DÁRCIO RUFINO DE HOLANDA[1]
(coautor)
Resumo: Os ideólogos nacionais do Estado autoritário visaram à manutenção da ordem por meio da desmobilização de setores da população. É do ponto de vista do Estado que os pensadores do autoritarismo desenvolvem suas ideias políticas, dirigindo, do ápice das estruturas estatais a organização social. O processo penal visto como instrumento para garantir a paz social e a defesa é utilizado pelo Estado autoritário como via repressiva de manutenção da ordem. É a partir da visão instrumentária do processo que as categorias autoritárias penetram no Código de Processo Penal brasileiro. Com atualização do discurso autoritário pela Escola Superior de Guerra o instrumental processual passa a servir à ideologia da segurança nacional, onde o inimigo é também interno. Com atualizações discursivas que visam escamotear categorias autoritárias o código em quase 80 anos de sua vigência, mantém sua estrutura intacta mesmo após a constituição de 1988.
Palavras-chave: autoritarismo, autoritarismo desmobilizador ou instrumental e instrumentalidade processual.
Abstract: National ideologues of the authoritarian state aimed at maintaining order trought the demobilization of sectors of population. It is from the point of view of the State that thinkers of autoritarianism develop their political ideas, directing social organization from the height of state structures. The criminal process seen as an instrument to guarantee social peace and defense is used by the authoritarian state as a repressive means of maintaining order. It is from the instrumental view of the process that the authoritarian categories penetrate the Brazilian Penal Procedure Code. With the updating of the authoritarian discourse by the war superior school, the procedural instruments started to serve the ideology of national security, where the enemy is also internal. With discursive updates that aim to conceal authoritarian categories, the code in almost 80 years of its validity, keeps its structure intact even after the 1988 constitution.
Keywords: authoritarianism, demobilizing or instrumental authoritarianism and procedural instrumentality.
Sumário: 1. Introdução. 2. O discurso autoritário no Brasil. 3 Categorias autoritárias na legislação brasileira. 4. Conclusão. Referências bibliográficas.
Desejamos publicar o artigo no: Boletim Conteúdo Jurídico ISSN - 1984-0454.
1 Introdução
O fenômeno autoritário em sua faceta molar é mais facilmente reconhecido, assim a catalogação de países, governos e regimes políticos como autoritários é tarefa a que muitos pesquisadores, sociólogos se dedicam com bom grau de êxito, mas em sua faceta molecular ou individual o autoritarismo passa muitas vezes despercebido e é principalmente dessa forma que ele penetra nas democracias atuais.
Em sistemas políticos autoritários é a partir do Estado, do ápice da estrutura estatal, que a sociedade é dirigida por meio de uma estrutura vertical de poder. No Brasil esse sistema opera a partir de uma crise, que pode ser real ou não, onde o grupo político dirigente elege uma meta que só pode ser atingida a partir de um poder executivo forte, pois o povo é visto como incapaz superar a crise em razão de sua irracionalidade. Essa meta justifica a restrição ou mesmo supressão de direitos. Além disso, um método baseado em conhecimento científico é utilizado como suporte para atingir o fim proposto.
2 O discurso autoritário no Brasil
A partir dos anos 20 do século passado o discurso e as práticas autoritárias que caracterizam a relação do Estado, governado pelas elites dirigentes, com o povo, sempre visto como incapaz politicamente, que atravessa a história do Brasil nos últimos 100 anos. O pensador francês Michel Debrun (1983, p. 13) descreve a perpetuação dessa estratégia política no Brasil:
Face à grande diversidade de conjunturas, as forças dominantes reagiram lançando mão de um número limitado de estratégias políticas, sempre as mesmas. Situação essa que permanece ainda hoje, em que pesem os arranhões que vem sofrendo de modo crescente. Daí a repetição, cansativa de certos temas: essa monotonia temática procura ser a imagem temática de uma realidade política vista, senão como estagnada, como capaz de uma reprodução indefinida, mediante o uso de alguns mecanismos seculares de dominação que, até o momento, se revezaram no palco do poder.
Debrun identifica “arquétipos políticos e ideológicos” que constituem a tradição brasileira, são eles: a conciliação, o liberalismo à brasileira, o autoritarismo mobilizador, o autoritarismo desmobilizador e o messianismo. A conciliação no Brasil serviu para “formalizar e regular a relação entre atores desiguais, uns já dominantes e outros já dominados. E para permitir que os primeiros explorassem em seu proveito a transformação dos segundos em sócios caudatários” (Debrun, 1983 p. 15). Como se vê, a categoria conciliação identifica as trocas assimétricas nominadas por Edson de Oliveira Nunes (1997) como a gramática política do clientelismo e nada tem de semelhança com o conceito habitual do instituto.
Já o liberalismo à brasileira é caracterizado pela parcela da população por ele atingido, apenas a aristocracia. “Constituía o apanágio de homens que, por não terem inquietações quanto à ordem sócio-econômica, podiam se dedicar a problemas puramente políticos, e observar as regras do jogo democrático. Liberalismo limitado, quase estamental: você é liberal porque, antes de mais nada você é livre, ou melhor, no topo dos homens livres, ou bem perto desse topo.” (Debrun, 1983 p. 143).
O autoritarismo mobilizador, segundo Debrun, “o ‘mobilizacionismo’, encampa o postulado fundamental dos outros autoritarismos: a sociedade brasileira, ou parte dela, é ‘fraca’ e deve ser redimida” (Debrun, 1983 p. 58), visa, portanto, cooptar o apoio da sociedade para os objetivos da classe dirigente.
O messianismo ou o “arquétipo dos oprimidos” caracteriza os marginalizados pelo poder, segundo Debrun (1983 p. 139) “O caráter vertical da estrutura de autoridade brasileira, refletida na estrutura do poder, tem suscitado durante muito tempo a marginalização quase total de certos grupos. Não admira que esses grupos quando não adotam a religião de resignação, tenham escolhido a revolta incondicional e/ou sonhos milenaristas”.
Por fim o autoritarismo desmobilizador, que é o cerne do discurso autoritário brasileiro. Segundo Silva (1998, p. 79), “O autoritarismo desmobilizador destaca o suposto amorfismo da sociedade brasileira, além da irracionalidade do comportamento coletivo dos grupos dominados. Para evitar a desagregação da ordem, decorrência lógica da ausência de direção no âmbito da sociedade civil, o Estado surge como instituição redentora”.
Assim, é principalmente a partir da categoria ou do arquétipo político ideológico do autoritarismo desmobilizador que o Estado é erigido à condição de responsável pela organização social e econômica no Brasil. Portanto, em breves linhas é preciso demonstrar como essa categoria pautou e ainda pauta a política nacional. De acordo com Silva (1998, p. 283), o programa político do Estado autoritário:
Remete-nos à caracterização de uma determinada forma de organização do Estado que, em seus aspectos essenciais, assemelha-se ao que havia sido elaborado e proposto pelos ideólogos dos anos 20 e 30. Ou seja, os argumentos até aqui analisados isoladamente confluem para a proposição de um programa político que: 1) concebe o Estado como instituição responsável pela organização e modelagem da sociedade; 2) no interior do próprio estado, prevê a hipertrofia do Poder Executivo sobre os demais poderes; 3) no seio do Poder Executivo, expande o poder das elites técnicas (a tecnocracia) sobre as demais elites estatais; e 4) define a “necessidade” de desmobilização de movimentos e organizações autônomas da sociedade civil, com o argumento de que tais movimentos e organizações, supostamente caracterizados por “vícios” e “irracionalidades” de toda ordem, conduziriam a uma situação de crise catastrófica, sinônimo de “indisciplina social”, “desordem” e “caos”.
Ao longo dos últimos 100 anos, esse programa político é defendido por diferentes autores, sempre com o mesmo objetivo de construir a nação de cima para baixo, de maneira vertical, com a hipertrofia do poder executivo que governa por meio das elites políticas e da tecnocracia. Para tanto esses autores identificam uma crise que precisa ser combatida de maneira urgente e enérgica, e os meios de combate à crise têm por base o apelo científico, quem leva à frente essa verdadeira cruzada contra o caos é uma elite dirigente única apta a operar a partir das bases científicas, e o povo, destinatário de toda essa ação, deve ser protegido e salvo de si mesmo, nos dizeres de Silva (1998, p. 106) “Um povo que precisa ser protegido de si próprio, tarefa à qual o Estado autoritário estaria destinado”.
O autoritarismo desmobilizador de Debrun, também nominado de autoritarismo instrumental por W. G. dos Santos, de ideologia de Estado por Bolívar Lamounier e de ideologia do Estado autoritário por Ricardo Silva, seria um instrumento ou uma via necessária para instituição do regime democrático. É com o sentido de instrumentalidade do Estado autoritário que seus defensores utilizam o argumento de que ele é o caminho necessário para organizar o Estado e educar o povo para a vivência democrática, inclusive Roberto Campos defende a ideia de ditadura comissária (inspirado na “Lex Curiata”, da República Romana) a fim de justificar o golpe de 1964 (SILVA, 1998 p. 290-291).
Contudo, Silva pontua que o discurso da instrumentalidade, portanto da transitoriedade do autoritarismo, só seria admissível se uma meta democrática regulasse suas ideias, nesse caso o autoritarismo, como dito, seria um de chegada à democracia. Dessa forma, de acordo com o Silva (1998, p. 294):
Assim, a despeito das racionalizações dos novos ideólogos do Estado autoritário sugerir o contrário, a verdade é que o autoritarismo político por eles proposto não representa um instrumento, mas um fim em si mesmo, tampouco deve ser visto como transitório, quando é de sua índole eternizar-se.
Nos anos 20 e 30 do século passado, o argumento utilizado pelos defensores do estado autoritário, principalmente Alberto Torres, Azevedo Amaral, Oliveira Vianna e Francisco Campos, foi a necessidade de organização do estado. Essa meta seria atingida por meio dos recursos oferecidos pelas ciências sociais, notadamente a Sociologia, em uma época em que a crise ameaçava levar o país ao caos social em razão da incapacidade de se construir uma nação a partir dos princípios do liberalismo político. Diante de um povo incapaz politicamente, caberia às elites esclarecidas, dotadas do conhecimento científico, apresentado como a solução para todos os males, organizar a nação.
Já nos anos 50 e 60 do século passado, esse mesmo discurso, atualizado por Eugênio Gudin e Roberto Campos, substitui a meta organização da nação pelo desenvolvimento com estabilidade. A Sociologia cede espaço para a Economia como conhecimento científico que levaria ao fim colimado. A tecnocracia estatal continua a ser a única apta a operar a partir desse conhecimento. A crise nesse período é oriunda da inflação com estagnação. As elites dirigentes continuam a ter por desiderato salvar o povo inculto de si mesmo, a partir de uma lógica vertical de poder.
Além dessas semelhanças, há no discurso dos defensores do estado autoritário uma completa aversão à democracia. Nesse sentido, conforme Azevedo Amaral (1981, p. 43), “A prática do sufrágio universal e da eleição direta no Brasil fornece realmente assunto mais adequado a servir de matéria prima ao humorista que ao estudo sério do historiador”. De forma semelhante Gudin (1978b, p. 146) afirma que “a democracia rapidamente degenera em desordem, agitação, estado de sítio, quando não em revolução”.
A partir da redemocratização e da Constituição de 1988, o discurso autoritário assume nova faceta, mas continua a operar no país, pois como Borba (2003) identificou: “a transição democrática, interessa destacar que esta privilegiou a reincorporação da prática eleitoral e o retorno de alguns direitos civis fundamentais, deixando praticamente intacta a estrutura de poder e os postulados ideológicos (particularmente o desmobilizacionismo derivado da hegemonia do pensamento tecnocrático) herdados do regime autoritário”.
Analisando o caso do Plano Real, Borba identifica a presença do autoritarismo desmobilizador e de todos os elementos justificadores das condutas autoritárias que caracterizaram o período anterior à redemocratização. Observa que a inflação é apresentada como a “doença” que corrói a sociedade brasileira e que, se não fosse tratada, causaria um desfecho catastrófico. As causas da doença seriam a desordem financeira oriunda de atitudes irracionais e inadequações institucionais. Segundo Borba (2003):
Com relação à legitimação das medidas tomadas, percebe-se que a representação que se fez da inflação e de suas causas, na forma como descrita acima, já contém em si os princípios de um modelo alternativo de organização institucional, ou seja, a inflação tem origem nas desordens fiscal e monetária, as quais são o resultado de uma conjugação de atitudes irracionais (populismo econômico), má gestão da política econômica (sustentada por teorias econômicas “não científicas” que dão sustentação às atitudes populistas) e inadequação institucional (um marco institucional que permite a manifestação de atitudes irracionais). Ora, diante de tal diagnóstico, derivou-se “naturalmente” uma terapia que consistiu na construção de um marco institucional isento da irracionalidade dominante nas elites políticas, que estivesse longe das influências políticas. Num plano mais abstrato, essa foi a forma como se buscou legitimar e racionalizar as propostas de mudança institucional do Plano Real.
De acordo com Hirschman, o Brasil se caracteriza pela “retórica da intransigência” que ensina “como ‘não’ discutir em democracia” (1995, p. 138), retirando do debate público questões que deveriam ser discutidas pelo povo. Regimes democráticos de longa tradição e duração demandam o debate político pleno e aberto por todos os atores sociais. Nesse sentido, Hirschman (1996, p.94) verbaliza:
Contribuições recentes à teoria da democracia ressaltaram o papel da deliberação no processo democrático: para uma democracia funcionar bem e perdurar, é essencial, afirmou-se, que as opiniões não sejam formadas plenamente antes do processo de deliberação. Os participantes do processo – o público em geral e seus representantes – devem manter um grau de abertura ou de caráter experimental em suas opiniões e estar dispostos a modificá-las em consequência de argumentos que serão apresentados pelas partes oponentes e, mais simplesmente, à luz de novas informações que podem surgir no decorrer dos debates públicos. Sem um processo político que manifeste pelo menos alguma aspiração a esse quadro reconhecidamente um tanto idílico, a democracia perde sua legitimidade e fica, assim, ameaçada.
Portanto, a partir de Borba constatamos a plena vigência do autoritarismo desmobilizador ou instrumental mesmo na atual quadra democrática. Algo que nos faz refletir é se o discurso de combate à corrupção não seria a crise do momento a justificar os meios de combate verticais sempre utilizados pelo Estado por meio da tecnocracia insulada. Nesse cenário, provavelmente o apelo científico seria ao Direito, que através de seus técnicos construiria a salvação para o mal que assola o país, por meio de uma legislação repressiva à altura da crise, mas essa é uma reflexão para outro momento, aqui nos limitamos ao objeto de identificar como o autoritarismo instrumental permeia nossa constituição e legislação processual.
Pois bem, vimos que no Brasil o discurso e a prática autoritária utilizam o autoritarismo instrumental para retirar do debate público questões afetas à nação, bem como retiraram do povo os meios de participação no debate, dificultando o amadurecimento de nossa democracia. As elites dirigentes construíram as soluções a partir do Estado de modo vertical, por meio do insulamento burocrático, em que tecnocratas construíram os caminhos que nos levariam à organização nacional ou ao desenvolvimento com estabilidade ou ainda ao fim da inflação.
A realidade nacional mostra quão contrários são nossos dirigentes ao debate público, quão resistentes são em dar ao povo os meios e as formas de interferir no processo de tomada de decisão do qual ele é alvo.
É com essas constatações que investigamos como foi construída nossa legislação processual penal e quais são suas bases. O Código de Processual Penal foi editado em 1941 em plena vigência do Estado Novo, período em que as reuniões do parlamento dependiam da convocação do presidente, mas essa convocação jamais foi feita por Vargas. Diante da realidade autoritária vigente, a subtração do debate público na elaboração do código foi medida natural.
3 Categorias autoritárias na legislação brasileira
De acordo com Ricardo J. Gloeckner (2018, p. 348-349), os trabalhos de elaboração da legislação processual penal ficaram a cargo de uma comissão composta por Antônio Vieira Braga, Nelson Hungria, Narcélio de Queiroz e Cândido Mendes de Almeida, aos quais se juntaram Roberto Lyra e Florêncio de Abreu, nos trabalhos de revisão. O projeto elaborado foi entregue ao ministro Francisco Campos em abril de 1938.
Um código realizado sem qualquer tipo de debate público, elaborado em gabinete, deixa clara a utilização de juristas como especialistas insulados para elaboração da legislação que atendia aos anseios e às necessidades do governo durante o Estado Novo. É nesse ambiente que a concepção de instrumentalidade do processo, em uma realidade em que até o Estado autoritário era tido como instrumental, surge como matriz fundante da nossa legislação. E a indagação que fazemos é: o processo é instrumento que serve a que e/ou a quem?
Vimos que o Estado autoritário foi utilizado como instrumento para organizar o Estado de acordo com autores das décadas de 20 e 30 de século passado; para garantir o desenvolvimento com estabilidade de acordo com Campos e Gudin nas décadas de 50 e 60; e ainda para debelar a inflação na elaboração do plano real na década de 90. Mas e o processo penal serve de instrumento para quê? Para quem?
Como bem foi observado por Silva (1998, p. 244) “o Estado consiste na função de reprodução da “ordem” social pela ameaça constante ou aplicação efetiva da coerção.” E continua (p 245):
O que procuramos destacar é que sem a função de coerção não pode haver Estado. Embora não seja condição suficiente para a definição de Estado, é uma condição absolutamente necessária. Se fizermos abstração de todas as demais determinações do conceito de Estado, se suprimirmos aparelhos de regulação econômica, empresas estatais, escolas, universidades, etc. e mantivermos as forças armadas e a polícia podemos ainda falar em Estado. Mas o contrário não é verdadeiro. Se mantivermos e mesmo ampliarmos todos os demais aparelhos de Estado e suprimirmos o aparelho coercitivo, já não cabe mais falar em Estado.
Então, o processo penal é gestado e tem vida em meio ao Estado autoritário para atender à necessidade de coerção, para construir os mecanismos por meio dos quais o Estado impõe sua vontade, a vontade das elites dirigentes. Essa é uma constatação de grande importância, pois mostra desde o nascedouro a que serve e a quem serve o código de 1941 ainda vigente, e também indica os motivos pelos quais ele ainda está vigente em pleno regime democrático, pois, como vimos, o autoritarismo desmobilizador não perdeu força em nosso país.
Gleocnker, em sua obra Autoritarismo e Processo Penal (2018), faz minuciosa análise da origem das ideias que permearam a criação do nosso código, resgatando sua matriz italiana através de Arturo Rocco, Vicenzo Manzini e muitos outros. Resgata o código fascista, processo penal italiano de 1930, como modelo e eixo central do processo penal brasileiro, bem como suas categorias fundantes: a relação jurídica, o direito subjetivo de punir, a pretensão punitiva e a ação penal. O autor trata da instrumentalidade do processo no capítulo 4 de sua obra. Em apertada síntese, pontuamos o que nos interessa no momento quanto ao tema (GLOECNKER, 2018, p. 525-604):
· A principal estrutura que modelou o processo penal no Brasil é a ideia de instrumentalidade. Uma perspectiva instrumentalista é antitética da democracia, é impossível sustentar uma perspectiva instrumentalista de processo com algum tipo de compromisso democrático.
· O primeiro modelo de instrumentalidade é a de que o direito penal precisa de um processo penal. É uma instrumentalidade condicionada. É uma perspectiva unilateral de que o processo serve para aplicar a pena. O processo se transforma em servo-mudo do direito penal, mas como direito penal perde seu caráter de concretude a partir de alterações legislativas ocorridas na Itália, tudo passa a se decidir no processo penal de forma atropelada, o processo deixa de ser servo e passa a ser sócio tirânico. A transformação do processo penal como panaceia transforma ação em jurisdição.
· Instrumentalidade positiva: acesso à justiça e eficiência; instrumentalidade negativa: instrumentalidade das formas, que em processo penal não pode ter um papel democrático.
· Perspectiva instrumentalista afasta o paradigma de renúncia ao liberalismo o processo não serve para tutelar direitos, o processo serve para solucionar conflitos. Isso faz uma diferença muito grande, por que solucionar conflitos é uma perspectiva do estado, se negamos que o processo não serve para tutelar direitos o processo tem o viés apaziguador, então surge a ideia do processo como a busca da paz social, essa é uma perspectiva instrumentalista.
· A exposição de motivos do CPC de 1939 prevê o processo como “instrumento público: substitui a concepção duelística pela concepção autoritária ou pública do processo”. Substituição do princípio dispositivo pela visão publicística e autoritária centrada no juiz que é quem tem o encargo de representar o poder público no processo. Justiça é o estado e o estado é a justiça. Juiz controla a direção do processo.
· A identidade da instrumentalidade no Brasil vem da escola de São Paulo. A obra que acentua o que é instrumentalidade no processo aqui no Brasil é a obra de Dinamarco que acentua a faceta positiva da instrumentalidade como acesso a justiça e efetividade do processo e a negativa como instrumentalidade das formas, mas o princípio da instrumentalidade das formas está na base do modelo Italiano para supressão das nulidades absolutas, então instrumentalidade é a manutenção da percepção de processo em que o formalismo deve ser evitado e as tutelas do direito material prevalecem sobre qualquer coisa.
· O autoritarismo clássico se transforma a partir do regime empresarial militar de 1964 e será reatualizado pela ideologia da segurança nacional que no Brasil se constitui especialmente pela constituição de um grupo de intelectuais. No Brasil é constituída em 1949 (criação influenciada pela escola militar de guerra norte-americana), mas que vai ter o seu ápice quando as lógicas das relações de guerra são transformadas e entra em cena a preocupação com o comunismo, que advém através da guerra fria e sua bipolaridade e também pela transformação da guerra, através do conceito de guerra revolucionária que faz com que o inimigo seja interno também.
· Pela ideologia de segurança nacional que se constitui a partir da organização intelectual e formação de elites dirigentes. Diferente dos Estados Unidos a nossa Escola Superior de Guerra – ESG não formou só militares, mas civis também. E a lógica de formar civis é estabelecê-los como elementos de chancelamento de dominação intelectual, pois a perspectiva é que o comunismo ataca através de um mecanismo psicossocial e é preciso prevenir que a sociedade seja sequestrada intelectualmente pelos comunistas.
· A ESG faz esse papel agregando a questão segurança e desenvolvimento, é quando a questão segurança pública passa a ocupar um papel preponderante nas definições das relações sociais de dominação, isso explica em parte por que nossa constituição admitiu as estruturas militares que temos e como foram mantidos os estados de sítio e exceção.
· Da maneira que a instrumentalidade é constituída por Dinamarco esses conceitos básicos da ESG vão para dentro do processo iniciando pela ideia de que a jurisdição é um dos poderes do Estado.
· Existem vários pontos de contato entre o produto intelectual da ESG e a perspectiva instrumentalista. No artigo chamado “processo de conhecimento e liberdade” Dinamarco (1985, p. 253) diz “tais diretrizes estão expressas fundamentalmente na Carta Política e constituem o arcabouço central de toda atividade estatal. Definem-se, mediante elas, as instituições políticas e o seu modo de ser e o modo como se harmonizam; traçam-se metas econômicas e estabelecem-se critérios para a coordenação da nação; opta-se por certos estilos de vida e de cultura no planejamento psicossocial das instituições familiares, educacionais e religiosas; e finalmente, estabelecem-se os critérios para segurança, mediante as diretrizes relacionadas à expressão militar do poder”.
· No volume I do Manual Básico da ESG encontramos (2014, p. 42) “Enfim, analisando-se o Poder Nacional sob enfoque de suas manifestações (política, econômica, psicossocial, militar e científico tecnológica), constata-se a vantagem didática e, sobretudo, prática de admitir-se como categorias analíticas, diferentes Expressões do Poder Nacional.” A perspectiva instrumentalista de processo tem compromisso com a ideologia da segurança nacional, ela atravessa a produção da escola paulista.
4 Conclusão
Dessa forma, fica evidente que a perspectiva instrumentalista do processo visa atingir objetivos de Estado, que no caso brasileiro teve e tem por base o autoritarismo, seja por sua criação em meio ao Estado Novo com clara inspiração no código fascista italiano, seja pela atualização discursiva durante o regime militar por meio da ESG, seja na atual quadra democrática pela manutenção de institutos que caracterizam a espinha dorsal do código que desde sua origem permanecem hígidos, dentre eles: 1) o ônus da prova, da forma como é tratado no art. 156, ou seja, mesmo depois da reforma, o imputado continua a ter ônus probatório, ainda que não tenha meios de se desincumbir dele; 2) o código nunca previu a presunção de inocência[2]; 3) o juiz pode condenar com base no inquérito, ainda que não exclusivamente, mas preponderantemente, nos termos do art. 155; 4) o código, mesmo depois da reforma, admite o julgamento extra petita, como permite o art. 383, repetindo a essência do art. 477[3] do código fascista italiano de 1930.
Assim, como um sistema processual autoritário se caracteriza pela concentração de grandes poderes ou da maior parte da carga de poder em um dos atores do processo (SCHUNEMANN, 2005), verificamos que, no Brasil, a partir da instrumentalidade e da visão publicística de processo, o poder se concentra nas mãos do juiz e do órgão acusador. Nesse sentido a existência e a manutenção do inquérito policial nos autos, por decisão cautelar do STF na ADI 6298, que suspendeu a eficácia dos arts. 3º-A a 3º-F da Lei 13.964/2019, tem por função capturar os elementos de informação, bem como pautar toda produção probatória em juízo.
Apesar de tudo, no Brasil é lugar-comum a afirmação de que nossa constituição instituiu o sistema acusatório de processo penal, mas, ao contrário do que prega esse discurso, verificamos que muitas engrenagens do estado autoritário permanecem na Constituição de 1988 como, por exemplo, a estrutura das polícias. A polícia militar aparece como força de reserva do exército, uma das últimas constituições do mundo que teve esse mesmo dispositivo foi a do Pinochet de 1980. Ou ainda, a Constituição diz que as CPI’s têm poderes investigatórios de juízes, então dizer que a Constituição instituiu o sistema acusatório é uma afirmação correta?
Portanto, a permeabilidade à matriz autoritária na constituição e na legislação processual penal é uma realidade que precisa ser constantemente (re)analisada. É preciso identificar em que medida repetimos de forma irrefletida o discurso autoritário em nosso dia a dia. Falar em princípio da verdade real, princípio do in dubio pro societate, direito subjetivo de punir, dentre outros é repetir a matriz autoritária de nossa legislação penal. Da mesma forma, falar da natureza cautelar da garantia da ordem pública como requisito para a prisão preventiva é reproduzir de forma irrefletida um instituto que tem mais proximidade com o conceito de periculosidade que com o de cautelaridade, portanto, sua origem sugere uma íntima relação com a medida de segurança.
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[1] . Defensor Público do Estado do Piauí. Pós-graduado em Direito Público.
[2] A única menção a palavra inocência em todo o Código de Processo Penal é a prevista no art. 621, III, quando se trata da revisão criminal daquele que foi condenado injustamente.
[3] Art. 477 Codice di Procedura Penale “Nella sentenza il giudice può dare al fatto una definizione giuridica diversa da quella enunciata nella sentenza di rinvio a giudizio, nella richiesta o nel decreto di citazione, infliggere Le pene corrispondenti, quantunque più gravi, e applicare le misure di sicurezza, purchè la cognizione del reato non appartenga Allá competenza di un giudice superiore o speciale.” Que em tradução livre significa “Na sentença, o juiz pode dar ao fato definição jurídica diversa da prevista na sentença de internação a julgamento, no pedido ou na intimação, infligir as penas correspondentes, ainda que mais graves, e aplicar as medidas de segurança, desde que o delito não pertence à jurisdição de um juiz superior ou especial.”
Defensor Público do Estado do Piauí. Pós-graduado em Direito Constitucional e em Direito e Assistência Jurídica.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRITTO, Jeiko Leal Melo Hohmann. Instrumentos autoritários na Constituição e no Código de Processo Penal. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 nov 2020, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55632/instrumentos-autoritrios-na-constituio-e-no-cdigo-de-processo-penal. Acesso em: 22 nov 2024.
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