EDY CÉSAR JUNIOR
(orientador)
RESUMO: A lei Maria da Penha desenvolve em seu texto legislativo a coibição e proteção às mulheres que são vítimas de violência doméstica e familiar, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; O artigo trata da efetividade da aplicação da lei Maria da penha (lei 11.340/06) que entende como sujeito passivo apenas a figura da mulher. O legislativo ao introduzir a lei no ordenamento jurídico, visou especificamente a proteção as mulheres, por serem mais vulneráveis. O problema dessa questão, mostra-se necessário, pelo fato de que as vítimas transexuais femininas também merecem aplicação da referida lei. No entanto, o acesso à justiça por essas pessoas é bastante complicado. Dessa forma, pretende-se entender melhor como a lei funciona, quais são suas características e o quão importante é para todo o ordenamento jurídico brasileiro. Diante do contexto, busca-se ainda, estudar sobre a diferença entre a identidade de gênero e a orientação sexual e analisar a utilização da lei Maria da penha as mulheres transexuais. O tipo da pesquisa é exploratória, usando método dialética, no qual a técnica de coleta de dados foi realizado através de meios bibliográficos, artigos científicos. Para tanto, entende-se necessário apontar posicionamentos da doutrina, jurisprudência e fatores históricos e sociais que estão inseridos em todo o contexto.
Palavras-chave: Lei Maria da Penha (11.340/06); Transexual; Violência Doméstica.
1 INTRODUÇÃO
O artigo irá tratar da possibilidade de aplicação da lei 11.340/06 (Lei Maria da penha) não somente as mulheres, mas também as vítimas transexuais. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o transexualismo é “um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. É também chamado de transtorno de identidade sexual. Transexual é aquele que nasceu fisicamente com um determinado sexo, mas que se reconhece como sendo do sexo oposto.
A Lei Maria da penha (lei 11.340/06) é um instituto jurídico que surgiu diante da necessidade de uma maior às vítimas de violência doméstica. O artigo 2º da lei em apreço retrata que: “Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social”.
Diante de tal dispositivo legislativo, independente da orientação sexual, a vítima transexual que se identifica como sendo mulher, deverá ter o amparo da referida lei, independente de procedimento cirúrgico para “mudança de órgão sexual”.
Este artigo tem como problemática responder ao questionamento: Como aplicar a lei 11.340/06 (LEI MARIA DA PENHA) as transexuais femininas, vítimas de violência doméstica? Para tanto, o presente estudo tem como objetivo estudar quais são os requisitos e características necessários para aplicação dos institutos protetivos da lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), quais são as diferenças entre identidade de gênero e orientação sexual, assim como, analisar a vulnerabilidade da mulher transexual através de estudos históricos, psicológicos e sociais.
O estudo se propõe fazer uma análise dos institutos protetivos da lei em relação as transexuais, ressaltando sua vulnerabilidade como pessoas do sexo feminino que necessitam do amparo legal para que não tenham seus direitos violados, já que não há legislação especifica que as resguarde. Devendo ser respeitado o princípio da isonomia, visto que a referida lei deverá ser aplicada a toda mulher, independentemente, dentre outros, de orientação sexual. A pesquisa utilizada será a qualitativa, realizada através do método hipotético dedutivo e de procedimento técnico bibliográfico e documental, na qual serão fontes as doutrinas, jurisprudência, constituição federal, tratados e convenções internacionais.
Posteriormente, será abordado no primeiro capitulo uma breve contextualização da lei Maria da penha (Lei 11.340/06), fazendo apontamentos das principais conquistas da lei, assim como dos seus institutos protetivos, requisitos e características necessários para aplicação da referida lei. Em seguida, trataremos da diferenciação entre identidade sexual e orientação sexual, informando que ser transexual trata-se, em verdade, de identidade de gênero, ou seja, como a pessoa se identifica, masculino ou feminino, e que por outro lado a orientação sexual, diz respeito as formas de atração sexual de cada um.
Por fim, o terceiro capítulo será dedicado a abordagem da necessidade de se aplicar a lei Maria da penha, não só as pessoas que são biologicamente mulheres, como também as vítimas transexuais femininas, que assim como aquelas, são seres vulneráveis em uma relação doméstica ou familiar. Dessa forma, o estudo buscará respaldo em regras e princípios constitucionais, decisões judiciais, posicionamento da doutrina, assim como tratados e convenções internacionais ao qual o Brasil é signatário.
2.CONTEXTO HISTÓRICO DA LEI 11.340/06 (LEI MARIA DA PENHA).
De acordo com o RELATÓRIO N° 54/01, caso 12.051 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em 20 de agosto de 1998, a CIDH recebeu a denúncia feita pela Senhora Maria da Penha, pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional e pelo comitê Latino-Americano de Defesa dos direitos da Mulher. Foi então, que após a análise dos fatos e do direito, a Comissão entendeu que o Estado Brasileiro violou os direitos e o cumprimento de seus deveres, se mostrando omissivo e tolerante com esse tipo de violência, não tomando as devidas medidas pertinentes.
A partir dessa denúncia foi recomendado ao Brasil finalizar o processo e apurar tais irregularidades. Nesse sentido, o Brasil entendeu que precisava criar uma legislação que protegesse essas vítimas e punisse os agressores. A lei 11.340/06 foi sancionada em 07 de agosto de 2006 e é considerada até hoje como um marco histórico contra a erradicação da violência.
A lei 11.340/06 foi títulada como lei Maria da Penha em homenagem à cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima de violência doméstica por anos. Agredida pelo marido inúmeras vezes, quase sendo assassinada em duas destas. Fernandes, Valéria destaca que houve contra o agressor de Maria da Penha, dois julgamentos pelo tribunal do júri, mas que ele só foi preso em 2002 e cumpriu dois anos de prisão.
De acordo com o Instituto Maria da Penha, tendo em vista o contexto dos fatos, Maria da Penha decidiu escrever um livro contando sua história, o qual teve como título: Sobrevivi... Posso Contar, escrito em 1994, logo após o primeiro julgamento de seu ex marido que foi condenado, mas saiu do fórum em liberdade, devido aos recursos interpostos.
Em entrevista ao Instituto, Maria da penha relata que se sentiu abandonada pelo Estado, e a partir daí resolveu escrever seu próprio livro, a fim de demonstrar aos leitores o sofrimento que vinha passando. Após o livro ser lançado, e ter chegado ao conhecimento de organizações não governamentais, é que surgiu a possibilidade da denúncia a Corte interamericana de direitos humanos.
Maria da Penha não desistiu de se empenhar pelo seu objetivo de lutar pelos direitos femininos. Somente após 19 anos e seis meses de luta viu se concretizar uma lei especifica que veio com o objetivo de garantir as proteções necessárias as vítimas de violência doméstica e familiar. O Brasil, então foi condenado por omissão, negligência e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres.
Seguindo essa seara, FERNANDES, Valéria Diez Scarance afirma que:
A Lei n. 11.340/2006 inovou. Rompeu com o tradicional processo penal e criou um processo dotado de efetividade social, para proteger a mulher e prevenir a violência. Extrapolou a noção de que o processo objetiva apurar a verdade e possibilitar a aplicação de pena. O processo surge como uma possibilidade de intervenção na história de violência das mulheres, protegendo-as, recuperando o agressor e até́ mesmo adotando medidas cíveis para assegurar a subsistência da vítima durante o processo. Houve também uma releitura dos papéis das autoridades públicas responsáveis pela persecução penal. Assim, o processo por violência doméstica passou a ser constituído de forma multidisciplinar, transformado e renovado, para romper o ciclo de violência doméstica.
Sem dúvidas, a lei em apreço veio com uma força muito grande, trouxe para as vítimas a confiança de terem seus direitos garantidos e suas queixas ouvidas. A lei foi uma conquista no mundo feminino, tendo em vista todo o histórico que envolve as mulheres. A sociedade têm evoluído e mudado bastante, mas há muito o que ser feito ainda. Não basta ter uma lei que garanta os direitos, é necessário um rigor maior em sua aplicação e fiscalização.
Maria da Penha, em entrevista ao instituto que leva o seu nome, expõe:
“A lei está sendo verdadeiramente implementada, as mudanças são significativas, as denúncias aumentam e as reincidências diminuem. Quando dizemos que o número de denúncias cresceu, não significa que a violência contra a mulher também cresceu, mas, sim, que as mulheres se sentem mais seguras e respaldadas, acreditam no poder do Estado e, por isso, têm mais coragem de denunciar”. (Entrevista ao Instituto Maria da Penha).
2.1PRINCIPAIS CONQUISTAS DA LEI 11.340/06
Ao ser introduzida no ordenamento jurídico brasileiro, a lei Maria da Penha já trouxe boas perspectivas em relação a proteção do sexo feminino. Já no seu primeiro artigo, diz que a lei criará mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Dispõe ainda sobre a criação de juizados específicos, medidas de assistência e proteção as vítimas.
Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. (LEI 11.340/06, Lei Maria da Penha, 2006)
Ao passar dos anos, a lei tem sido uma grande aliada para pessoas que passam por essa situação, já que agora se sentem mais confiantes para denunciar os agressores. Há medidas de segurança que as resguardam de uma eventual reincidência, assim como medidas de afastamento do agressor do lar e demais medidas restritivas de direitos.
A grande questão é se essa lei deve ser aplicada somente as mulheres, já que não são somente essas que se enquadram como do sexo feminino e que precisam de amparo legal diante de tamanha atrocidade. BIANCHINI, Alice, afirma que “na hipótese de transexual em relação afetiva com homem, em que se assumam os papéis tradicionalmente reservados às esposas e aos maridos, é possível existir violência de gênero e aplicar-se a lei”. Assim, a vítima transexual também merece a mesma atenção e cuidados, já que são pessoas que por não serem iguais a padrão pré-estabelecido, são alvos de preconceito e discriminação.
Nesse sentido, MARIA Berenice Diaz, diz que quando a lei traz em seu texto que a proteção é devida ás mulheres, sem se distinguir sua orientação sexual, então a lei deverá ser aplicada tanto para lésbicas, como travestis, transexuais e transgêneros que mantenham relação intima de afeto em ambiente familiar ou de convívio.
Apesar da lei ter trazido grandes avanços no ordenamento jurídico e com isso ter impulsionado muitas vítimas a se libertarem de relações infrutíferas, ainda há muito o que se fazer. Muitas, ainda silenciam-se por acreditarem que aquela situação de violência e crueldade, irão se repetir. De acordo com Scarance Fernandes:
O processo por violência doméstica contra mulheres tem uma particularidade que o distingue do todos os outros: em razão da relação dúplice que a vítima mantém com o agressor (amor e ódio), na maioria dos casos não deseja a sua punição, mas simplesmente livrar-se da violência. (Lei Maria da Penha - Scarance Fernandes, p. 119)
A autora retrata sobre um dilema, continuar mantendo o seio familiar, pelo o amor ao companheiro ou escolher manda-lo para a prisão. Por mais que seja tratada de forma desumana e cruel, muitas ainda se questionam qual é o certo a se fazer.
Por esse motivo é que os transexuais, assim como as mulheres, precisam de um olhar especial, um acompanhamento psicológico, um auxílio financeiro, visto que muitas vezes é o companheiro que traz o sustento de casa. Políticas públicas que as ajudem a sair desse cenário tão degradante.
3. INSTITUTOS PROTETIVOS DE URGÊNCIA DA LEI 11.340/06, REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA SUA APLICAÇÃO E SUAS CARACTERÍSTICAS.
3.1 Medidas protetivas de urgência
A COPEVID – Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Ministério Público, estabeleceram no enunciado nº 004/2011, que “As medidas de proteção, definidas como tutela de urgência, sui generis, de natureza cível e/ou criminal, podem ser deferidas de plano pelo Juiz, sendo dispensável, a princípio, a instrução, devendo perdurar enquanto persistir a situação de risco da mulher.”
ANAÍLTON, Mendes de Sá Diniz preconiza que:
“A busca da proteção, por meio das medidas protetivas, tem caráter satisfativo, uma vez que se objetiva proteger a vítima, testemunhas e parentes (pessoas) ou seu patrimônio particular ou comum naquele momento, numa situação de emergência” (Anaílton, 2014)
Nesse segmento, observamos que o processo protetivo é destinado tanto para o agressor, quanto para a vítima, uma vez que a lei Maria da Penha tem caráter restaurativo, ou seja, busca aplicar medidas para recuperação do agressor, assim como é aplicado medidas de segurança para prevenir e proteger a vítima de novas agressões.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), entendeu que as medidas protetivas de urgência, têm natureza cautelar satisfativa, conforme seu posicionamento:
“DIREITO PROCESSUAL CIVIL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. MEDIDAS PROTETIVAS DA LEI N. 11.340/2006 (LEI MA- RIA DA PENHA). INCIDÊNCIA NO ÂMBITO CÍVEL. NATUREZA JU- RÍDICA. DESNECESSIDADE DE INQUÉRITO POLICIAL, PROCESSO PENAL OU CIVIL EM CURSO. 1. As medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor. 2. Nessa hipótese, as medidas de urgência pleiteadas terão natureza de cautelar cível satisfativa, não se exigindo instrumentalidade a outro processo cível ou criminal, haja vista que não se busca necessariamente garantir a eficácia prática da tutela principal. ‘O fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. Não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas’ (DIAS. Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012). 3. Recurso especial não provido” (REsp. n. 1.419.421-GO, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4a Turma, j. 11.2.2014.)
Dessa forma, entende-se que as medidas protetivas, por serem consideradas de urgência, devem buscar a efetividade da solução do problema, antes mesmo de se preocupar a instrumentalidade do processo principal. Visa cessar de forma mais célere que a violência continue.
As medidas protetiva de urgência poderão ser concedidas de imediato, independente de audiência ou manifestação do ministério público, assim como, poderão ser aplicadas de imediato ou cumulativamente, podendo ser substituídas a qualquer tempo por outras que sejam mais eficazes, conforme o § 1º e 2º, do art. 19 da referida lei.
Já o art. 21, dispõe que a vítima deverá ser notificada de todos os atos processuais referentes ao agressor, especialmente quando se tratar da sua soltura. Isso acontecerá para que a vítima possa tomar as devidas precauções, como mudar de endereço, rotina, telefone e até mesmo para ficar alerta para qualquer tipo de aproximação.
O juiz, se achar necessário, aplicará todas a medidas de proteção de urgência, seja separadamente ou cumulativamente, como, por exemplo, o afastamento do agressor do lar, proibição de se aproximar de determinadas pessoas, em especial da vítima, proibição de frequentar determinados lugares, como bares, casas de festa, proibição de visitar os menores que vivem com a mãe, assim como o comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação.
Há um rol exemplificativo descrito no art. 22 da lei 11.340/06 que elenca todas as medidas de urgência que se façam necessárias para melhor aplicação da lei, porém esse rol é apenas exemplificativo, pois poderá o juiz aplicar outras medidas que garantam a efetividade de uma maior proteção.
Em 2019, o Ligue 180, que é uma central de atendimento à Mulher, registrou um total de 1.314.113 atendimentos telefônicos, assim distinguidos: 6,5% tratando de registros denúncias; 47,91% tratando de solicitação de informações acerca da rede de proteção e direitos das mulheres; e 45,59% versando sobre de registros de manifestações, como elogios, sugestões, reclamações ou trotes.
3.2 Requisitos e características necessários para aplicação da lei
Para que a lei seja aplicada serão necessárias estarem presentes algumas condições, tai quais estão disciplinadas entre os arts. 5º e 7º da lei 11.340/06, ou seja, deverão estarem presentes os seguintes requisitos: violência baseada em questão de gênero (art. 5º), violência praticada contra mulher em um contexto familiar, doméstico ou de relação íntima de afeto. (Art. 5º, I a III) e que resulte, dentre outros, em morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. (arts. 5º, caput e 7º, I ao IV).
Para FERNANDES, Valéria Diez Scarance, a necessidade da medida resulta do perigo, que pode ser inferido do próprio relato da vítima (de que tem medo, mudou sua rotina, evita de sair de casa desacompanhada.
O destinatário trazido no texto da Lei Maria da Penha, é a Mulher que se encontra em situação de violência doméstica ou familiar. Porém, é justamente por esse contexto que se entende que não só aquelas que são nascidas biologicamente com o sexo feminino, que fazem jus a tal direito. Há portanto, o entendimento de que as transexuais femininas também sejam sujeitos passivos da lei em questão.
Sobre esse assunto, a coleção dos saberes monográficos tem o seguinte entendimento:
De acordo com o art. 5º, parágrafo único, a Lei n. 11.340/2006 deve ser aplicada, independentemente de orientação sexual, razão pela qual, na relação entre mulheres hétero ou transexuais (sexo biológico não corresponde à identidade de gênero, sexo masculino e identidade de gênero feminina), caso haja violência baseada no gênero, deve haver incidência do referido diploma legal. (BIANCHINI, Alice, p. 58).
Dessa forma, não há que se fazer restrições em razão da identidade de gênero, devendo a lei dá tratamento igual ao que dá para as mulheres biológicas. A não aplicação das medidas de proteção para os transexuais, é tida como um ato descabido de preconceito e discriminação, o qual deve ser considerado como atentado aos princípios constitucionais, como bem preceitua o art. 3º, inciso IV, da constituição federal.
4.IDENTIDADE DE GÊNERO X ORIENTAÇÃO SEXUAL
De acordo com o art. 1º, § 1º, incisos I e da Resolução nº 11, de 18 de dezembro de 2014 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos, entende-se por Orientação Sexual: “como uma referência à capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas. Já o inciso II da mesma Resolução, entente Identidade de Gênero como: “a profundamente sentida, experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos".
Assim, percebe-se que são nomenclaturas que causam muitas confusões, porém apresentam conceitos totalmente diferentes, uma vez que a orientação sexual está ligada a atração sexual que um indivíduo sente em relação ao outro, podendo esse sentimento ser em relação a uma pessoa do mesmo sexo, de ambos ou de sexo diferente do seu. Já a identidade de gênero diz respeito ao modo que cada pessoa se identifica, ou seja, como se reconhece quanto ao seu gênero, não importando sua natureza biológica/física. Para a autora Jaqueline Gomes de Jesus:
Uma pessoa transexual pode ser bissexual, heterossexual ou homossexual, dependendo do gênero que adota e do gênero com relação ao qual se atrai afetivo-sexualmente, portanto, mulheres transexuais que se atraem por homens são heterossexuais, tal como seus parceiros, homens transexuais que se atraem por mulheres também; já mulheres transexuais que se atraem por outras mulheres são homossexuais, e vice versa. (Orientações sobre a população transgênero: conceitos e termos / Jaqueline Gomes de Jesus. Brasília: Autor, 2012, p. 8)
Nesse sentido, podemos destacar a figura dos transexuais, que nascem biologicamente com determinado gênero, porém identificam-se como sendo de gênero oposto ao seu, mas isso não significa que sua orientação sexual será necessariamente contrária ao modo que se identifica. Uma pessoa transexual pode ter atração sexual por pessoas heterossexuais, bissexuais, homossexuais e assim por diante. Não é porque se identifica como gênero feminino que sua orientação sexual necessariamente será por pessoas do gênero masculino.
Para a escritora norte-americana Judith Butler “O gênero não é algo constituído sempre de maneira coerente ou consistente (…) o gênero interage com modalidades raciais, de classe, etnossexuais e regionais de identidades constituídas discursivamente”. Desse modo, não há como se falar em questões de gênero sem pensar em todo o contexto histórico e cultural que essa questão está atrelada.
A vítima transexual feminina que enfrenta violência doméstica, sofre dupla vulnerabilidade, primeiro pelo preconceito e discriminação que enfrenta, segundo pelo sofrimento diante de agressões físicas e psicológicas em âmbito doméstico. São pessoas invisíveis socialmente e que precisam de atenção redobrada, cuidados e garantia de seus direitos.
Há muitos questionamentos em relação a necessidade ou não de se retirar o órgão genital masculino da mulher transexual, ou até mesmo se é necessário fazer a retificação do nome no registro civil para que então seja reconhecida como pertencente ao gênero feminino. Em resposta a esses questionamentos, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto apontam duas correntes:
Uma primeira, conservadora, entendendo que a transexual, geneticamente, não é mulher (apenas passa a ter órgão genital de conformidade feminina), e que, portanto, descarta, para a hipótese, a proteção especial; já para uma corrente mais moderna, desde que a pessoa portadora de transexualismo transmute suas características sexuais (por cirurgia e modo irreversível), deve ser encarada de acordo com sua nova realidade morfológica, eis que a jurisprudência admite, inclusive, retificação de registro civil. (VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – Rogério Sanches Cunha • Ronaldo Batista Pinto. p. 32)
O entendimento da Jurisprudência é que não é necessário que se faça a cirurgia de redesignação sexual ou alteração do nome no cartório de registro civil para que somente então, sejam aceitas e consideradas como pertencentes ao sexo feminino. Entende-se que a identidade trata-se do modo como a pessoa se apresenta socialmente ou individualmente, não estando condicionada a mudanças de registro civil ou qualquer tipo de cirurgia ou tratamento.
· JURISPRUDÊNCIA
1. O Ministério Público recorre contra decisão de primeiro grau que deferiu medidas protetivas de urgência em favor de transexual mulher agredida pelo companheiro, mas declinou da competência para a Vara Criminal Comum, por entender ser inaplicável a Lei Maria da Penha porque não houve alteração do patronímico averbada no registro civil. 2. O gênero feminino decorre da liberdade de autodeterminação individual, sendo apresentado socialmente pelo nome que adota, pela forma como se comporta, se veste e se identifica como pessoa. A alteração do registro de identidade ou a cirurgia de transgenitalização são apenas opções disponíveis para que exerça de forma plena e sem constrangimentos essa liberdade de escolha. Não se trata de condicionantes para que seja considerada mulher. 3. Não há analogia in malam partem ao se considerar mulher a vítima transexual feminina, considerando que o gênero é um construto primordialmente social e não apenas biológico. Identificando-se e sendo identificada como mulher, a vítima passa a carregar consigo estereótipos seculares de submissão e vulnerabilidade, os quais sobressaem no relacionamento com seu agressor e justificam a aplicação da Lei Maria da Penha à hipótese. 4. Recurso provido, determinando-se prosseguimento do feito no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com aplicação da Lei Maria da Penha. (TJ-DF 20171610076127 DF 0006926-72.2017.8.07.0020. RELATOR: GEORGE LOPES. DATA DO JULGAMENTO: 0/04/2018, 1º TURMA CRIMINAL, DATA DA PUBLICAÇÃO: Publicado no DJE: 20/04/2018, Pág. :119/125)
Posicionamentos como este, vem ganhando força ao passar dos anos, se tornando cada vez mais recorrentes. O que já é visto como uma evolução na busca dos direitos. No entanto, ainda existem muitos entendimentos em sentido contrário, tornando o processo cada vez mais desafiador para as vítimas transexuais e desestimulando o acesso à justiça por receio de não serem atendidas.
· TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS
Conforme o art. 1º da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH): “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. Tal dispositivo, nos remete a um dos princípios fundamentais previstos na Constituição federal de 1988, qual seja, o princípio da isonomia. A igualdade não se aplica apenas a garantia de direitos, mas também se refere as formas de tratamento que as pessoas são submetidas. A igualdade diante do prisma jurisdicional, de acordo com Nery Junior é entendida da seguinte forma:
O princípio da igualdade pressupõe que as pessoas colocadas em situações diferentes sejam tratadas de forma desigual: “Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. (NERY JUNIOR, 1999, p. 42).
Segundo o entendimento de Fernandes, Valeria Diaz, “A Lei Maria da Penha não ofende a Constituição Federal. Ao contrário, instrumentaliza a justiça social para as mulheres, pois cria mecanismos para promover uma sociedade livre e para eliminar a discriminação de gênero (art. 3º da Constituição Federal)”. Conforme a autora:
A igualdade formal é ao mesmo tempo justa e discriminatória, na medida em que não reconhece as desigualdades. Homens e mulheres são iguais enquanto sujeitos de direitos, mas são também diferentes. Fisicamente, biologicamente, historicamente, economicamente e socialmente homens e mulheres são diferentes e agem de modo distinto. (FERNANDES, Valéria. p. 42.)
Partindo desse princípio, podemos perceber que a diferença de gênero é uma questão determinante quando o assunto é violência. A violência doméstica é ainda mais assustadora, uma vez que vem de uma relação próxima, na maioria das vezes, parte do companheiro fazendo com que a vítima viva um dilema entre a dependência financeira, dependência emocional e tantas outras questões e a vontade de prestar queixa e por essa razão, sentem-se intimidadas e reprimidas na hora de denunciar.
5. RELATO DE CASO CONCRETO
Em entrevista, à revista ISTO É, a cuidadora de idosos Shakira Costa do Nascimento, mulher transexual de 26 anos, relata sobre sua conquista em ter seu direito resguardado e ter sido acolhida a luz da lei Maria da Penha. De acordo com o relato, Shakira foi vítima de violência pelo ex namorado, tendo sido arrastada pelos cabelos e levado socos em seu rosto, na cidade de Rio Verde, Goiás.
A jovem conta que só não procurou ajuda antes, por medo de não ser resguardada pela lei Maria da penha, fala ainda, que só teve coragem de procurar ajuda policial, após ter visto que sua amiga que também passava pela mesma situação, teve sua demanda acolhida. Foi o que à inspirou e motivou à prestar queixa.
A decisão foi da Juíza Coraci Pereira da Silva, titular da 2ª Vara de Família e Sucessões de Rio Verde, atendendo ao pedido da vítima em poucos dias. Shakira, afirmou que: "Me ajudou muito como mulher trans e vai ajudar outras também. Agradeço muito à juíza, porque é uma dádiva. Já tem tanto preconceito com a gente, que isso é um privilégio. Uma proteção e o reconhecimento de ser mulher”,
Seu relato, retrata sobre o desconhecimento e a dificuldade que essas mulheres, por serem Transexuais, enfrentam para alcançar e acessar o judiciário. Muitas desconhecem seus direitos ou conhecem, porém sentem-se intimidadas à busca-los, justamente por serem taxadas como pessoas que não pertencem ao gênero feminino.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabemos que sair desse ciclo que envolve a violência física, moral, patrimonial e psíquica é muito difícil, uma vez que essas atitudes vêm de uma pessoa próxima, que há um laço afetivo envolvido dificultando ainda mais o pedido de socorro. Muitas se silenciam por medo de não serem ouvidas ou até mesmo na esperança que seus companheiros possam mudar seu comportamento. Porém, não é o que acontece na maioria dos casos, ocorrendo em razão disso, a morte de várias vítimas.
É por isso que a lei tem um papel muito importante na vida dessas pessoas, pois agora podem se sentirem seguras e acolhidas. A Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha, é uma das maiores conquistas femininas que já tivemos, representando um marco histórico para o Brasil e possibilitando o acesso ao direito de ser ouvida e protegida perante os órgãos competentes. Contudo, esse direito deve ser visto de forma ampla e não limitada.
Os transexuais, são aqueles que se enxergam com outra identidade sexual daquela a qual nasceram biologicamente. São pessoas que vivem, em sua grande maioria silenciadas por uma sociedade arcaica e preconceituosa. Uma sociedade que não é capaz de acolher sem apontar, uma legislação que é frágil e uma justiça falha quando se trata do direito de pessoas “invisíveis”.
A lei tem trazido grandes conquistas, isto é certo, porém não trouxe no seu texto um favorecimento global. Foi criada de forma limitada apenas as mulheres como sujeitos passivos da relação. Foi bem explicita e não deixou muito espaço para o julgador ponderar quem faria jus ao direito em questão, tal seja, ser protegido das diversas formas de violência sofridas em um meio familiar, doméstico ou afetivo.
São muitas as conquistas da lei que merecerem destaque, mas não deveria ser tema de discussão se a aplicação da lei é cabível ou não aos transexuais, visto que trata de um direito que já os pertencem, que precisa apenas ser reconhecido e pô-los como partes legitimas. Não é que são pessoas vulneráveis, pelo contrário, são muito fortes, entretanto, a situação os colocam dessa lado da moeda, o lado em que necessitam de uma legislação que os protejam.
Mulheres transexuais, em sua grande maioria, optam por se silenciar diante das agressões sofridas, sejam verbais, físicas ou psicológicas, pois sentem medo de buscar amparo legal e não serem ouvidas. Ocorre que o preconceito e a discriminação, não está presente somente no seio da sociedade, mas também fazem parte de grande parte do sistema judicial. Muitas são ridicularizadas e tratadas como abominações, por não estarem dentro dos padrões impostos nos dias atuais.
Diante desse cenário, no qual quem mais deveria está apoiando pessoas que necessitam desse amparo, são aquelas que julgam moralmente e viram as costas para esse grupo de vulneráveis, é que percebemos o tanto que precisamos evoluir e mudar. Claro que não podemos generalizar esse contexto, visto que temos plena convicção que existe muitos dentro do sistema que acolhem, respeitam e garantem o acesso à justiça de forma eficaz.
É necessário que se faça uma mudança tanto legislativa, para que alcance essas pessoas, sem que haja a necessidade de interpretações judiciais para se definir, se é cabível ou não a aplicação da referida lei as mulheres transexuais; como também é preciso conscientizar os órgãos policiais e judiciais quanto ao acolhimento de forma eficaz, a fim de que seja garantido o direito a proteção e aplicação das medidas necessárias de coibição contra a violência doméstica e afetiva.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Lei 11.340 de 07 de Agosto de 2006. Dispõe sobre mecanismos de proteção à Mulher, vítima de violência doméstica ou afetiva – Lei Maria da Penha. Disponível em: >http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm< acesso em 11 de junho de 2020.
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Formada em Direito pela Faculdade Serra do Carmo. Graduada em Logística pela Faculdade Anhanguera. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOURA, Andreia Sales de Sousa. Aplicação da Lei Maria da Penha as vítimas transexuais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 dez 2020, 04:04. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55756/aplicao-da-lei-maria-da-penha-as-vtimas-transexuais. Acesso em: 22 nov 2024.
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