desta vedação em leis anteriores.
4.1 Presunção de Inocência e Devido Processo Legal
A presunção de inocência remonta ao Direito Romano, mas sofreu ferrenhos ataques no período inquisitório da idade média, no qual reinava a presunção de culpabilidade, pois até mesmo a insuficiência de provas equivalia a uma semiprova, visando sempre a condenação (LOPES JR., 2019).
A Declaração dos Direito do Homem de 1789 finalmente consagrou a incidência deste princípio declarando, “Art. 9º. Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”.
A princípio da presunção de inocência é o princípio norteador do Estado Democrático de Direito e de um sistema penal acusatório, e está expressamente previsto no Diploma Constitucional de 1988 no art. 5º, inciso LVII, ao declarar que ninguém será culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Nas lições de Aury Lopes Jr. “a presunção de inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento (na medida em que exige que o réu seja tratado como inocente) […]” (LOPES JR. 2019).
Com efeito, a vedação a concessão da liberdade provisória fundada unicamente nas hipóteses elencadas no §2º do art. 310, é nítida presunção de culpabilidade, pois como já dito tal vedação acarreta em automática prisão preventiva ignorando o status de inocência do acusado e a real necessidade (ou não) da medida cautelar mais gravosa embasado no ato criminoso supostamente cometido.
No que pese ao Devido Processo Legal, o inciso LIV do art. 5º da Carta Magna preleciona “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Entendido doutrinariamente como o respeito pleno dos segmentos de atos que compõe o processo penal para que haja o legal encarceramento (ou não) do indiciado (RANGEL, 2019).
A respeito do tema, explica Fernando Capez:
“No âmbito processual garante ao acusado a plenitude de defesa, compreendendo o direito de ser ouvido, de ser informado pessoalmente de todos os atos processuais, de ter acesso à defesa técnico, de ter a oportunidade de se manifestar sempre depois da acusação e em todas as oportunidades, à publicidade e motivação das decisões, ressalvadas as exceções legais, de ser julgado perante o juízo competente, ao duplo grau de jurisdição, à revisão criminal e à imputabilidade das decisões favoráveis transitadas em julgado.” (CAPEZ, 2019.)
Destarte, entende-se que nenhum procedimento no curso do processo (analise judicial, requerimentos, contraditório, etc.) poderá ser suprimida, se assim o forem há violação ao princípio constitucional. Por óbvio que ao vedar a concessão da liberdade provisória, o legislador infraconstitucional ceifa a análise judicial, e automaticamente decreta o encarceramento precoce do agente.
4.2 Ausência de Análise Concreta
Ao esculpir no Diploma Processualista Penal que a acusação por estremados delitos acarreta em afastamento do benefício da liberdade provisória, o Poder Legislativo retira do julgador a análise da incidência dos pressupostos necessários ao encarceramento cautelar, transpassando sua competência de legislar e invadindo a de julgar.
Cesare Beccaria bem lecionou em “Dos Delitos e das Penas” “[…] o soberano, que representa a própria sociedade, só pode fazer leis gerais, às quais todos devem submeter-se; não lhe compete, porém, julgar se alguém violou essas leis.” (BECCARIA, 1764).
Não compete à lei alguma obstar a restituição da liberdade do agente suprimindo o crivo da autoridade judiciária (PACELLI, 2018).
Nítido que é de vital relevância, sob pena de nulidade de decisão, a análise minuciosa de incidência dos pressupostos da prisão provisória, que deve ser pautada em indícios suficientes de autoria e materialidade (fumus commissi delicti) e no perigo da liberdade do indiciado (periculum libertatis).
Nessa perspectiva, o Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), mesmo diploma que vetou o benefício, acrescentou ao art. 312, §2º, exigência expressa de fundamento em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos a decisão que decrete prisão preventiva.
No mesmo sentido o art. 315, teve seu caput alterado para além de motivação, exigir também fundamentação nas decisões de prisão preventiva, elencando ainda no §2º, hipóteses em que a decisão não será considerada fundamentada, dentre as quais está a limitação a indicação, a reprodução ou a paráfrase de ato normativo sem explicar a relação com o caso.
Cumpre ressaltar ainda que a parte final do caput do art. 312 do Código de Processo Penal, exige a fundamentação do perigo gerado pelo estado de liberdade do agente. Portanto, a mera observância da reincidência, ou de que o agente integre organização criminosa armada ou milícia, ou que porte arma de fogo de uso restrito, não têm o condão para figurar como única “motivação” da decisão que decrete prisão preventiva.
Não obstante, são comuns decisões que fundamentam a prisão preventiva pautado na gravidade abstrata do delito, contudo, a lição dada pelos juristas Neston Távora e Rosmar Rodrigues (2017) é que a gravidade do crime é simples vetor interpretativo para se verificar a proporcionalidade da medida cautelar, mas que não pode por si só, fundamentar a decretação e uma prisão preventiva.
Nesse sentido, entende também o ex-ministro da Suprema Corte Celso de Mello no julgamento do HC 132.615 que “O Supremo Tribunal Federal tem advertido que a natureza da infração penal não se revela circunstância apta, “per se”, a justificar a privação cautelar do “status libertatis” daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado” (BRASIL, 2016).
Por certo então que a autoridade judiciária deve perquirir concretamente caso a caso para fundamentar a necessidade ou não de prisão cautelar independente do crime ao qual esteja sendo acusado o agente, não se limitando a simples indicação do § 2º do art. 310, para vedar a liberdade provisória e decretar a preventiva.
4.3 Prisão Ex Lege
A vedação a concessão de liberdade provisória prevista no §2º do art. 310, é caracteristicamente uma prisão ex lege, definida como aquela imposta por força de lei.
Sobre o tema aduz Renato Brasileiro de Lima (2020) que “Se não ofende, de per si, a presunção de inocência, ofende indiscutivelmente o princípio da necessidade de fundamentação da prisão, inscrito no art. 5º, inc. LXI, da Constituição Federal” .
É inadmissível, em um sistema processual penal acusatório, respaldado em princípios constitucionais garantidores que o legislador preveja abstratamente a prisão de agente decorrente do crime pelo qual é acusado. Emplacar uma prisão ex lege visa um efeito sedante imediato da opinião pública e resguarda intima herança do sistema inquisitorial.
No “Dos Delitos e das Penas”, Cesare Beccaria (1764) dispunha que “[…] como as leis e os costumes de um povo estão sempre atrasados de vários séculos em relação às luzes atuai, conservamos ainda a barbárie e as ideias ferozes dos caçadores do norte, nossos selvagens antepassados.”
A passagem revela nítida influência retrógrada inquisitiva carregada pela prisão automática, pois é buscada pelo legislador uma forma de punir de imediato a ação delitiva. Tal atitude emprega a uma medida dita cautelar, a caraterística retributiva da finalidade da prisão pena.
Ademais, a inconstitucionalidade da prisão ex lege se dá em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação judicial de mandados de prisão. Contudo, ainda subsiste no nosso ordenamento jurídico a vedação de maneira absoluta e peremptória na forma do art. 310, §2º, estabelecendo a prisão obrigatória do agente (LIMA, 2020).
4.4 Inversão da Excepcionalidade
A Constituição Federal de 1988 ao disciplinar as garantias e direitos fundamentais no art. 5º, mais especificamente nos incisos LIV, LVII, e LXVI, deixou claro que o indiciado deve aguardar o trânsito da ação penal em liberdade, porém ainda previu excepcionalmente no inciso LXI, a figura da prisão em flagrante (prisão pré-cautelar) e a prisão por ordem judicial escrita dando amparo a prisão preventiva.
Quanto a prisão preventiva, por se tratar de modalidade cautelar de encarceramento anterior a uma sentença condenatória, deve atender a requisitos específicos (art. 312, CPP) e com a finalidade de resguardar o devido andamento do processo penal, quando se mostrar a única maneira de atender a tal necessidade (PACELLI, 2018).
O parágrafo 6º do art. 282 do Código Processual Penal acolhe tal excepcionalidade ao determinar que:
“§ 6º A prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)” (BRASIL, 1941).
Esclarecida a posição da medida cautelar da prisão preventiva, devemos voltar os holofotes para o que acontece se o legislador proíbe que o juiz conceda liberdade provisória com ou sem fiança ao indiciado por um dos delitos descritos no §2º do art. 310.
Ora, pautado no referido artigo, em sede de audiência de custódia o juiz não terá outra opção senão denegar a liberdade provisória e decretar a preventiva.
Assim, torna-se regra a prisão do paciente quando se verificar, superficialmente, em audiência de custódia que este é reincidente, ou integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porte arma de fogo de uso restrito, sem analise concreta do caso.
Destarte, a liberdade deveria ser sempre a regra e, excepcionalmente, como ultima ratio teríamos a prisão preventiva, contudo, a vedação da primeira inverte os papéis. Com isso, o que deveria ser excepcional, torna-se ordinário e desnatura a real função de uma prisão cautelar (LOPES JR, 2019).
4.5 Inconstitucionalidade em Leis Específicas
É chegado o momento de expor jurisprudências da Suprema Corte acerca da vedação da liberdade provisória prevista em leis anteriores ao Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), as quais demonstram a ótica dos Excelentíssimos Ministros sobre o tema.
A lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 (Lei de Tóxicos) é um dos diplomas legislativos anteriores ao Pacote Anticrime que em seu art. 44, veda a liberdade provisória nos crimes previsto no art. 33.
O tema foi discutido em sede do HC 104.339/SP de relatoria do Min. Gilmar Mendes, o qual findou na declaração de inconstitucionalidade incidental do dispositivo no que concerne a vedação da liberdade provisória por violação aos princípios de presunção de inocência e devido processo legal, além de retirar do juiz a análise da incidência dos pressupostos que dão respaldo a decretação de prisão preventiva.
Nas palavras do Min. Relator Gilmar Mendes (2012):
“Tenho para mim que essa vedação apriorística de concessão de liberdade provisória (Lei n. 11.343/2006, art. 44) é incompatível com o princípio constitucional da presunção de inocência, do devido processo legal, entre outros. É que a Lei de Drogas, ao afastar a concessão da liberdade provisória de forma apriorística e genérica, retira do juiz competente a oportunidade de, no caso concreto, analisar os pressupostos da necessidade do cárcere cautelar, em inequívoca antecipação de pena, indo de encontro a diversos dispositivos constitucionais.”
Para o Min. Ricardo Lewandowski (2012 apud LOPES JR., 2019, p. 703), deve-se deixar claro que não se trata de impedir a decretação da prisão preventiva quando necessária, mas sim de não obstar que a autoridade judiciária analise os fatos concretos do caso para ao seu juízo versar a respeito da necessidade ou não de prisão provisória.
Nesse seguimento, o art. 21 da Lei 10.826/2003 conhecida como Estatuto do Desarmamento prevê que os crimes dos art. 16, 17 e 18 da mesma lei, quais sejam: “posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito”, “comércio ilegal de arma de fogo” e “tráfico internacional de arma de fogo”, respectivamente, são insuscetíveis de liberdade provisória.
Tal dispositivo já foi objeto de discussão de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal na ADI nº 3.112/DF de relatoria do Excelentíssimo Min. Ricardo Lewandowski, cuja a ementa segue in verbis.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 10.826/2003. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL AFASTADA. INVASÃO DA COMPETÊNCIA RESIDUAL DOS ESTADOS. INOCORRÊNCIA. DIREITO DE PROPRIEDADE. […] LESÃO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. AFRONTA TAMBÉM AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. ARGUMENTOS NÃO ACOLHIDOS. […] AÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE QUANTO À PROIBIÇÃO DO ESTABELECIMENTO DE FIANÇA E LIBERDADE PROVISÓRIA.
I - Dispositivos impugnados que constituem mera reprodução de normas constantes da Lei 9.437/1997, de iniciativa do Executivo, revogada pela Lei 10.826/2003, ou são consentâneos com o que nela se dispunha, ou, ainda, consubstanciam preceitos que guardam afinidade lógica, em uma relação de pertinência, com a Lei 9.437/1997 ou com o PL 1.073/1999, ambos encaminhados ao Congresso Nacional pela Presidência da República, razão pela qual não se caracteriza a alegada inconstitucionalidade formal.[…] IV - A proibição de estabelecimento de fiança para os delitos de “porte ilegal de arma de fogo de uso permitido” e de “disparo de arma de fogo”, mostra-se desarrazoada, porquanto são crimes de mera conduta, que não se equiparam aos crimes que acarretam lesão ou ameaça de lesão à vida ou à propriedade.V - Insusceptibilidade de liberdade provisória quanto aos delitos elencados nos arts. 16, 17 e 18. Inconstitucionalidade reconhecida, visto que o texto magno não autoriza a prisão ex lege, em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente.[…] (STF – ADI: 3112 DF, Relator: RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 02/05/2007, Tribunal Pleno, Data de Publicação: Dje-131 DIVULG 25-10-2007 PUBLIC 26-10-2007 PP-00028 EMENT VOL-02295-03 PP-00386). (grifos nossos)
Em seu voto o Relator destaca que é garantia constitucional a possibilidade de o acusado aguardar seu julgamento em liberdade, bem como admite a incidência de prisões cautelares quando demonstrado a necessidade, asseverando que o que não se admite é a prisão ex lege, automática, sem motivação.
No mesmo sentido discorreu majestosamente em seu voto o Excelentíssimo Min. Gilmar Mendes, verbis.
“[…] a norma do art. 21 do Estatuto também parte do pressuposto de que a prisão é sempre necessária, sem se levar em consideração, na análise das razões cautelatórias, as especificidades do caso concreto. A necessidade da prisão decorrerá diretamente da imposição legal, retirando-se do juiz o poder de, em face das circunstâncias específicas do caso, avaliar a presunção dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal […]”
Os argumentos levantados pelo Ministro corroboram com os discutidos em itens anteriores.
Por força da desta ADI, o art. 21 do Estatuto do Desarmamento foi declarado incidentalmente inconstitucional. Portanto, fere a Constituição pátria vedar a concessão de liberdade provisória nos crimes de “posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito”, “comércio ilegal de arma de fogo” e “tráfico internacional de arma de fogo”.
Interessante destacar que o primeiro delito a que o art. 21 proibia a liberdade provisória é o porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, mesmo tipo ao qual o agora §2º do art. 310 do Código de Processo Penal busca a restrição.
Vale apena colacionar também a já revogada Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034/95), que em seu art. 7º, vedava aprioristicamente a concessão de liberdade provisória aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa.
Antes de ser revogada pela Lei nº 12.850/2013, a constitucionalidade do art. 7º foi discutido em sede do HC 94.404/SP de relatoria do ex-ministro Celso de Mello. Vejamos um trecho.
“[...] A vedação apriorística de concessão de liberdade provisória é repelida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que a considera incompatível com a presunção de inocência e com a garantia do "dueprocess", dentre outros princípios consagrados na Constituição da República, independentemente da gravidade objetiva do delito. Precedente: ADI 3.112/DF. - A interdição legal "in abstracto", vedatória da concessão de liberdade provisória, incide na mesma censura que o Plenário do Supremo Tribunal Federal estendeu ao art. 21 do Estatuto do Desarmamento (ADI 3.112/DF), considerados os postulados da presunção de inocência, do "dueprocessoflaw", da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade, analisado este na perspectiva da proibição do excesso. - O legislador não pode substituir-se ao juiz na aferição da existência de situação de real necessidade capaz de viabilizar a utilização, em cada situação ocorrente, do instrumento de tutela cautelar penal. - Cabe, unicamente, ao Poder Judiciário, aferir a existência, ou não, em cada caso, da necessidade concreta de se decretar a prisão cautelar.[...] (HC 94404, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 18/11/2008, DJe-110 DIVULG 17-06-2010 PUBLIC 18-06-2010 EMENT VOL-02406-02 PP-00364) (grifos nosso).”
No que tange a vedação apriorística da concessão da liberdade provisória, o relator destacou que a prática é repelida pela jurisprudência da Suprema Corte, visto que se mostra incompatível com os princípios da presunção de inocência e com a garantia do “duo process” (BRASIL, 2008).
Ainda sobre o tema, argumentou o Excelentíssimo ex-ministro que a interdição da concessão do benefício da liberdade provisória incide na mesma censura que o Plenário do STF estendeu ao art. 21 do Estatuto do Desarmamento (ADI nº 3.112/DF).
Acerca do presente julgado cumpre instar o resumo dado nas palavras do Min. Relator a respeito do tema, in verbis.
“Em suma, cabe advertir que a interdição legal "in abstracto", vedatória da concessão de liberdade provisória, como na hipótese prevista no art. 7º da Lei nº 9.034/95, incide na mesma censura que o Plenário do Supremo Tribunal Federal estendeu ao art. 21 do Estatuto do Desarmamento, considerados os múltiplos postulados constitucionais violados por semelhante regra legal, eis que o legislador não pode substituir-se ao juiz na aferição da existência, ou não, de situação configuradora da necessidade de utilização, em cada situação concreta, do instrumento de tutela cautelar penal.” (MELLO, Celso de, 2008).
Observa-se que do entendimento do Emérito Ministro Relator que o legislador não pode se desvirtuar de sua função, retirando do juiz o dever de analisar concretamente a necessidade da utilização de instrumento cautelar frente aos pressupostos e circunstâncias fáticas do caso concreto.
A lei em questão foi revogada pela Lei nº 12.850/2013, que nada mais dispõe sobre a vedação a concessão da liberdade provisória.
Apesar de já revogada, o julgado é de extrema valia, pois um dos delitos ao qual o legislador do Pacote Anticrime proíbe o instituto da liberdade provisória é quando verificar que o agente integre organização criminosa ou milícia, indo na contramão do posicionamento já firmado pela Suprema Corte.
Destarte, retira-se de todos os julgados aqui expostos que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é clara em afirmar a inconstitucionalidade de legislação infraconstitucional que vede abstratamente a concessão de liberdade provisória, contudo, contradizendo este posicionamento maior, o legislador ao redigir a lei 13.964/2019, insistiu em criar novamente um obstáculo ao instituto da liberdade provisória.
5 CONCLUSÃO
Pôde-se constatar do presente artigo que o instituto da liberdade provisória visa resguardar o direito fundamental do indivíduo de manter, até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, sua liberdade de ir e vir, a depender ou não de contraprestação real.
Embora a Liberdade Provisória carregue evidente caráter garantista e aquiescente do Estado Democrático de Direito preceituado pelos ditames constitucionais brasileiros, o §2º do art. 310 do Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019) tenta criar “novos” óbices ao instituto.
Destarte, como demonstrado, a “inovação legislativa” não foi a primeira tentativa de impedir a liberdade do agente pautado em critérios abstratos e excluindo a análise judicial.
Nesse sentido o presente artigo demonstrou que vedar compulsoriamente o instituto da liberdade provisória fere os princípios constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal.
Não obstante foram colacionadas importantes decisões jurisprudenciais da Suprema Corte elencando os principais argumentos dos Excelentíssimos Ministros pela inconstitucionalidade da vedação em abstrato do instituto da liberdade provisória.
Assim, diante de todo o exposto, conclui-se que a vedação da liberdade provisória nos moldes presentes no §2º do art. 310 do Código de Processo Penal inserido pelo Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019) deve ser declarada inconstitucional por sua configuração como prisão ex legis e consequente violação dos princípios constitucionais do devido processo legal e da presunção de inocência, além de afastar da autoridade judiciaria a deliberação concreta do caso.
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__________. Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno. Habeas Corpus 104339/SP. Habeas corpus. 2. Paciente preso em flagrante por infração ao art. 33, caput, c/c 40, III, da Lei 11.343/2006. 3. Liberdade provisória. Vedação expressa (Lei n. 11.343/2006, art. 44). 4. Constrição cautelar mantida somente com base na proibição legal. 5. Necessidade de análise dos requisitos do art. 312 do CPP. Fundamentação inidônea. 6. Ordem concedida, parcialmente, nos termos da liminar anteriormente deferida. Relator(a): Gilmar Mendes, 10 de maio de 2012. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28HC%24%2ESCLA%2E+E+104339%2ENUME%2E%29+OU+%28HC%2EACMS%2E+ADJ2+104339%2EACMS%2E%29 HYPERLINK "http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28HC%24.SCLA.+E+104339.NUME.%29+OU+%28HC.ACMS.+ADJ2+104339.ACMS.%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/amlxczo"& HYPERLINK "http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28HC%24.SCLA.+E+104339.NUME.%29+OU+%28HC.ACMS.+ADJ2+104339.ACMS.%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/amlxczo"base=baseAcordaos HYPERLINK "http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28HC%24.SCLA.+E+104339.NUME.%29+OU+%28HC.ACMS.+ADJ2+104339.ACMS.%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/amlxczo"& HYPERLINK "http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28HC%24.SCLA.+E+104339.NUME.%29+OU+%28HC.ACMS.+ADJ2+104339.ACMS.%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/amlxczo"url=http://tinyurl.com/amlxczo. Acesso em: 29 abr. 2020.
__________. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (Med. Liminar) - 3112/DF. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 10.826/2003. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL AFASTADA. INVASÃO DA COMPETÊNCIA RESIDUAL DOS ESTADOS. INOCORRÊNCIA. DIREITO DE PROPRIEDADE. […] LESÃO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. AFRONTA TAMBÉM AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. ARGUMENTOS NÃO ACOLHIDOS. […] AÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE QUANTO À PROIBIÇÃO DO ESTABELECIMENTO DE FIANÇA E LIBERDADE PROVISÓRIA. I - Dispositivos impugnados que constituem mera reprodução de normas constantes da Lei 9.437/1997, de iniciativa do Executivo, revogada pela Lei 10.826/2003, ou são consentâneos com o que nela se dispunha, ou, ainda, consubstanciam preceitos que guardam afinidade lógica, em uma relação de pertinência, com a Lei 9.437/1997 ou com o PL 1.073/1999, ambos encaminhados ao Congresso Nacional pela Presidência da República, razão pela qual não se caracteriza a alegada inconstitucionalidade formal. […]. Relator: Ricardo Lewandowski, 02 de maio de 2007. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN HYPERLINK "http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=3112&processo=3112"& HYPERLINK "http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=3112&processo=3112"s1=3112 HYPERLINK "http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=3112&processo=3112"& HYPERLINK "http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=3112&processo=3112"processo=3112. Acesso em: 30 abr. 2020.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, THALLYSON FARIAS TELES. A (in)constitucionalidade da vedação compulsória da liberdade provisória conforme o pacote anticrime Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 nov 2020, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55611/a-in-constitucionalidade-da-vedao-compulsria-da-liberdade-provisria-conforme-o-pacote-anticrime. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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