ÊNIO WALCACER DE OLIVEIRA FILHO[1]
(Orientador)
RESUMO: O presente trabalho pretende discutir a validade de uma atualização do Direito Penal, que corresponda à realidade brasileira observada em relação ao crime organizado. Para tanto, a presente produção científica fará um intersecção com a obra Laranja mecânica e o Direito Penal do inimigo.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal do Inimigo; Laranja mecânica; Inocuização; Ações preventivas; ressocialização.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Alex Delarge – o que vai ser hoje?!; 2. Aspectos da sociedade pós-moderna e a política legislativa penal; 2.1 – Teoria Geral dos Sistemas; 2.2 – As expectativas sociais e a norma jurídica; 3.0 – O funcionalismo penal de Gunter Jakobs: o direito penal do inimigo; 3.1. A sociedade de risco e a cultura do medo; 4. publicidade e reserva do código penal; 5. A política criminal e a realidade brasileira; 5.1 Direito Penal e legislação de emergência: combate à atuação criminosa do inimigo; 5.2 O caráter preventivo das novas leis brasileiras; 6.0 – A função da pena em laranja mecânica; Referências bibliográficas; Conclusão.
INTRODUÇÃO
O crime organizado no Brasil tem crescido sobremaneira, tanto em termos de ocorrência quanto de refinamento de estrutura organizacional, nutrindo vícios cada vez mais deteriorantes, interligando espaços geográficos e expandido, a cada dia, sua dimensão e poder. Hoje, são mais de 80 facções criminosas que agem dentro e fora do Brasil, rompendo fronteiras e, indiferentes aos esforços estratégicos e operações policiais para desmanchá-las, multiplicam-se e empoderam-se a cada dia mais.
Com pulso firme, aparelhamento, disciplina e competência, o crime organizado articula ataques e dá ao Estado uma lição em termos de gestão e gerenciamento de verbas, de organização de tarefas e de união de propósitos, punindo severamente o membro da facção que se insubordina ou contraria suas expectativas organizacionais, mostrando ao Estado Democrático de Direito que não se submete a este.
Um dos desdobramentos mais nefastos de tal crime é a cooptação de crianças e adolescentes, que têm nos chefes do crime organizados seus heróis e aguardam ansiosos a “oportunidade” de serem adentrados no movimento. Tais indivíduos são como uma consequência espontânea e biológica, naturalmente gestada pelo crime organizado, um círculo impossível de ser quebrado, caso não se ataque severa e radicalmente as suas raízes.
Na luta hercúlea contra essa hidra, o desenvolvimento de pesquisas e o fomento de discussões acerca de propostas envolvendo os fins penais e o emprego de procedimentos eficazes com o fim de deter a criminalidade, bem como reeducar delinquentes, não são um evento novo e tampouco estão perto de apresentar uma solução unânime.
Entre as narrativas Laxista, dos que se intitulam politicamente corretos e preconizam o abrandamento da legislação penal, e Rigorista, dos que preconizam o aumento das penas, bem como o policiamento invasivo de toda o conduta humana, o certo é que há uma evidente deficiência em nosso Direito penal, que é, na ótica de grande parte da sociedade, a espada que a defende da criminalidade.
Nesse contexto, há ainda na cena contemporânea um novo fenômeno, digno de estudo pela criminologia, bem como pelas várias ciências humanas, e de temor maior pela sociedade, o crime motivado apenas pelo desejo da atividade criminosa. Uma crise de valores gerada pela exacerbação do capitalismo na sociedade pós-moderna, em que os meios de comunicação, as redes sociais viciantes, enfim, a explosão tecnológica, estimula a visão de mundo absolutamente materialista, bem como a prática do mal pelo mal, apenas como forma de entretenimento.
E é esse um dos motes do presente trabalho, que, como forma de contribuir com o debate sobre problemas sociais atuais que envolvem a criminalidade e suas consequências, busca conectar duas vertentes de expressão cultural e social, o Direito e a Literatura, fazendo um contrapondo entre a crítica do escritor inglês Anthony Burguer apresentada na realidade distópica da obra Laranja Mecânica, com os métodos de prevenção especial apresentados na Teoria do Direito Penal do Inimigo, do penalista alemão Gunter Jakobs.
Vale, aqui, buscar arrimo no grande filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (2002), considerado como um dos maiores expoentes da hermenêutica, acerca do seu conceito sobre “diálogo”, em que esse chama à atenção o fato de que diálogo não é apenas uma conversa, mas uma permuta que transforma seus compartes, ele deixa uma marca, e possibilita descobrir no outro aquilo que ainda não havíamos encontrado em nossa experiência de mundo.
Nesse sentido, içada bandeira branca, neste artigo, convida-se a, em primeiro lugar, ao diálogo, a abandonar os pré-conceitos acerca do tema e fugir das críticas acadêmicas simplistas, para compreender, repensar e discutir, de fato, os limites do jus puniende e a ressocialização como finalidade da pena no Brasil, para que possamos, citando Edilson Mougenot Bonfim (1997, p.92-93) “(...) Sem juízos apriorísticos, sem manietamentos da inteligência a messiânicas e dogmáticas correntes filosóficas/penais”, senão concordar, mas ao menos entender o Funcionalismo Penal de Gunter Jakobs, pois, prosseguindo com BOMFIM , “a história que está por vir não admite mais proprietários da verdade nem profetas do apocalipse, senão aglutinadores das inteligências, os verdadeiros democratas do espírito humano”.
O método utilizado foi o indutivo, desenvolvido mediante análise de caráter essencialmente bibliográfico, com abordagem qualitativa. Foram realizadas pesquisas de natureza básica, descritiva e qualitativa.
1.ALEX DELARGE – O QUE VAI SER HOJE?!
A Laranja Mecânica (A Clockwork Orange), polêmica e aclamada obra literária de Anthony Burgess, publicada em 1962, que inspirou o clássico do cinema dirigido, em 1971, por Stanley Kubrick, é um clássico da cultura pop do século XX, e, 58 anos após sua publicação, a provocação contida na obra, que aborda temas fortes e reflexivos, permanece sendo mote para discussões atuais, especialmente no que concerne às funções da pena.
A trama do romance, narrada em primeira pessoa pelos olhos do próprio protagonista, tem como cenário uma Inglaterra retrofuturista, e gira em torno da vida de Alex Delarge, um adolescente de classe média alta que mora com os pais, líder de uma gangue extremamente agressiva e inconsequente de delinquentes, nomeada “os drugs”, cuja diversão e prazer consubstancia-se em, durante as noites, saírem às ruas praticando roubo, agressão, estupro e assassinato, sempre sob o efeito de drogas sintéticas.
A frase que inicia o livro – “O que vai ser hoje?!” – já dá mostra do círculo vicioso vivido por Alex (em latim, A-lex “sem lei”) e os drugs, um circuito de acontecimentos insanos e ultraviolentos que, propositalmente, despertam no leitor revolta, repulsa, incômodo e uma enorme estranheza em relação aos jovens criminosos. Porém, em dado momento, um dos ataques acaba dando errado e Alex é capturado e preso.
Na prisão, é dada ao protagonista a opção, em troca do minoramento/abrandamento da pena, de participar como cobaia de um procedimento de reengenharia social desenvolvido pelo Estado, que promete a cura da violência, chamado “Método Ludovico”. Assim, com o intuito de condicionar Alex a sentir aversão a tudo que o expeça à mesma ultraviolência que ele costumava a praticar, esse é compelido a assistir, imobilizado, e ao som de Mozart, compositor do qual é admirador, cenas de extrema violência enquanto lhe são aplicadas injeções de substâncias que causam náuseas.
Como resultado, apresenta-se um Alex “curado”, posto em liberdade para se adaptar à sua nova condição, mas agora um zumbi, sem controle de suas ações, nem mesmo capaz de ouvir Beethovem, seu compositor favorito, o que demonstra, além da perda do comportamento violento, também a perda da capacidade de sentir e admirar o belo.
Nesse momento da trama, o protagonista é posto diante das sequelas que deixou na sociedade, como um mendigo que, surrado pela gangue, ficou aleijado. Também é posto diante da indiferença e total falta de empatia que o ex-delinquente desperta, inclusive sendo fortemente agredido pelos ex-drugs e torturado por uma das vítimas da sua violência, que, de vítima, torna-se algoz, e o paga Alex com a mesma moeda.
É nesse momento que se revela o cerne da obra de Burgess, que interroga, de forma profunda e instigante, a questão do limite e do direito da liberdade do “ser” e suas respectivas consequências em detrimento do direito e Liberdade o “outro”. Qual então é o preço do bem-estar social teoricamente alcançado por meio do Contrato Social? Seria válido anular as escolhas de alguém para garantir que ele não escolha o mal, tornando-o um ser inócuo?
É esse o ponto de partida para as diversas questões levantadas na obra de Burgess que, trazidas para o presente trabalho, reverberam, na ideia caricata da realidade distópica apresentada na obra: é realmente possível e real a ideia de ressocializar, conforme proposto pelo sistema criminal e normatizado pelo Direito Penal vigente, o responsável direto, o protagonista de fato, que faz girar a roda do crime organizado, o chamado chefe? Poderiam ser eficazes os métodos “inocuizadores” utilizados pela teoria da prevenção especial negativa de Jackobs, sendo utilizados em casos específicos extremos, em que as normas penais vigentes não se mostram eficazes?
2.ASPECTOS DA SOCIEDADE PÓS-MODERNA E A POLÍTICA LEGISLATIVA PENAL
Imprescindível se faz, antes de adentrar na questão arejada no parágrafo anterior, entender o tempo social em que estamos inseridos. Chama atenção o filósofo Bertrand Russell (2001) ao fato de que é muito difícil se entender a história quando se vive a história, e isso ocorre porque estamos vivendo um momento de revoluções tecnológicas e pessoais, em que os valores passados ainda estão em voga e os novos ainda não estão completamente consolidados para valerem por si sós, o que faz de nós uma geração de transição, a geração pós-moderna.
Nesse sentido, essa zona cinzenta de mistura de valores é chamada por alguns de “modernidade líquida” (Bauman), “modernidade tardia” ou “Era do vazio” (Lipovetsky), “sociedade pós-industrial” (Jesus Maria Silva Sanches) ou simplesmente de Pós-modernidade, um tempo marcado pela existência de uma vitrine de contínuas oportunidades e escolhas – no plano afetivo, profissional etc. –, em que há muito mais possibilidades do que, de fato, potencial de concretização.
2.1 – Teoria Geral dos Sistemas
A fim de introduzir as ideias elementares trazidas no presente trabalho e após a constatação da complexidade da sociedade pós-moderna, faz-se necessário recorrer inicialmente aos instrumentos da Teoria Geral dos Sistemas, de NIKLAS LUHMANN (1983), cujas bases orientaram JAKOBS em sua teoria da “Prevenção Geral Positiva” e em que LUHMANN, prenunciando a distinção funcional dos sistemas – Político, Econômico e Jurídico –, defende que a função do Direito será consolidar congruentemente expectativas normativas.
Assim, vem de LUHMANN a visão da sociedade como um “sistema”, referenciando-a por meio da distinção entre sistema (interior) e meio (exterior), que, hoje, apresenta-se como teoria dos sistemas autopoiéticos, autorreferenciais e operacionalmente fechados – mormente as variações paradigmáticas ocorridas nos anos 70 e 80 em virtude das novas descobertas nas ciências exatas e biológicas.
Nos anos 80, os biólogos chilenos HUMBERTO MATURANA e FRANCISCO VARELA trouxeram a público sua Teoria Autopoiética 40 (autopoiesis, do grego auto - por si próprio e poiesis - criação), revolucionando as Ciências Biológicas. Destarte, por meio de análises neurofisiológicas, esses pesquisadores concluíram que todo sistema vivo exibe no seu circuito interno uma interação fechada dos elementos que o compõem, o que possibilita a auto-organização e autoprodução. Nesse sentido, em acertado resumo de WINTER DE CARVALHO, tais conjunturas acarreiam uma autonomia do sistema, independente de quaisquer interrelações diretas com os demais sistemas.
Tem-se aí o paradoxo luhmanniano levado às ciências sociais, um método para redução da complexidade interna do sistema que, indubitavelmente, aumentará a complexidade externa, que visa tão somente garantir as condições para a convivência racional com tal complexidade. Assim, segundo ALEXANDRE DE MORAES (2006, p. 73):
O que diferenciará o sistema jurídico será sua estrutura, ou o que LUHMANN denomina ‘código operativo’ – lícito/ilícito ou direito/não-direito. A identificação do código, como se verá, permitirá saber se uma informação transmitida por outro sistema, como o Político, é capaz de ser efetivamente processada pelo sistema jurídico e se essa percepção diminuirá as frustrações. Exemplificando: seria plausível alçar ao sistema do Direito Penal o fim de ‘ressocialização das penas’? O Direito, com sua limitação estrutural (código lícito/ilícito), por si só, seria capaz de garantir a ressocialização de um criminoso ou isto seria tarefa de outro sistema como o Político (através da adoção de políticas públicas, penitenciárias etc.)? Aí está, pois, uma importante virtude da Teoria que, delimitando os sistemas, aclara para o intérprete do Direito a função do sistema jurídico. De outra parte, limitam-se as frustrações, aclarando-se uma reivindicação racional, pois, os efetivos responsáveis passam a ser cobrados, evidenciando-se quais os sistemas estão aptos a processar determinadas demandas.
Destaca ainda CAMPILONGO (2002, p. 20) a crítica ao iluminismo racionalista inserida nessa descrição do Direito como “sistema”:
O velho iluminismo estaria orientado por uma ‘racionalidade da ação’ assentada em pressupostos ontológicos, verdades, princípios e certezas. O novo iluminismo – o iluminismo sociológico de que fala LUHMANN – opta por uma ‘racionalidade do sistema’. Princípios funcionais permitiriam compreender e reduzir a complexidade do mundo moderno. Passa-se de uma racionalidade do sujeito para uma racionalidade do sistema: a modernidade envolve múltiplas possibilidades de ação, escolha e eventos. São necessárias seleções que reduzam a totalidade dos comportamentos possíveis. Os sistemas diferenciados funcionalmente são produtos dessas seleções. Envolvem sempre uma ‘redução de complexidade’.
Sobre o tema, destaca TAVARES (2000, 69-70):
a teoria do sistema fechado de comunicações operativas é, assim, uma teoria abrangente da sociedade e se se compreende também o sistema jurídico como um subsistema do sistema social, ficam excluídas as pretensões dominantes tanto pragmáticas quanto estruturais. O sistema se produz e se reproduz por ele mesmo. Tendo em vista esta circularidade do sistema, fica abstraída para a definição de seus elementos, qualquer relação de causalidade entre o sistema e o ambiente. Nisso assume particular importância o conceito de autopoiese, que justamente indica essa particularidade do sistema: um sistema operativamente fechado de normas se caracteriza pelo fato de que, para a produção de suas operações, se remete à rede de suas próprias operações e, nesse sentido, se reproduz. Considerando-se sua operatividade fechada, sua reprodução autopoiética e a autonomia do sistema jurídico, transparece a questão acerca de que comunicações trata esse sistema e onde se situam seus limites.
Verifica-se que será precisamente a distinção funcional proveniente da delimitação do sistema jurídico (autopoiese) que, segundo LUHMANN, permitirá à sociedade moderna e complexa escolhas lógicas que minorem suas frustrações, estas geradas pela abastança de aparentes oportunidades afetivas, profissionais, de consumo etc.
2.2 – As expectativas sociais e a norma jurídica
Segundo preleciona TAVARES, a função da norma jurídica é balizada pelas expectativas sociais e não individuais e consubstancia-se, basicamente, na busca da minoração da complexidade das relações vitais da sociedade mediante uma formulação abstrata e indefinida, pois tal formulação depende das demandas temporais correspondentes ao cenário simbolizante da sociedade da época.
Nesse norte, objetivando promover a compreensão da finalidade do Direito, assevera LUHMANN (1983, 109-110):
O comportamento social em um mundo altamente complexo e contingente exige a realização de reduções que possibilitem expectativas comportamentais recíprocas e que não orientadas a partir das expectativas sobre tais expectativas. Na dimensão temporal essas estruturas de expectativas podem ser estabilizadas contra frustrações através da normatização. Frente à crescente complexidade social isso pressupõe uma diferenciação entre expectativas cognitivas (disposição à assimilação) e normativas, além da disponibilidade de mecanismos eficientes para o processamento de desapontamentos, frustrações. Na dimensão social essas estruturas de expectativas podem ser institucionalizadas, ou seja, apoiadas sobre o consenso esperado a partir de terceiros. Dada a crescente complexidade social isso exige cada vez mais suposições fictícias do consenso e também a institucionalização do ato de institucionalizar através de papéis especiais. (...) Dada a crescente complexidade social isso exige uma diferenciação dos diversos planos da abstração.
Em resumo, segundo o autor, a norma jurídica agencia a generalização côngrua de expectativas normativas, o que representa dizer que o juízo crítico para a apreensão do sistema jurídico não pode ser individual ou subjetivo. Assim ALEXANDRE DE MORAES (2006, p. 77), define como “congruente”:
(...) a generalização da segurança do sistema em três dimensões: temporal (segurança contra as desilusões, enfrentada pela positivação); social (segurança contra o dissenso, tratada pela institucionalização de procedimentos); material (segurança contra as incoerências e contradições, obtida por meio de papéis, instituições, programas e valores que fixem o sentido da generalização)”.
Destarte, para LUHMANN, em um mundo imprevisível, há que se ter ao menos a certeza em relação ao Direito e às posturas que podem contar com consenso social, pelo que assevera que não se deve aceitar uma conduta que provoque desilusão.
Tem-se, portanto, que a teoria autopoiética, longe de ser unânime, conforme WINTER DE CARVALHO (http://www.deltoncarvalho.com.br/blog/capitulo-de-livro/o-direito-como-um-sistema-social-autopoietico-auto-referencia-circularidade-e-paradoxos-da-teoria-e-pratica-do-direito/), é a que tem despertado substanciais cogitações críticas quando da sua aplicação às Ciências Sociais, aclarando como os sistemas se suportam internamente e na afinidade com o meio que o envolve. “A Pós-Modernidade”, alerta o autor:
“apresenta-se a nós com uma velocidade avassaladora, a qual desestabiliza a função intervencionista Estatal, visto que este demonstra uma grande dificuldade na agilidade e na transposição dos paradoxos apresentados e decorrentes da autorreferência do Direito, obstaculizando a tomada de decisões”.
Há que se destacar aqui, pertinente observação de ALEXANDRE DE MORAES (2026, P. 83):
A evidente tendência do processo de diferenciação funcional do Direito, que se processa simultaneamente às mudanças no quadro legislativo, político e econômico, é a crescente orientação da dogmática jurídica e da atividade judicial para as conseqüências das decisões. Contudo, um sistema jurídico voltado para o futuro, um Direito de ‘conseqüência’ pressupõe sua ampla abertura ao ambiente e uma suposta coerência nas relações inter-sistêmicas, “ensejando, pois, a desfiguração do próprio sistema jurídico que não mais reconhece seus limites internos nem as condições auto-referenciais dos demais sistemas”.64 Esse quadro - repita-se - passa a exigir recursos cognitivos excessivos e inatingíveis, como ocorre no atual tema da ‘Teoria das Penas’. O Direito Penal que, por si só, não basta para diminuir a criminalidade (futuro incerto) e que, por si só, não consegue reeducar os condenados (futuro incerto, agravado pela contingência e complexidade sociais), acaba gerando frustrações que ativam a produção de legislações esdrúxulas ou formatam Magistrados ‘políticos’, ‘economistas’ e ‘sociólogos’.
Assim, conforme aduz CAMPINLONGO (P. 78-79, 2000), a função adstrita do Direito apresentada por LUHMANN:
“(...) sua tarefa é a de garantir e manter expectativas quanto aos interesses tutelados pelo direito e oferecer respostas, claras e justificadas, no caso de conflito. Daí a definição luhmanniana de direito como ’generalização congruente de expectativas normativas‘. Com base em expectativas normativas estabilizadas, os programas do sistema jurídico implementam o valor do código do direito (lítico/ilícito)”.
Em concordância e como ponto de apoio, JAKOBS utiliza as afirmações supra para reescrever a sua ‘Teoria do Delito’, a qual está fortemente vinculada à finalidade preventivo integradora da sanção penal, pelo que, conforme o próprio, “... o Direito da atualidade não garante tanto conteúdos fixos, mas, ao contrário, condições de funcionamento de uma sociedade pluralista.”
3.0 – O FUNCIONALISMO PENAL DE GUNTER JAKOBS: O DIREITO PENAL DO INIMIGO
Conforme abordado no capítulo supra, JAKOBS, pensando as percepções acerca da finalidade da pena, após delinear o cenário de um Direito Penal da normalidade, tendo como ponto de partida a teoria de LUHMANN, cuja cátedra principal é a reafirmação do próprio Direito, de forma que reste garantida a configuração da sociedade, apresenta sua teoria do “Direito Penal do Inimigo”, com indicação de conceito, significado, construção filosófica, diferenciação normativa de “pessoa” e “inimigo”, destaca a antecipação da tutela penal, traz à baila a relativização de garantias penais e processuais.
Posteriormente à II Guerra mundial, não tão-somente as ciências penais, mas especialmente elas, estiveram expostas a pressões sociais em busca de legitimação e mudança. Modelavam-se, ali, inovações na sociedade da República Federal da Alemanha, e partindo da compreensão sociológica, GUNTHER JAKOBS desponta como um dos partidários da nova escola do Direito Penal: a Funcionalista.
Nos últimos anos, a percepção clássica do delito (CARRARA), a neoclássica (neokantismo) e o sistema finalista do delito (WELZEL) advieram a dialogar com a escola funcionalista, dividida fundamentalmente entre os seguintes nortes: o funcionalismo estrutural de PARSONS (no Direito Penal identificado como teleológico, valorativo e ‘moderado’, adotado por ROXIN) e o funcionalismo sistêmico de LUHMANN (no Direito Penal identificado como estratégico, normativista e ‘radical’, adotado por JAKOBS).
Assim, segundo os funcionalistas, as várias interpretações da realidade admitidas pelos feitios da “complexidade” e “contingência” da sociedade delineados por LUHMANN desvelam o cenário da mudança de paradigmas: a indagação sobre o que seria o Direito foi substituída pela questão de qual seria a função do Direito. Obviamente essa mudança deu-se também no Direito Penal, que passou a ter seus alvos na procura da eficácia e eficiência e a primeira implicação dessa transformação foi que o foco passou a ser o direito de punir e a busca da prevenção da criminalidade, de onde partiu JAKOBS na construção do seu Direito Penal do Cidadão.
Nesse espeque, o funcionalismo no Direito Penal tem como asserção basilar o fato de que o Direito e, mormente o Direito Penal, é aparelho que se propõe a avalizar a funcionalidade e a eficácia do sistema social e dos seus subsistemas. Porém, como será utilizado esse instrumento e qual será o seu norte? No âmbito do Direito Penal a resposta para essa questão se divide em três linhas básicas: a) funcionalismo moderado, de Claus Roxin (2002); b) funcionalismo limitado, segundo o qual o Direito Penal é abonado por sua eficácia social, sendo, contudo, é atrelado ao Estado Social e Democrático de Direito; c) funcionalismo radical ou sistêmico, representado pelo funcionalismo sociológico guiado na Teoria dos Sistemas de LUHMANN (1983), sendo esta última a que interessa a este trabalho.
Conforme GRECO (http://www.mundojuridico.adv.br/documentos /artigos/texto076.doc.), a respeito do método funcionalista:
Não lhe interessa primariamente até que ponto vá a estrutura lógico-real da finalidade; pois ainda que uma tal coisa exista e seja univocamente cognoscível, o problema que se tem à frente é um problema jurídico, normativo, a saber: o de quando se mostra necessária e legítima a pena por crime doloso? O funcionalista sabe que, quanto mais exigir para o dolo, mais acrescenta na liberdade dos cidadãos, às custas da proteção de bens jurídicos; e quanto menos exigências formular para que haja dolo, mais protege bens jurídicos, e mais limita a liberdade dos cidadãos.
Quanto à base filosófica, JAKOBS principia a montagem de sua teoria amparado em pensadores que concebem o Estado numa visão estritamente contratualista, qual seja, asseverando que:
No Direito natural de arguição contratual estrita, para ROSSEAU e FICHTE, todo delinquente é um inimigo, e em HOBBES, KANT, afirmando que, para manter um destinatário das expectativas normativas, é mais acertado conservar, por princípio, o status de cidadão para aqueles que não se desviam da norma. (2005, p. 49-50). Para tais pensadores, os infratores, quando do cometimento do crime, rompem com o contrato social, não podendo mais gozar de seus benefícios, nem participar da relação jurídica com os demais.
Contudo, JAKOBS introduz as visões de ROSSEAU e FICHTE, mas não as endossa inteiramente, posto que, para o autor, a transgressão deverá ser contumaz, e não aleatória, asseverando ainda que o ordenamento jurídico deve conservar assistido pelo Direito também o infrator, isso porque esse tem direito a voltar a acertar-se com a sociedade e, para isso, necessita manter seu status de cidadão, bem como tem o dever de proceder à reparação, não podendo apenas despedir-se da sociedade por meio do seu ato.
Para HOBBES (1983), “o cidadão não pode eliminar, por si mesmo, seu status. Entretanto, a situação é distinta quando se trata de uma rebelião, isto é, de alta traição”, ou seja, tal crime registra a quebra total da submissão, e essa quebra significa a volta do homem ao “estado de natureza”, em que, conforme o autor, “os homens podem todas as coisas e, para tanto, utilizam-se de todos os meios para atingi-las”. Conforme o filósofo, os homens são maus por natureza e possuem um poder de violência ilimitado, de que dimana sua máxima “o homem é o lobo do próprio homem”. Assim, aqueles que incorrem em tal delito não são castigados como súditos, mas como inimigos’”.
Já, para KANT (2008), que, em relação aos fundamentos e limites do Estado, utilizou o modelo contratual como regulador, aduz que toda pessoa está possibilitada a coagir qualquer outra a cumprir as leis estatais, pelo que, em relação à liberdade humana, assevera que “Liberdade é ausência de determinações externas do comportamento”. Portanto, quando o homem é instado a agir, ele é livre, pois cabe a ele a escolha, para o bem e para o mal. Contudo, “as leis descrevem relações de causa e efeito”, assim, “A liberdade tem leis; e, se essas leis não são externamente impostas, só podem ser autoimpostas”. Segundo o autor, a única liberdade viável socialmente é a de seguir as normas vigentes, pelo que destaca que “quando unidos para legislar, os membros da sociedade civil são denominados cidadãos.
Nesse diapasão, observa ALEXANDRE DE MORAES (2006, p. 161):
Assim, como HOBBES, KANT conhece um ’Direito Penal do Cidadão’ – contra pessoas que, a princípio, não delinqüem de modo persistente –, e um ‘Direito Penal do Inimigo’ contra quem se desvia por princípio. Este exclui e aquele deixa incólume o status de pessoa: “O Direito penal do cidadão é Direito também no que se refere ao criminoso. Este segue sendo pessoa. Mas o Direito penal do inimigo é Direito em outro sentido”. Nesse sentido, o indivíduo, ao infringir o contrato social, deixa de ser membro do Estado, está em guerra contra ele, deixando de ser ‘pessoa’. Logo, deve morrer como tal (ROUSSEAU); perde todos os seus direitos (FICHTE); deve ser castigado como inimigo (HOBBES e KANT).
Destarte, conforme as conjeturas supra, JAKOBS distingue os dois padrões de Direito Penal propostos a diferentes tipos de indivíduos, explicitando que o sujeito que, por convicção e de modo constante, atenta contra a ordem jurídica sem oferecer garantia de comportar-se como pessoa, tal sujeito confirma, ainda que tacitamente, que não é capaz de se submeter às leis, tampouco conviver em sociedade, e, portanto, deverá ser tratado como inimigo.
Nesse cerne, para JAKOBS o ‘Direito Penal do Inimigo’ seria o Direito Penal por meio do qual o Estado confere enfretamento aos seus inimigos, não aos seus cidadãos, sendo o conceito de “pessoa” construído em paralelo ao do sistema social, e, para ser pessoa, é imprescindível oferecer garantias cognitivas bastantes de um comportamento individual, de modo que tal comportamento não defraude as expectativas normativas institucionalizadas.
Dessa forma, os indivíduos tratados como inimigos seriam aqueles que, por sua conduta, se recusam, reiteradamente, a ingressar no estado de cidadania, como, por exemplo, terroristas, criminosos econômicos, autores de delitos sexuais e de outras contravenções penais perigosas, entre estes, os mencionados no presente trabalho, os infratores que comandam o crime organizado, cujo questionamento acerca da sua ressocialização, nos moldes do Direito Penal vigente, é levantado no presente trabalho.
Importa destacar, segundo explica ALEXANDRE DE MORAES (2006, p. 164) que:
O próprio autor (referindo-se a JAKOBS) ressalva que isso não significa que tudo seria permitido ou que se sucederiam ações desmedidas; antes, seria possível que aos adversários se reconheça uma personalidade potencial, de tal modo que na disputa contra eles não se possa ultrapassar a medida do necessário. Sem dúvida, isso permitiria ‘muito mais do que na legítima defesa, na qual a defesa necessária só pode ser reação perante a uma agressão atual, no Direito Penal de oposição.
Num mesmo norte, SÁNCHEZ (2020, p. 149) ratifica a teoria de JAKOBS, asseverando que:
O inimigo é um indivíduo que, mediante seu comportamento, sua ocupação profissional ou, principalmente, mediante sua vinculação a uma organização, abandonou o Direito de modo supostamente duradouro e não somente de maneira incidental. Em todo caso, é alguém que não garante mínima segurança cognitiva de seu comportamento pessoal e manifesta esse déficit por meio de sua conduta. (...) Se a característica do ‘inimigo‘ é o abandono duradouro do Direito e ausência da mínima segurança cognitiva em sua conduta, então seria plausível que o modo de afrontá-lo fosse com o emprego de meios de asseguramento cognitivo desprovidos da natureza de penas.
O uso da expressão ‘pessoa-inimigo’ é, aos olhos de muitos críticos, inaceitável em um Estado Democrático de Direito, que infringiria intimamente os direitos humanos, entretanto, diante do retrato que, ao que parece, não é passível de reversão, evitar a discussão acerca de tal diferenciação apenas consentirá que se autentique o caos normativo, cominando-se normas penais e processuais de modo indistinto aos inimigos e aos cidadãos.
3.1. A sociedade de risco e a cultura do medo
Dentre outros pontos, a Ascenção meteórica do crime organizado no Brasil decorre da falta de políticas públicas, bem como de uma política criminal irracional marcada pela alta impunidade. Nesse sentido, como bem ressalta ALEXANDRE MORAES (2006), o Brasil emerge, hoje, como campeão subnotificação, poucos dos crimes cometidos são informados aos Poderes Públicos e órgãos de repressão policial.
O filósofo Ulrich Beck (2012) usa a expressão “irresponsabilidade organizada”, referindo-se à sociedade atual, dita de risco, sobre a qual explana as intimidações que confrontam são atribuídas modernização e ao próprio “progresso”. Assim, a cultura do medo vem do fato de que as instituições criadas para conter causam incontrolabilidade.
Apenas para dar uma breve visão do caos e falta de respeito às leis e aos que as representam, transcrever-se-á um fragmento de uma inquirição a um membro de uma facção criminosa, em que fica demonstrado que ao menos deve-se cogitar novas formas normativas para se tratar casos que digam respeito a contraventores pertencentes ao crime organizado:
– Senhor Carlos César dos Santos, o Senhor está sendo acusado pelo Ministério Público por coação no curso do processo. O Senhor tem o direito de permanecer em silêncio, mas se quiser pode aproveitar esta oportunidade para apresentar a sua versão, para se defender sobre os fatos. O Ministério Público diz que num júri que aconteceu aqui em Limeira, em 7 de fevereiro de 2008, o Senhor teria dito que mataria um tal de Rafael e mataria também a vítima daquele crime o qual o Senhor é acusado. O Senhor mataria ele se fosse condenado? O Senhor quer dizer alguma coisa? – Ah, dizer... é isso mesmo aí. Demorou... pode condenar aí... não tem problema nenhum, não. E outra... – O Senhor disse isso... – Deixando bem claro também, moço, vocês me tirou de Presidente Venceslau lá pra fazer doze horas de viagem para escutar essa palhaçada aqui. Eu não vou ficar escutando isso daí não... – O Senhor está me chamando de palhaço? – Eu falei mesmo. Eu não quero saber de nada, não. Pode ser o Senhor, o Rogério de dona Chaga. Você não me intimida, não, rapaz aqui é o Primeiro Comando da Capital. Aqui é inimigo número um de vocês, rapaz! – O Senhor tem mais alguma coisa a acrescentar? – Tenho nada, não. E, por favor, quanto menos eu... – Então o Senhor disse lá no Júri... – Disse mesmo e digo pra ele e na frente dele aí. E quanto aos disparos lá na casa do Rafael, lá quantas vez for necessário eu mandar meus moleques lá, vou mandar tiro mesmo. Quero nem saber de nada, não. Já tão processando já, por atentado. (SANTOS, 2012, degravação de vídeo da internet)
Na pós-modernidade, despontou uma sociedade de risco, e essa trouxe novas diligências diante de novos sujeitos passivos, globalização econômica, aumento da criminalidade de massa e profissionalização das organizações criminosas, e, consequentemente, o acréscimo infalível da percepção coletiva de insegurança e o aparecimento das novas figuras dos crimes. Assim, a pergunta que não quer calar: em que deverá se regular uma Política Criminal moderna realista e coerente?
Como bem explana ALEXANDRE DE MORAES (informação oral – https://www.youtube.com/watch?v=Lp4lZYOz3-Q&t=868s), acerca das novas demandas penais e das políticas criminais, buscando arrimo em SILVA SANCHES:
Silva Sanches, olhando o que o Jakobs estava escrevendo e legitimando, fala assim “bom, 85 ele chamou de ‘inimigos’, Alemanha; 99, ele disse que o processo era inevitável; 2001, pós 11 de setembro, com legitimação social, ele teorizou”. Silva Sanchez cunhou uma expressão que eu acho fantástica, ele falou assim, oh, “há claramente hoje, no mundo inteiro, pelo menos três novas políticas criminais, ou três políticas criminais distintas. Há claramente pelo menos três formas diferentes do Estado investigar, processar, ou três velocidades do Direito Penal”. Essa foi a expressão. A primeira velocidade do Direito Penal é o Direito Penal Clássico, cheia de garantias para quem está sendo investigado, mais litúrgico, mais lento, porque a marcha do processo é mais lenta ... todo mundo sabe disso que eu estou dizendo ... todo mundo aprendeu desse jeito, e, ao final do processo de contraditório e ampla defesa, devido processo legal, indúbio pró-réu.
Mas, ao lado dessa velocidade mais lenta, porque mais garantista, sob a ótica de quem é investigado, há algum tempo a América Latina e a Europa Continental, que não a Grã-Bretanha, começaram a importar instrumentos que não tinham nada a ver com a cultura civil-law, nossa, eu estou falando da política de barganha, o processo cada vez mais oral, um processo cada vez mais acelerado, um processo cada vez menos litúrgico, com muito menos garantias, flexibilização de garantias, um processo mais digital, na política de acordo.
Não é pouca coisa que está acontecendo. Nós estamos sendo “atropelados” pela política de acordos. Quem é hoje operador do Direito e não se afeiçoa a isso vai ficar anacrônico. Reparem, isso está acontecendo em todos os ramos do Direito. Mediação, conciliação, justiça terapêutica, justiça restaurativa, constelação familiar, transação penal, sursis processual penal, acordo de não persecução penal, colaboração premiada, “plea bargain agreement” que vem no projeto do ministro da justiça (à época, Sérgio Moro. Projeto anticrime), acordo de leniência, autocomposição no âmbito do Direito Civil, na Lei de Introdução do Direito Civil Brasileiro, no âmbito da administração pública, acordo de improbidade administrativa. Desculpa, isso aqui é abreviar processo. Isso aqui é acabar com a lentidão da dilação probatória. E uma boa parte disso que eu estou dizendo diz respeito ao próprio movimento Funcionalista.
Destarte, o penalista prossegue explanando acerca da Terceira Velocidade do Direito Penal, (informação oral – https://www.youtube.com/watch?v=Lp4lZYOz3-Q&t=868s), em relação às novas demandas penais e das políticas criminais, buscando arrimo em SILVA SANCHES:
Pra descrever ou entender que isso aqui há algumas causas que eu quero expor pra vocês, ou para reflexão, a primeira delas é por que que uma política de inimigos é caracterizada ou é pautada por um excesso de produções de leis penais ou por um caos normativo? Bom, é como se Jacobs disse assim “pouco importa você chamar isso de inimigo, está assim porque é o tempo que a gente está vivendo”. Verdade. Primeiro lugar, porque as tradicionais formas de controle da vida em sociedade passam por crise de paradigmas.Como eu comecei falando, a família da pós-modernidade não é mais a família da Modernidade. (...) A mãe pondo o filho para pensar é igualzinho ao Direito Penal. A mãe diligente. Reparem bem, a pena é um casamento, é um enlace entre o passado e o futuro. Se não for assim, é porque o Estado não está cuidando direito de alguém que está sobre sua custódia. Isso como regra geral, porque, é óbvio que eu tenho hoje diferentes tipos de criminosos e de doentes. A mãe quando põe o filho para pensar, para e pensa, o menino tá lá, sem olhar, sem entender o que ele fez. Quem gosta de criança e passa nesse momento que o menino está pensando, ele fica assim, ôh, “posso sair?”, “posso sair?”. A mãe diligente fala “não!”. Qual a primeira coisa que a mãe quer do menino? A primeira coisa que ela quer ... porque o castigo é o presente, o vai-pensar é o presente ... a primeira coisa que a mãe quer é um olhar pro passado. Esse é o Direito Penal do Fato. Um olhar retrospectivo, essa é a essência da pena. Ela quer que ele olhe e fale assim: Não devia ter feito aquilo! O “não devia ter feito aquilo” é a base ontológica do fundamento do direito de punir. Arrependimento, remorso, expiação. Como que eu posso querer colocar alguém de volta pra sociedade se eu não tenho o básico, que é olhar pra trás, arrependimento e remorso? Só aí já dá pra, em termos de Criminologia, pensar, no Brasil, a gente trata todo mundo como se fosse igual, a gente continua com aquele discurso falacioso da faculdade que a pena tem a obrigação de ressocializar alguém. É porque é politicamente correto falar isso. Porque, se a função da pena é ressocializar alguém, desculpa dizer, um sujeito instruído, que não possua nenhum problema mental, um promotor, por exemplo, quando mata a mulher basta você dizer pra ele “você não mata mais”, ele vai falar “não, não mato, já sei que é errado”, você não dá pena pra ele? Um médico quando mata a mulher, você deveria falar pra ele “olha, o senhor não devia ter feito isso”, “não, pode deixar, é a última vez”.
Assim, o narcotráfico internacional, proliferação das facções criminosas, aumento dos crimes transnacionais econômicos e de network, lavagem de dinheiro, etc., tudo isso demonstra a superioridade da organização da criminalidade sobre o poder Estatal, cenário calamitoso que o Direito Penal iluminista não está apto a enfrentar: Inicia-se, dentro de todo o panorama já traçado, a legitimação de políticas públicas que dissentem inteiramente do modelo clássico.
4. PUBLICIDADE E RESERVA DO CÓDIGO PENAL
A proposta de aparelhar o Direito Penal de racionalidade implica, em primeiro lugar, na publicidade do conteúdo normativo desse, bem como torná-lo totalmente claro aos seus destinatários, posto que, apesar de encontrar-se expresso no art. 21, caput, do Código Penal, jurídico não ser permitido a ninguém se esquivar da lei alegando desconhecimento dessa, o elevado número de complexas normas que compõem o sistema jurídico torna tal presunção legal absoluta apenas uma ficção.
Nesse contexto, GOMES e BIANCHINI (2020) pregam a reserva de Código Penal, ou seja, ele deve abarcar tudo de mais poluto, bem como apenas lei complementar possa modificá-lo, pelo que afirmam que “a maior tarefa do penalista neste princípio de terceiro milênio, por conseguinte, consiste precisamente em combater a irracionalidade de grande parte do Direito Penal exageradamente intervencionista e simbólico”.
Na mesma linha, chama à atenção BATISTA (2004, P. 90):
O mais ambicioso dos cenários possível cuidaria de, pela revisão técnica, simplificação e finalmente incorporação ao código de toda a legislação penal especial, rumar para uma revogação de qualquer lei ou disposição penal extravagante. Isso equivaleria a estabelecer a chamada ‘reserva de código’, impondo-se limites à patologia criatividade legislativa criminalizante, e ao emprego constante da infecunda decisão penal como venalizada peça publicitária (‘direito penal simbólico’).
Ademais, ciente de que - no plano temporal, que leva em conta a contemporaneidade social - toda lei é transitória, seria imprescindível o reexame periódico da legislação penal.
Conforme ressalta LYRA (1956, p. 307):
“Quando são discutidos todos os valores – os velhos já sem força e os novos ainda sem força – a estima pelos bens jurídicos penalmente protegidos passa a ser, em regra, eventual. A proteção jurídica inclui e exclui, aprecia e deprecia, tolera e cobra ao ritmo das circunstâncias”.
Nesse norte, é que se congraça a dogmática de JAKOBS, no sentido de que seria fundamental, tendo em vista as mudanças sociais que demonstr um Direito Penal defasado, um modelo destinado de direito penal direcionado especificamente à criminalidade grave, ao crime organizado e ao terrorismo, qual seja, o Direito Penal do inimigo, e que esse modelo fosse muito bem delineado e publicizado, para que, de forma alguma, contaminasse os parâmetros que pautam o Direito Penal do Cidadão
5. A POLÍTICA CRIMINAL E A REALIDADE BRASILEIRA
O Direito Penal, explana Alexandre de Moraes, primeiro brasileiro a escrever sobre Direito Penal do Inimigo, em palestra realizada na Escola Judiciária Militar do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, (informação verbal):
Se a gente parar pra raciocinar como é a sociedade brasileira e como a gente está doente, basta pensar que a gente precisa de uma lei para dizer que não pode bater em mulher, a gente precisa de uma lei para dizer que não pode maltratar criança, a gente precisa de uma lei para dizer que não pode discriminar uma pessoa por causa da cor da pele, no elevador, a gente precisa de uma lei pra dizer que não pode discriminar idosos.
Veja, se o Direito Penal está colocado desse jeito na sociedade brasileira, é porque a sociedade brasileira está muito doente, que o básico da cidadania ela não respeita, o básico...o básico do que está escrito no artigo primeiro, o artigo terceiro, como objetivos e fundamentos da República a gente não tornou ainda uma coisa concreta e real, é papel! O Direito Penal é o raio-x da ética de uma sociedade, por excelência. Se você quer insistir com a ideia de que o Direito Penal brasileiro é fragmentário, então eu vou te contar um dado, porque eu contei: nós temos, hoje, 193 normas penais extravagantes, ou normas penais... ou normas jurídicas que contém uma norma penal extravagante incriminadora. Nós formatamos, desde 88, entre figuras simples, qualificadas e privilegiadas, mais de 800 tipos. Desculpa dizer, mas, o quê que isso tem de “fragmentário”?!
Constata-se que, no Brasil, temos, hoje, um descomedimento de criação de normas. Buscando ilustrar as consequências dessa legislação simbólica, segue a reprodução de comentário na internet de uma notícia publicada, cuja chamada é “Presos ao pescar: ironias de um estado (in) eficiente”. Tal fragmento, por si só, já exemplifica o que ALEXANDRE DE MORAES comenta no trecho da palestra acima descrita:
“Presos ao pescar: 26h na cadeia. E acorrentados. Desempregados foram detidos com 2kg de peixe em Vitória”. Do corpo da notícia, extraímos o seguinte: “Os desempregados Valmir Santos, 45 anos, e Rodrigo Dantas de Almeida, 27, deixaram a prisão, ontem à noite. Eles ficaram 26 horas atrás das grades, algemados e sem comer, acusados da pesca ilegal de dois quilos de peixe. Os dois foram flagrados pela Polícia Ambiental na área da Estação Ecológica do Lameirão, na região da Ilha da Pólvora, na Baía de Vitória, na tarde de terça-feira. [...] Algemados pelos pés e presos por correntes a uma barra de ferro, Valmir e Rodrigo permaneceram no Departamento de Polícia Judiciária (DPJ) da Capital, sem comer, até as 18h50. Nesse horário, chegou o alvará de liberdade provisória. [...] Atuando descaradamente, os delinquentes foram surpreendidos com quase dois quilos de peixe em plena Baía de Vitória. Ambos alegaram tratar-se de pesca para consumo pessoal, mas a polícia, fazendo uma inteligente analogia com a lei de drogas, considerou a grande quantidade da substância apreendida, as circunstâncias do crime e as circunstâncias sociais e pessoais, e descartou a desculpa esfarrapada. Até mesmo porque foram apreendidas ferramentas do crime que indicam maior lesividade e certo profissionalismo (molinete). A esposa de um dos detidos, tentando amenizar a gravidade do ato e dramatizar a situação, declarou que: quando a gente não tem condições, não tem uma carne ou um ovo para dar a nossa filha de cinco anos para comer, ele vai pescar. Eu acho isso uma injustiça. (JÓRIO, 2012)
Observando o retrato supradescrito, faz-se desnecessário discorrer acerca da necessidade da relativização necessária para distinguir o Inimigo do Cidadão, afim de que possa haver proporcionalidade quanto às utilizadas em cada infração.
5.1 Direito Penal e legislação de emergência: combate à atuação criminosa do inimigo
Como bem ressalta GUILLAMONDEGUI (2005) em relação à legislação penal de emergência:
A legislação penal de emergência se caracteriza basicamente por: a) existência de um reclamo da opinião pública para reagir à sensação de insegurança; b) adoção de sanção com regras diferentes das tradicionalmente contempladas no modelo liberal clássico (vulnerando-se princípios de intervenção mínima, de legalidade – com redação de normas ambíguas ou tipos penais em branco ou de perigo abstrato, de culpabilidade, de proporcionalidade das penas, de ressocialização do condenado, etc.) e c) adoção de um Direito Penal meramente ‘simbólico’.
Para JAKOBS (2008, p. 17) as ações basilares materiais ou penais são:
a) passagem do direito penal à legislação de combate à criminalidade; b) antecipação da punição do inimigo em uma atuação prospectiva com visão para o futuro; c) relativização e/ou supressão de certas garantias penais. E as principais medidas formais ou processuais são: a) restrição de garantias e direitos processuais aos imputados; b) alargamento dos prazos da prisão preventiva; c) aumento dos prazos de prisão, de detenção policial para fins investigatórios.
Parafraseando Alexandre de Moraes (2006), o Direito Penal é como a mãe diligente que coloca o filho de castigo. O que ela espera? Primeiro, um olhar para o passado, que o filho reflita e se arrependa genuinamente do seu erro. Segundo, um olhar par o futuro, para que não cometa o mesmo erro e mude sua conduta. Assim, seria de fato real acreditar que um traficante, que comanda da prisão uma rede criminosa, irá ter um olhar para o passado ou para o futuro e mudará sua conduta? Em um mundo incerto, com eventos que fogem ao nosso controle, deveríamos ao menos poder nutrir em relação ao Direito e às posturas que esse pode adotar para atender a realidade dos fatos, pois fechar os olhos e permanecer inerte não trará solução às mazelas sociais.
5.2 O caráter preventivo das novas leis brasileiras
O artigo 288 do Código Penal prevê o formato da quadrilha ou bando “Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes”. Assim, está claro que a delinquência organizada prevê dois quesitos principais: o primeiro é caráter de organização, ou seja, concorrência de várias pessoas (mais de três); e o segundo, várias pessoas com o desígnio comum delitivo. Assim, faz-se crucial, para conceber as ideias apresentadas no presente artigo, apreender a proporcionalidade delitiva do crime organizado em relação ao crime comum.
Como bem explana MONTOYA (2007, p.501) acerca dos arcabouços mafiosos, sobremaneira em relação ao sequestro de pessoas e o tráfico de armas:
(...) o sequestro de pessoas. Os lucros são altos e não há tanto risco quanto no tráfico de narcóticos ou no contrabando de cigarros; o dinheiro é utilizado em investimentos e em negócios mais lucrativos. Uma segunda especialidade é o tráfico de armas. Tentaram, inclusive, adquirir o controle de um instituto de crédito em São Petersburgo (Rússia) e comprar 34 milhões de rublos russos para reinvestir em atividades produtivas na ex-união soviética.
Ainda, outra diligência diferenciada as organizações criminosas é o tráfico de seres humanos, pelo que o ordenamento jurídico brasileiro oferece duas formas de combater esse delito: a primeira seria esperar a materialização do crime e a segunda seria penalizar os autores de delito ou bando de forma preventiva, pela intenção de cometer um crime no futuro, exemplo de Direito Penal do Inimigo.
A Lei nº 12.694 de 24 de julho de 2012, de Crime Organizado, avultou por decisão colegiada, distribuir responsabilidades e fragmentar o peso de decisões sobre indivíduos criminosos. Além disso, a nova lei, afastando polêmicas referentes ao seu conceito, trazendo uma definição clara sobre tais organizações criminosas.
A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, também se enquadra no direito de prevenção. Aplicada a usuários e traficantes de drogas ilícitas - a polêmica Lei antidrogas - também tipifica com clareza as condições para enquadrar o sujeito na conduta delitiva. Como exemplo, traz, no seu artigo 28, § 2º, nas mesmas letras:
(...) para determinar se a droga se destina a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
O Regulamento para Fiscalização de Produtos Controlados (R-105), abonado pelo Decreto nº 3.665, de 20 de novembro de 2000, que trata do uso de tipos de explosivos sem a devida autorização legal, uma ação controlada pelo Exército Brasileiro para conter esse crescente crime é mais um exemplo de ação preventiva.
Para esboçar a proporção lesiva desse crime e também as ações desenvolvidas pelo exercido de acordo com o Regulamento supramencionado, transcreve-se aqui a notícia de Tahiane Stochero (http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/06/exercito-torna-rigidas-regras-de-seguranca-para-uso-de-explosivos.html), publicada no site O Globo:
Para conter o uso de explosivos em ataques a caixas-eletrônicos, o Exército resolveu endurecer as regras no controle de segurança de empresas que fabricam, vendem ou usam o material, buscando evitar furtos, roubos e desvios. As novas regras foram publicadas no Diário Oficial da União nesta semana. Só em 2010, mais de uma tonelada de explosivos dos mais variados tipos foi parar nas mãos de criminosos. Segundo levantamento da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados, órgão subordinado ao Comando de Logística do Exército, O número é 170% superior ao ano anterior. São esses explosivos, segundo delegados da Polícia Civil, que estão sendo usados em assaltos a agências bancárias em todo o país”.
Temos ainda a Lei nº 10.826 de 22 de dezembro de 2003, cujo órgão responsável pela sua efetivação – ressalvados os casos que cabem à Polícia Federal – é Sistema Nacional de Armas (SINAM), que versa sobre a proibição do porte ilegal de arma de fogo, no território nacional, dispondo acerca de registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição.
Outra lei como preventiva é a Lei nº 11.340 (Maria da Penha), de 7 de agosto de 2006, que, nos termos do § 8º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, coíbe a violência doméstica e familiar contra a mulher, e tem como medida de seguridade preventiva, por exemplo, a determinação de que o indivíduo potencialmente perigoso mantenha-se à distância da vítima.
Vale citar ainda a Lei nº 12.258, de 15 de junho de 2010, que alterando parte do Código Penal e da Lei de Execuções, determinou o uso de tornozeleira ou bracelete eletrônico com o objetivo de monitorar o infrator.
Assim, tem-se, em rápida análise, que tais normativas proporcionam benesses que avalizam maior segurança à sociedade, emprestando maior efetividade à norma penal, bem como, colaborando com a diminuição da população prisional.
6.0 – A FUNÇÃO DA PENA EM LARANJA MECÂNICA
Burguess (2012), em Laranja mecânica, obra considerada extremamente polêmica e violenta na época empreende intencionalmente a violência explícita,. A finalidade do autor é exatamente colocar o leitor e telespectador em contato direto com a realidade que Alex representa, de violência, drogas ressalta em nota ao livro, esclarece a origem do nome do protagonista
O autor emprega um trocadilho ao dar o nome ao protagonista, Alex – "sem lei": ab (longe de, sem) + Lex(lei) – um alusão a como Alex e sua gang vivia, ditando as próprias leis sempre, recusando-se a obedecer os comandos legais estatais, bem como colocando a sociedade à mercê da sua violência ininterrupta.
Assim, preso, ele encontra-se dominado, obstruído, impedido de empreender as atrocidades que costumava praticar com sua gangue. O enredo nos mostra que, como forma de tentar exterminar a criminalidade, bem como sua reincidência, o Estado testa o Método Ludovico, cuja pretensão seria eliminar as propensões criminosas do indivíduo, para, só então, devolvê-lo à sociedade, incapaz de delinquir, com sua violência e criminalidade neutralizadas. Dessa forma, procedem a um tratamento condicionante, em que são injetadas em Alex substâncias nauseantes enquanto ele assiste a cenas de violência.
Devolvido ao convívio social, o protagonista sente-se curado:
“Quando chegou ao Scherzo eu conseguia me videar claramente correndo e correndo com nogas muito leves e sorrateiros, esculpindo o litso inteiro do mundo que krikava com mina britva degoladora. E então o movimento lento e o adorável último movimento cantado ainda por vir. Eu estaba realmente curado”. (BURGUESS, 2012, p. 259).
Nesse contexto, vemos na obra a questão acerca da função ressocializadora da pena, e a pergunta: a inocuização de Alex foi, de fato, eficaz? O romance mostra que não, posto que, em dado momento da história, fica demonstrado Claramente o método não removeu a natureza violenta e predisposta ao mal que Alex possuía, pois, após tentar suicídio, ele se mostra capaz de sonhar com a violência, bem como, em uma fala de um padre comoca da por BURGUESS (2012, p. 142): “A questão é se uma técnica dessas pode realmente tornar um homem bom. A bondade vem de dentro. Bondade é algo que se escolhe. Quando um homem não pode escolher, ele deixa de ser um homem”. Nesse sentido, apreende-se da obra que o indisciplinável não pode ser retificado, a essência humana não é passível de alinho, ainda que a força.
Aplicado à nossa realidade, vemos que o tratamento dado a Alex foi desumano, assim como o tratamento dado aos apenados nos presídios, o que obviamente o tratamento dado a Alex não modificou sua essência, bem como o sistema prisional não ressocializa, mas coisifica o homem.
Na obra, fica claro que Burguess tenta argumenta a favor do livre-arbítrio do home, e que é melhor ser mau a por própria escolha que ser boa por meio de lavagem cerebral. Quando Alex tem o poder da escolha, opta apenas por violência. Assim, sustenta o autor:
Ser bom pode não ser agradável, 6655321. Pode ser horrível ser bom. E quando digo isto a você, eu compreendo como soa contraditório. Eu sei que vou passar muitas noites sem dormir por causa disto. O que é que Deus quer? Deus quer a bondade ou a escolha da bondade? O homem que escolhe o mal é talvez de uma certa forma melhor do que aquele a quem a bondade é imposta. Questões duras e profundas, 6655321”.(BURGUESS, Anthony, 2012, p. 156).
Contudo, hoje, em busca de “transformar” o sujeito que comete a infração, ele passa a ser um objeto castigo que se assemelha aos métodos cruéis e medievais. Os castigos impostos na modernidade e na realidade prisional brasileira, também condicionam os apenados, pois, à medida que mistura todos os tipos de condenados, crimes mais graves e mais leves, condiciona todos a se tornarem maus.
Assim, não se trata o tema tratado neste artigo de inocuização pura e simples imposta a Alex, nem em dar um tratamento cruel, mas apenas de garantir que sujeitos, pelo que se concorda com a obra quanto à certeza de que a bondade não é capaz de penetrar no consciente da natureza genuína predisposta ao crime. Contudo o que dizer da maldade imposta a todos apenados igualmente, tornando-os todos maus igualmente? Não seria aceitável discutir a falta de proporcionalidade contida no Direito Penal vigente?
O indivíduo, uma vez que entra no sistema prisional, não consegue voltar a fazer parte da sociedade, a realidade prova que ele não pode ser reeducado nem ressocializado, como almejam os defensores das teorias ressocializadoras. É necessário que muitas melhorias e mudanças ocorram para que isso seja real.
CONCLUSÃO
O exame simplista e emocional à um Direito Penal de terceira velocidade reflete um discurso desassociado da realidade. Ante a conjuntura de um país de política criminal demagógica, que se utiliza do Direito Penal como revide mais célere e de menor custo para solução de crises de insegurança, seria razoável ao menos discutir as adaptações de uma política criminal diferente para o ‘inimigo’.
O que hoje ocorre é a criminalização tácita, sorrateira e às escuras, justiçamento, milícia, como tem ocorrido e inevitavelmente continuará ocorrendo. Os críticos do direito preventivo argumentam que a constituição proíbe a pena perpétua, comparando as medidas preventivas a tal pena. Porém, o que ocorre hoje? Não seria pena perpétua o estigma que a sociedade impõe ao criminoso? E o que dizer da mistura dos detentos que cometem crimes leves e hediondos, devido, principalmente, à lentidão dos julgamentos dos milhares de processos. O que temos hoje é um Direito Penal desproporcional que junta os “reeducandos” e forma uma argamassa nefasta.
Bem elenca CAMPIMPLONGO (2000, p. 54) os traços paradigmáticos que assinalam a realidade atual:
a) a ineficiência do Estado em executar políticas públicas básicas, o que acentua os índices de criminalidade; b) a ineficiência do Estado em fiscalizar e executar adequadamente o sistema penitenciário, o que vem ensejando a mitigação do Direito Penal clássico, com a adoção do Direito de segunda velocidade (mitigação da pena de prisão e adoção de penas alternativas, como substituição ao pesado custo do sistema carcerário e fiscalizador), o que, ademais, vem contribuindo para o aumento da reincidência; c) o aumento da sensação subjetiva de insegurança da população, em virtude do avanço tecnológico dos meios de comunicação (hoje, com a televisão, internet etc., se sabe em São Paulo de um crime de latrocínio ocorrido há alguns minutos no subúrbio do Rio de Janeiro, aumentando a sensação de insegurança coletiva). Isso tudo agravado pela forma sensacionalista com que a mídia antecipa julgamentos e veicula notícias – como um autêntico produto de mercado4 ; d) uma sociedade marcada pelo risco, em decorrência dos avanços da tecnologia (novos meios de transportes, de comunicação etc.), incrementando, na legislação penal, novos tipos de perigo abstrato e omissivos impróprios como respostas aparentemente adequadas para evitar tais riscos; e) aumento considerável da demanda penal, diante da tutela dos interesses difusos e coletivos e outros decorrentes das ‘novidades’ da era pós-industrializada (econômicos, de informática, etc.); f) globalização econômica que vem intensificando as desigualdades sociais e incrementando no Direito, novos conceitos, com novos tipos penais, com o abandono de consagradas figuras, tudo em nome da eficiência econômica; g) a utilização do Direito Penal como instrumento para soluções aparentemente eficazes a curto prazo, mediante o fisiologismo de políticos que acabam hipertrofiando o sistema penal, criando uma colcha de retalhos legislativa incongruente e despropositada; h) o desprestígio de outras instâncias para a solução de conflitos que poderiam ser, a princípio, retirados da tutela do Direito Penal (como o Direito Administrativo)5 ; i) o considerável aumento do descrédito da população nas instituições e na possibilidade de mudança a curto prazo que, acentuadas pela crise do próprio homem, vem fomentando a criação de ‘Estados paralelos’, à margem da ordem jurídica posta, aumentando e fortalecendo organizações criminosas, proliferando a justiça ‘pelas próprias mãos’ (linchamentos, grupos de extermínio etc.), desmobilizando os movimentos sociais e desarticulando os mecanismo de resistência à miséria etc.
Cientes de que toda lei é transitória, no sentido temporal, não intertemporal, deveria nosso País permanecer refém do crime organizado? Não seria racional um reexame periódico da legislação penal, buscando alinhá-la as necessidades atuais? ZAFFARONI e PIERANGELI (1997, p. 375) apoiam a ideia de um Direito Penal mais dinâmico, sustentando que o “direito penal fundado antropologicamente não pode pretender haver encontrado um mínimo de ética que tenha sido fixado de uma vez para sempre”. No mesmo sentido, BONFIM (1997, p. 190), assevera que, além da reserva de Código, a codificação deveria ter datas-limite, pois “necessita o legislador, à luz do momento em que vive, a necessária referência axiológica para a produção normativa”.
No sentido de obediência às leis, colaciona REALE (1994, P.49):
Podemos criticar as leis, das quais dissentimos, mas devemos agir de conformidade com elas, mesmo sem lhes dar a adesão de nosso espírito. Isto significa que elas valem objetivamente, independentemente, e a despeito da opinião e do querer dos obrigados. Foi Kant o primeiro pensador a trazer à luz essa nota diferenciadora, afirmando ser a Moral autônoma, e o Direito heterônomo. Nem todos pagam imposto de boa vontade. No entanto, o Estado não pretende que, ao ser pago um tributo, se faça com um sorriso nos lábios. Há, no Direito, um caráter de ‘alheiedade’ do indivíduo, com relação à regra. Dizemos, então, que o Direito é heterônomo, visto ser posto por terceiros aquilo que juridicamente somos obrigados a cumprir. A lei pode ser injusta e iníqua, mas enquanto não for revogada, ou não cair em manifesto desuso, obriga e se impõe contra a nossa vontade, o que não impede que se deva procurar neutralizar ou atenuar os efeitos do “direito injusto”, graças a processos de interpretação e aplicação que teremos a oportunidade de analisar. È inegável, porém, que em princípio, o Direito obriga, sendo o característico da heteronomia bem mais profundo do que à primeira vista parece. Daí podemos dar mais um passo e dizer que o Direito é a ordenação heterônoma e coercível da conduta humana.
Não se trata aqui de ousar pretender dar resposta a um questionamento tão complexo, que provavelmente irá ecoar por ainda muitos anos, seria ingênuo pensar uma resposta imediata. Para edificar equilíbrios socialmente admissíveis, necessitamos de tempo, paciência e esforço. Este rascunho tem a tímida aspiração de promover um debate já iniciado, e colaborar com o combate à impunidade, questionando um modelo de Direito Penal que aponte tão somente à reafirmação do Direito e de valores ético-sociais e não procure alternativas para lutar contra aqueles que ferem nossa sociedade e afrontam nossas leis. Conforme a lição de MORAES Jr. (2020, p.10), é imperativo assumir que “se as violações das normas não são punidas, ou não são punidas de forma sistemática, tornam-se sistemáticas”.
Em suma, tais propostas anseiam colaborar com o debate acerca de um Direito Penal mais voltado ao seu tempo e mais reconhecido pelos cidadãos, o que seguramente contribuiria para a redução da impunidade e, como pretende JAKOBS, a imposição de uma medida repressiva – racionalmente aplicada, de forma proporcional, diferenciando o Cidadão do Inimigo – consistiria na real reafirmação do próprio Direito. Por fim, já advertia IHERING (2020, p. 41) que “quando mil homens têm de dar combate, o desaparecimento de um só pode passar despercebido; mas quando cem dentre eles abandonam a bandeira, a posição daqueles que ficam fiéis torna-se cada vez mais crítica; todo o peso da luta recai sobre eles exclusivamente”.
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[1] Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos. Pós-graduado em Ciências Criminais. Especialista em Direito e Processo Administrativo. Graduado em Direito e em Comunicação Social, todos os cursos pela Universidade Federal do Tocantins – UFT. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal. Escritor de obras jurídicas. Delegado da Polícia Civil do Tocantins.
Graduanda do Curso Superior de Direito da Faculdade Serra do Carmo – FASEC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMORIM, WALESKA ZANINA. O direito penal do inimigo aplicado como medida de combate ao crime organizado: uma intersecção com a obra Laranja Mecânica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 dez 2020, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55844/o-direito-penal-do-inimigo-aplicado-como-medida-de-combate-ao-crime-organizado-uma-interseco-com-a-obra-laranja-mecnica. Acesso em: 22 nov 2024.
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