Resumo: A autora aborda a possibilidade do uso da Justiça Restaurativa, via o uso da conciliação e da mediação, para solução de conflitos envolvendo crianças e adolescentes, visando o atendimento e acolhimento dos menores de maneira integrada e complementar ao melhor interesse do menor e de sua formação social, pessoal e material.
PALAVRAS CHAVE: JUSTIÇA RESTAURATIVA. MEDIAÇÃO. AUTOCOMPOSIÇÃO. CRIANÇA. ADOLESCENTE.
Abstract: The author addresses the possibility of using Restorative Justice, through the use of conciliation and mediation, to resolve conflicts involving children and adolescents, aiming at the care and reception of minors in an integrated manner and complementing the best interests of the minor and his education social, personal and material.
KEYWORDS: RESTORATIVE JUSTICE. MEDIATION. SELF-COMPOSITION. CHILD. ADOLESCENTES.
1.DA JUSTIÇA RESTAURATIVA: BREVE HISTÓRICO
Os primeiros registros sobre Justiça Restaurativa que se tem registro surgiram nas culturas africana e anglo-saxã; sendo suas experiências replicadas com êxito em países como Canadá e Nova Zelândia.
No Brasil a Justiça Restaurativa é praticada a aproximadamente dez anos e se utiliza de metodologias da mediação, reunindo vítima e ofensor em um mesmo ambiente. O Conselho Nacional de Justiça – CNJ, através da Resolução nº 225/2016, tem por objetivo a consolidação da identidade, bem como os ditames de qualidade da Justiça Restaurativa no Poder Judiciário Brasileiro. Essa Resolução cumpre uma recomendação da Organização das Nações Unidas-ONU, Resolução nº 2002/12 do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas- ECOSOC, que orienta aos países integrantes a busca de meios consensuais, voluntários e mais avançados, capazes de alcançar a pacificação de conflitos oriundos ou resultantes de crimes e violência.
As práticas restaurativas consistem em intervenções entre autores de condutas delitivas e suas vítimas, na busca da conscientização do dano causado de forma a ser evitada a recidiva, bem como seja promovia a efetiva ressocialização do indivíduo na sociedade. Visa resguardar a segurança jurídica e física dos envolvidos, em busca de um entendimento que pacifique as várias dimensões do mesmo problema.
2. DA JUSTIÇA RESTAURATIVA APLICADA NO ÂMBITO DO ECA
A Justiça Restaurativa busca fornecer maior compreensão das causas periféricas do crime/delito à comunidade no qual está inserida, assim como promover o bem estar da comunidade e prevenir a incidência de novos delitos/crimes.
Um de seus processos aplicados na Justiça Restaurativa é a mediação vítima‑ofensor, também chamada de MVO; convém destacar que tal modelo não almeja substituir o tradicional modelo penal retributivo, haja vista que tal ferramenta está voltada a complementar o ordenamento processual penal para, em circunstâncias específicas, possa proporcionar maior efetividade ao jurisdicionado.
Autocomposição possui técnicas próprias que quando desconsideradas, em regra, proporcionam significativas consequências como a revitimização, buscando a cicatrização dos efeitos do crime, bem como a responsabilização pela conduta ofensiva.
A gestão do conflito consiste em identificá-lo, compreendê-lo, interpretá-lo e utilizá-lo para benefício de cada indivíduo, das famílias, dos grupos sociais, das Organizações e, enfim, da sociedade. (FIORELLI; FIORELLI; MALHADAS JUNIOR, 2008)
Cumpre ressaltar que o conflito é uma oportunidade de crescimento e amadurecimento nas relações sociais da criança e do adolescente. O conflito pode ser encarado como uma oportunidade, qual seja, nos ensina perspectiva do outro, ensinando a respeitar as diferenças e mostrando a eles que percepções diferentes das suas.
A busca pelo consenso é o primeiro passo antes de seguir pelo caminho das soluções heterocompositivas, que na maioria das vezes são mais caras e complexas. Os mecanismos de autocomposição incentivando e facilitando o diálogo não só entre as partes, mas entre os todos os envolvidos na lide, buscando- se a efetiva pacificação social do conflito.
A Justiça Restaurativa visa a integração dos indivíduos, ou seja, que todos nós possamos viver em sociedade, interligados de alguma forma, como se estivéssemos em um grande círculo, cada qual com sua individualidade, mas apresentando igual importância para o desenvolvimento do todo e influenciando diretamente os rumos da coletividade. Logo, não é possível excluir qualquer pessoa, círculo social, quando vem à tona um conflito, mas convém trabalhar as responsabilidades coletivas e individuais para que ela retorne à convivência comunitária da melhor forma possível.
Partindo-se da premissa acima, o professor André Gomma de Azevedo afirma que as políticas públicas voltadas para a comunidade infanto-juvenil devem se voltar a um processo escuta ativa, vislumbrando-se o contexto no qual estes jovens estão inseridos socialmente, buscando informações para a sua implementação. Assim, as políticas públicas de enfrentamento e de tratamento voltadas à infância e à juventude possuem diversas especificidades, possibilitando aplicabilidade desse sistema normativo direcionado da criança e do adolescente, sempre visando o melhor interesse da criança e do adolescente em sua formação social, pessoal e material, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA.
A adolescência é também um momento de conflito; conflitos extrínsecos e intrínsecos aos adolescentes, culminando em conflitos com a família, na escola e no grupo de amigos. Nesse contexto é importante mencionar que a palavra conflito tem sua origem no conceito de choque, de contrapor ideias, palavras, ideologias ou armas. Conflito é o enfrentamento de duas vontades no momento em que uma tem a pretensão de prevalecer à outra com a expectativa de lhe estabelecer a sua solução. Principalmente na sociedade democrática, ele é inevitável e fortificante; deve-se encará-lo como um fato, priorizando a busca de meios autônomos para administrá-lo (MORAIS; SPENGLER, 2008).
Do art. 3º do ECA extrai-se que crianças e adolescentes gozam dos mesmos direitos dos adultos, bem como que estas possuem direitos próprios, em razão da sua condição de pessoa em desenvolvimento. Ressalta-se que a proteção à infância, por estar inserida nos direitos sociais, inseridos na Constituição Federal/1988- CF/88, é um direito fundamental de segunda geração, portanto, impõe ao Estado uma obrigação de fazer – direitos prestacionais.
O ECA deve ser interpretado, sempre, seguindo alguns critérios definidos, expressamente, em seu art. 6º, quais sejam: a) fins sociais a que ele se destina: considerar a criança e adolescente como sujeito de direitos na implementação de políticas públicas; b) exigências do bem comum: visando sempre a razoabilidade; c) direitos individuais e coletivos: nos termos do art. 5º da CF/88; d) condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento: essência da doutrina da proteção integral e a garantir dignidade à pessoa humana.
De acordo com o professor Daniel Carnacchione “o princípio da dignidade da pessoa humana também é ressaltado no capítulo da Constituição Federal referente à família, à criança, ao adolescente e ao idoso. (...) Essa dignidade está relacionada a valores do espírito e a condições materiais de substência, o que neste último caso, é denominado pelos alemães de “mínimo existencial”, ou seja, o mínimo necessário e indispensável para que a pessoa tenha uma vida digna”.
Visando a garantia do melhor interesse de crianças e adolescentes, no atual cenário jurídico, há um movimento de fortalecimento das práticas consensuais de conflito; principalmente no âmbito informal e pré-processual, como resposta da sociedade a crise que assola o Poder Judiciário, com sua incapacidade de suprir as demandas crescentes da sociedade moderna. Assim, o Poder Judiciário prioriza cada vez mais os métodos autocompositivos de resolução de conflitos, visando uma justiça menos formal, porém mais eficiente e menos onerosa.
O próprio Código de Processo Civil de 2015 (Lei nº 13.105/2015) apresenta uma série de indicações nesse sentido como o conciliador e o mediador sendo auxiliares da justiça (art. 149 CPC) e a criação de centros judiciários de solução consensual de conflitos (art. 165 CPC). A Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015) e o NCPC prestigiaram a consensualização no âmbito do Poder Judiciário, preconizada com o Movimento pela Conciliação e com a Resolução nº. 125/10 do CNJ.
A Justiça Restaurativa traz uma verdadeira mudança de paradigma, daquele modelo retributivo (punitivo) para o restaurativo; neste último modelo o foco central são os danos e consequentes necessidades, tanto da vítima como também do ofensor e da comunidade; trata de obrigações decorrentes desses prejuízos de ordem material e moral advindas destes conflitos. Para tanto, vale‑se de procedimentos inclusivos e cooperativos, nos quais serão envolvidos todos aqueles direta ou indiretamente atingidos, de forma a corrigir os caminhos que nasceram errados (ZEHR, 2008).
A Justiça Restaurativa busca retomar os valores de justiça e ética em todas as dimensões da convivência – relacional, institucional e social –, a partir de uma série de ações, em três diferentes focos, coordenadas e interligadas pelos princípios comuns da humanidade, da compreensão, da reflexão, da construção de novas atitudes, da corresponsabilidade, do atendimento de necessidades e da paz.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema infância e juventude, sob o enfoque jurídico, é um tema de árido, dada as peculiaridades atinentes à matéria. No entanto clama por um olhar muito mais social do que positivista; assim, sopesa -lhe imputar uma análise diferenciada de como se deve lidar com as crianças e adolescentes em situação de conflito com a lei ou em situação de vulnerabilidade.
Em que pese as ponderações quanto à participação de crianças e adolescentes no processo de mediação, a Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015) e a Resolução nº 125/10 do CNJ buscam proporcionar um melhor deslinde dos conflitos pela via da autocomposição. Logo, enquanto política pública, a Justiça Restaurativa compreende que crianças e adolescentes são capazes de enfrentar os conflitos, via o uso das técnicas e ferramentas adequadas, a partir daquele microssistema social em que estão inseridos, amparados pela família e pela comunidade. Trata-se, então, de proteger os interesses de cada um, com base no equilíbrio necessário ao procedimento de mediação, reforçando – a partir da subjetividade e da cultura da paz a comunidade em geral –, empoderando jovens, adultos e crianças, de modo a revitalizar e solidificar os laços existentes.
Em síntese, a Justiça Restaurativa resgata o justo e o ético nas relações, nas instituições e na sociedade. Dessa forma, além de remediar o ato de transgressão, a Justiça Restaurativa busca, também, prevenir e evitar que a violência nasça ou se repita. A Justiça Restaurativa não se resume a um procedimento especial voltado a resolver os litígios, apesar de compreender uma gama deles, mas também como política pública de prevenção social e re-harmonização das relações e dos seus indivíduos.
Ressalte-se que as famílias, comunidade e Poder Público são convidados a escutar e a compreender as circunstâncias e omissões que atuaram como agentes de mudança para que a transgressão viesse à tona, assumindo a sua corresponsabilidade e, assim, garantindo suporte para a construção de novos caminhos e de novas realidades, tanto para aquelas pessoas ali implicadas, como para tantas outras que convivem no seio social. Tudo de forma a promover a conscientização e a responsabilização como orientadores para uma outra cultura de convivência e pela busca da pacificação social.
REFERÊNCIAS BLIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, André Gomma de, Autocomposição e Processos Construtivos: uma breve análise de projetos‑piloto de mediação forense e alguns de seus resultados in AZEVEDO, André Gomma de (org.), Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação– Vol. 3, Brasília: Ed. Grupos de Pesquisa, 2004.
BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ L8069.htm>. Acesso em: 29 de junho de 2020.
______. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil Brasileiro. Brasília, Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm >. Acesso em: 29 de junho de 2020.
______. Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012, Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12594.htm >. Acesso em: 29 de junho de 2020.
CARNACCHIONI, Daniel. Manual de Direito Civil- Volume Único. 3ª edição- Salvador. Editora Juspodivm, 2020.
CNJ – CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Política Nacional de Justiça Restaurativa. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/06/8e6cf55c06c5593974bfb8803a8697f3.pdf. Acesso em: 30 de junho de 2020.
CNJ - CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução CNJ n.225 de 31 de maio de 2016. Dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3127> Acesso em: 5 jun. de 2020.
FIORELLI, José Osmir; FIORELLI, Maria Rosa; MALHADAS JUNIOR, Marcos Julio Olivé. Mediação e solução de conflitos: teoria e prática. São Paulo: Atlas, 2008.
MORAIS, José Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativa à jurisdição! 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
MUMME, Mônica Maria Ribeiro. Justiça Restaurativa e o Polo Irradiador, p. 01. Texto apresentado no World Congress on Juvenile Justice, ocorrido em Genebra, Suíça, de 26 a 30 de janeiro de 2015, evento realizado pela Terre des hommes Foundation em parceria com o Governo Suíço, que contou com a participação de aproximadamente 900 pessoas, provenientes de cerca de 80 países.
ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre crime e justiça. São Paulo: Editora Palas Athena, 2008.
Servidora do TJDFT. Bacharel em Direito e em Administração. Especialista em Direito Público e Direitos Indisponíveis. Conciliador e Mediadora no TJDFT. Aluna da Escola da Magistratura TJDFT.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, MAGDA FERNANDA XAVIER DA. Justiça restaurativa no âmbito da Vara da Infância e Juventude Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 maio 2021, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56453/justia-restaurativa-no-mbito-da-vara-da-infncia-e-juventude. Acesso em: 22 nov 2024.
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