Uma das mudanças bastante esperadas e comentadas na redação do novo Código de Processo Civil (CPC) em 2015 foi a criação das chamadas listas cronológicas de conclusão para que o juiz viesse a proferir sentença ou acórdão. Para alguns processualistas também denominado princípio da cronologia[1].
Esse reclame da sociedade, notadamente de pessoas pobres e advogados discretos, mais jovens e menos influentes no meio forense, tinha – e ainda tem – fundamento no relato de casos onde o Poder Judiciário não apresenta objetividade na ordem de prolação de seus atos decisórios.
Exemplificativamente, na prática forense é comum ocorrer situação onde um processo judicial ajuizado em 2010 ainda não foi sentenciado, porém outro de igual ou semelhante objeto, protocolado em 2020, já teve prolação de sentença sem que se tenha qualquer indicativo claro, motivado, objetivo, impessoal e isonômico justificador deste tratamento diferenciado.
A par disso, a preocupação com o tratamento processual impessoal e isonômico possui fundamento de natureza constitucional, como se pode observar na Carta Política:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
{...]
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
No mesmo norte, o atual CPC prevê a isonomia de tratamento entre as partes devendo se compreender tal acepção não somente em sentido estrito entre aquelas que compõem um determinado litígio, mas também em sentido amplo como um dever de tratamento paritário do Poder Judiciário com todos os jurisdicionados:
Art. 7º É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:
I - assegurar às partes igualdade de tratamento;
Não por outra razão, o texto originário do CPC de 2015 estipulava em seu artigo 12 que o dever de obedecer a uma ordem cronológica de conclusão para se proferir sentença ou acórdão era cogente por parte do juiz:
Art. 12. Os juízes e os tribunais deverão obedecer à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão.
No entanto, tal dispositivo recebeu uma avalanche de críticas oriundas do próprio Poder Judiciário – e de suas respectivas entidades classistas – sob o fundamento de que essa obrigatoriedade acabaria por engessar a gestão processual interna de cada gabinete. Isso porque o juiz, segundo essa corrente, estaria proibido de realizar uma organização mais fluída e dinâmica dos processos sob a sua responsabilidade, a exemplo de mutirões para julgar determinadas causas semelhantes ou estratégicas do ponto de vista organizacional. Conceitos jurídicos e administrativos, inclusive, bastante indeterminados.
Em função dessa pressão advinda da magistratura nacional, o CPC de 2015 foi alterado em 2016 pela Lei Federal nº 13.256, antes mesmo da entrada em vigor do texto principal do código processual, passando a ter a seguinte redação:
Art. 12. Os juízes e os tribunais atenderão, preferencialmente, à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão. (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016)
§ 1º A lista de processos aptos a julgamento deverá estar permanentemente à disposição para consulta pública em cartório e na rede mundial de computadores.
§ 2º Estão excluídos da regra do caput:
I - as sentenças proferidas em audiência, homologatórias de acordo ou de improcedência liminar do pedido;
II - o julgamento de processos em bloco para aplicação de tese jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos;
III - o julgamento de recursos repetitivos ou de incidente de resolução de demandas repetitivas;
IV - as decisões proferidas com base nos arts. 485 e 932;
V - o julgamento de embargos de declaração;
VI - o julgamento de agravo interno;
VII - as preferências legais e as metas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça;
VIII - os processos criminais, nos órgãos jurisdicionais que tenham competência penal;
IX - a causa que exija urgência no julgamento, assim reconhecida por decisão fundamentada.
§ 3º Após elaboração de lista própria, respeitar-se-á a ordem cronológica das conclusões entre as preferências legais.
§ 4º Após a inclusão do processo na lista de que trata o § 1º, o requerimento formulado pela parte não altera a ordem cronológica para a decisão, exceto quando implicar a reabertura da instrução ou a conversão do julgamento em diligência.
§ 5º Decidido o requerimento previsto no § 4º, o processo retornará à mesma posição em que anteriormente se encontrava na lista.
§ 6º Ocupará o primeiro lugar na lista prevista no § 1º ou, conforme o caso, no § 3º, o processo que:
I - tiver sua sentença ou acórdão anulado, salvo quando houver necessidade de realização de diligência ou de complementação da instrução;
II - se enquadrar na hipótese do art. 1.040, inciso II.
Numa leitura bastante clara é possível se verificar que a única alteração procedida pela Lei Federal nº 13.256/2016 foi no caput do artigo 12 do CPC para o fim de retirar a expressão “deverão obedecer à ordem cronológica” e pontuar que “atenderão, preferencialmente, à ordem cronológica de conclusão”. Vale dizer, ao invés de obrigação se tornou uma faculdade do juiz adotar ou não uma ordem cronológica em seu atuar.
Essa mudança, salvo melhor juízo, não se traduziu em vantajosidade para a maioria dos jurisdicionados. Antes havia ao menos uma chance de que seus casos pudessem ser julgados a partir de lapsos temporais de tramitação aferidos por parâmetros objetivos, decorrentes de uma listagem impessoal.
Hoje, porém, permanece a ampla discricionariedade do juiz – em muitos casos arbitrariedade – onde o Poder Judiciário escolhe ao seu bel prazer quais processos judiciais julgará e, ainda, quando pretende julgá-los. Em que pese se tenha uma presunção de boa-fé e de agir conforme a lei na figura do julgador, também é recorrente no meio forense que haja um relato reiterado de situações onde grandes bancas de advocacia possuem um maior “trânsito” perante os órgãos do Poder Judiciário, ao contrário de outros advogados mais simples, discretos, jovens e pouco influentes. Dizer o inverso é atentar contra a inteligência mínima dos cidadãos, pois é notória a ocorrência destes fatos no seio social, com relatos de casos até mesmo perante os Tribunais Superiores.
Tal situação acaba por minar a imagem do Poder Judiciário e estimular uma cultura de lobby, de clientelismo e de subserviência das partes e seus advogados aos julgadores, numa verdadeira novela de humilhação para que se possa obter uma célere prestação jurisdicional. Ou seria inverídico apontar casos onde um advogado se vê refém de um juiz que julga os processos que bem entende e, não raro, apenas de um mesmo escritório de advocacia? Muitas vezes nem por conta do recebimento de valores financeiros ilícitos, mas pela própria deferência ou cultura de prestígio a determinados advogados e partes, em patente violação à isonomia.
Nesse sentido, não se vê razoabilidade na pressão exercida pelos magistrados brasileiros em face do artigo 12 quando da edição do CPC de 2015. Isto porque o próprio texto já previa uma série de exceções para essa lista cronológica, de maneira que tais hipóteses eram suficientes para uma gestão administrativa eficaz de seus gabinetes. Exemplificativamente, estavam excluídas da listagem as preferências legais e as metas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o julgamento de processos em bloco para aplicação de tese jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos, o julgamento de recursos repetitivos ou de incidente de resolução de demandas repetitivas e a causa que exigisse urgência no julgamento, assim reconhecida por decisão fundamentada.
Será, então, que o juiz necessitaria de mais liberdade que isto na escolha de quais processos pretenderia julgar? Acredita-se que não. Ao revés, acabar com a lista cronológica se traduziu em retrocesso inimaginável, na medida em que se perpetuou um poder gigantesco nas mãos do Poder Judiciário em detrimento de grande parte da população brasileira que não possui meios econômicos de contratar as mais conceituadas e influentes bancas de advocacia, pois, quando muito, acessa a justiça somente através da deficitária Defensoria Pública.
Por fim, também não se vê como justificável o argumento lançado por parcela da magistratura no sentido de que algumas causas exigiriam maior amadurecimento e complexidade, de modo que uma lista cronológica engessaria a atuação jurisdicional ou forçaria o juiz a se pronunciar sobre algo que ainda não possui um convencimento.
Primeiro, não procede tal argumento porque essa situação sequer representa a maioria dos processos judiciais, já que hoje muitos casos se repetem em demandas de massa em que o Poder Judiciário tem posicionamento firmado.
Segundo porque a saída legítima para tal “exceção” deveria ser a criação de um dispositivo específico no CPC onde o magistrado pudesse justificar objetivamente – com elementos de fato e de direito – o porquê de não poder prosseguir com a lista cronológica naquele caso pontual. E não se acabar com esta como na prática se fez. Aliás, em todo caso, tal motivação judicial seria aferível por órgãos correcionais ou recursais se eivada de ilegalidade com o fim de burlar a norma processual.
Terceiro porque a prática forense não demonstra essa realidade. O que se vê é uma verdadeira luta nos balcões das varas e tribunais onde os advogados deixam os números de seus processos judiciais para uma análise das assessorias e dos juízes e não têm uma previsão concreta de julgamento. Na mesma toada, são inúmeras as situações em que jurisdicionados e advogados mais influentes obtêm a prestação jurisdicional célere por possuírem prestígio social, simpatia de servidores públicos ou do próprio juiz e, pontualmente, até por ofertarem benesses em troca da prolação de sentenças e acórdãos.
Quarto porque se evidenciava o nítido caráter de efetividade do acesso à Justiça que a redação originária do artigo 12 do CPC pretendia, na medida em que os atos processuais iriam ao encontro da prestação jurisdicional efetiva e em tempo razoável (artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal e artigos 4º, 6º, 8º e 139, inciso II, todos do Código de Processo Civil – CPC).
Portanto, da forma como redigido atualmente o artigo 12 do CPC outra conclusão não há, senão a de que a norma processual se tornou uma positivação meramente simbólica a qual, na prática, está quase despida de utilidade. Isso é evidente bastando uma simples consulta na internet que atestará quase inexistir tal listagem em varas e tribunais. Se a ordem cronológica é facultativa, não se cumpre. Até porque o magistrado perderia poder ao publicá-la. E poder é algo que as autoridades públicas não costumam abdicar no Brasil.
Andou mal, assim, o legislador reformador do CPC ao recuar de uma conquista que a sociedade obteve nos idos de 2015, porém essa semente de esperança não encontrou terreno fértil no árido âmbito do Poder Judiciário, vale dizer: uma morte prematura. Os processualistas do novo CPC e os legisladores até queriam. Já os juízes e tribunais rejeitaram esse avanço peremptoriamente.
Nas lições da doutrina, esse simbolismo legislativo é nocivo no cenário de uma sociedade contemporânea na medida em que edita leis de pouca efetividade jurídico-normativa:
Neves define a constitucionalização simbólica em termos de déficit de concretização jurídico-normativa do texto constitucional que, por essa razão, perderia sua capacidade de orientação generalizada das expectativas normativas. Entretanto, o autor também observa que, no plano da fundamentação político-ideológica, constitucionalização simbólica serviria para encobrir problemas sociais, obstruindo transformações efetivas na sociedade.[2]
Então, uma pergunta fica a título de reflexão: por que essa resistência do Poder Judiciário a uma lista cronológica impessoal, isonômica e objetiva?
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. A inaplicabilidade reiterada do artigo 12 do CPC: uma positivação meramente simbólica? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 nov 2020, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55630/a-inaplicabilidade-reiterada-do-artigo-12-do-cpc-uma-positivao-meramente-simblica. Acesso em: 22 nov 2024.
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