RESUMO: O referido tema foi escolhido para o presente artigo, pois mesmo após 132 (cento e trinta e dois) anos da abolição à escravidão, o Brasil ainda sofre com trabalho análogo à escravidão. Tal delito viola a dignidade da pessoa, retira o Direito da liberdade e assim fere o Estado Democrático de Direito. No mundo acadêmico do Direito pouco se fala sobre o referido tema, todavia, possui uma relevância na esfera constitucional, trabalhista e penal. Mostrando assim a importância do bem jurídico protegido, qual seja, a liberdade em sentido amplo. A proteção da liberdade tem como base jusnaturalismo, além dos ordenamentos jurídicos brasileiros, a liberdade é protegida internacionalmente, exemplo: pela Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Internacional do Trabalho (OIT). Logo tal tema se faz importante para analisar a tutela e cumprimento das garantias individuais que consta na Constituição Federal do Brasil de 1988 e no Direito Penal. Referente ao Direito Penal, é importante o tema pois esta ciência tutela apenas os bens mais importantes da sociedade brasileira, sendo assim a ultima ratio. Em virtude disso, o artigo visa analisar a bibliografia em Direito Penal para verificar a efetividade dele neste fato típico.
Palavras-Chave: Trabalho Análogo à Escravidão. Direito Penal. Liberdade de Fato. Aplicabilidade da norma penal.
Sumário: 1. Introdução - 2. Contexto Histórico da Escravidão e sua Atual Situação no Brasil: 2.1. Contexto Histórico da Escravidão até a Regularização dos Direitos Trabalhista; 2.2. Atual Situação do Trabalho Análogo à Escravidão no Brasil; 3. Atual Situação do Trabalho Análogo à Escravidão no Brasil; 4. Proteção Contra o Trabalho Análogo à Escravidão na Constituição e no Direito Internacional; 5. Tipificação do Trabalho Análogo à Escravidão no Código Penal Brasileiro e a sua Aplicabilidade no Brasil; 6. Conclusão; Referências.
1.INTRODUÇÃO
O trabalho análogo à escravidão é uma violação dos Direitos Humanos que assola o mundo, segundo historiadores este crime começou mais ou menos entre final da idade pré-histórica e início da idade média. Segundo dados da ONU, são 24,9 (vinte e quatro vírgula nove) milhões de pessoas em condição de trabalho análogo à escravidão no mundo. Já no Brasil, em 2020, foram 942 (novecentos e quarenta e duas) pessoas resgatadas de trabalho análogo à escravidão.
É importante ressaltar que o Brasil não reconhece a condição de escravidão ou escravidão moderna, sendo apenas reconhecido condição análogo à escravidão. O objeto jurídico protegido dessa ação é a liberdade em sentido amplo, a qual é tutelada no Brasil através dos tratados internacionais, Constituição Federal do Brasil, Código Penal e Consolidação das Leis Trabalhistas. Este trabalho refere-se especialmente ao Direito Penal Brasileiro.
O trabalho análogo à escravidão submete a vítima a situação de trabalho degradante e de humilhação, é caracterizado quando não há salário; quando há retenção da carteira de trabalho; quando submete a vítima à serviço sem ter qualquer equipamento de proteção individual; quando as vítimas são sequestradas e obrigadas a trabalhar e morar em lugares imundos, sem disponibilizar de alimentos ou água potável. Nesta circunstância, quando as vítimas recusam a fazer algo, sofrem sanções que muitas vezes levam à morte.
O presente artigo trata de uma pesquisa para verificar a eficácia da ferramenta jurídica do Direito Penal para o combate do trabalho análogo à escravidão. Apresentar-se-á assim o contexto histórico desse crime e os fatores que ajudam na sua prática.
2.CONTEXTO HISTÓRICO DA ESCRAVIDÃO E SUA ATUAL SITUAÇÃO NO BRASIL
2.1. CONTEXTO HISTÓRICO DA ESCRAVIDÃO ATÉ A REGULARIZAÇÃO DOS DIREITOS TRABALHISTAS
A palavra Trabalho possui origem latim tripalium ou trepalium, que era um instrumento de tortura que de três (tri) estaca de pau (palus), ao longo do tempo tal modalidade de tortura foi desaparecendo dando assim lugar a outros tipos, então a palavra tripalium ou trepalium foi ficando em alguns lugares com significado de tormento, agonia ou sofrimento. E por um bom tempo o trabalho foi algo vergonhoso e indigno para o “homem pensante”, como será explanado nos próximos parágrafos, portanto começaram a passar o exercício do trabalho para os escravos, já que eles não eram considerados humanos e assim aptos para esta “vergonha”.
Na idade média o que servia para fundamentar a escravidão eram ideias jurídicas da Roma, literaturas filosóficas e econômicas gregas e latinas. Para Aristóteles, alguns homens nasciam para serem senhores, já outros para serem escravo. A condição de escravo era designada pelo nascimento, ou seja, era algo inerente do próprio escravo. Este deveria contribuir para a sociedade com sua própria natureza, usando assim seu corpo para servir os senhores. Já para o filósofo Varrão, o escravo é considerado apenas um instrumento de trabalho.
Era frequente e comum que as leis que tratavam de animais tratassem também dos escravos, por exemplo a lex Aquilia, que estabeleceu a mesma pena para conduta de matar um escravo e a conduta de matar um animal. Essa situação é como se pegassem os direitos personalíssimos e colocassem no capítulo “Das Coisas” do Direito Civil brasileiro.
No período feudal, os servos moravam em propriedade dos senhores feudais, aqueles viviam de agricultura e pagavam um imposto a estes. Os servos não podiam sair da propriedade dos senhores sem autorização, logo não havia liberdade.
Na revolução industrial quando a população do campo começou a migrar para cidade em busca de emprego e melhores condições de vida, a consequência foi uma grande massa da população nas cidades fazendo com que houvesse grande mãos de obras e poucas oportunidades de emprego. Em vista a tudo isso, as condições proporcionadas nas empresas de trabalho eram totalmente indignas, não havia idade mínima para trabalhar, não havia salário mínimo, não havia segurança mínima, o horário de trabalho chegava a 16 horas, o único mínimo que havia era o valor que os chefes das indústrias tentavam gastar com os operários. As consequências disso foram diversas mortes e acidentes ocasionadas no labor.
Diante dessa situação começou a surgir manifestações dos trabalhadores para melhores condições de trabalho, em virtude disso, começou a surgir, de forma branda, as leis trabalhistas. Em 1802, na Inglaterra por inciativa do ministro Robert ´Peel, criou-se a “Moral and Health Act” que estabeleceu duração máxima de 12 (doze) horas e proibição de trabalho noturno, ambas modificações ocorreram na seara do trabalho infantil. Ressalta-se que mesmo diante de todo avanço do direito trabalhista ocorrido no mundo a partir de 1802, o Brasil somente aboliu a escravidão em 1888 por meio da Lei Áurea.
Em 1912 foi criado a Confederação Brasileira do Trabalho (CBT), realizado entre 7 e 15 de novembro, onde tratou de assuntos referentes à jornada de oito horas, trabalho semanal de seis dias, construção de casas para operários, indenização para acidentes de trabalho, limitação da jornada de trabalho para mulheres e menores de quatorze anos, contratos coletivos ao invés de contratos individuais, seguro obrigatório para os casos de doenças, pensão para velhice, fixação de salário mínimo, reforma dos impostos públicos e obrigatoriedade da instrução primária.
A primeira Constituição Federal do Brasil de 1934 abordou referente à liberdade sindical e instituiu o salário mínimo, jornada de trabalho de oito horas, repouso semanal, as férias anuais remuneradas e a indenização por dispensa sem justa causa.
A Constituição de 1937 manteve os direitos mencionados no parágrafo anterior. Em 1943 o presidente Getúlio Vargas, sancionou a Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT com vigências até os dias atuais, a qual unificou todas as leis trabalhistas vigentes na época em uma só lei. Seu objetivo foi regulamentar a relação de trabalho garantindo assim a eficácia de sua aplicação.
Mas foi na Constituição Federal de 1988 (CF/88) que houve um maior cuidado com os direitos trabalhistas, vejamos o comentário emanado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região publicado no jusbrasil no ano de 2013:
“Dentre os muitos avanços propostos pela Constituição Cidadã, como foi denominada, destaca-se a proteção contra a despedida arbitrária, ou sem justa causa; piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho prestado; licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de 120 dias, licença-paternidade; irredutibilidade salarial e limitação da jornada de trabalho para 8 horas diárias e 44 semanais. Destaque-se, também, a proibição de qualquer tipo de discriminação quanto a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência.”
Atualmente, no art. 1º, inciso IV, da CF/88, é elencado como uns dos fundamentos da República Federativa do Brasil os valores sociais do trabalho. E do art. 6º ao 11º encontra-se o capítulo denominado “Dos Direitos Sociais” que trata das relações trabalhistas. Nota-se que o trabalho não é mais visto como vergonha, sofrimento, tormento ou agonia, mas sim como um direito de cada indivíduo, havendo a devida regularização dessa relação pelo Estado.
2.2. ATUAL SITUAÇÃO DO TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO NO BRASIL
Em 2020 foram 942 (novecentos e quarenta e duas) pessoas resgatadas de trabalho análogo à escravidão no Brasil, sendo 580 (quinhentos e oitenta) pessoas na zona rural e 362 (trezentos e sessenta e dois) na zona urbana. Houve uma queda comparada com 2019 que foram resgatadas 1.130 (um mil, cento e trinta pessoas).
De 1995 a 2020 foram 55.712 (cinquenta e cinco mil, setecentas e doze) pessoas resgatadas de trabalho análogo à escravidão, sendo 43.234 (quarenta e três mil, duzentas e trinta e quatro) na zona rural e 12.478 (doze mil, quatrocentos e setenta e oito) na zona urbana. Minas Gerais tem o maior número de trabalho análogo à escravidão: com 29 (vinte e nove) vítimas resgatadas em 2020. Todos esses dados estão disponíveis no Painel de Informações e Estatística da Inspeção do Trabalho no Brasil, disponível em <https://sit.trabalho.gov.br/radar/#>.
No dia 08/12/2020, no município de Lucianópolis, interior de São Paulo, foram resgatados 18 (dezoitos) trabalhadores em situação análoga à escravidão, as vítimas eram oriundas de São Paulo, Sergipe e Piauí.
Um caso que ficou bastante conhecido foi da Madalena, que aos 8 (oito) anos até 46 (quarenta e seis) anos de idade, foi submetida à trabalho análogo à escravidão por uma família, perfazendo 38 (trinta e oito) anos. Maria das Graças Milagres Ribeiro, adotou ilegalmente a Madalena, a partir daí foi retirada da escola e começou a trabalhar em tarefas domésticas para a família Milagres Ribeiro. Após 24 (vinte e quatro) anos, a vítima começou a ser rejeitada pelo marido da Maria das Graças, o qual era agressivo, então a enviaram para o filho Dalton Ribeiro, como se serva fosse. Quando foi no dia 24/04/2020, Madalena Gordiano foi resgatada após denúncia dos vizinhos.
O quarto que ela vivia tinha menos de 3 (três) metros de comprimento por 2 (dois) de largura, abafado e sem ventilação. Começava a trabalhar a partir das 4 (quatro) horas da manhã, não tinha salário, férias, folgas, não usufruía de feriados ou de qualquer outra verba trabalhista. Era privada de se comunicar com os vizinhos, precisava fazer bilhetes e entregar escondido para estes, pedindo-lhes produtos básicos de higiene.
É importante relembrar também uma outra situação concreta de repercussão mundial de trabalho análogo à escravo no Pará, norte do Brasil: a Fazenda Brasil Verde versus Brasil, em que o Brasil foi o primeiro País condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos (órgão judicial cujo objetivo é aplicar e interpretar a Convenção Americana), a pagar a cada uma das 128 (cento e vinte e oito) vítimas resgatadas de trabalho análogo à escravidão na Fazenda Brasil Verde nos anos entre 1997 a 2002.
Esse processo durou na corte cerca de 3 (três) anos, já no Poder Judiciário do Brasil, o processo que tratou desse caso perdurou por cerca de 10 (dez) anos até que a Justiça Federal declarou extinto o processo em virtude de prescrição, saindo assim os responsáveis impunes, dando, portanto, ensejo para que ocorresse apreciação dessa situação na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Destaca-se que as denúncias ao Pastoral da Terra ocorreram a partir de 1988 e foram realizadas fiscalizações em 7 (sete) anos, que foram: 1989, 1992, 1993, 1997, 1999 e 2000.
O principal perfil de vítimas é de 75% (setenta e sete por cento) que possui ensino fundamental, 2,7% (dois virgula sete por cento) que completaram o 5º ano; referente aos gêneros: os homens são de 94,9% (noventa e quatro, virgula nove por cento), entre os de idade dos 19 (dezenove) aos 41 (quarenta e um) que são 93,2% (noventa e três por cento), dados retirados do Trabalho escravo em face do ordenamento jurídico brasileiro, da biblioteca digital da PUC-SP, disponível no < https://tede2.pucsp.br/handle/handle/21993> página 50.
As vítimas normalmente são convidadas para trabalhar em lugares longe de sua morada, lugares de difícil acesso e/ou rodeada da floresta e chegando nesses locais se deparam que foram enganadas. Nessas situações não é concedido direitos básicos como água, comida, horário de trabalho dentro dos ditames da lei, ou até mesmo equipamento de proteção individual, com isso qualquer acidente que não causaria danos grandes com o uso do EPI, pode levar à morte.
Além das vítimas serem obrigadas a trabalhar, tudo que eles usarem ou consumirem são anotados em um caderno pelos fazendeiros/empreiteiros e descontado no “salário”. No final do mês, há a ocorrência de uma dívida grande entre o trabalhador e o patrão, do que um salário. Essa espécie de trabalho análogo à escravidão se chama truck-system ou sistema do barracão.
Além disso, também são retidos os documentos pessoais das vítimas, se ainda tentarem fugir, o castigo se for pego, é a morte. Normalmente as vítimas são obrigadas a trabalhar 12 (dozes) horas por dia e 6 (seis) vezes por semana. Assim o autor do crime dessocializa e despersonaliza a vítima.
3.PROTEÇÃO CONTRA O TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO NA CONSTITUIÇÃO E DIREITO INTERNACIONAL
A Constituição Federal do Brasil de 1988, consagra como um dos seus princípios a Dignidade da Pessoa Humana, decorrendo ao longo dos seus artigos quais são os principais Direitos Inerentes à Dignidade Humana, vedando qualquer obrigação à pessoa humana senão em virtude de lei e garantindo um trabalho digno com justa remuneração.
No artigo 6º da Carta Magna diz que o trabalho é um Direito Social, além disso, no artigo 7º possui um rol explicativo dos Direitos dos Trabalhadores, sejam eles urbanos ou rurais. E no art. 170 consta a proteção e a valorização do trabalho com objetivo de assegurar uma vida digna a todos. É notório que a Carta Magna do Brasil protege o trabalhador de toda e qualquer violação de direito trabalhista, visando assim alcançar os objetivos nela prevista.
Quanto à Declaração Universal dos Direitos Humanos, esta assegura a liberdade humana. É previsto a proteção à dignidade da pessoa humana no art. I, proteção à liberdade nos arts. II, III, XVIII, XIX e XX, proibição da escravidão ou servidão - art. IV, proibição de tortura - art. V etc.
Verifica-se que a Declaração no art. I, garante a dignidade da pessoa pelo simples fato de ser uma pessoa humana, porém, ainda discorreu referente à dignidade da pessoa humana ao direito em viver em paz, poder se divertir, se expressar, se locomover, constituir uma família, possuir um trabalho e ter uma remuneração justa por isso, não ser submetido a tratamento desumano, independente de sua raça, sexo ou nacionalidade.
Ademais, o art. 4º da Declaração dispõe referente ao trabalho escravo ou análogo à escravo, garantindo que ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos. Nesse sentido, reflete uma proteção à humanidade, para que seja desenvolvido no mundo uma relação de trabalho saudável, proporcionando condição digna de trabalho e vida, buscando vedar a coisificação das pessoas, respeitando assim os direitos coletivos e individuais de cada pessoa.
4.TIPIFICAÇÃO DO TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO NO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO E A SUA APLICABILIDADE NO BRASIL
O Código Penal de 1940 previu no título das liberdades individuais o art. 149 que tipifica o crime de impor a alguém a condição análoga à de escravo. A escravidão atualmente é uma situação de Direito que o Brasil não reconhece, logo é considerado um fato inexistente no país, mas é reconhecida situações que se assemelham à escravidão, pois sua liberdade de direito ainda continua existindo, porém, a liberdade de fato é violada. Nesse sentido, o atual Código Penal Brasileiro tipifica a conduta de submeter pessoa à trabalho análogo à escravidão, no supramencionado artigo, tornando-se assim uma das ferramentas mais importante para o combate de tal prática no Brasil:
Art. 149 - Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Como visto, tal crime pode ser praticado de várias formas, quando realizado mediante submissão é caracterizado por duas situações: a primeira, quando a vítima não oferece resistência em virtude de imposição de violência, ameaça ou fraude; já a segunda, quando a vítima é submetida a trabalho até exaustão física sem qualquer intervalo.
Quando realizado mediante à sujeição a condições degradantes de trabalho: nesta situação ocorre na relação trabalhista, quando o empregado é obrigado a trabalhar em condições desumanas sem que haja a possibilidade de interrupção voluntária da relação.
Por fim, o crime pode ser praticado também mediante restrição, por qualquer meio, da locomoção do indivíduo em razão de dívida contraída com empregador ou preposto; acontece quando a vítima tem cerceamento de sua liberdade até o pagamento de dívida em face do patrão ou preposto, no truck-system/sistema de barracão.
No §1º, incisos I e II do art. 149, há as figuras equiparadas ao crime que quando praticadas, incorrem nas mesmas penas do caput do referido artigo. A primeira é o ato de cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho, podendo essa conduta ser realizada pelo empregador ou qualquer uma pessoa a mando dele; a vítima tem a vontade de sair, todavia, todos os meios de transporte estão retidos. Já a segunda, é manter em vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apoderar de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. Em ambas as condutas há dolo específico de manter a vítima no local de trabalho.
Este crime de impor o trabalho análogo à escravidão, trata-se de uma Ação Penal Pública Incondicionada, é doloso, não admite forma culposa e possui forma vinculada. Tem por objeto jurídico a liberdade em seu sentido amplo, status Libertatis, é um crime comum, permanente e permite tentativas, podendo a vítima ou autor ser qualquer pessoa, mas é causa de aumento de pena (pela metade) se a vítima for criança, adolescente ou for praticado por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem (parágrafo 2º, incisos I e II, art. 149, CP), possível o flagrante enquanto permanecer a submissão.
Ressalta-se que o dolo é a vontade consciente de submeter a vítima em seu poder, de maneira que tire a liberdade de fato dela.
Por muito tempo foi considerado crime de ação livre, ou seja, não havia condutas específicas para caracterizar o crime, sendo necessário análise do magistrado no caso concreto para verificar a existência ou inexistência do trabalho análogo à escravidão. Mas com advento da Lei 3.803/2003 foi tipificado taxativamente as condutas quais caracteriza submeter outrem ao trabalho análogo à escravidão, quais sejam: submeter outrem a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Desse modo o trabalho análogo à escravidão se apresenta de duas formas, qual seja: trabalho forçado e realizado em condições degradantes.
Sua consumação ocorre quando à vítima é reduzida à condição análoga à escravidão, ou seja, basta ocorrer qualquer um dos fatos descritos no parágrafo anterior. Já a tentativa é caracterizada quando emprega os meios necessário para sua consumação, mas por circunstâncias alheias a sua vontade não obtém êxito.
O Código Penal também prevê os crimes de atrair trabalhadores com promessas de trabalho ou qualquer outra forma fraudulenta com objetivo de levá-los para outro país, caracterizando a conduta tipificada no art. 206 do CPP, bem como, o ato de aliciar trabalhadores com objetivo de levá-los para outro local do território brasileiro, caracteriza a tipificação do art. 207 do CPP. Mas em ambos os casos a vontade consciente do agente é a emigração e migração respectivamente, não havendo o dolo de submeter o indivíduo em situações análogas à escravidão. Além disso para a consumação dos crimes descritos acima, não se faz necessária a prática de maus-tratos ou sofrimentos ao sujeito passivo (RJTJSP 39/286 e 39/386).
Ao passo que o trabalho análogo à escravidão caracteriza-se quando uma pessoa é coisificada e retiram de si a sua liberdade, sendo obrigada a trabalhar para aquele que o ameaça, sua mão de obra é retirada forçadamente.
A competência para processar e julgar crimes de redução análogo à escravidão, em regra, é da Justiça Estadual, salvo nos casos em que é denunciado junto com um dos crimes contra a organização do trabalho. Pois na segunda situação, viola direitos coletivos do trabalho, diferente do primeiro que viola direitos de uma pessoa ou um determinado grupo. Estando sujeito também ao procedimento ordinário em razão da pena máxima ser superior a quatro anos de pena privativa de liberdade (CPP, art. 394, § 1º, I).
O professor da instituição e co-fundador do Instituto Administração Judicial Aplicada, Carlos Hadda, realizou uma pesquisa em 1.464 (mil quatrocentos e sessenta e quatro) processos criminais e 432 (quatrocentos e trinta e duas) ações civis. Na esfera criminal, verificou que foram 2.679 (dois mil e seiscentos e setenta e nove) denunciados, sendo condenados apenas 122 (cento e vinte e dois), podendo ainda sofrer prescrição em virtude da demora dos procedimentos judiciais; 1.022 (mil e vinte e dois), ou seja, 46% dos acusados foram absolvidos por insuficiência de provas.
Os motivos das absolvições se dão em razão das dificuldades na comprovação do delito, ausência na comprovação do dolo e da grande demora na função judiciária. As teses mais usadas para absolvição é ausência de prova da restrição de liberdade, ausência da prova do dolo, ausência de ofensa à dignidade do trabalhador, entre outros. Os acordos, denominados de Termos de Ajustamentos de Conduta, realizados entre o Ministério Público e o empregador com a finalidade de deixar de responsabilizar criminalmente para cumprir determinados cumprimentos de exigência extrajudiciais, tem contribuído também para a não responsabilização criminal.
As ausências de provas para condenação decorrem também pela degradação da prova ao longo dos tempos, da dificuldade de provar o dolo e principalmente da complexidade dos processos quando há mais de 3 (três) réus que os tribunais têm para tramitar.
Diante do exposto, é possível afirmar que a impunidade na esfera criminal tem contribuído para realização do fato típico. Pois não basta apenas que os verbos do fato estejam tipificados com as devidas penas cominadas, se na seara processual não há trâmite processual com a devida eficácia para a sociedade.
5.CONCLUSÃO
Desse modo é possível afirmar que o Direito Penal possui uma grande relevância em relação ao combate em face do trabalho análogo à escravidão. Todavia, sua aplicabilidade nos processos ainda está fraca em virtude da deficiência do Estado em dirigir a máquina judiciária. Resultando em sensação de impunidade para sociedade, trazendo uma maior insegurança em relação ao papel estatal.
Mas enquanto o Estado não fornece um maior auxílio para o judiciário lidar com a alta demanda processual, indica-se algumas soluções:
Para que ocorra a efetividade do processo penal, referente aos crimes de trabalho análogo à escravidão, é necessário que se dê uma maior prioridade para julgamento, visto que muitas provas são perdidas ao longo do trâmite processual.
E nos casos de processos complexos, em virtude de haver mais de 2 (dois) réus, é necessário por parte do magistrado uma análise do caso concreto, e, constatando que os réus estão em fases processuais muito diferentes, ao ponto de prejudicar a efetividade no andamento do processo, que seja determinado o desmembramento dos autos processuais.
Por parte do custos legis, é preciso que venha tentar buscar meios que possam tornar cada vez mais eficaz a comprovação do dolo, para que a sentença não seja fundamentada na absolvição do acusado em virtude da ausência de dolo ou de outras provas. Um dos meios poderia ser a designação de um servidor para analisar os processos que tratam de trabalho análogo à escravidão a cada 3 (três) meses, verificando assim se o andamento processual está tendo celeridade.
Também é necessário tentar manter uma base de dados de endereço e telefone atualizado das testemunhas, para quando for necessário a oitiva, o mandado de intimação não retorne com ato negativo e assim o juízo deixe de ouvir elas.
Quantos aos possíveis laudos que possam comprovar o delito, é essencial que seja oficiado o instituto competente para realizar o laudo no local ou objeto do delito, pois caso ocorra demora nesse procedimento, pode acarretar a perda da comprovação. Desse modo, deve ser requerido a realização do laudo logo no inquérito policial, devendo ser cumprido logo de imediato, sendo esse fato mais um motivo para que se conceda prioridade processual.
Vê-se que são soluções baseadas em atos simples, porém sua aplicabilidade poderá dar uma maior efetividade aos processos criminais que julgam os crime de trabalho análogo à escravidão, ensejando uma resposta não só à sociedade quanto à segurança da efetividade da norma penal, como também, e principalmente, às vítimas.
“O trabalho análogo à escravidão viola a dignidade da pessoa, retira o Direito da liberdade e assim fere o Estado Democrático de Direito”. - Nayara Sá
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Acadêmica de Direito, antiga estagiária da Defensoria Pública de Manaus, atualmente estagiária do Tribunal de Justiça do Amazonas - 2º Tribunal do Júri.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NAYARA SANTOS DE Sá, . Trabalho análogo à escravidão em face do ordenamento jurídico penal brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 abr 2021, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56391/trabalho-anlogo-escravido-em-face-do-ordenamento-jurdico-penal-brasileiro. Acesso em: 27 nov 2024.
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