RENATA MIRANDA DE LIMA
(orientadora)
RESUMO: Tendo em vista o preocupante aumento da prática de divulgação de imagens íntimas de mulheres por ex-parceiros inconformados com o fim do relacionamento, esta pesquisa abordará sobre a pornografia de vingança enquanto violência de gênero e suas implicações criminais no ordenamento jurídico brasileiro, a fim verificar se este possui normas com eficácia para desestimular e punir essa conduta. Para tanto, buscou-se compreender a pornografia de vingança perante a violência de gênero, identificar quais as consequências criminais para quem a pratica e verificar se tais sanções penais são suficientes para preveni-la e puni-la. Assim, para o desenvolvimento deste artigo, utilizou-se de pesquisa básica bibliográfica e documental, tais como o Código Penal, doutrinas, periódicos, jurisprudências e outras legislações específicas, com finalidade interpretativa voltada ao exame reflexivo e analítico do tema proposto. Diante disso, verificou-se que a pornografia de vingança, como forma de violência de gênero fruto da cultura machista e patriarcal fortemente presente na sociedade, tem sido utilizada como mecanismo de controle do corpo da mulher e de repressão de sua sexualidade. Constatou-se, também, que a tutela penal, por si só, não é suficiente para solução do problema abordado.
Palavras-chave: Violência. Mulheres. Exposição. Intimidade. Criminalização.
ABSTRACT: Considering the worrying increase of divulging intimate images of women by ex-partners who are unsatisfied with the end of the relationship, it was researched about the revenge pornography as gender violence and its criminal implications in the Brazilian juridical order, with the goal to verify if there are norms with efficiency to discourage and punish this conduct. To do so, it was pursued the comprehension of revenge pornography in front of gender violence, the identification of the criminal consequences to those who practice it and verifying if such criminal sanctions are enough to prevent it and punish it. It was accomplished a basic bibliographic and documental research, with an interpretative goal oriented to the reflexive and analytic exam of the present norms in the Brazilian juridical order. In this research, texts from the Criminal Code, doctrines, periodicals, jurisprudence and specific legislation were explored. Therefore, it was concluded that revenge pornography, as a form of gender violence and being a result of the sexist and patriarchal culture strongly present in the society, has been used has a control mechanism of the woman’s body and of repression of her sexuality which imposes an acknowledgement that the criminal tutelage by its own is not enough to the solution of the problem discussed.
Keywords: Violence. Women. Exposure. Intimacy. Criminalization.
Sumário: 1. Introdução. 2. Espaço Cibernético. 3. Tipos de Violências no Espaço Cibernético. 3.1. Cyberbulling. 3.2 Cyberstalking. 3.3. Sextorsão. 3.4. Revenge Porn. 4. Violência de Gênero. 5. Pornografia de Vingança. 6. Lei 13.718/18: Uma Inovação Legislativa de Proteção as Mulheres. 7. Considerações finais. 8. Referências.
1 INTRODUÇÃO
“Sofri um assassinato moral e psicológico, perdi tudo.” Esse desabafo é da jornalista Rose Leonel que, em 2006, teve milhares de fotos íntimas suas publicadas por seu ex-namorado inconformado com o fim do relacionamento (GARCIA, 2014).
Rose Leonel, foi vítima de “pornografia de vingança”, fenômeno complexo que consiste no ato de expor uma pessoa em cenas íntimas, sem o seu consentimento, primordialmente nos sítios eletrônicos através da divulgação de fotos e/ou vídeos na internet, geralmente, após o término de um relacionamento amoroso como meio de se vingar do ex-parceiro (BUZZI, 2015).
Este comportamento é considerado criminoso pelo ordenamento jurídico brasileiro, mas, a pratica desse ato tem se tornando cada vez mais comum em virtude do progresso tecnológico, do avanço e acessibilidade dos meios de comunicação e do surgimento de novas formas das pessoas se relacionarem, principalmente virtualmente.
Cabe ressaltar que, apesar deste tipo de crime poder ocorrer com pessoas de ambos os sexos, a maior parte das vítimas são mulheres, fato que pode ser visto como reflexo de uma questão social maior: a violência de gênero.
É manifesto que há na sociedade uma cultura de violência contra a mulher, seja física, sexual, moral ou psicológica, legitimada historicamente pelo patriarcado, em que a mulher, desde sempre, foi tida como um objeto, cujo patriarca da família poderia dispô-la para satisfazer suas vontades.
Devido a essa realidade, ainda vivenciada por muitas mulheres, as vítimas do gênero feminino da ‘pornografia de vingança’ são, quase sempre, julgadas, hostilizadas e rotuladas. No entanto, o mesmo não ocorre quando a vítima é um homem, cujas consequências para sua vida são mínimas se comparadas com os reflexos sociais suportados pelo gênero oposto.
Nesse sentido, diante do assombroso aumento e até da naturalização da prática dessa modalidade de violência de gênero, verifica-se a necessidade de se estudar e analisar com mais afinco a ‘pornografia de vingança’ e suas implicações criminais no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de responder ao seguinte questionamento: o ordenamento jurídico pátrio possui normas com eficácia para desestimular e punir a prática da ‘Pornografia de Vingança’?
Desta forma, pretende-se com a presente pesquisa compreender a ‘pornografia de vingança’ perante a violência de gênero, identificando as reais consequências criminais para quem as praticam, e, por fim, verificando se as sanções penais aplicadas são suficientes para punir e prevenir tais condutas.
Assim, para o desenvolvimento deste artigo, far-se-á o uso de pesquisas bibliográficas e documentais sobre o tema proposto, tais como o Código Penal, doutrinas, artigos científicos, jurisprudências e outras legislações correlatas a ‘pornografia de gênero’, com finalidade interpretativa voltada ao exame reflexivo e analítico de normas vigentes no ordenamento jurídico brasileiro.
Dessarte, em um primeiro momento, será abordado alguns breves conceitos sobre o espaço cibernético, já que este tem sido o principal meio de divulgação de material íntimo com intuito de vingança devido ao seu grande potencial de alcance. Em seguida, será explanado algumas outras formas de violência fortemente presentes no meio cibernético, sendo a maioria das vítimas pertencentes ao gênero feminino.
Em um terceiro momento, analisar-se-á a violência de gênero, ocasião em que será tratado alguns conceitos sobre gênero, patriarcado, violência contra mulheres de modo geral e no âmbito doméstico e familiar com enfoque na Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), expondo-se, ao final, conceitos sobre ‘pornografia de vingança’.
Por fim, pretende-se realizar a análise da Lei n. 13.718/2018, recente alteração legislativa que tratou da criminalização da ‘pornografia de vingança’ ao acrescentar o art. 218-C no Código Penal para tipificar o crime de divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia. Contudo, tal inovação legislativa, apesar de ser considerada um avanço para o enfretamento deste tipo de crime, ainda não se mostra suficiente para refrear a sua prática.
A disseminação não consensual de imagens íntimas e a ‘pornografia de vingança’ é um fenômeno atual que está intimamente relacionado com a internet. Assim, para uma melhor análise do tema, faz-se necessário abordar alguns conceitos sobre internet e ciberespaço.
Segundo Pinheiro (2016, p. 63) “a internet consiste na interligação de milhares de dispositivos do mundo inteiro, interconectados mediante protocolos (IP, abreviação de Internet Protocol)”.
Essa interligação é possível porque utiliza um mesmo padrão de transmissão de dados. A ligação é feita por meio de linhas telefônicas, fibra óptica, satélite, ondas de rádio ou infravermelho. A conexão do computador com a rede pode ser direta ou através de outro computador, conhecido como servidor. Este servidor pode ser próprio ou, no caso dos provedores de acesso, de terceiros.
Criada para fins militares, a internet teve sua origem em meados dos anos 60, fruto da fusão da estratégia militar com a cooperação cientifica e a iniciativa tecnológica, proporcionada pelo trabalho realizado pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada do Departamento de Defesa norte-americano. Isso porque o Estado americano, em meio a Guerra Fria e após presenciar o marco histórico do lançamento do primeiro satélite ao espaço, o Sputnik 1 pela extinta URSS (União das Republicas Socialistas Soviéticas), viu-se compelida a dar uma resposta à altura, empreendendo ainda mais esforços no aprimoramento tecnológico do país (CASTELLS, 1999).
Diante disso, surgiu o projeto da ARPANET, o qual tinha como escopo criar um sistema de comunicação independente do centro de controle e de comando, baseado em tecnologia de comunicação por trocas de pacotes, e que fosse invulnerável a ataques inimigos, caso houvesse uma guerra nuclear. Este sistema entrou em funcionamento e 1º de setembro de 1969 com a participação de militares e cientistas, expandindo-se gradualmente.
Já na década de 80, o sistema foi dividido em algumas vertentes: a ARPANET, voltada para fins científicos, a MILNET, direcionada para aplicações militares, e a BITNET, rede para acadêmicos não-científicos que era utilizada pelas universidades americanas para troca de informações entre pesquisadores e acadêmicos. Foi nessa época que a rede que ligava todas essas redes, a “rede das redes”, passou a se chamar ‘INTERNET’ (CASTELLS, 1999).
Corroborando com o exposto, segundo Lévy (1999, p. 32),
No final dos anos 80 e início dos anos 90, um novo movimento sociocultural originado pelos jovens profissionais das grandes metrópoles e dos câmpus americanos tomou rapidamente uma dimensão mundial. Sem que nenhuma instância dirigisse esse processo, as diferentes redes de computadores que se formaram desde o final dos anos 70 se juntaram umas às outras enquanto o número de pessoas e de computadores conectados à interrede começou a crescer de forma exponencial. Como no caso da invenção do computador pessoal, uma corrente cultural espontânea e imprevisível impôs um novo curso ao desenvolvimento tecno econômico.
Diante desse cenário, em 1990, Tim Bernes-Lee, desenvolveu a World Wide Web (WWW), traduzida como Rede Mundial de Computadores, fato considerado um grande avanço tecnológico, pois permitiu a difusão da internet para sociedade em geral. De forma geral, a “WWW” tinha o objetivo de reunir e organizar os dados dispersos e incompatíveis presentes na internet de forma a oferecer aos usuários um sistema fácil de pesquisa. A World Wide Web nasceu como o espaço multimídia da internet, seus documentos podiam estar na forma de vídeos, sons, textos e figuras, graças ao protocolo de transferência de hipertexto: o HTML (Linguagem de Marcação de Hipertexto) (CASTELLS, 1999).
Ainda no mesmo ano, a internet dava um de seus grandes saltos tecnológicos. Nessa época, a ARPANET foi extinta e, em 1995, devido a fortes pressões comercias, a internet foi privatizada, fazendo com que em 1999 já não existisse nenhuma autoridade absoluta sobre o novo meio de comunicação.
Com o surgimento do primeiro navegador (browser), o Netscape Navigator, a internet tornou-se, definitivamente, conhecida e utilizada globalmente, passando a assumir incontáveis finalidades, fato que proporcionou e impulsionou ainda mais seu crescimento e o surgimento de novas tecnologias (RODRIGUES, 2017).
Nesse diapasão, a sociedade começou a aderir às novas tecnologias de informação e de comunicação de tal forma que se começou a falar em espaço virtual, um “novo espaço de comunicação, de sociabilidade, de organização e de transação, mas também novo mercado da informação e do conhecimento” (Levy, 1999, p. 32) que funcionasse, em paralelo, com o “espaço físico”.
Esse ambiente virtual passou a ser denominado de ciberespaço. Segundo Lévy (1999, p. 32), “as tecnologias digitais surgiram, então, como a infraestrutura do ciberespaço.” Cabe mencionar que o termo ‘ciberespaço’ foi utilizado pela primeira fez em 1984 pelo escritor norte-americano William Gibson em sua obra de ficção científica Neuromancer (LÉVY, 1999). Entretanto, somente com a popularização da internet que o uso deste vocábulo se disseminou.
Ainda conforme Lévy (1999. p. 92), o ciberespaço pode ser definido como um “espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores”.
O conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos (aí incluídos os conjuntos de redes hertzianas e telefônicas clássicas), na medida em que transmitem informações provenientes de fontes digitais ou destinadas à digitalização. Insisto na codificação digital, pois ela condiciona o caráter plástico, fluido, calculável com precisão e tratável em tempo real, hipertextual, interativo e, resumindo, virtual da informação que é, parece-me, a marca distintiva do ciberespaço. Esse novo meio tem a vocação de colocar em sinergia e interfacear todos os dispositivos de criação de informação, de gravação, de comunicação e de simulação. A perspectiva da digitalização geral das informações provavelmente tornará o ciberespaço o principal canal de comunicação e suporte de memória da humanidade a partir do início do próximo século (LÉVY, 1999, p. 92-93).
Nessa mesma linha, de acordo com Martino (2014, p. 29), “cada pessoa com acesso à internet faz parte do ciberespaço quando troca informações, compartilha dados, publica alguma informação, enfim, usa essa infraestrutura técnica.”
Observa-se, pois, que as comunidades virtuais ganharam força, uma vez que indivíduos que compartilhavam das mesmas ideias e interesses passaram a ver no ciberespaço a possibilidade de se conectarem, mesmo a milhares de quilômetros de distância. Assim como aduz Martino (2014, p. 45-46),
Embora a forma de ligação entre os indivíduos seja diferente, seres humanos transpõem para as comunidades virtuais seus desejos, vontades e aspirações, das mais sublimes às mais perversas. Suas características específicas — distâncias relativas, proximidades digitais, anonimato — podem criar um terreno fértil para o desenvolvimento das qualidades e problemas que já existem nos indivíduos e na sociedade.
Desta forma, a sociedade tende a conduzir para o ciberespaço suas características pessoais mais marcantes, inclusive àquelas inerentes ao crime. Como consequência há o surgimento de novas práticas ilícitas e de uma nova modalidade de crime, o cibercrime.
Vale dizer que os crimes cometidos no ciberespaço, em sua maioria, já ocorriam no mundo real, tendo a internet apenas facilitado a pratica dos delitos, principalmente pela sensação de anonimato que os usuários da rede experimentam. Porém, alguns desses crimes, por sua natureza, estão intrinsicamente ligados ao meio digital. Em razão disso, segundo Canongia e Mandarino (2009, p. 24), “a preocupação tanto com os conteúdos quanto com o tipo de uso e a respectiva segurança da Rede crescem em igual medida aos desenvolvimentos tecnológicos e ao número de usuários, observados ao longo dos últimos ano.”
Por fim, cabe mencionar que a sociedade da informação se encontra diante de um novo desafio: promover o equilíbrio entre a cultura do compartilhamento, da socialização, da transparência e da criação de conhecimento com as questões de proteção, segurança, confidencialidade e privacidade no ciberespaço (CANONGIA; MANDARINO, 2009).
3 TIPOS DE VIOLÊNCIAS NO ESPAÇO CIBERNÉTICO
As grandes transformações que a internet provocou e, ainda, tem provocado na sociedade contemporânea também tiveram seus reflexos nas concepções básicas sobre violência.
Na busca de uma definição para violência, Michaud (1989, p. 10-11) chegou à seguinte conclusão:
Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais.
Sendo isso, certas pessoas, impulsionados pela falsa sensação de anonimato e pela rapidez no compartilhamento de informações, encontraram no ciberespaço um território propício para propagarem novas formas de violência ou, ainda, um novo meio para prática de antigas modalidades de crimes. No próximo subtópico será abordado sobre alguns tipos de violências presentes no ciberespaço.
Segundo Wanzinack (2014), o bullying se caracteriza pela prática de ações repetitivas tais como o uso de força física ou outros meios de coerção psicológica, objetivando ameaçar, perseguir ou amedrontar determinado indivíduo. Geralmente, as vítimas deste tipo de violência são pessoas com peculiares características físicas, culturais, comportamentais, de gênero, dentre outras.
Embora seja prática comum nas escolas, entre jovens e adolescentes, o cyberbulling também ocorre em outros ambientes e faixa etária de pessoas. Tanto é que, atualmente, em função da grande disseminação das tecnologias de informação, e da popularização das redes sociais, grande parte do bullying vem ocorrendo em ambientes virtuais, sendo denominado de cyberbullying.
Segundo Belsey (2005) apud Shariff (2011, p. 58), o cyberbullying envolve:
O uso de informações e de tecnologias da comunicação, como o e-mail, o telefone celular e aparelhos de envio de mensagens de texto, as mensagens instantâneas, os sites pessoais difamatórios e os sites difamatórios de votações na internet com o objetivo de apoiar o comportamento deliberado, repetido e hostil por parte de um indivíduo ou de um grupo que tem a intenção de prejudicar outros indivíduos.
Ainda, de acordo com o parágrafo único do art. 2º da Lei nº 13.185, de 06 de novembro de 2015, Lei que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying) no Brasil:
Há intimidação sistemática na rede mundial de computadores (cyberbullying), quando se usarem os instrumentos que lhe são próprios para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial (BRASIL, 2015).
Para Wanzinack (2014), a possibilidade de atingir plateias em proporções incomensuráveis potencializa dramaticamente os sentimentos de vergonha e humilhação da vítima do cyberbullying, até porque as agressões podem ocorrer a qualquer hora e em qualquer lugar, a ponto das vítimas se sentirem tão indefesas que, em alguns casos, culminam em suicídio, tornando a prática dessa modalidade de bullying mais devastadora que a tradicional.
Na mesma linha, Shariff (2011) diz que o cyberbullyng tem como características o anonimato, uma vez que em sua grande maioria os autores usam perfis falsos (casos ocorridos nas redes sociais); um maior número de espectadores; o predomínio do assédio sexual e da perseguição homofóbica, característica que está relacionada com as diferenças e discriminações de gênero e de orientação sexual; o caráter de permanência da manifestação, já que as mensagens, fotos ou vídeos compartilhados nos meio virtuais podem ser salvos, encaminhados e replicados continuamente.
Além disso, condutas do cyberbullyng podem configurar a prática de outros crimes, tais como a Calúnia, a Difamação, a Injúria e a Ameaça, ambos tipificados no ordenamento jurídico pátrio nos artigos 138, 139, 140 e 147 do Código Penal, respectivamente.
Inicialmente, cumpre destacar que o stalking consiste na forma de violência através da qual o indivíduo invade a esfera da vida intima e privada da vítima por meio de insistentes táticas de perseguição, intimidação e ameaças, muitas vezes, motivado por sentimentos de ciúmes, idolatria, ódio, inveja, e outros, atentando contra a integridade psicológica e também física da vítima (MACHADO; MOMBACH, 2016).
Como os indivíduos tendem a refletir no espaço cibernético os fenômenos sociais, os stalkers (como são chamados os autores do crime) encontraram na internet um meio promissor para a prática do stalking virtual: o Cyberstalking.
Segundo Crespo (2015),
O cyberstalking é, portanto, o uso da tecnologia para perseguir alguém e se diferencia da perseguição “offline” (ou mero stalking) justamente no que tange o modus operandi, que engloba o uso de equipamentos tecnológicos e o ambiente digital. Além disso, o stalking e o cyberstalking podem se mesclar, havendo as duas formas concomitantemente. O stalker –indivíduo que pratica a perseguição – mostra-se onipresente na vida da sua vítima, dando demonstrações de que exerce controle sobre ela, muitas vezes não se limitando a persegui-la, mas também proferindo ameaças e buscando ofendê-la ou humilhá-la perante outras pessoas. Curiosamente o cyberstalking é cometido, muitas vezes, não por absolutos desconhecidos, mas por pessoas conhecidas, não raro por ex-parceiros como namorados, ex-cônjuge, etc.
Da conceituação de Crespo, concluiu-se que o autor do stalking usa do cyberstalking para expandir os meios de perseguição à vítima, estando presente em todas as áreas da vida desta, de forma material e/ou virtual.
No Brasil a prática do cyberstalking pode configurar o crime de ameaça previsto no art. 147 do Código Penal, de perturbação do trabalho ou do sossego alheios, ou, ainda, de perturbação de tranquilidade, estes dispostos nos artigos 42 e 65, respectivamente, da Lei de Contravenções Penais (CRESPO, 2015).
3.3 SEXTORSÃO
O termo sextorsão se dá da junção da palavra ‘sexo’ com palavra ‘extorsão’. O conceito de sextorsão ainda é pouco debatido em sede doutrinária, porém, de acordo com a definição criada pela ONG SaferNet Brasil, sextorsão é “a ameaça de se divulgar imagens íntimas para forçar alguém a fazer algo, ou por vingança, ou humilhação ou para extorsão financeira”.
De acordo com Cunha (2018a, p. 210), na prática da sextorsão,
[...] o agente constrange outra pessoa se valendo de imagens ou vídeos de teor erótico que de alguma forma a envolvam. No caso, emprega-se grave ameaça consistente na promessa de divulgação do material caso a vítima se recuse a atender à exigência.
Cunha (2018a, p. 210) ressalta, ainda, as inúmeras adequações típicas dessa conduta no ordenamento jurídico brasileiro.
A depender das circunstâncias, vislumbramos três figuras criminosas às quais a conduta pode se subsumir: a) se o agente simplesmente constrange a vítima a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda, há o crime em estudo; b) se constrange a vítima, com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa, há extorsão; c) se constrange a vítima à prática de atividade sexual, há estupro.
Porém, nos dizeres de Sydow e Castro (2015), independentemente de já existirem tipos penais pátrios que podem ser aplicados à sextorsão, tal prática delituosa exige previsão legislativa adequada e específica, bem como seria de grande importância a implementação de campanhas preventivas.
A conscientização dos agentes públicos, em especial juízes, promotores e delegados, seria o primeiro passo a fim de permitir que as vítimas possam se apropriar dos tipos penais já existentes no ordenamento jurídico. O manejo desses tipos levaria a temática aos tribunais estaduais, ao STJ e ao STF de modo a formar uma jurisprudência capaz de interpretar os tipos penais existentes no sentido de acolher ou refutar a inclusão do conceito de sextorsão (SYDOW; CASTRO, 2015, n.p.).
Cabe ressaltar, também, que apesar das definições de sextorsão não fazerem distinção de gênero, na grande maioria dos casos, as vítimas são do gênero feminino. Isso se deve, provavelmente, ao fato de que a exposição de imagens íntimas é sempre mais prejudicial a estas do que para vítimas do sexo masculino, fazendo com que mulheres sejam mais suscetíveis a cederem a esse tipo de extorsão. Contudo, geralmente, as vítimas tendem a não denunciarem o agressor em virtude do medo do julgamento e retaliação social que possam vir a sofrer.
3.4 REVENGE PORN
Atualmente, tornou-se comum entre casais, em sentido amplo, a prática do sexting, termo originado da junção das palavras em inglês ‘sex’ (sexo) e ‘texting’ (mensagens de texto), que consiste no compartilhamento de mensagens, fotos e vídeos de cunho sexual (WANZINACK, 2014).
Nesse contexto, o revenge porn ou ‘pornografia de vingança’ se configura quando o indivíduo divulga, sem consentimento da vítima com quem mantinha um relacionamento íntimo e afetivo, fotos e/ou vídeos de conteúdo sexual explícito ou com nudez. Tal ato ocorre, geralmente, após o término de um relacionamento, motivado por um sentimento e desejo de vingança (BUZZI, 2015). Destaca-se que o assunto sobre ‘pornografia de vingança’ será objeto de análise posterior.
Diante das modalidades de violência cibernética acima expostas, verificou-se uma característica comum entre elas, qual seja, que a maioria das vítimas pertencem ao gênero feminino. Diante dessa análise inicial, será debatido nos próximos tópicos algumas considerações sobre a violência de gênero contra mulheres em sentido amplo e no âmbito doméstico e familiar, transcorrendo sobre sua definição e tipificação no ordenamento jurídico brasileiro através da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).
4 VIOLÊNCIA DE GÊNERO
O uso do termo “gênero”, no sentido aqui empregado, surgiu primeiramente na medicina quando em 1963 o psicanalista Robert Stoller, durante o Congresso Internacional de Psicanálise de Estocolmo, apresentou o conceito que distinguia ‘sexo’ de ‘gênero’, relacionando este a cultura e aquele à biologia (LANA, 2019).
Porém, este conceito tornou-se mais conhecido e comentado popularmente a partir do momento em que passou a ser objeto de estudo pelas teorias feministas da chamada “segunda onda” do feminismo. Conforme Saffioti (2011), apesar do conceito de gênero abranger diversas categorias de estudo, há um elemento comum que o compõe: “gênero é a construção social do masculino e do feminino” (SAFFIOTI, 2011, p. 45).
Assim, o emprego do termo gênero foi rejeitado ao essencialismo biológico, segundo o qual a diferença biológica dos sexos é que determinaria as características psicológicas, sociais e comportamentais dos indivíduos, bem como seus papéis na sociedade.
Para Scott (1989, p. 3), “no seu uso mais recente, o “gênero” parece ter aparecido primeiro entre as feministas americanas que queriam insistir no caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo”.
O seu uso rejeita explicitamente as justificativas biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior. O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” – a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres (SCOTT, 1989, p. 7).
Desta forma, as diferenças sociais atribuídas a homens e mulheres não pode ser embasado puramente na questão biológica dos indivíduos e sim na construção sociocultural de gênero. Assim, a partir do momento que o sujeito nasce, a depender do seu sexo, não se deve pairar sobre ele expectativas comportamentais, tampouco predeterminar seu lugar na sociedade em razão de sua genitália.
Contudo, para Scott (1989), além do gênero ser um elemento constitutivo de relações sociais embasadas nas diferenças percebidas entre os sexos, o gênero é também uma determinante de poder. Nesse tocante, segundo Saffioti (2011, p. 84), o poder nas relações de gênero apresenta-se em duas vertentes “(..) a da potência e a da impotência. As mulheres são socializadas para conviver com a impotência; os homens - sempre vinculados a força – são preparados para o exercício do poder.”
Evidencia-se destes conceitos que as desigualdades sociais existentes entre homens e mulheres teriam como primeira causa a divisão de poder de forma díspar entre os gêneros, sendo o masculino privilegiado em detrimento do feminino, fato que culminou na hierarquização das relações sociais, pautadas na cultura patriarcal.
O patriarcado, como um padrão de organização social, apoderou-se das diferenças biológicas existentes entre os sexos para justificar a subordinação das mulheres e a dominação masculina, difundindo-se por todas as áreas de convivência humana. Assim, as relações patriarcais e sua estrutura de poder foram sendo pautadas em um esquema de dominação-submissão baseada nas diferenças biológicas, em que a mulher é extremamente inferiorizada em relação ao homem.
Dessa organização social de poder, marcada pela desigualdade entre homens e mulheres, que deriva a violência de gênero. Conforme salienta Teles e Melo (2002) apud Bianchini (2018, p. 34), “os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos.”
Nessa linha, sobre a influência do patriarcado na violência contra mulher, Saffioti (2011, p. 45-46) enfatiza:
Como os demais fenômenos sociais, também o patriarcado está em permanente transformação. Se, na Roma antiga, o patriarca detinha poder de vida e morte sobre sua esposa e seus filhos, hoje tal poder não mais existe, no plano de jure. Entretanto, homens continuam matando suas parceiras, às vezes com requintes de crueldade, esquartejando-as, ateando-lhes fogo, nelas atirando e as deixando tetraplégicas etc. O julgamento destes criminosos sofre, é óbvio, a influência do sexismo reinante na sociedade, que determina o levantamento de falsas acusações – devassa é a mais comum – contra a assassinada. A vítima é transformada rapidamente em ré, procedimento este que consegue, muitas vezes, absolver o verdadeiro réu. Grifos da autora.
Nota-se que a violência contra a mulher se mostra como uma forma de ratificar o poder do homem sobre ela como parte da dinâmica de controle/medo que é inerente ao patriarcado. Assim, se o homem sente de alguma forma que está perdendo o controle sobre a mulher, a tendência é que ele faça uso da violência para reestabelecer seu domínio. Destarte, em última ratio, a violência de gênero, seja física, psicológica, moral, patrimonial, e, em especial, a sexual, revela-se como um ato de poder.
De acordo com o art. 2º da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – "Convenção de Belém do Pará" (BRASIL, 1996), da qual o Brasil é signatário, a violência contra a mulher pode ocorrer em três esferas: no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras turmas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual; na comunidade, cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e, no âmbito público, quando perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.
Todavia, como bem ressalta Saffiotti (2011), é no âmbito das relações domésticas e intrafamiliares que as mulheres se encontram mais expostas a violência de gênero, uma vez que a dominação masculina é naturalizada pela sociedade, sendo que, em muitos casos, as mulheres não se reconhecem como vítimas de violência por confundir a agressão com o exercício do direito dos homens sobre elas, o que, por si só, já é uma violência.
Desta maneira, com o intuito de coibir a violência contra a mulher baseada no gênero praticada no âmbito doméstico, familiar ou de relação íntima de afeto, foi promulgada no Brasil, em 07 de agosto de 2006, a Lei 11.340 (Lei Maria da Penha).
A Lei Maria da Penha surgiu como instrumento normativo de proteção e contribuição jurídica para reestruturação social das relações de gênero ao imprimir na sociedade que violência contra mulher não é algo natural e que sua pratica acarreta sanções ao sujeito agressor.
Especificamente no artigo 5º da Lei n. 11.340, a violência doméstica ou familiar contra a mulher é definida como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (BRASIL, 2006). Ainda, de acordo com a referida Lei, são formas de violência doméstica e familiar contra mulher, entre outras, a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, ambas definidas em seu art. 7º.
Por sua vez, a violência física contra a mulher é “entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal” (art. 7º, I, da Lei nº 11.340/06). Muitas das vezes as agressões físicas têm lugar depois de reiterados atos de violência moral e psicológica, sendo que, nesta ocasião, a vítima já se encontra em estado de extrema fragilidade, o que diminui as chances dela se insurgir contra seu agressor (FERNANDES, 2015).
Já a violência psicológica é definida no inciso II, do art. 7º da Lei nº 13.340/06, veja-se:
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
[...]
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (BRASIL, 2006).
Para Fernandes (2015), a violência psicológica é de difícil identificação pela vítima, uma vez que se manifesta de forma silenciosa, no entanto, tem incomensurável poder destrutivo e de subjugação, sendo a inferiorização da subjetividade da mulher uma de suas principais características. É comum que a violência psicológica venha acompanhada da violência moral, pois essas duas modalidades de agressão têm por escopo a fragilização e a desestabilização da vítima.
Nos termos do Art. 7º, V, da Lei nº 11.340/06, violência moral é entendida como “qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.” Sendo assim, o que está sob ataque é a honra objetiva e subjetiva da mulher. Segundo Fernandes (2015, p. 108), “a violência moral é uma das formas mais comuns de dominação da mulher. Xingamentos públicos e privados minam a autoestima e expõem a mulher perante aos amigos e familiares, contribuindo para seu silêncio.”
Em relação a violência sexual, consideram-na como um dos maiores expoentes da violência de gênero, seja no âmbito das relações pessoais ou comunitárias. Isso porque, historicamente, o homem detém completo poder ou controle sobre o corpo feminino. Sendo assim, a Lei Maria da Penha a tratou de uma forma bem abrangente.
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
[...]
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos (BRASIL, 2006).
Conforme salienta Fernandes (2015), o rol das condutas apresentadas no dispositivo em comento, não é taxativo. Isto posto, havendo situação análoga, há possibilidade de se enquadrar como violência sexual de gênero.
Vale frisar que a inserção da mulher no mercado de trabalho, ainda que recebendo bem menos que os homens, garantiu a esta uma relativa independência financeira, não sendo mais o homem o único provedor do lar. Assim, a fim de proteger a autonomia econômica e financeira da mulher, a Lei Maria da Penha (art. 7º, IV) determinou que constitui violência patrimonial “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades” (BRASIL, 2006).
Observa-se que o sistema protetivo da Lei Maria da Penha, composto por medidas destinadas ao agressor e a vítima, é de valor imprescindível para que a mulher consiga romper com o ciclo da violência. Nesta acepção preceitua Saffioti (2011, p. 79),
A violência doméstica ocorre numa relação afetiva, cuja ruptura demanda, via de regra, intervenção externa. Raramente uma mulher consegue desvincular-se de um homem violento sem auxílio externo. Até que isto ocorra, descreve uma trajetória oscilante, com movimentos de saída da relação e de retorno a ela.
A Lei Maria da Penha representa, pois, uma ação afirmativa governamental que caracteriza uma contribuição para o avanço das transformações sociais, uma vez que estabeleceu que a violência de gênero é uma forma de violação dos direitos humanos. Não obsta, porém, que se faça uma breve ressalva sobre a limitação do seu alcance, pois, restringindo a sua aplicação ao âmbito doméstico e familiar, a Lei deixa de contemplar vários contextos em que a violência de gênero pode se manifestar.
Diante dessas considerações, verifica-se que a violência de gênero é um problema histórico que permeia todas as fases do desenvolvimento da civilização, não sendo diferente na sociedade moderna, na qual evidencia-se a violência também nos meios virtuais, a saber a difusão da prática da ‘pornografia de vingança’.
5 PORNOGRAFIA DE VINGANÇA
A ‘pornografia de vingança’, tradução da expressão em inglês “revenge porn”, consiste no ato de divulgar material de conteúdo íntimo e sexual (fotos e vídeos) de alguém, principalmente através da internet, sem seu consentimento, e assim expô-la perante a sociedade com o intuito de causar constrangimento e humilhação a vítima, o que tende a surtir consequências negativas à sua vida. Tal conduta ocorre geralmente após o fim de um relacionamento amoroso e é sempre motivada pelo sentimento de vigança. (BUZZI, 2015).
Importante salientar que há distinção entre a ‘pornografia de vingança’ e a ‘pornografia não consensual’. Esta refere-se ao gênero da qual aquela é espécie (BUZZI, 2015).
Posto isso, a ‘pornografia não consesual’ engloba toda e qualquer pratica de divulgação de imagens sexuais de um indivíduo sem o seu consentimento, seja de conteúdo adquirido com sua anuência ou não, podendo ser imagens obtidas através câmeras escondidas, invasão de dispositivos informáticos, gravações de abusos sexuais, entre outros meios (CITRON; FRANKS, 2014 apud GUIMARÃES, 2019). Já a ‘pornografia de vingança’ tem como escopo a represália pelo fim de uma relação amorosa caracterizada pela divulgação de materiais de cunho íntimo e sexual da vítima por seu ex-parceiro, motivado pelo sentimento de vingança (SYDOW; CASTRO, 2019 apud GUIMARÃES, 2019).
A pratica da ‘pornografia de vingança’ não surgiu com a internet, visto que, antes mesmo da popularização do uso desta, outros meios informacionais, tais como revistas e jornais, já eram utilizados para expor imagens pornográficas com o intuito de promover vingança e a humilhação (ALVES, 2019). O que a democratização do uso da internet proporcionou foi a sua intensificação devido a facilidade encontrada para o compartilhamento rápido de informações e, muitas vezes, de forma anônima. E, ainda, a internet proporciona uma série de meios de exposição da sexualidade das vítimas, a saber, envio de e-mails, postagens em redes sociais, encaminhamento do material à sites eróticos de hospedagem nacional e/ou internacional, dentre outros (SILVA; PINHEIRO, 2018).
Outra peculiaridade adstrita a ‘pornografia de vingança’ praticada nos meios virtuais é que, diferentemente de revistas e jornais impressos, cujas informações tendem a se perder no tempo, na internet o conteúdo intimo pode permanecer para sempre na rede (COSTA, 2020), fazendo com que a vítima seja exposta a cada acesso, em uma tortuosa repetição da violência.
Cabe menção que esse tipo de violência pode ocorrer com pessoas de ambos os sexos, porém, as consequências na vida das mulheres, que são a maioria das vítimas, são infinitamente maiores, já que são julgadas, hostilizadas e rotuladas em função da exposição de sua sexualidade, que, manifestada no âmbito privado, por uma quebra confiança por parte de um ex-parceiro, foi lançada em âmbito público.
Nota-se, que a pornografia de vingança é manifestamente uma violência de gênero, já que tem sido utilizada como um meio de repressão da sexualidade da mulher e mecanismo de controle do feminino pelo masculino (RODRIGUEZ, 2018). Em virtude disso é que se tem como principal elemento motivador do crime a vingança, sendo este utilizado como uma forma de subjugar a liberdade de escolha da mulher, punindo-a por ter decidido não mais permanecer em um relacionamento que não é de seu interesse.
De acordo com Buzzi (2015, p. 44),
A pornografia de vingança, portanto, enquanto violência de gênero, é a clara retomada da autoridade masculina sobre o corpo e a autonomia da mulher, ou seja, o homem resgatando seu poder perdido (devido ao término de um relacionamento, por exemplo), para reafirmar o corpo feminino enquanto subordinado seu.
Corroborando com o entendimento de que a pornografia de vingança é uma violência de gênero, a Ministra Nancy Andrighi (2018), no julgamento do Recurso Especial n° 1679465/SP da 3° turma do Superior Tribunal de Justiça, ressaltou:
A ‘exposição pornográfica não consentida’, da qual a ‘pornografia de vingança’ é uma espécie, constituiu uma grave lesão aos direitos de personalidade da pessoa exposta indevidamente, além de configurar uma grave forma de violência de gênero que deve ser combatida de forma contundente pelos meios jurídicos disponíveis (Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br. Acesso em: 05 out. 2020).
Outra caracterista inerente a violência de gênero e fortemente evidencida na pornografia de vingança é a culpabilização da vitima pela sociedade, sendo este fato um reflexo da cultura patriarcal, em que a sexualidade feminina é reprimida, censurada e julgada pelo fato da vítima ter registrado ou permitido o registro de sua intimidade.
Nesse diapasão, a sociedade acaba por legitimar a conduta do agressor, naturalizando-a, enquanto a mulher é condenada pelo simples exercicio de sua liberdade sexual. A responsabilização da mulher por uma ato do qual ela foi vitima é um dos fatores que mais potencializa seu sofrimento (CADRANEL, 2018).
Cabe dizer que o linchamento moral do qual as mulheres são vitimas acarretam uma série de consequências drásticas às suas vidas, deixando graves sequelas físicas e emocionais. Muitas perdem seu emprego ou são obrigadas a mudar de cidade, passam a ser assediadas e perseguidas, tanto no ambiente fisico quanto no virtual, já que seus dados pessoais, normalmente, tambem são divulgados, expondo-as a constante constrangimento, o que as levam ao completo isolamento social e, em casos mais graves, ao suicídio (SILVA; PINHEIRO, 2018).
Diante do enorme poder de destruição da vida da vitima pela ‘pornografia de vingança’, culminado com o assombroso aumento dessa prática, surgiu a necessidade de se criar, no ordenamento juridico pátrio, uma norma especifica para tutelar esta conduta, buscando a efetiva punição do agressor.
Assim, em 24 de setembro de 2018, o Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, em exercício da presidência interina, sancionou o Projeto de Lei nº 5.452-A, de 2016, de iniciativa do Senado Federal, que, entre outros, acrescenta o art. 218-C ao Código Penal, a fim de tipificar o crime de divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia (CADRANEL, 2018).
6 LEI 13.718/18: UMA INOVAÇÃO LEGISLATIVA DE PROTEÇÃO AS MULHERES
Até setembro de 2018, em razão de não haver no Brasil legislação penal especifica que tratasse da ‘pornografia de vingança’, geralmente, tal conduta era enquadrada nos crimes contra a honra: Injúria e Difamação, artigos 139 e 140 do Código Penal (BUZZI, 2015). Porém, tais delitos são considerados de menor potencial ofensivo, cabendo o julgamento aos Juizados Especiais Criminais (JECRIM), fato que cuminava ao réu uma condenação ínfima pelo ato cometido, desproporcional aos enormes transtornos causados na vida da vitima (SENA, 2018).
Conforme ressalta Buzzi (2015), dependendo das peculiaridades que cercavam cada caso, havia a possibilidade de serem utilizadas legislações especiais, como por exemplo, se a vítima fosse menor de 18 (dezoito) anos, adotava-se o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/1990; se a vítima fosse mulher e houvesse mantido com o responsável pela divulgação do material relacionamento íntimo de afeto, aplicava-se a Lei Maria da Penha que, neste caso, possibilitava o afastamento da competência do JECRIM (CADRANEL, 2018).
E, a partir de 2012, aos casos em que esse conteúdo tivesse sido obtido através de invasão de dispositivo informático alheio, passou-se a considerar a aplicação do artigo 154-A do Código Penal, incluído pela Lei 12.737/2012, conhecida como Lei Carolina Dieckmann (BUZZI, 2015).
No entanto, uma vez que tal dispositivo não tutelava a divulagação em si de fotos ou vídeos íntimos, mas sim, o meio de obtenção destas (CORRÊA, 2019), a referida legislação demonstrou ser pouco aplicável aos casos de ‘pornografia de vingança’, visto que, na maioria dos casos, este material é adquirido mediante ato voluntário da vitima em virtude da relação de confiança que esta mantinha com o agressor.
Nesse contexto, foi promulgada a Lei nº 13.718, de 23 de setembro de 2018, que, entre outros aspectos, tratou da criminalização da divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia, com a inclusão do art. 218-C no Código Penal.
Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.
§ 1º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.
§ 2º Não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caput deste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos (BRASIL, 1940). Grifos da autora.
Nota-se que o novel dispositivo legal mencionado acima trouxe, em seu parágrafo primeiro, como causa de aumento da pena, os casos em que o crime for praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação, criminalizando assim a ‘pornografia de vingança’.
Em relação a esta causa de aumento, discorre Nucci (2020, p. 993):
Entende-se mais grave a conduta, diante a relação de confiança normalmente existente entre pessoas que se relacionam intimamente, com afeto; o agente que, quebrando essa confiança, divulga, por exemplo, um vídeo da relação sexual na internet, sem o consentimento da outra parte envolvida, por certo, merece uma pena maior.[..]. No tocante à segunda causa de aumento, está-se no cenário da finalidade específica de agir, pretendendo vingança ou a humilhação da vítima. A quantidade de elevação da pena deve obedecer ao caso concreto, avaliando-se, igualmente, o grau de relação existente entre agente e vítima; afinal, quanto mais próximos, mais grave a conduta; quanto mais distantes, menos grave.
Como visto, para o tipo do art. 218-C, estipulou-se pena de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos. Sendo assim, tal conduta não pode ser considerada como um crime de menor potencial ofensivo, restando afastada a aplicabilidade da Lei nº. 9.099/95 (SENA, 2018).
No entanto, segundo Sydow (2018), o quantum de pena designado ao delito em comento possibilita que o réu inicie seu cumprimento em regime semiaberto, nos termos do artigo 33, parágrafo 2º, alínea “b” do CP, e, ainda, a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito, aspectos da norma que afetam sua efetividade para desestimular tais condutas.
Outra alteração trazida pela Lei nº 13.718/18 é com relação a Ação Penal, a qual passou a ser sempre pública incondicionada para os crimes contra a dignidade sexual, ou seja, seu processamento não está mais subordinado ao consentimento vítima (DOMINGUES, 2019).
Contudo, Cunha (2018b, p. 13-14) faz uma crítica a esta alteração:
[...] retirar da vítima qualquer capacidade de iniciativa parece ser um retrocesso – e aqui está o ponto negativo da mudança. O Estado, em crimes dessa natureza, não pode colocar seus interesses punitivos acima dos interesses da vítima. Em se tratando de pessoa capaz – que não é considerada, portanto, vulnerável –, a ação penal deveria permanecer condicionada à representação da vítima, da qual não pode ser retirada a escolha de evitar o strepitus judicii.
Observa-se que, não obstante tal inovação legislativa representar um grande avanço para o enfretamento da ‘pornografia de vingança’, não está isenta de críticas. E, mais, a tipificação penal especifica por si só não se mostra suficiente para coibir tal conduta, visto que esta é fruto da objetificação da mulher, legitimada pela cultura patriarcal. Portanto, para melhor confrontar o problema, é necessário que se promova a mudança no comportamento da sociedade em geral.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme exposto no presente artigo, o avanço tecnológico proporcionado pela internet promoveu significativas mudanças na sociedade contemporânea, principalmente em suas formas de comunicação, uma vez que os meios de trocas de informações tornaram-se cada vez mais simples e rápidos.
E nesse contexto, o espaço cibernético mostrou-se um local propício para a prática de diversas modalidades de violência, tais como o ‘cyberbulling’, o ‘cyberstalking’, a ‘sextorsão’ e a ‘pornografia de vingança’, em virtude da sua enorme capacidade de alcance, da sensação de anonimato, bem como da difícil identificação dos autores do atos criminosos.
Observou-se também que, em que pese a ‘pornografia de vingança’ não ter surgido com a popularização do uso internet, pois antes, outros meios informacionais, como revistas e jornais, já eram utilizados para expor imagens intimas de mulheres com o intuito de promover vingança e humilhação, a internet proporcionou um significativo aumento da prática desses delitos.
Constatou-se, ainda, que a ‘pornografia de vingança’ é uma grave forma de violência de gênero, tendo sido utilizada com um meio de controle sobre o corpo da mulher e de repressão de sua sexualidade. Além disso, evidenciou-se que as desigualdades de gênero e a cultura patriarcal de submissão do feminino ao masculino, propulsores da violência contra mulher, ainda se encontram muito enraizados na sociedade atual. Devido a isto, o Estado teve que editar normas de proteção às mulheres, tais como a Lei nº 11. 340/06 e a Lei nº 13.718/18.
Entretanto, constatou-se que a tipificação penal especifica ou mesmo o agravamento de pena, ainda que bem-vindos, não são suficientes para eliminar totalmente essa pratica, sendo necessário que sejam implementadas políticas públicas que promovam a igualdade entre homens e mulheres, assim como haja investimentos na educação de gênero, a fim de romper com concepções arcaicas, provenientes das ideologias patriarcalistas, legitimadoras da violência contra mulheres.
8 REFERÊNCIAS
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Acadêmica do 10° período de Direito no Centro Universitário São Lucas - Ji-Paraná - RO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BATISTA, Valéria Neiva. Violência de gênero: Uma Análise Sobre a Pornografia de Vingança e suas Implicações Criminais no Ordenamento Jurídico Brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 nov 2020, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55644/violncia-de-gnero-uma-anlise-sobre-a-pornografia-de-vingana-e-suas-implicaes-criminais-no-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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