RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo abordar a respeito do crime de aborto e suas particularidades, esclarecendo ao leitor, a definição legal e os esclarecimentos doutrinários a respeito do delito. Inicialmente, pretende-se apresentar o contexto histórico da luta pelos direitos femininos a respeito da sua liberdade sexual – abrangendo, dessa maneira, o direito a continuar a gestação indesejada (por qualquer que seja o motivo), ou não. A partir disso, pretende-se apresentar o caso do navio de origem holandesa da ONG Women on Waves, que realiza aborto em águas internacionais, visando, dessa maneira, aproveitar-se de uma lacuna na legislação internacional para o cometimento da conduta aborto. Visando esclarecer a maneira que é possível que os envolvidos não sejam responsabilizados pela lei brasileira, o presente trabalho também trabalhará conceitos básicos da aplicação da lei penal, dando um enfoque as disposições referentes à quando o crime se realiza no mar territorial do Brasil, com o objetivo de demonstrar o porquê de a aplicação da lei penal brasileira não ser cabível no caso em tela.
PALAVRAS-CHAVE: Aborto; Direitos Femininos; Liberdade Sexual; Direito Penal; Aplicação da Lei Penal
ABSTRACT: This paper aims to address the crime of abortion and its particularities, clarifying to the reader, the legal definition and doctrinal clarifications regarding the crime. Initially, it is intended to present the historical context of the struggle for women's rights regarding their sexual freedom - thus covering the right to continue unwanted pregnancies (for whatever reason), or not. From this, it is intended to present the case of the Dutch-born vessel of the NGO Women onWaves, which performs abortion in international waters, aiming, in this way, to take advantage of a gap in international legislation for the committing of abortion conduct. In order to clarify the way that it is possible that those involved are not held accountable by Brazilian law, the present work will also work on basic concepts of the application of criminal law, focusing on the provisions related to when the crime takes place in the territorial sea of Brazil, with the objective of demonstrating why the application of the Brazilian criminal law is not applicable in the present case.
KEYWORDS: Abortion; Women's Rights; Sexual Freedom; Criminal Law; Enforcement of Criminal Law
INTRODUÇÃO
O crime de aborto é questão polêmica. Por um lado, as manifestações são pró mulher – preocupam-se com a saúde, liberdade e condições sociais e psicológicas da mulher em optar por seguir ou não com a gestação. Por outro, os argumentos são pró vida: esse pensamento diz que o feto tem que ter seus direitos resguardados, incluindo-se principalmente o direito a nascer e permanecer com vida.
Seja como for, o aborto é um fato que marca a vida da mulher. Alguns países, como o Brasil, o criminalizam por entender que o nascituro deve ter seu direito a vida resguardado.
A proteção aos direitos do nascituro pode ser evidenciada no Código Civil, art. 2, onde o legislador deixa claro que os direitos do nascituro estão postos a salvo, ainda que a personalidade civil do sujeito comece no nascimento com vida, de tal maneira que algumas pessoas – geralmente as mulheres, que são diretamente impactadas por tal disposição legislativa - entendem que o legislador estaria colocando em grau de maior importância os direitos de alguém que não nasceu ainda em detrimento de sua liberdade sexual, reprodutiva e de escolha ao não terem a opção de seguir com a gestação ou não.
É importante destacar que mesmo com a criminalização do aborto tendo penas razoáveis para a inibição do crime, sendo a pena base inicial 1 a 3 anos, ainda há a prática ilegal.
No entanto, este é feita de forma muito precária, onde pode resultar na morte não apenas do feto em questão, mas também da gestante que o faz em locais em que não são adequados, evidenciando tratar-se não tão somente de um problema de políticas de persecução criminal do Estado, mas também de um problema de ordem de saúde pública .
Essa realidade não é exclusiva do Brasil: na América do Sul, porquíssimos países permitem o aborto irrestrito. Se contarmos também com a região do Caribe, apenas Cuba, Guiana Francesa, Guiana, Porto Rico e Uruguai permitem a realização deste procedimento sem que a gestante se enquadre em um crime.
Dessa maneira, várias Organizações Não Governamentais pelos direitos femininos têm se posicionado para o fornecimento de assistência a essas mulheres, de maneira em que cada uma delas procura dar alguma contribuição.
No caso da organização não governamental holandesa “Women on Waves”, ela tem por objetivo oferecer a prática do aborto em um ambiente controlado, feito por equipe médica e hospitalar adequada e com condições propícias a boa recuperação da gestante.
O aborto é realizado em local inusitado: a ONG dispõe de um barco que fica em águas internacionais, parado fora do mar territorial de países em que o aborto seja considerado crime, sendo mais barato custear a ida das gestantes interessadas em praticar o aborto até o barco que passagens para países onde essa prática é permitida.
1. DEBATE SOCIAL E LEGISLATIVO
O aborto é um fato em regra considerado como crime que, ainda hoje, gera um amplo debate a respeito de sua criminalização, não somente no Brasil, como também mundialmente.
Uma parte dos grupos, geralmente formados por mulheres, defende que o direito a realização de um aborto seria parte de um rol de direitos sexuais e reprodutivos, sendo estes necessários ao exercício pleno da liberdade por parte das mulheres.
Outro grupo, geralmente composto por homens, pessoas religiosas ou demais pessoas geralmente de ideologia conservadora, entendem que a manutenção da vida é mais importante que a escolha da mulher. Para estes grupos, a “escolha” deveria ser feita ao optar previamente pela utilização de métodos contraceptivos, que evitariam, então, a ocorrência da gravidez.
Estes últimos argumentos, no entanto, não contêm fundamentos que lhes confiram razão todas as vezes, uma vez que os métodos contraceptivos existentes, tais como a camisinha, DIU e os próprios procedimentos cirúrgicos – geralmente invasivos - são passíveis de falhas, demonstrando que a “escolha” restrita ao uso ou não de métodos contraceptivos pode não ser um argumento válido.
Nesse sentido, o presente tópico visa abordar a respeito do conceito de aborto, os seus tipos, demonstrar quais são os direitos do feto dentro do direito brasileiro e quais são os direitos da mulher no Brasil, procurando também trazer julgados a respeito de em quais possibilidades o aborto é admitido no Brasil.
1.1 Conceito
VIEIRA (2010) conceitua o aborto como a interrupção do nascimento de um feto com menos de 500 gramas ou antes de 20 semanas completas de idade gestacional no momento da expulsão do feto, sem nenhuma possibilidade de sobrevivência. Essa seria a concepção médica do aborto, o que o diferenciaria de outra conduta e o que lhe caracteriza.
Além de o reconhecer como conduta tipificada pela lei brasileira (artigos 124 a 128 do Código Penal), há também o reconhecimento de que o aborto é um problema ainda maior e mais amplo. Para além do crime, VIEIRA (2010) também considera o aborto como um problema de saúde pública, porque há complicações que podem – e geralmente ocorrem – em abortos realizados de forma clandestina.
No Brasil, só há três situações em que o aborto é legalizado: quando há risco de vida para a gestante, quando a gravidez é resultado de estupro e quando o feto é anencéfalo (feto que possui uma má formação no cérebro que faz com que inexista o encéfalo e a caixa craniana). A última situação é oriunda de decisão histórica do Supremo Tribunal Federal, que aconteceu por meio da ADPF 54.
É importante destacar que muitos dos autores consultados tratam o aborto como uma questão de saúde pública, não fechando-se na questão do fato típico em si. Tal abordagem deve-se ao fato de que o aborto, antes de fato típico, ilícito e culpável, é também uma conduta que pode gerar sérios riscos de saúde a gestante que o realiza, por geralmente o realizar em locais precários, sem estrutura para qualquer tipo de atendimento médico em clínicas clandestinas.
1.2 Tipos de aborto
O Código Penal, por meio dos artigos 124 até o artigo 128, traz as hipóteses em que o aborto é regulamentado por lei. Temos cinco principais hipóteses: aborto provocado pela gestante; aborto provocado por terceiro; aborto praticado por terceiro em forma qualificada, o aborto necessário e o provocado por estupro.
Apenas os três primeiros são considerados como crime, sendo os dois últimos considerados como excludentes para este crime, logo não há pena aplicável para estes casos.
O aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento é punível com pena de detenção, que varia de um a três anos. É crime material, que admite tentativa. Ocorre quando a gestante tem o ato de provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque”[1].
Segundo nos elucida a explicação de Lima e Clipes (2014)
Aqui a gestante por sua livre e espontânea vontade, pratica o aborto em si mesma. Já a segunda conduta, é chamada de aborto consentido, e consubstancia-se no verbo “consentir”. Nesta figura delitiva, a gestante permite que outra pessoa cometa o delito efetuando manobras abortivas.
Já o aborto provocado por terceiro, está disposto no artigo 125 e 126, onde a pena maior encontra-se para aquele que faz o aborto na gestante, mesmo que sem ou com a presença de seu consentimento:
Aborto provocado por terceiro
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de três a dez anos.
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: (Vide ADPF 54)
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência
O artigo também prevê a forma qualificada do aborto, por meio do artigo 127, CP:
Forma qualificada
Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.
Por último, tem-se a excludente de responsabilização aos médicos que praticam o aborto quando não há outro meio de salvar a vida da gestante ou quando o aborto é feito em uma gravidez onde houve estupro, desde que, no último caso, haja consentimento da gestante ou de seu responsável legal, quando incapaz:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
1.3 Direitos do feto
O direito brasileiro assegura os direitos do feto tanto quanto os direitos daqueles que já estão com vida, por meio de alguns dispositivos legais os quais falaremos melhor a seguir.
Segundo o artigo 2° do Código Civil, “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Em sendo esta redação um tanto quanto confusa, faz-se necessário a explicação a respeito do porquê o nascituro tem este direito assegurado por lei.
Segundo Affonso (2014), o direito à vida é considerado pelo legislador como um dos maiores direitos do ser humano, que por isso teriam efeitos mesmo em sua condição de não nascido ainda:
O direito à vida é superior aos demais direitos dos homens, e sendo de indiscutível importância, atinge o nascituro mesmo nesta condição suspensiva de direitos.
O nascituro é também detentor do direito à vida, de forma que cabe ao Estado a sua proteção, sem tirar, é claro, a responsabilidade da genitora de protegê-lo, de forma que, não atente contra a vida do feto, interrompendo a vida que se desenvolve em seu útero.
Por esse motivo, Affonso (2014) entende que o direito a vida deve ser respeitado preliminarmente mesmo no caso do nascituro, ou seja, do feto, para que possa gozar de todos os direitos que lhe serão devidos após o seu nascimento:
O direito à vida é, antes de mais nada, pré-requisito para o exercício de qualquer dos direitos inerentes ao indivíduo, e, portanto, deve ser respeitado preliminarmente, já que se violado, os demais direitos que dele possam resultar serão violados automaticamente
É uma posição que cabe crítica, uma vez que é necessário que o direito defina melhor a partir de quando se consideraria o nascituro como sujeito de direitos. Questiona-se: o nascituro com 1 semana de desenvolvimento ainda sim poderia ser considerado como sujeito destes direitos?
É certo que, pensando por meio das emoções, entende-se como grave a ocorrência de um aborto a partir de muitos meses de desenvolvimento do feto, como um aborto que acontece quando a gravidez já conta com 6, 7 meses.
Mas e se o aborto é ocorrido com apenas algumas semanas de vida, onde o desenvolvimento do feto é muito diminuto?
Para além desses questionamentos, Affonso (2014) traz que o nascituro também tem direito a alimentos provisionais o u definitivos, quando deles necessitar, os também chamados alimentos gravídicos:
A Lei no 8.560/1992, em seu artigo 7º, assegura ao nascituro o direito a alimentos provisionais ou definitivos do reconhecido, que deles necessitar: “Sempre que na sentença de primeiro grau se reconhecer a paternidade, nela se fixarão os alimentos provisionais ou definitivos do reconhecido que deles necessite.”.
Outro direito interessante de ser abordado no presente tópico é a possibilidade de a grávida ser investida dos direitos devidos ao nascituro, desde que apresente o laudo que comprove a gravidez e o juiz decida que isto ocorra por meio de sentença:
É importante salientar também que, presente no Código de Processo Civil, artigo 877 e 878, há a possibilidade da mulher que, para garantir os direitos do nascituro, poderá provar sua gravidez segundo médico de nomeação do juiz. A posteriori, o artigo 878 define: “Apresentando o laudo que reconheça a gravidez, o juiz, por sentença, declarará a requerente investida na posse dos direitos que assistam ao nascituro.” (AFFONSO, 2014)
Nesse sentido,
1.4 Direitos da mulher no Brasil
ANJOS et al. (2013) entende que em 1980, a ideia de direitos sexuais e reprodutivos (inseridos aí na amplitude do direito de liberdade) foi também fruto das reivindicações feministas da época. Essas reinvindicações giravam em torno da necessidade da concessão da liberdade do planejamento familiar, onde os casais poderiam escolher ter ou não filhos – e, se optassem por ter filhos, quantos eles teriam.
Nesse contexto, cabe citar que conforme os anos foram passando e houve transformação do modo de pensar da sociedade, foi-se alterando a visão de que a mulher era inteiramente submissa, quase que predestinada a ter filhos – mesmo que não o almejasse – pois não tinha conhecimento de medidas contraceptivas. Mesmo em situações em que tivesse conhecimento de medidas contraceptivas, também não tinha apoio da família e amigos para as utilizar, visto que os métodos contraceptivos eram moralmente reprovados pela maioria da sociedade em geral (ROCHA e BARBOSA, 2009 APUD ANJOS et al, 2013).
Hoje, as mulheres têm os mesmos direitos que homens, usufruindo também dos direitos fundamentais dispostos na Carta Magna, dentro do artigo 5°. Isso significa dizer, portanto, que as mulheres também possuem o direito a vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade, tanto quanto os homens – ou, ao menos, em teoria.
O direito a liberdade, como sabemos, é um direito muito amplo: desde a liberdade de locomoção a liberdade de se relacionar e a liberdade sexual, é um direito muito amplo.
Assim, entendemos que nem toda liberdade é contemplada pelo direito brasileiro as mulheres, haja vista a proibição dos abortos disposta no Código Penal e que encontra fundamento no Código Civil e demais leis que vimos anteriormente.
Aparentemente, não se respeita totalmente os direitos de liberdade das mulheres, em se tratando de liberdade reprodutiva. Passaremos, portanto, ao tópico a respeito da ONG Women on Waves e o aborto realizado em águas internacionais, buscando trazer mais detalhes a respeito do caso.
2. ONG WOMEN ON WAVES E O ABORTO REALIZADO EM ÁGUAS INTERNACIONAIS
Em meio a todo esse debate a respeito do aborto, os direitos do feto e os direitos da mulher, surgiram as organizações não governamentais Women on Waves e Women on Web. Essa última, que tem por objetivo principal disseminar conhecimento sobre métodos contraceptivos e demais ferramentas para auxiliar no planejamento familiar, inclusive com o envio de pílulas abortivas. As duas foram fundadas por Rebecca Gomperts, médica holandesa.
Por meio da Ong Women on Waves, a ideia de Gomperts é levar o aborto realizado de forma higiênica e segura para países em que há proibição da conduta.
O processo funciona da seguinte forma: a ONG atraca um navio em águas internacionais, fora do mar territorial do país que proíbe a prática, mas próximo ao mar territorial desses países. As gestantes interessadas pegam um barco que as leve até o navio e lá realizam os abortos.
Já na ONG Women on Web, além da prestação de informações a respeito do aborto, há o envio de pílulas abortivas por correio, pílulas essas que tem por base a substância Mizoprostol. Nesse caso, as pílulas são utilizadas para fazer o procedimento em casa. Segundo Rebecca Gomperts, o impacto do medicamento é o mesmo que se a gestante tivesse um aborto espontâneo (NOTÍCIAS STF, 2018).
Sobre os sites, recentemente houve o bloqueio do acesso dos mesmos na internet nos seguintes países: Brasil, Irã, Arabia Saudita, Coreia do Sul e Turquia. A Ong Coding Rights fez um relatório sobre a suspensão do acesso nesses países. O presente relatório percebeu, entre outras coisas, que:
Dado que o aborto permanece como prática ilegal em diversos países, e que a Women on Waves adotou táticas pouco convencionais para apoiar a prática segura da interrupção de gravidez ao redor do mundo, pudemos verificar que os sites da Women on Waves (womenonwaves.org e womenonweb.org) foram censurados por certos países
2.1 Histórico do projeto
A organização não governamental (ONG) Women on Waves tem ppor objetivo de existência a promoção de acesso ao aborto de maneira segura, ainda que em países os quais não há legalização para este procedimento:
Women on Waves é uma organização holandesa sem fins lucrativos que pretende promover o acesso ao aborto seguro mesmo em países que não o legalizaram. Ela afirma ter como missão empoderar as mulheres para tomar decisões conscientes e bem informadas sobre planejamento familiar, prevenir a gravidez indesejada, assegurar o aborto seguro e legal, reduzir o sofrimento físico e psicológico desnecessário e as mortes por aborto ilegal e incentivar o apoio à liberalização das leis do aborto em todo o mundo.
A organização possui um navio, que atraca no mar de diversos países, onde fornecem contraceptivos, informação, workshops e abortos seguros e legais fora das águas territoriais de países onde o aborto é ilegal.[2]
Bruxellas (2019) nos traz uma breve exposição a respeito da criação e atuação desta organização não governamental, explicando que a ideia para a sua criação foi encabeçada pela médica Rebecca Gomperts e surgiu a partir de 1990:
Em 1999, foi criada a polêmica organização não governamental e sem fins lucrativos chamada “Women on Waves Foundation”. A ideia para a criação da ONG, de origem holandesa, foi encabeçada pela médica Rebecca Gomperts e tem sua gênese na década de 90, enquanto ela realizava sua residência médica no continente africano e trabalhava em unidades móveis do Greenpeace.
A partir da morte de muitas mulheres em decorrência da prática de abortos clandestinos, Rebecca Gomperts passou a procurar maneiras de provocar mudanças na liberdade reprodutiva feminina:
Atiçada pelo duro testemunhar de dezenas de mortes femininas em virtude da prática de abortos ilegais, performados em locais clandestinos e não seguros, Rebecca dedicou-se a buscar uma forma de provocar mudanças efetivas no cenário global no que concerne o direito à liberdade reprodutiva feminina. Gomperts idealizou uma forma inovadora de ativismo que visava e pretendia transcender não só fronteiras, como também romper com barreiras do imaginário. Sua iniciativa almejava oferecer acesso à educação sexual, métodos contraceptivos e serviços abortivos a mulheres em países onde essas práticas eram proibidas. Somando-se a esses propósitos, Gomperts estava convicta da necessidade de concretizá-los sem infringir as leis dos países que ambicionava revolucionar. (BRUXELLAS, 2019)
Com a ideia já consolidada, a fundadora da Organização Não Governamental começou a idealizar uma maneira de levar um pedaço de seu país a outros, de maneira que foi idealizado formato de levar a assistência a estas mulheres atualmente, por meio de um navio:
A questão formulada era, enfim, como realizar, legalmente, práticas, permitidas em seu país, em países onde as mesmas eram incontestavelmente ilegais? Rebecca precisaria, de alguma forma, levar seu país ao país alheio. A idealização da médica aparentava, à primeira vista, ser paradoxal. A solução encontrada, no entanto, revelou-se ser tão original quanto secular: Ir para além das águas territoriais de países que criminalizam as condutas que ela aspirava colocar em prática. Após extensivas pesquisas legais e médicas, a ativista concluiu que a resposta não estava em levar o público alvo de seu ativismo à Holanda, e sim em levar a Holanda ao seu público alvo. Para levar a Holanda e suas leis reprodutivas aos quatro cantos do mundo, a médica apenas precisava de um navio que arvorasse a bandeira tricolor; vermelha, branca e azul. (BRUXELLAS, 2019)
Dessa maneira, o navio foi a melhor opção disponível ao propósito da ONG, pois não seria necessário trazer as mulheres que tem interesse pelo procedimento do aborto até o país de origem da médica, o que, a longo prazo, justificaria os custos com a sua compra e manutenção. Além disso, o propósito da ONG não é unicamente a realização de abortos, mas também o oferecimento de educação sexual as pacientes:
Em uma embarcação de bandeira neerlandesa, ela poderia navegar até o porto de um país “X”, onde o aborto, a contracepção e a educação sexual são ilegais, trazer mulheres a bordo, levá-las ao Alto-Mar e legalmente fornecer-lhes métodos contraceptivos, informativos de educação sexual ou até mesmo realizar procedimentos abortivos - enquanto ainda em águas internacionais – sem que isso configurasse um crime, independentemente da legislação do país onde o recolhimento ocorreu. (BRUXELLAS, 2019)
Nesse sentido, entendemos que a existência de uma organização tal qual a “Women on Waves” partiu de uma ideia inovadora de levar educação e maior liberdade reprodutiva as mulheres no mundo inteiro, em especial naqueles países em que há muita restrição quanto a possibilidade de acatar o aborto mesmo em determinados casos em que não há, por parte da mulher, a “escolha” por utilizar métodos contraceptivos, como nos casos da gravidez por estupro, por exemplo.
2.2 Polêmicas
Vieira (2010) aponta o aborto como uma das principais causas de mortalidade materna no Brasil. Para a autora, esse fato ocorre porque o aborto realizado no país é tido como inseguro: as clínicas clandestinas onde a gestante se dispõe a ir geralmente não tem padrões de higiene ou mesmo dispõem de técnicas para que o procedimento possa ser realizado de forma segura, o que resulta em risco de morte para a mulher. Segundo a autora, o problema ocorre por conta da criminalização da conduta no país.
Ao argumentar sobre o debate do aborto induzido, SANTOS et al (2013) defende que as “discussões inerentes ao aborto no Brasil suscitam reflexões relacionadas a aspectos sociais, culturais, morais, legais, econômicos, bioéticos, religiosos e ideológicos.”.
Talvez por esse motivo seja uma discussão considerada tão difícil e polêmica hoje, principalmente sobre se a conduta devia realmente ser considerada legal ou não e em quais outros casos mais, se houver. Seguindo esse raciocínio, SANTOS et al (2013) entende que “por atravessar um emaranhado de aspectos econômicos, jurídicos, religiosos e ideológicos, a temática aborto incita passionalidade e atrito”.
Para SANTOS et al (2013), a situação da prática de aborto inseguro agrava-se ainda mais em mulheres de baixa escolaridades e negras. Isso porque há um déficit na assistência da saúde da mulher, que piora devido ao acesso desigual dos recursos que podem evitar a gravidez indesejada:
o déficit de qualidade na assistência prestada na atenção à saúde da mulher, especificamente relacionada à saúde sexual e reprodutiva, somado ao discurso medicalizador e hospitalocêntrico, tornou o parto hospitalar e cesariano, com vistas à esterilização, prática cultural corriqueira. A inobservância na oferta de acesso a atenção à saúde sexual e reprodutiva, tanto no aconselhamento quanto na oferta efetiva de medicamento contraceptivo, também eleva o número de gravidez indesejada. Essa situação pode estar diretamente relacionada ao alto índice de abortos induzidos. Tal fato ocorre porque diversas mulheres se encontram desamparadas em seu direito à saúde e, como no Brasil o aborto é ilegal na maioria das situações, algumas recorrem a práticas clandestinas ou inseguras, sobretudo as mais pobres, com baixa escolaridade e negras
2.3 É possível a punição dos envolvidos pela lei brasileira?
O trabalho realizado por eles é, a primeira análise, legal – o navio é holandês, um país onde o aborto é legalizado. Logo, por estar em águas internacionais e a regra de territorialidade do direito penal brasileiro não se aplicar ao caso em questão (porque o navio não é brasileiro e o fato não acontece em mar territorial brasileiro), entendemos que a conduta realizada não é crime.
Para provar esse ponto de vista, pretende-se explicar as regras de territorialidade e extraterritorialidade do direito penal brasileiro. Também pretende-se conceituar legalmente as condutas, analisando o caso de forma ampla e entendendo o aborto de uma perspectiva de saúde pública, conforme entendimento dos autores aqui citados anteriormente.
Ao estudarmos a aplicação da lei penal brasileira, deparamo-nos com os conceitos de aplicação da lei penal no espaço, os quais estão traduzidos em dois institutos da aplicação da lei penal: a territorialidade e a extraterritorialidade.
Segundo o Direito Penal brasileiro, a territorialidade é a regra. Por meio dela é que é definido que os delitos praticados no Brasil serão regidos pela lei penal brasileira. Esta noção advém da ideia de soberania do país, segundo Kondo (2015):
Segundo Guilherme de Souza Nucci, a territorialidade é “a aplicação das leis brasileiras aos delitos cometidos dentro do território nacional (art. 5º, caput, CP)”. Portanto, trata-se de “regra geral, que advém do conceito de soberania, ou seja, a cada Estado cabe decidir e aplicas as leis pertinentes aos acontecimentos dentro do seu território”.
Nesta senda, para fins de aplicação da lei penal no espaço, é de extrema importância a conceituação de “território”, que, consoante entendimento do supramencionado doutrinador, consiste em “todo espaço onde o Brasil exerce a sua soberania, seja ele terrestre, aéreo, marítimo ou fluvial”.
Assim, “são elementos do território nacional: a) o solo ocupado pela nação; b) os rios, os lagos e os mares interiores e sucessivos; c) os golfos, as baías e os portos; d) a faixa de mar exterior, que corre ao largo da costa e que constitui o mar territorial; e) a parte que o direito atribui a cada estado sobre os rios, lagos e mares fronteiriços; f) os navios nacionais; g) o espaço aéreo correspondente ao território; h) as aeronaves nacionais”.
Para Kondo (2015), existe ainda a possibilidade da extraterritorialidade na aplicação da lei penal, que é, necessariamente, aplicada em ocasiões muito singulares. Esta extraterritorialidade está dividida entre incondicionada e condicionada.
Como visto, a territorialidade é a regra. Contudo, em algumas situações, “admite-se o interesse do Brasil em punir autores de crimes ocorridos fora do seu território. Extraterritorialidade, portanto, significa a aplicação da lei penal nacional a delitos ocorridos no estrangeiro (art. 7.º, CP)” (NUCCI, 2012, p. 131).
Deste modo, na esteira da aula anterior, importa salientar que a extraterritorialidade é regida pelos princípios da defesa, proteção ou real; da nacionalidade ou personalidade ativa; da justiça cosmopolita ou universal; da representação ou bandeira.
Por fim, ressalta-se ainda que a extraterritorialidade será dividida em 02 (dois) critérios:
Incondicionada: “o interesse punitivo da Justiça brasileira deve ser exercido de qualquer maneira, independentemente de qualquer condição”;
Condicionada: “somente há interesse do Brasil em punir o autor de crime cometido no exterior se preenchidas as condições descritas no art. 7.º, § 2.º, a, b, c, d, e, e § 3.º, do Código Penal”.
O direito internacional não reconhece o aborto como crime internacional; dessa maneira, sem norma penal, não há que se falar em cometimento de crime.
Nesse sentido, ao levar as interessadas na realização de aborto para águas internacionais, não há que se falar em cometimento de crime por parte da gestante interessada e dos envolvidos no seu cometimento.
Ainda que se levasse em consideração a procedência do navio para fins de persecução penal, tem-se que o país de origem do navio é a Holanda; logo, como o aborto não se trata de crime em seu país de origem, ou seja, a Holanda, não há que se falar em crime.
CONCLUSÃO
Como vimos no decorrer do presente artigo, o aborto se trata de uma conduta considerada pelas leis brasileiras como criminosa, haja vista que o legislador põe os direitos do nascituro salvaguardados, mesmo que ainda não tenha personalidade civil, de acordo com o Código Civil de 2002.
Assim, o direito brasileiro acaba por reduzir uma questão com complexidade e problemática muito maior, que vai para além da criminalização deste fato jurídico, uma vez que geralmente o que leva uma gestante a realizar o aborto é motivo relativo a situação socioeconômica.
Pode-se verificar durante o decorrer do artigo que a realização do aborto clandestino é, hoje, um dos principais problemas de saúde para o público feminino, assim como o é o câncer, enquanto doença, e atos de violência contra a mulher, por exemplo.
Nesse sentido, cabe ressaltarmos que o debate a respeito do aborto continua muito presente e cada dia mais intensificado, a partir de constantes denúncias por parte da mídia de dados em que cada vez mais mulheres, adolescentes e até mesmo crianças tem seus direitos sexuais violados e, ainda assim, existem médicos que se recusam a realizar o procedimento.
Uma mudança legislativa nesse sentido pode ocorrer, mas se assim acontecer, será com vários anos de militância e persistência por parte de movimentos sociais, além de manifestações em prol desta prática.
REFERÊNCIAS
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LIMA, J L; CLIPES, M P. Elementos estruturais do crime de aborto e suas especificidades. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/elementos-estruturais-do-crime-de-aborto-e-suas-especificidades
Bacharelanda em Direito pela Faculdade Metropolitana de Manaus / Fametro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Priscilla Neves. Aborto em águas internacionais e o caso "Women on Waves" Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2020, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55734/aborto-em-guas-internacionais-e-o-caso-women-on-waves. Acesso em: 22 nov 2024.
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