Resumo: Nos crimes de abuso sexual contra crianças, as vítimas, são frequentemente expostas aos trâmites cruciais da justiça criminal. Nos casos, em maioria, não sobejam indícios do abuso sexual praticado. A palavra da vítima se expõe como uma das poucas evidências prováveis ao processo, sobretudo, por se tratar de crime atabafado e dificilmente testemunhado por alguém. Assim, o forte abalo emocional sofrido pela vítima ao longo do incidente do abuso e toda suscetibilidade oriunda de sua dor psíquica, culpa, desrespeito de sua intimidade e horror que vivencia, implicam seu testemunho, sendo indagado por parte dos julgadores quanto a veracidade e fabulação. Por isso, o presente artigo expõe uma discussão teórica, de natureza exploratória, com a finalidade de compreender a valoração da palavra da vítima de abuso sexual infantil e o seu valor categórico no processo. Visualiza-se por conseguinte, que o processo é dirigido por um duplo ímpeto, pois de uma fronte tem-se a criança ofendida e a busca da verdade real e de outra, o anteparo aos direitos constitucionais do réu, buscando um julgamento erguido na presunção da inocência.
Palavras-chave: Abuso Sexual. Prova. Valoração. Vítima.
Abstract: In crimes of sexual abuse against children, the victims are often exposed to the crucial processes of criminal justice. In most cases, there is no evidence of sexual abuse left. The word of the victim is exposed as one of the few probable evidences to the process, mainly because it is a muffled crime and hardly witnessed by anyone. Thus, the strong emotional shock suffered by the victim during the incident of abuse and all the susceptibility arising from her psychological pain, guilt, disrespect for her intimacy, and the horror she experiences, imply her testimony, which is questioned by the judges as to its veracity and fabrication. Therefore, this article exposes a theoretical discussion, of exploratory nature, with the purpose of understanding the valuation of the word of the victim of child sexual abuse and its categorical value in the process. It can be seen, therefore, that the process is driven by a double impetus, because on one hand there is the offended child and the search for the real truth, and on the other hand, the shielding of the constitutional rights of the defendant, seeking a trial based on the presumption of innocence.
Key-words: Sexual Abuse. Evidence. Value. Victim.
Sumário: Introdução. 1. A Criança e o Crime de Abuso Sexual. 2. Os Impactos do Abuso Sexual no Comportamento e a Revelação. 3. A Oitiva da Criança Vítima de Abuso Sexual. 4. A Palavra da Criança Vítima de Abuso Sexual como Prova. 5. Considerações Finais. Referências.
Introdução
Atualmente, de forma cada vez mais frequente, infelizmente, somos bombardeados com notícias de crimes de abuso sexual infantil. Nesses casos, na maioria das vezes, o agente encontra-se inserido no contexto familiar, o que significa dizer que a maioria dos agressores faz parte do ciclo social da vítima.
São diversas as formas de ocorrer um abuso sexual, desde um ato devasso até a conjunção carnal. Há vezes em que o agente se utiliza do fato de possuir alguma influência sobre a vítima, podendo, inclusive, oferecer recompensas para convencê-la, assim como, há casos em que o domínio físico e a influência psicológica coagem a vítima a realizar o ato.
Quando as vítimas não podem, não sabem ou não conseguem se defender ou procurar ajuda, elas se escondem. Destarte, se não conseguirem denunciar o mais rápido possível, as provas do crime se limitam ao relato da vítima, exceto as físicas. Além das violações, este crime pode desencadear várias barreiras psicológicas e deixar vestígios do crime para o resto de sua vida.
Reprovadíssimo na sociedade. Um aspecto que contribui com essa afirmação e transfigura o abuso sexual infantil singularmente diverso de outros crimes é o fato da vítima ser uma criança. Comumente, elas ainda se encontram no jardim-escola, dominando, não completamente, as habilidades do idioma, por isso é difícil compreender e expor sua experiência. Quando um processo criminal é inserido, a circunstância configura-se ainda mais delicada e dolorosa. E, nesse processo, o testemunho da criança é fundamental.
O abuso pode ressoar no corpo da criança com dores, inchaços, sangramentos, DST’s, gravidez etc., assim como, é capaz de interferir de forma expressiva no desenvolvimento da sua personalidade. Ademais, a depender do tipo de abuso praticado, ou pelo período dentre o abuso e a revelação, evidência nenhuma mantém-se de forma a demonstrar a violência, concernindo que para o exame pericial não restará como prova satisfatória e suficiente do crime cometido, sobejando a palavra da vítima como prova, tornando-se imprescindível considerar tal aspecto subjetivo.
No presente artigo, vamos buscar identificar qual o valor da palavra da vítima nos crimes de abuso sexual infantil e se é concebível o fundamento de uma sentença condenatória no testemunho da vítima de abuso sexual como a principal prova do crime.
As palavras da vítima são uma das primeiras evidências a serem colhidas, por conseguinte, é indispensável uma atenção delicada, tornando-se improvável a geração de mais provas, que indiquem a materialidade e autoria. Desta forma, é compreensível que na etapa de investigação e no processo judicial seja necessário analisar as palavras da vítima.
Por tais razões, este trabalho pretende proporcionar informações sobre o tema, embasando-se na legislação e na doutrina, para que convenha não somente como objeto de estudo e aperfeiçoamento, mas igualmente como alerta aos pais, professores, promotores de justiça, magistrados e demais interessados, de maneira a dar voz às crianças, para lhes proteger.
Ouvir é um gesto de anteparo, oportunizando que a violência sexual infantil cesse.
1 A CRIANÇA E O CRIME DE ABUSO SEXUAL
O referenciado Departamento de Saúde do Reino Unido (2003, apud SANDERSON, 2005, p. 05), define o abuso sexual infantil desta forma:
Forçar ou incitar uma criança a tomar parte em atividades sexuais, estejam ou não cientes do que está acontecendo. As atividades podem envolver contato físico, incluindo atos penetrantes e atos não-penetrantes. Pode incluir atividades sem contato, tais como levar a criança a olhar ou a produzir material pornográfico ou a assistir a atividades sexuais ou encorajá-la a comportar-se de maneiras sexualmente inapropriadas.
Conti (2008, p. 65) assim o define:
Uma situação em que uma criança ou adolescente é usado para gratificação sexual de um adulto ou mesmo de um adolescente mais velho, baseado em uma relação de poder que pode incluir desde carícias, manipulação da genitália, exploração sexual, voyeurismo, pornografia e exibicionismo, até o ato sexual com ou sem penetração, com ou sem violência.
No Brasil, a cada hora, três crianças ou adolescentes são abusadas sexualmente. E isso é apenas uma estimativa, dado que mais de 80% dos casos de abuso sexual infantil não são denunciados.
Todas as crianças estão em risco do abuso sexual infantil, independentemente do gênero, condição social, raça, tipo de família, origem e demais intersecções.
Há uma amplitude de atividades sexuais executada em crianças, cujo são objetificadas para satisfação sexual, podendo incorporar atos com ou sem contato físico.
O agente que inclui a criança nessas atividades sexuais, completamente em desacordo com sua idade e sua desenvoltura psicossexual, cuja não possui sapiência da circunstância em que está introduzida, dentro ou fora da esfera familiar, comete crime de abuso sexual infantil.
O estupro de vulnerável é o primeiro crime previsto no Capítulo II do Título VI do Código Penal Brasileiro, cujo institui os crimes sexuais contra vulnerável.
Ampara a autonomia sexual dos menores de 14 anos e das pessoas consideradas vulneráveis de acordo com o Código Penal, concedendo intransigência ao preceito constitucional que suscita que “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”, segundo o art. 227, § 4º.
A Lei nº 12.015/2009 transportou atualizações ao Capítulo VI do Código Penal Brasileiro, revogando, alterando e acrescentando disposições, adequando o Código Penal às atuais mudanças nas condutas sociais relacionadas a sexualidade, harmonizando-o perante a Constituição Federal de 1988.
Uma das finalidades da Lei 12.015/2009 deu-se com a maior coibição ao crescente aumento de casos de atentados sexuais contra crianças e adolescentes. A lei em questão, anteriormente, não discorria de uma norma penal específica que versasse sobre vulneráveis, mas quem praticasse atos previstos no art. 217-A, incorria no crime de estupro (art. 213) ou no crime de atentado violento ao pudor (art. 214), a depender da conduta praticada.
A Lei inseriu novas tipificações específicas sobre vulneráveis e revogou as deliberações anteriores.
Todos os delitos previstos no Capítulo II do Título VI do Código Penal (Decreto Lei 2.828/40) foram atualizações trazidas pela lei em questão. São eles:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Art. 217 do Código Penal – Decreto Lei 2.828/40 - Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 218 - Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de quatorze e menor de dezoito anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo: Pena - reclusão, de um a quatro anos. (Art. 218 do Código Penal – Decreto Lei 2.828/40 - Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos. (Art. 218-A do Código Penal – Decreto Lei 2.828/40 - Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone. (Art. 218-B do Código Penal – Decreto Lei 2.828/40 - Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Ferreira (1999), explica que “vulnerável significa descoberto, desprotegido, indefeso, suscetível, desarmado, exposto, derrotável pela fragilidade que possui”.
Todas as vítimas dos crimes mencionados até aqui são classificadas e consideradas pelo Código Penal Brasileiro como sendo vulneráveis, tendo em vista que a vulnerabilidade é consoante com o sentido e propósito de cada crime.
Nesses crimes com crianças menores de 14 anos, a violência é presumida, uma vez que o consentimento da vítima é irrelevante, ainda que ela já tenha mantido relações sexuais, quando o agente mantém relação com criança menor de 14 anos, o crime permanecerá.
É obrigação de toda a sociedade civil, zelar pela integridade da criança e adolescente.
2 OS IMPACTOS DO ABUSO SEXUAL NO COMPORTAMENTO E A REVELAÇÃO
Nenhuma petiz encontra-se capaz para enfrentar o crime de abuso sexual.
O pleno desenvolvimento, nas palavras de Kung et al (2009, p. 95), “requer que cada fase seja vivida, elaborada e ultrapassada”.
A criança é um ser em irradiação e por estar em fase de construção cognitiva e social, em constantes etapas distintivas, requer atenção especial, de cuidado e proteção.
O crime de abuso sexual infantil pode ocorrer dentro da família, por um pai, padrasto, irmão, tio ou outro parente; ou fora de casa, por exemplo, por um amigo, vizinho, professor ou qualquer pessoa estranha. Se praticado por pessoa que tenha um laço de proximidade, a criança certamente sente-se traída e abandonada, pois crianças tendem a confiar nos seus próximos, assim, quanto maior a proximidade, maior o sentimento de traição e abandono. (SANDERSON, 2005).
A vítima pode se reportar desamparada, inapta para receber carinho, afeição, amor e atenção, uma vez que são necessidades primordiais que carecem de realização a fim de se ter um desenvolvimento pleno, ou seja, natural e de acordo com a sua idade.
O abuso pode desencadear muitos sentimentos, pensamentos e comportamentos angustiantes. Aquela criança cuja essência e personalidade estão em construção, passa a não mais se enxergar de forma genuína, e tão pouco compreende ao que está sendo exposta. Não sabe que aqueles toques são abuso sexual, confundem abuso com carinho, se envergonham, sentem medo de serem punidas ou rejeitadas pelos pais ou cuidadores e ainda, sentem medo de ninguém acreditar em sua queixa.
A criança é maltratada em sua própria natureza, pois ela, como Mollon aduz (2000 apud SANDERSON, 2005, P. 168) “não é percebida como ela é. Sua identidade real está sendo atacada [...]”.
O abuso sexual faz a criança extraviar parte do que ela é, e após perdida a integridade pode ser árduo recuperar, uma vez que a criança se sentirá desordenada internamente, sendo incompetente para discernir qualquer coisa a respeito do ato, principalmente, o que é correto e o que é errado, o que é apropriado e o que é inapropriado. Dependendo da idade em que a criança foi exposta aos abusos sexuais, o ato pode modificar, sobretudo, o seu desenvolvimento neurológico.
Se o abuso ocorre durante períodos críticos de formação, quando o cérebro está sendo fisicamente moldado, isso induz a efeitos moleculares e neurobiológicos em cascata que, inevitavelmente, alteram o desenvolvimento neural. Maus-tratos em uma idade precoce podem ter efeitos negativos duradouros no desenvolvimento e na função do cérebro de uma criança. (TEICHER, 2002), apud SANDERSON (2005, p. 171).
Sanderson (2005), descreve que “os impactos causados pelo abuso têm reflexos danosos que geram sentimentos de indignidade, baixo autoestima, medo, embaraço, constrangimento, bloqueio, desconfiança, culpa e vergonha”.
O conjunto de tais piedades são capazes de transmutar a criança, tornando-a acanhada e com dificuldades de socializar com outras crianças.
O abuso tem a capacidade de destruir a esperança, destruir a autoimagem, destruir o que é bonito na vida. Pode ser tão devastador que o índice de tentativas de suicídio entre as vítimas equivale a 58% (cinquenta e oito por cento).
De acordo com a Academia Americana de Psiquiatria da Infância e Adolescência (2011, tradução nossa) o abuso sexual infantil pode desenvolver na criança comportamentos que devem servir como alerta:
· Interesse incomum em atividades sexuais ou evitamento de todas as coisas de natureza sexual;
· Problemas de sono ou pesadelos;
· Depressão ou afastamento de amigos ou familiares;
· Sedução;
· Declarações de que seus corpos estão sujos ou lesionados, ou medo de que haja algo de errado com eles na área genital;
· Recusa de ir à escola ou manifestar falta de concentração;
· Delinquência / problemas de conduta;
· Retração;
· Tornar-se alheia ou reprimida;
· Sentir medos inexplicáveis de determinados lugares ou pessoas;
· Aspectos do abuso sexual em desenhos, jogos, fantasias;
· Mudanças de personalidade;
· Agressividade incomum, ou
· Comportamento suicida.
Isoladamente, a criança que manifestar alguma dessas condutas, não necessariamente está sendo vítima de abuso sexual, mas o agrupamento dos referidos sinais de alerta, devem ser ponderados. Aos pais e cuidadores, cabe adotar medidas preventivas, tais como:
· Escutar a criança: se ela demonstrar ou disser que não gosta de um “tio(a)”, questione o motivo;
· Ensinar a criança que ninguém deve tocar em suas partes íntimas, bem como, ela não pode tocar nas partes íntimas de ninguém;
· Orientar a criança que ela sempre deve estar vestida quando for brincar com amigos e que ninguém deve tirar fotos ou filmar suas partes íntimas;
· Ensinar a criança a dizer “não”, caso alguém toque em suas partes íntimas e a não guardar segredo, caso ocorra;
· Dê liberdade para a criança escolher quem ela quer abraçar e beijar, não obrigue ela a fazer isso com alguém que ela não queira.
3 A OITIVA DA CRIANÇA VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL
Os agentes que incorrem na prática do referido crime precisam ser penalizados e o primeiro passo é avisar o crime de abuso sexual às autoridades competentes, com a finalidade de apurar doravante as investigações policiais e iniciado processo criminal.
A alegação de Bittencourt (1997, p. 62) aduz que:
Muitas pessoas têm dificuldade em comunicar possíveis casos de abuso sexual infantil às autoridades. No entanto, as consequências de não notificar podem ser fatais. Um outro fator que atrapalha a denúncia é a descrença nas possíveis soluções, pois, na prática, nem todos os casos são legalmente comprováveis em razão de não existir uma estrutura judicial e policial satisfatória, sob o ponto de vista da investigação.
Uma vez fundada a ação penal, instaura-se um momento sensível para a vítima, pois ela terá que discorrer sobre o ato de violação ao qual foi exposta para pessoas diferentes das quais ela está acostumada, na presença de outras pessoas diferentes, numa diligência que além de pesada e imprópria para a sua idade, é desconfortável.
A criança está em colocação oposta de desenvolvimento, sendo dever do Estado ofertar proteção e suporte quando vítima de violência sexual.
O início de um inquérito policial precisa ser uma das devolutivas do Estado no que diz respeito a proteção de sua integridade, contudo, deve ser realizado sempre em seu próprio benefício, pois a intenção é não lesar o seu desenvolvimento.
Moreira, Lavarello e Lemos (2009, p.106) compreendem que o judiciário deve adotar distintas formas de ritos processuais para adultos e crianças, visto sua conjuntura peculiar de desenvolvimento. Porém, afirmam que apesar da criança “se encontrar comprometida e afetada pela violência sexual não pode desconsiderar o seu direito à participação ativa nos processos, a ser ouvida e ter suas opiniões devidamente consideradas”.
O mundo do interrogatório sem dúvidas pode causar confusão na criança, causando sobretudo confusões em suas falas, ao desmentir o que havia dito antes, ratificando factíveis prejulgamentos sobre si. Sobre isso, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (CDC, 1989), da mesma forma o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/90) instituem, taxativamente, o direito de crianças serem ouvidas e ter suas opiniões validadas.
Insta observar que a criança fica obrigada a vários interrogatórios pelos mais diversos profissionais e instituições, até o momento processual chegar, tornando o processo ainda mais doloroso e sempre tendo sua fala colocada à prova.
A vulnerabilidade da fala da criança encontra-se no modo como é recepcionada pelos adultos, desde a exposição do abuso sexual para a família até a queixa oficial, para tanto, os trâmites judiciais deveriam buscar preservar a revitimização da criança, com a pluralidade de testemunhos.
4 A PALAVRA DA CRIANÇA VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL COMO PROVA
A palavra da criança, vítima de abuso sexual, na maioria das vezes, é a evidência mais relevante na denúncia de um abuso sexual, e, infelizmente, também, o único meio de prova.
A vítima e o acusado normalmente são as únicas testemunhas oculares em latente e a evidência física, inexistente quase sempre.
No processo penal, as provas, possuem princípios direcionadores específicos, nesse sentido, um de maior relevância é a busca da verdade real, reduzida pelo respeito que se deve ao indivíduo por trás da evidência, seja acusado ou vítima.
“Nesse sentido, objetiva o conforto existencial das pessoas, bem como protegê-las de sofrimentos evitáveis na esfera social” (CAPEZ; CHIMENTI; ROSA; SANTOS, 2005, p. 33).
Percebe-se que o estatuto jurídico visa garantir o respeito à dignidade humana. Em paralelo, o princípio da busca da verdade real faculta ao magistrado a autonomia para ordenar a produção de provas. Como explica Nucci (2007, p. 97), "o magistrado deve buscar provas, tanto quanto as partes, não se contentando com o que lhe é apresentado, simplesmente".
No que tange a classificação das provas, a mais utilizada na jurisprudência, de acordo com Aranha (2006, p. 23) “é a classificação realizada por Framarino Malatesta, que divide as provas em 3 (três) classes, de acordo com os fins especiais a que se destinam (MALATESTA, 2003, p. 125): ‘quanto ao objeto, quanto ao sujeito e quanto à forma’”.
· Quanto ao objeto da prova: refere-se à natureza objetiva da prova. Aranha (2006, p. 26-31) divide em fatos que não precisam ser provados e os que precisam ser provados. Os primeiros, por sua vez, dividem-se em: fatos intuitivos ou evidentes. Segundo expõe Barros apud Tourinho Filho (2007, p. 470), “a evidência se compõe de uma noção tão perfeita de uma verdade que dispensa toda e qualquer prova”; presunções legais; fatos inúteis; e, fatos notórios.
· Quanto ao sujeito da prova: explica Gomes (2005, p. 180) que “se refere ao sujeito ou coisa que é fonte da prova e divide-se em prova real e pessoal”. A prova real é o objeto que se representa por si só; a prova pessoal, sobrevém de uma consciência ativa.
· Quanto à forma da prova: “faz referência ao aspecto da forma na qual se apresenta, já que a afirmação de uma pessoa pode assumir várias formas pelas quais seu pensamento será exteriorizado” (MALATESTA, 2003, p. 333).
Por ser a mais falha na esfera do processo penal, a prova testemunhal é consagrada como a meretriz das provas. Ante a facilidade de distorção relacionada aos aspectos emocionais e sensoriais, principalmente advindos de uma criança, que tem a fragilidade presente em suas palavras, já que possui como agravante a ausência de procedimento específico para sua oitiva, contrariando, assim, o tratamento diferenciado preconizado pelo art. 227 da CF.
Tabajaski, Paiva e Visnievski (2010, p. 59) destacam que:
Nos casos em que a criança é submetida à violência sem vestígios, como em atos libidinosos diversos da conjunção carnal (não há lesões visíveis nem rompimento de hímen, ou resultado positivo de coleta de esperma), o relato da criança, nomeando e identificando o suposto agressor é considerado pelos operadores da justiça como importante prova, independente de, muitas vezes, ser a única.
Ante a natureza do crime cometido ocultamente, e por haver pouquíssimas ou nenhuma prova do ato, comprovar a materialidade do crime é tarefa árdua, restando o testemunho da criança como sendo o único eixo da acusação. Dessa forma, é absolutamente fundamental, a fala da criança.
De forma geral, a palavra da criança vítima de abuso sexual em juízo, deve ser concebida com cautela, sendo preciso conferir com outros elementos inseridos nos autos do processo, isto significa que, constituirá prova de valor quando comprovado pelo conjunto probatório. Porém, nos crimes sexuais, pela conjuntura que se consuma, sem a presença de outras testemunhas, a palavra da vítima possui especial relevância.
A palavra infantil tem pertinente valoração na formação da convicção dos entendimentos jurisprudenciais:
APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL E LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE. TRANSMISSÃO DE DOENÇA. HPV. FORMA QUALIFICADA DO CRIME. SENTENÇA CONDENATÓRIA. FRAGILIDADE PROBATÓRIA. PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. AUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVAS DEVIDAMENTE COMPROVADAS. APLICAÇÃO DA PENA. PROPORCIONALIDADE. PENA PECUNIÁRIA. NÃO INCIDÊNCIA. 1) Os crimes cometidos contra a dignidade sexual são, normalmente, cometidos à escondida, sem testemunha presencial, de sorte que a palavra da vítima assume especial relevo no contexto probatório, mormente quando amparada pelas provas dos autos. […] (STF – ARE: 1027330 AP – AMAPÁ 0000300-44.2013.8.02.0002, Relator, Min: ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 06/03017, Data de Publicação: DJe: 046 10/03/2017. Editado).
APELAÇÃO CRIME. ESTUPRO DE VULNERÁVEL (ATOS LIBIDINOSOS). CONDENAÇÃO. Mantida a condenação, diante do conjunto probatório, induvidoso em relação à ocorrência do delito e a autoria. PALAVRA DA VÍTIMA. CRIANÇA. VALOR PROBANTE. A palavra da vítima, ainda que se constitua ela de uma criança de cinco anos de idade, autoriza a condenação, notadamente quando se mostra uniforme e segura quanto à ocorrência do delito e sua autoria. (Apelação Crime Nº 70075258822, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: GENACÉIA DA SILVA ALBERTON, Julgado em 28/03/2018. Editado).
A valoração da palavra da criança vítima nos crimes sexuais justifica-se na interpretação da sua paridade com restantes elementos presente nos autos, instaurando uma sustentação probatória com coesão e coerência que tem que sobrelevar sobre suposta não confissão do réu.
Validar a palavra da vítima infantil não significa a não valoração das declarações do acusado, mas sim, o exame acautelado e cuidadoso dos autos, não existindo violação aos direitos do ofensor.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme visto, o trabalho apresentado cuidou de fazer a análise do valor da palavra da criança vítima de abuso sexual sob o enfoque penal e jurídico.
Diante de todo o exposto, ficou comprovado que inédita valoração conferida ao testemunho da criança vítima do abuso sexual não prejudica, de nenhuma forma, as garantias do acusado. Em virtude disso, a palavra da vítima deve ser analisada criteriosamente, com muita atenção a qualquer indício, principalmente quando tratar de criança, uma vez que a realidade pode ser camuflada com a fabulação induzida pela figura representativa do agressor.
Fundamental, por conseguinte, que haja por parte do julgador uma rigorosa análise do conjunto probatório, da qual descenda o entendimento das certezas processuais, verificando-se a necessidade de conceder especial valia ao depoimento da vítima, sempre com a finalidade obter, fundamentadamente, a justa responsabilização do acusado sua absolvição, se for o caso.
É importante esclarecer, que não se pretende, resguardar a asserção de que a criança estará sempre a narrar o fato tal como ocorreu, porém precaver os cuidados específicos devem ser tomados em sua oitiva, independente da fase processual, uma vez que refere-se a um ser humano dotado de condição característica, isto significa dizer que, merece um tratamento diferente de uma pessoa plena e civilmente capaz, que lhe garanta proteção de forma integral e precedência no atendimento, conforme previsão constitucional, especificada pelo estatuto da criança e do adolescente.
Sendo assim, o presente estudo aponta a necessidade emergente de compreensão dos profissionais que lidam com situações como as tratadas, referentes ao abuso sexual infantil, pretendendo, dessa forma, a produção de uma prova de qualidade, favorecendo o processo e o poder punitivo do estado, além da proteção integral ao menor.
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Universitária do Curso de Bacharelado em Direito pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA e auxiliar administrativa-jurídica.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: REIS, kamila lauriana da silva dos. O Valor da Palavra da Criança Vítima de Abuso Sexual como Prova Principal: Análise da Força Probatória da Palavra da Vítima Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 abr 2021, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56371/o-valor-da-palavra-da-criana-vtima-de-abuso-sexual-como-prova-principal-anlise-da-fora-probatria-da-palavra-da-vtima. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: LEONARDO DE SOUZA MARTINS
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