RESUMO: O Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) exige que deve haver diferença de 16 anos entre adotante e adotado. O presente trabalho analisará Recurso Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em que foi permitida a adoção de enteada por padastro, apesar de não haver essa diferença de idade entre eles. Foi concluído que o STJ agiu com acerto, já que não se deve considerar um requisito legal para adoção de forma isolada e dissociada de elementos importantes do caso concreto, como a socioafetividade e a maturidade do adotante para assunção daquele papel.
PALAVRAS-CHAVE: adoção; adoção unilateral; diferença etária entre adotante e adotado; socioafetividade.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo analisará Recurso Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em que foi permitida a adoção de enteada por padastro, mesmo não havendo diferença etária entre eles de 16 anos, exigência prevista no ECA.
Para isso, será apresentado o caso concreto com mais detalhes, as decisões da primeira e segunda instâncias que negaram a adoção com seus respectivos fundamentos. Após, será feita a análise do caso e da decisão do STJ à luz do ordenamento jurídico brasileiro, com a exposição de outras decisões do STJ em situações semelhantes à desse trabalho.
2. CASO CONCRETO
O Recurso Especial julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) trata de um caso do Rio Grande do Sul, em que o padastro pede a adoção de sua enteada, com a substituição do nome do pai biológio pelo seu nome e a manutenção do nome da mãe.
No caso concreto, os pais biológicos divorciaram quando a criança tinha 4 anos de idade. Após, a mãe passou a viver em união estável. Ao longo desse relacionamento, que existe há mais de 35 anos, a relação entre o padastro e a enteada foi ficando cada vez mais próxima, passando a existir, na verdade, paternidade socioafetiva.
Considerando a paternidade socioafetiva e que a relação da enteada com pai biológico, já falecido, não foi muito próxima, o padastro, quando contava com 56 anos e a enteada com 40, ajuizou essa ação de adoção.
O pedido foi julgado improcedente em primeira e segunda instâncias, ao argumentando de que a diferença de idade entre eles, de 15 anos, 9 meses e 18 dias, não atendia ao Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), que exige diferença mínima de 16 anos entre adotante e adotado, conforme acórdão do TJRS relativo ao caso transcrito abaixo.
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. PEDIDO DE ADOÇÃO. REQUISITO LEGAL. DIFERENÇA MÍNIMA DE IDADE ENTRE ADOTANTE E ADOTADA. EXTINÇÃO DO PROCESSO.
Descabida a pretensão de adoção quando verificado que não foi atendido o requisito legal da diferença de dezesseis anos entre adotante e adotado. Inteligência do art. 42, § 3º, do ECA.
Apelação desprovida.
(Apelação Cível, Nº 70077620953, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luís Dall'Agnol, Julgado em: 29-08-2018)
Ao analisar o Recurso Especial, o STJ deu provimento, para reformar o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), reconhecendo, assim, a possibilidade de adoção neste caso, ao fundamento de que, no caso, estava configurada a socioafetividade e havia maturidade emocional por parte do adotante para assunção do poder familiar.
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. PROCESSUAL CIVIL E CIVIL.
ADOÇÃO. MAIOR. ART. 42, § 3º, DO ECA (LEI Nº 8.069/1990). IDADE. DIFERENÇA MÍNIMA. FLEXIBILIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. SOCIOAFETIVIDADE. INSTRUÇÃO PROBATÓRIA. IMPRESCINDIBILIDADE.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
2. A diferença etária mínima de 16 (dezesseis) anos entre adotante e adotado é requisito legal para a adoção (art. 42, § 3º, do ECA), parâmetro legal que pode ser flexibilizado à luz do princípio da socioafetividade.
3. O reconhecimento de relação filial por meio da adoção pressupõe a maturidade emocional para a assunção do poder familiar, a ser avaliada no caso concreto.
4. Recurso especial provido.
(REsp 1785754/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/10/2019, DJe 11/10/2019)
Apresentado o caso concreto, será feita a sua análise e da decisão do STJ relativa a ele, tendo como base o ordenamento jurídico brasileiro e casos semelhantes também já julgados pelo STJ.
3. ANÁLISE DO CASO CONCRETO À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O ECA estabelece que, para adotar, é necessário que o adotante possua, no mínimo, 18 anos. Estabelece, ainda, que deve haver uma diferença de idade de, pelo menos, 16 anos entre adotante e adotado.
Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do estado civil.
(...).
§ 3º O adotante há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho do que o adotando.
(BRASIL, 1990).
Tal requisito deve ser considerando um norte a partir do qual o magistrado deve partir para analisar a viabilidade de adoção, e não um elemento fechado e absoluto, de forma que, se não for preenchido, não há possibilidade de adoção.
Há de se considerar, também, a razão de ser da norma, que é garantir que aquele que adota terá a maturidade necessária para relação, a fim de que a posição de pai e a de filho fiquem bem nítidas, não havendo confusão entre elas.
No caso concreto, apesar de não haver a diferença exata de 16 anos, o padastro criou a enteada como se pai fosse, assumindo a função e a maturidade que se espera de um pai na criação de um filho.
Ainda, a diferença de 16 anos só não foi atingida por faltar cerca de 2 meses e meio para tal, não se mostrando razoável que um requisito legal seja considerado de forma isolada num caso como esse.
Além disso, busca-se que a adoção se assemelhe à família biológica, com a estrutura necessária para o pleno desenvolvimento do adotado, o que também aconteceu no caso concreto. A mãe passou a viver em união estável com padastro quando a criança adotada tinha apenas 4 anos de idade. Ele foi a figura presente no dia a dia e desenvolvimento da adotada, o que ocorre, inclusive, há mais de 35 anos.
Ainda, além de todos esses elementos, inegável é a presença da paternidade socioafetiva neste caso. Com o passar dos anos, a relação entre adotante e adotada foi ficando cada vez mais próxima, havendo mais afeto entre eles, a ponto de que aquele padastro passou a ser visto e a se comportar como verdadeiro pai, situação caracterizadora da paternidade socioafetivida.
Importante mencionar, ainda, que a adoção de enteado por padastro encontra respaldo legal no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 41, §1º, sendo chamada de adoção unilateral e sendo exigido, para sua configuração, a presença da socioafetivade, presente no caso objeto de análise.
Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.
§ 1º Se um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do outro, mantêm-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou concubino do adotante e os respectivos parentes.
(BRASIL, 1990).
O caso trazido acima não é exceção na jurisprudência do STJ. Semelhantemente, no caso com ementa transcrita abaixo, o padastro pede adoção da enteada, mas aqui a diferença de idade entre eles é 12 anos.
No caso, a enteada contava com 27 anos de idade e convivia com padastro desde os seus 13 anos, quando a mãe passou a viver em união estável com ele. Como havia socioafetividade entre eles, a adoção foi permitida, apesar de não haver a diferença de 16 anos exigida pelo ECA.
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ADOÇÃO UNILATERAL DE MAIOR AJUIZADA PELO COMPANHEIRO DA GENITORA. DIFERENÇA MÍNIMA DE IDADE ENTRE ADOTANTE E ADOTANDO. MITIGAÇÃO. POSSIBILIDADE.
1. Nos termos do § 1º do artigo 41 do ECA, o padrasto (ou a madrasta) pode adotar o enteado durante a constância do casamento ou da união estável (ou até mesmo após), uma vez demonstrada a existência de liame socioafetivo consubstanciador de relação parental concretamente vivenciada pelas partes envolvidas, de forma pública, contínua, estável e duradoura.
2. Hipótese em que o padrasto (nascido em 20.3.1980) requer a adoção de sua enteada (nascida em 3.9.1992, contando, atualmente, com vinte e sete anos de idade), alegando exercer a paternidade afetiva desde os treze anos da adotanda, momento em que iniciada a união estável com sua mãe biológica (2.9.2006), pleito que se enquadra, portanto, na norma especial supracitada.
3. Nada obstante, é certo que o deferimento da adoção reclama o atendimento a requisitos pessoais - relativos ao adotante e ao adotando - e formais. Entre os requisitos pessoais, insere-se a exigência de o adotante ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho que o adotando (§ 3º do artigo 42 do ECA).
4. A ratio essendi da referida imposição legal tem por base o princípio de que a adoção deve imitar a natureza (adoptio natura imitatur). Ou seja: a diferença de idade na adoção tem por escopo, principalmente, assegurar a semelhança com a filiação biológica, viabilizando o pleno desenvolvimento do afeto estritamente maternal ou paternal e, de outro lado, dificultando a utilização do instituto para motivos escusos, a exemplo da dissimulação de interesse sexual por menor de idade.
5. Extraindo-se o citado conteúdo social da norma e tendo em vista as peculiaridades do caso concreto, revela-se possível mitigar o requisito de diferença etária entre adotante e adotanda maior de idade, que defendem a existência de vínculo de paternidade socioafetiva consolidado há anos entre ambos, em decorrência de união estável estabelecida entre o autor e a mãe biológica, que inclusive concorda com a adoção unilateral.
6. Apesar de o adotante ser apenas doze anos mais velho que a adotanda, verifica-se que a hipótese não corresponde a pedido de adoção anterior à consolidação de uma relação paterno-filial, o que, em linha de princípio, justificaria a observância rigorosa do requisito legal.
7. À luz da causa de pedir deduzida na inicial de adoção, não se constata o objetivo de se instituir uma família artificial - mediante o desvirtuamento da ordem natural das coisas -, tampouco de se criar situação jurídica capaz de causar prejuízo psicológico à adotanda, mas sim o intuito de tornar oficial a filiação baseada no afeto emanado da convivência familiar estável e qualificada.
8. Nesse quadro, uma vez concebido o afeto como o elemento relevante para o estabelecimento da parentalidade e à luz das especificidades narradas na exordial, o pedido de adoção deduzido pelo padrasto - com o consentimento da adotanda e de sua mãe biológica (atualmente, esposa do autor) - não poderia ter sido indeferido sem a devida instrução probatória (voltada à demonstração da existência ou não de relação paterno-filial socioafetiva no caso), revelando-se cabível, portanto, a mitigação do requisito de diferença mínima de idade previsto no § 3º do artigo 42 do ECA.
9. Recurso especial provido.
(REsp 1717167/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 11/02/2020, DJe 10/09/2020)
Não foi a primeira vez, também, em que um requisito legal de adoção foi afastado pela jurisprudência do STJ. O ECA veda que ascendente adote descendente, mas, no caso com ementa transcrita abaixo, foi permitido que um avô adotasse neto. Foi entendido que essa era a decisão conferia maior proteção ao adotante, além de ser a que melhor atendia ao seu interesse, já que a mãe, vítima de agressão sexual, estava impossibilitada de assumir essa maternidade.
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ADOÇÃO POR AVÓS. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. PADRÃO HERMENÊUTICO DO ECA.
01. Pedido de adoção deduzido por avós que criaram o neto desde o seu nascimento, por impossibilidade psicológica da mãe biológica, vítima de agressão sexual.
02. O princípio do melhor interesse da criança é o critério primário para a interpretação de toda a legislação atinente a menores, sendo capaz, inclusive, de retirar a peremptoriedade de qualquer texto legal atinente aos interesses da criança ou do adolescente, submetendo-o a um crivo objetivo de apreciação judicial da situação específica que é analisada.
03. Os elementos usualmente elencados como justificadores da vedação à adoção por ascendentes são: i) a possível confusão na estrutura familiar; ii) problemas decorrentes de questões hereditárias; iii) fraudes previdenciárias e, iv) a inocuidade da medida em termos de transferência de amor/afeto para o adotando.
04. Tangenciando à questão previdenciária e às questões hereditárias, diante das circunstâncias fática presentes - idade do adotando e anuência dos demais herdeiros com a adoção, circunscreve-se a questão posta a desate em dizer se a adoção conspira contra a proteção do menor, ou ao revés, vai ao encontro de seus interesses.
05. Tirado do substrato fático disponível, que a família resultante desse singular arranjo, contempla, hoje, como filho e irmão, a pessoa do adotante, a aplicação simplista da norma prevista no art.
42, § 1º, do ECA, sem as ponderações do "prumo hermenêutico" do art. 6º do ECA, criaria a extravagante situação da própria lei estar ratificando a ruptura de uma família socioafetiva, construída ao longo de quase duas décadas com o adotante vivendo, plenamente, esses papéis intrafamiliares.
06. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 1635649/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/02/2018, DJe 02/03/2018)
Desse modo, verifica-se o acerto da decisão do STJ, que reverteu decisão da primeira e segunda instâncias do Rio Grande do Sul, para permitir a adoção num caso em que, apesar de não se ter atingida a diferença etária de 16 anos entre adotante e adotado, havia socioafetividade e maturidade por parte do adotante, elementos necessários para proporcionar o desenvolvimento da adotada.
4. CONCLUSÃO
Diante do exposto, verifica-se que o requisito legal de diferença etária de 16 anos entre adotante e adotado não deve ser analisado de forma isolada e dissociada das circunstâncias do caso concreto.
Demonstrado que há socioafetividade, que há maturidade emocional para assunção do papel de pai, que é a razão de ser da exigência legal mencionada, não há motivo para não se permitir a adoção.
Assim, considerando que o STJ levou em consideração esses elementos para reverter decisão da primeira e segunda instâncias do Rio Grande do Sul e permitir a adoção, conclui-se que o Tribunal agiu com acerto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília, DF: Presidência da República.
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
Acesso em: 15 de out. 2020.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível. Relator: Jorge Luís Dall'Agnol, 29 ago. 2018. Porto Alegre: TJRS.
Disponível em:
https://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php?nome_comarca=Tribunal%20de%20Justi%C3%A7a%20do%20RS&versao=&versao_fonetica=1&tipo=1&id_comarca=700&num_processo_mask=&num_processo=70077620953&codEmenta=7706337&temIntTeor=true
Acesso em: 16 de out. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. Relator: Ricardo Villas Bôas Cueva, 11 out. 2019. Brasília: STJ.
Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201803228266&dt_publicacao=11/10/2019
Acesso em: 16 de out. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. Relator: Luis Felipe Salomão, 10 set. 2020. Brasília: STJ.
Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201702743439&dt_publicacao=10/09/2020
Acesso em: 16 de out. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. Relatora: Nancy Andrighi, 02 mar. 2018. Brasília: STJ.
Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201602733123&dt_publicacao=02/03/2018
Acesso em: 16 de out. 2020.
Pós-graduada em Ciências Criminais pela Faculdade Damásio, pós-graduanda em Direitos Humanos pela Faculdade UniAmérica, graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, IZABELA SEDLMAIER. Possibilidade de adoção mesmo que não haja diferença etária de 16 anos entre adotante e adotado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 dez 2020, 04:11. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55904/possibilidade-de-adoo-mesmo-que-no-haja-diferena-etria-de-16-anos-entre-adotante-e-adotado. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
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