ADEMIR GASQUES SANCHES
(orientador)
RESUMO: O universo da drogadição, ainda que ilusoriamente envolto numa profunda sensação de prazer, é um universo de dor, institucionalizado no sistema penal. O objetivo deste trabalho é analisar a questão das políticas públicas que tratam da criminalização do uso de drogas no Brasil. Em 1976, a lei 6.368, consolidou a política belicista de guerra às drogas no Brasil, listar as ações criminalizadas, assumindo a legislação especial a responsabilidade por criminalizar as condutas relacionadas ao tráfico e uso de drogas. Com algumas alterações não muito expressivas, a lei de 1976 vigorou até 2006, quando foi substituída pela Lei 11.343/06. A nova lei trazia um modelo mais preventivo do que repressivo, mas manteve diversos aspectos da legislação de 1976 e aumentou a repressão proibicionista, surgindo de um amplo debate sobre a efetividade do combate as drogas a nova legislação se apresentava como atual e preocupada com o excesso de punitivismo estatal em relação à política de drogas adotada pelo país. A nova lei tinha como objetivo separar de uma vez por todas, no texto penal, as figuras do traficante e do usuário de drogas. A diferença era evidente, inclusive pelo posicionamento da tipificação dentro do texto legal. O trabalho foi desenvolvido por meio de revisão de literatura, com consulta a livros e legislação pertinente à temática.
Palavras-chave: Drogadição. Criminalidade. Legislação.
ABSTRACT: The world of drug addiction, albeit illusively wrapped in a deep sense of pleasure, is a universe of pain, institutionalized in the penal system. The aim of this paper is to analyze the issue of public policies that address the criminalization of drug use in Brazil. In 1976, law 6,368, consolidated the warmongering policy of war on drugs in Brazil, listing criminalized actions, with special legislation taking responsibility for criminalizing conduct related to drug trafficking and use. With some not very significant changes, the 1976 law was in force until 2006, when it was replaced by Law 11.343 / 06. The new law had a more preventive than repressive model, but maintained several aspects of the 1976 legislation and increased the prohibitionist repression, arising from a wide debate on the effectiveness of the fight against drugs. The new legislation was presented as current and concerned with excess of state punitivism in relation to the drug policy adopted by the country. The new law aimed to separate, once and for all, in the penal text, the figures of the drug dealer and drug user. The difference was evident, including the positioning of the typification within the legal text. The work was developed through literature review, with consultation of books and legislation relevant to the theme.
Keywords: Drug addiction. Crime. Legislation.
Sumário: 1. Introdução. 2. Histórico da legislação de Drogas no Brasil. 3. Aspectos Centrais da Transnacionalização da Política de Drogas no Brasil. 4. Caracterização da Lei de Drogas. 5. A Questão da Distinção entre usuário e o traficante. 6. A Questão da Inconstitucionalidade do Art. 28 da Lei de Drogas. 7. Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A política criminal de drogas, desde o ponto de vista dos processos de criminalização, de sua estruturação dogmática e da operacionalidade das agências repressivas, define formas de repressão e de gestão do sistema penal nacional.
Dessa forma, pode-se afirmar que a política criminal de drogas assumiu o papel significativo de definição de práticas de punitividade, o que se intensifica com a alteração na legislação sobre a matéria em 2006, a Lei 11.343/06.
O punitivismo tem sido muito aplicado no âmbito das políticas penais, que são direcionadas para grupos específicos de pessoas, aquelas que não se enquadram na visão do mercado, que são consideradas inferiores.
Assim, pude-se observar que as políticas penais são orientadas para o encarceramento de pobres, em especial negros pobres e que o carro chefe dessa política de punição da pobreza e racial é a Guerra às Drogas. Essa guerra, que é direcionada às pessoas e não às drogas tem sido o principal discurso político a favor do encarceramento, em especial desde a década de 1970, até os dias de hoje.
A Guerra às Drogas, que serve ao punitivismo penal, teve início nas primeiras Guerras do ópio e foi se construindo gradativamente ao passo que as grandes nações imperialistas foram ganhando espaço no comércio internacional, em especial os Estados Unidos da América, que capitaneou a política de Guerra às Drogas mundial.
O Brasil acabou comprando para si essa política, sem nunca ter construído um pensamento crítico em relação ao consumo de drogas no país, isso fica claro quando observamos que o Brasil participou de inúmeras convenções internacionais de controle da produção e venda de ópio, sem nunca ter sequer notícia de consumo de ópio no país.
Assim, o Brasil foi construindo sua política anti-drogas, baseada no discurso punitivista de que as drogas são as grandes inimigas da sociedade.
Em 1976 promulgou uma de suas mais importantes legislações de combate às drogas, lei que previa uma pena de três a cinco anos para quem se enquadrasse no crime de tráfico de drogas. Lei 6.368/76 colocara de vez o Brasil na Guerra às Drogas, e fomentava o encarceramento de quem fosse surpreendido com qualquer substância proibida.
Porém, o grande marco da legislação de drogas no Brasil foi a Lei 11.343/06, a lei que surgiu com elogios de grande parte dos intelectuais e estudiosos das questões penitenciárias no Brasil, porque separava as figuras do traficante e do usuário. Punia duramente o traficante, afinal a Guerra às Drogas não interrompe seu curso, mas abrandava as punições para o usuário, que era visto como uma vítima do criminoso e deveria ser tratado por conta de sua dependência química.
Muito embora tenha sido recebida com entusiasmo pelos ativistas do desencarceramento, a lei teve o efeito reverso: aumentou em 300% o número de encarcerados por tráfico de drogas no país de 2005 a 2016.
Esse aumento exponencial se dá pelo aspecto subjetivo que a lei trouxe ao tipificar as figuras do traficante e do usuário, deixando a cargo da autoridade policial, de forma subjetiva, enquadrar o abordado no crime de tráfico de drogas ou de posse para consumo pessoal.
Essa subjetividade da lei ultrapassa o poder do policial nas ruas e replica esse julgamento, por vezes eivado de preconceitos, nas delegacias e nas salas de audiência de todo país.
Esse imaginário punitivista e a subjetividade dos tipos penais da Lei 11.343/06 foram grandes responsáveis pelo aumento vertiginoso da população carcerária brasileira, que atualmente é a terceira maior do mundo com 726.712 pessoas encarceradas, 174.216 delas enquadradas no tipo penal de tráfico de drogas.
Portanto, que a subjetividade da Lei 11.343/06 é uma das grandes responsáveis pelo encarceramento em massa no país, sendo constantemente utilizada a favor do punitivismo estatal.
É urgente um debate sério e incisivo sobre a atual legislação de drogas no Brasil, em especial sobre a forma subjetiva de tipificação, que perpetua preconceitos e encarcera nossos jovens, em sua maioria negros e pobres.
Necessário também um debate sério em relação ao consumo de entorpecentes, e da maneira que o Estado deve tratar os dependentes químicos, tirando a dependência química da esfera penal e transferindo-a para a rede de apoio de assistência social e de saúde.
Só assim conseguiremos combater o encarceramento em massa, que traz prejuízos imensuráveis para sociedade brasileira, como por exemplo, o aumento da violência, o fortalecimento das organizações criminosas que atuam dentro dos presídios, e o próprio aumento do consumo de drogas no país.
2 HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO DE DROGAS NO BRASIL
A criminalização do uso, porte e comércio de substâncias entorpecentes no Brasil aparece quando da instituição das Ordenações Filipinas.
O Código Penal Brasileiro do Império (1830) nada mencionava sobre a proibição do consumo ou comércio de entorpecentes, a criminalização será retomada na Codificação da República (CARVALHO, 2016).
Com a edição do Código de 1890, passou-se a regulamentar os crimes contra a saúde pública, compreensão que materializou no Título III da Parte Especial (Dos Crimes contra a Tranquilidade Pública).
Juntamente com a incriminação do exercício irregular da medicina (art. 156), da prática de magia e do espiritismo (art. 157), do curandeirismo (art. 158), do emprego de medicamentos alterados (art. 160), do envenenamento das fontes públicas (art. 161), da corrupção da água potável (art. 162), da alteração de substâncias destinadas à alimentação (art. 163) e da exposição de alimentos alterados ou falsificados (art. 164), o art. 159 previa como delito a questão da exposição à venda, ou administração de substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as formalidades prescritas nos regulamentos sanitários, submetendo o infrator à pena de multa (CARVALHO, 2016).
Cabe ressaltar que no início do século XX o aumento do consumo de ópio e haxixe, sobretudo nos círculos intelectuais e na aristocracia urbana, incentiva a edição de novos regulamentos sobre o uso e a venda de substâncias psicotrópicas. Com a Consolidação das Leis Penais em 1932, ocorre nova disciplina da matéria, no sentido da densificação e da complexificação das condutas contra a saúde pública. O caput do art. 159 do Código de 1890 é alterado, sendo acrescentados doze parágrafos. Em matéria sancionatória, sancionatória, à originária (e exclusiva) pena de multa é acrescentada a prisão celular (CARVALHO, 2016).
A pluralidade de verbos nas incriminações, a substituição do termo substâncias venenosas por substâncias entorpecentes, a previsão de penas carcerárias e a determinação das formalidades de venda e subministração ao Departamento Nacional de Saúde Pública passam a delinear novo modelo de gestão repressiva, o qual encontrará nos Decretos 780/36 e 2.953/38 o primeiro grande impulso na luta contra as drogas no Brasil.
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que, embora sejam encontrados resquícios de criminalização das drogas ao longo da história legislativa brasileira, somente a partir década de 1940 é que se pode verificar o surgimento de política proibicionista sistematizada. As políticas de controle (das drogas) são estruturadas com a criação de sistemas punitivos autônomos que apresentam relativa coerência discursiva, isto é, modelos criados objetivando demandas específicas e com processos de seleção (criminalização primária) e incidência dos aparatos repressivos (criminalização secundária) regulados com independência de outros tipos de delito (CARVALHO, 2016).
No caso da política criminal de drogas no Brasil, a formação do sistema repressivo ocorre quando da autonomização das leis criminalizadoras (Decretos 780/36 e 2.953/38) e o ingresso do país no modelo internacional de controle (Decreto-Lei 891/38). A edição do Decreto-Lei 891/38, elaborado de acordo com as disposições da Convenção de Genebra de 1936, regulamenta questões relativas à produção, ao tráfico e ao consumo, e, ao cumprir as recomendações partilhadas, proíbe inúmeras substâncias consideradas entorpecentes (BRASIL, 1938).
Com a publicação do Código Penal pelo Decreto-Lei 2.848/40, a matéria é recodificada sob a epígrafe de comércio clandestino ou facilitação de uso de entorpecentes, cuja previsão se encontra descrita no art. 281, que destaca a necessidade de importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou, de qualquer maneira, entregar ao consumo substância entorpecente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (BRASIL, 1940).
A característica marcante do Código Penal de 1940 é a tentativa, a partir do ensaio da Consolidação das Leis Penais na década de 1930, de preservar as hipóteses de criminalização junto às regras gerais de interpretação e de aplicação da lei codificada.
No entanto, a partir do Decreto-Lei 4.720/42 (que dispõe sobre o cultivo), e com a publicação da Lei 4.451/64 (que introduz ao art. 281a ação de plantar), se inicia na legislação pátria[1] amplo processo de descodificação, cujas consequências serão drásticas para o (des)controle da sistematicidade da matéria criminal (dogmática jurídico-penal) (HAMILTON, 2019).
A década de 1950 fomenta o primeiro discurso relativamente coeso sobre as drogas ilegais e a necessidade do seu controle repressivo. Em função do consumo de drogas, sobretudo do ópio, até esta década, estar restrito a grupos considerados desviantes, as explicações sociológicas em termos de subcultura identificam os usuários como devassos, derivando dessa concepção discurso oficial que pode ser denominado de discurso ético-jurídico, o qual, não obstante potencializar leis penais repressivas, criava o estereótipo moral do consumidor.
O principal mecanismo de divulgação do discurso ético-jurídico, em nível internacional, será o Protocolo para Regulamentar o Cultivo de Papoula e o Comércio de Ópio, promulgado em Nova Iorque (1953). Contudo, o ingresso definitivo do Brasil no cenário internacional de combate às drogas ocorrerá somente após a instauração da Ditadura Militar, com a aprovação e promulgação da Convenção Única sobre Entorpecentes pelo Decreto 54.216/64, subscrito por Castello Branco (BRASIL, 1964).
3 ASPECTOS CENTRAIS DA TRANSNACIONALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE DROGAS NO BRASIL
Com a popularização do consumo da maconha e do LSD durante a década de 1960, mormente pelo fato de estar vinculado à contracultura e aos movimentos de contestação, o uso de entorpecentes aparece como instrumento de protesto contra as políticas belicistas e armamentistas, criando as primeiras dificuldades às agências de controle penal. Associado às posturas reivindicatórias e libertárias, o uso de drogas ilícitas compõe, junto com outros elementos da cultura (música, literatura, artes plásticas, cinema, vestuário, alimentação, sexualidade), o quadro de manifestações estéticas das políticas de ruptura (CARVALHO, 2016).
Contrariamente ao que aconteceu nas décadas anteriores, o consumo de drogas ganha o espaço público, aumentando sua visibilidade e, consequentemente, gerando o pânico moral que deflagrará intensa produção legislativa em matéria penal. Neste quadro, campanhas idealizadas pelos empresários morais e por movimentos sociais repressivistas aliadas aos meios de comunicação justificarão os primeiros passos para a transnacionalização do controle sobre os entorpecentes (HAMILTON, 2019).
A Convenção Única sobre Estupefacientes, aprovada em Nova Iorque em 1961, é reflexo imediato desta realidade. A globalização da repressão às drogas se insere no projeto de transnacionalização do controle social, cuja finalidade é reduzir as fronteiras nacionais para o combate à criminalidade.
Como em todo processo de universalização cultural e/ou econômico, os argumentos centrais para a repressão da delinquência passam a ser invocados de forma autônoma e distante das especificidades locais. É criado o incipiente momento de criação de instrumentos totalizantes de repressão, o modelo médico-sanitário-jurídico de controle dos sujeitos envolvidos com drogas, fundado em duplo discurso que estabelecerá a ideologia de diferenciação (CARVALHO, 2016).
A principal característica deste discurso é traçar nítida distinção entre consumidor e traficante, ou seja, entre doente e delinquente, respectivamente. Assim, sobre os culpados (traficantes) recairia o discurso jurídico-penal do qual se extrai o estereótipo do criminoso corruptor da moral e da saúde pública.
Sobre o consumidor incidiria o discurso médico-psiquiátrico consolidado pela perspectiva sanitarista em voga na década de 1950, que difunde o estereótipo da dependência, o problema da droga se apresentava, na década de 1960.
O combate à droga, exigia ação conjunta e universal, orientada por princípios idênticos e objetivos comuns, devendo ser projetada política internacional de controle que viesse a substituir os tratados existentes sobre entorpecentes.
A ação contra o tráfico e o tratamento dos toxicômanos solidificam o discurso fragmentador. Não obstante o processo de demonização da droga em face da consolidação da ideologia da diferenciação, pode ser visualizado o uso político dos entorpecentes pelas agências repressivas através da nominação de novos inimigos.
Com a adequação das normas internas brasileiras aos compromissos internacionais de repressão, é editado o Decreto-Lei 159/67, que iguala aos entorpecentes as substâncias capazes de determinar dependência física e/ou psíquica, sendo que nesta matéria, o Brasil foi o segundo país do mundo a enfrentar o problema, considerando tão nocivo quanto o uso de entorpecentes o uso, por exemplo, de anfetamínicos ou dos alucinógenos (CARVALHO, 2016).
Substancial modificação acontece com a publicação do Decreto-Lei 385/68. O dispositivo do art. 281 do Código Penal, em decorrência do princípio da taxatividade, proporcionava a punição exclusiva do comerciante de drogas, visto que o entendimento dado pelo Supremo Tribunal Federal era o da não abrangência dos consumidores. A descriminalização (judicial) do uso, porém, gerava situação que suscitava preocupações no âmbito da repressão (CARVALHO, 2016).
Assim, contrariando a orientação internacional e rompendo com o discurso de diferenciação, o Decreto-Lei 385/68 modifica o art. 281 do Código Penal, criminalizando usuário com pena idêntica àquela imposta ao traficante. Com a inclusão de novo parágrafo, há previsão de que “nas mesmas penas incorre quem ilegalmente: traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.
Após três anos de vigência do Decreto-Lei 385/68, a Lei 5.726/71 adequa o sistema repressivo brasileiro de drogas às orientações internacionais, marcando, definitivamente, a descodificação da matéria. A Lei 5.726/71 redefine as hipóteses de criminalização e modifica o rito processual, inovando na técnica de repressão aos estupefacientes.
Todavia o fato de não mais considerar o dependente como criminoso escondia faceta perversa da Lei, pois continuava a identificar o usuário ao traficante, impondo pena privativa de liberdade de 1 a 6 anos, importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor a venda ou oferecer, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar ou ministrar, ou entregar de qualquer forma ao consumo substância entorpecente ou que determine dependência (HAMILTON, 2019).
A Lei 5.726/71 deixou a desejar porque quando todos esperavam que o tratamento punitivo para o consumidor da droga, que a trouxesse consigo, desaparecesse ou fosse bem menor do que o dispensado ao traficante – apenas para justificar a imposição da medida de segurança, ambos continuaram a ter idêntico apenamento. E agora, com pena ainda maior: reclusão de 1 (um) a 6 (seis) anos, e multa.
A legislação preserva o discurso médico-jurídico da década de 1960 com a identificação do usuário como dependente (estereótipo da dependência) e do traficante como delinquente (estereótipo criminoso). Apesar de trabalhar com esta simplificação da realidade, desde perspectiva distorcida e maniqueísta que operará a dicotomização das práticas punitivas, a Lei 5.726/71 avança em relação ao Decreto-Lei 385/68, iniciando o processo de alteração do modelo repressivo que se consolidará na Lei 6.368/76 e atingirá o ápice com a Lei 11.343/06 (CARVALHO, 2016).
4 CARACTERIZAÇÃO DA LEI DE DROGAS BRASILEIRA
A Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006 surge de amplo debate sobre a efetividade do combate as drogas no Brasil.
A lei que regia o assunto até então estava em vigor há quase 40 anos e era importante atualizar a legislação para a nova realidade social. Comemorada por diversos setores da sociedade civil ligados às questões penitenciárias e de encarceramento em massa a nova legislação se apresentava como atual e preocupada com o excesso de punitivismo estatal em relação à política de drogas adotada pelo país.
A ementa da nova legislação institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, além de prescrever medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e estabelecer normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas. Destaque-se ainda a questão da definição de crimes (SILVA, 2020).
A lei trazia em sua ementa a preocupação de atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, sendo que a norma foi editada com a intenção de atenuar o excesso de punitivismo estatal. Dessa forma, a pena de detenção de seis meses a dois anos para usuários, prevista na Lei 6.368/1976, foi substituída por advertência sobre os efeitos dos entorpecentes, prestação de serviços à comunidade e obrigação de comparecer a programa ou curso educativo (artigo 28) (RODAS, 2017).
A norma de 2006 ampliou o uso de medidas cautelares. A nova lei tinha como objetivo separar de uma vez por todas, no texto penal, as figuras do traficante e do usuário de drogas. A diferença era evidente, inclusive pelo posicionamento da tipificação dentro do texto legal. A figura do usuário aparece no artigo 28, no Título II: Das Atividades de Prevenção, Tratamento, Acolhimento e de Reinserção Social e Econômica de Usuários ou Dependentes De Droga”, Capítulo III: Dos Crimes e das Penas, enquanto a figura do traficante aparece no Título IV: Da Repressão à Produção Não Autorizada e ao Tráfico Ilícito De Drogas, Capítulo II: Dos Crimes (SILVA, 2020).
Essa separação não é em vão, a nova lei ao mesmo tempo que “afrouxava” a punição para o dependente químico endurecia a punição para o traficante. A pena mínima para o tráfico passou de três (prevista na lei 6.368/76) para cinco anos, enquanto a pena máxima se mantinha em 15 anos. A intenção da nova legislação é clara no texto: proteger o usuário e punir duramente o traficante. A nova lei parecia ser perfeita para o contexto social atual do Brasil, e no imaginário de muitos teóricos resolveria a questão das drogas com um olhar mais humanizado à figura do dependente químico (SILVA, 2020).
De acordo com Silva (2016) durante vinte e seis anos vigorou a Lei nº 6.368/1976, que coibia e punia condutas relacionadas ao porte e tráfico de drogas. Essa lei não se mostrava mais eficaz, considerando o aumento da criminalidade, principalmente a organizada, e os modernos métodos empregados para o combate ao tráfico e tratamento do usuário e dependente de drogas, que não eram nela previstos. A lei tratava tanto o traficante quanto o usuário e dependente como criminosos, que necessitavam ser presos. Também era muito condescendente com o traficante, principalmente os mais poderosos e organizados.
De modo efetivo, embora a lei não seja perfeita, bem pelo contrário, possuindo várias imperfeições que serão devidamente analisadas neste livro, ela tem o mérito de estabelecer um novo sistema. Usuário, dependente e traficante de drogas são tratados de maneira diferenciada. Para os primeiros, não há mais possibilidade de prisão ou detenção, aplicando-lhes penas restritivas de direitos. Para o último, a lei prevê sanções penais mais severas. Mesmo para os traficantes, há distinção entre o pequeno e eventual traficante e o profissional do tráfico, que terá penas mais duras. Para o dependente, pode ser imposto tratamento médico ou atenuar a sua pena (SILVA, 2016).
Todo este entusiasmo com a nova lei não perdurou por muito tempo. Logo nos primeiros anos de vigência o que se observava era uma distorção total de seus objetivos, sendo que desde que Lei sobre Drogas (11.343/2006) entrou em vigor, o número de presos por crimes relacionados às drogas no Brasil dobrou. A falta de clareza na lei está levando à prisão milhares de pessoas que não são traficantes, mas sim usuárias. A maioria desses presos nunca cometeu outros delitos, não sendo criminosos a priori, não tendo relação com o crime assim chamado organizado e portavam pequenas quantidades da droga no ato da detenção para seu próprio consumo (WEIGERT, 2010).
De acordo com Silva (2020) verifica-se um aumento vertiginoso do encarceramento em massa em função dos dispositivos penais que tinham por intenção reduzir o aprisionamento e o punitivismo. Os artigos 28 e 33 da Lei 11.343/06, que diferenciam as figuras do usuário e do traficante de drogas, impulsionados pela demonização das drogas e descontentes com o fato de os consumidores não serem presos, policiais, promotores e juízes passaram a enquadrar muitos deles como traficantes.
Tal classificação pode ser feita devido à ausência de critérios objetivos para determinar quais quantidades de entorpecentes configuram posse para uso próprio e quais demonstram atividade comercial. É exatamente a falta de critérios objetivos para a tipificação dos crimes de consumo e tráfico de drogas que, com a intenção de humanizar o tratamento ao usuário, fez com que, diante do julgamento subjetivo dos agentes da lei (Policiais Militares, Policiais Civis, Promotores de Justiça e Juízes), estes usuários fossem amontoados nas penitenciárias brasileiras, sem nada que comprovasse seu envolvimento com o comércio ilícito de drogas, vez que, normalmente a única coisa que há no processo é a própria palavra do policial (RODAS, 2017).
A lei 11.343/06 apresenta alguns problemas estruturais deturparam seus objetivos iniciais. As lacunas deixadas pela lei fizeram com que a aclamada solução para a questão das drogas se tornasse o grande propulsor do encarceramento em massa no Brasil. Uma das lacunas da Lei é a total falta de critério objetivo para separar a figura do usuário do traficante, e também o modelo processual penal adotado, que cerceia a ampla defesa do réu e o faz ser condenado ainda na delegacia de polícia. Além disso, a Lei de Drogas traz em seu bojo as características do sistema inquisitório (SILVA, 2020).
Diversos princípios do Direito Penal realmente estão ausentes na Lei 11.343/06, a falta de objetividade e de clareza na descrição do crime cometido, que deixa a critério do policial que fez a apreensão decidir qual conduta será tipificada ela deixa a cargo dos conceitos sociais e morais daquele policial “julgar” a pessoa que será conduzida até a Delegacia Policial. Por conta disso, há diversas distorções nas prisões em flagrante por tráfico de drogas e em sua forma.
5 A QUESTÃO DA DISTINÇÃO ENTRE O USUÁRIO E O TRAFICANTE
A Lei 11.343/06 aumentou o encarceramento de forma exponencial. Para entender o porquê deste aumento é fundamental entender a diferenciação que a legislação criou para tipificar os usuários dos traficantes. No artigo 28, a lei traz a definição do crime de porte para o consumo pessoal, tipificação que se aplica ao usuário e o artigo 33 o crime de tráfico:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas.
§ 2º Para determinar se a droga se destinava a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente (BRASIL, 2016, não paginado).
A figura do usuário, ou consumidor, descrita na Lei 11.343/06 é quase idêntica à figura do traficante. O que difere os dois tipos penais é que no artigo 28 a conduta criminalizada é a posse de drogas com o objetivo do consumo pessoal, enquanto no artigo 33 o crime é a intenção de expor à venda, oferecer ou entregar a consumo.
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (BRASIL, 2016, não paginado).
Tanto o usuário quanto o traficante têm consigo a posse da droga, é o dolo do que fazer com ela que irá diferenciar a adequação típica de cada tipo penal. O grande problema é: ao abordar alguém que porte drogas, como diferenciar o dolo de consumir e o dolo de vender ou fornecer a terceiros? A busca a resposta dessa questão é o cerne do problema da Lei 11.343/06.
O que seria a grande solução para o tratamento e a atenção ao usuário e dependente químico se tornou um grande problema aos olhos do Direito Penal. Muito embora o § 2º do artigo 28 tente resolver esse problema, o texto vago e subjetivo perpetua a questão. Isso porque, mesmo no § 2º não há critérios objetivos para diferenciar as figuras do usuário e do traficante, ou seja, deixou a caráter da subjetividade de cada autoridade policial “decidir” se aquela pessoa que está na sua frente é uma vítima de um criminoso, ou o próprio criminoso. O problema da subjetividade no Direito Penal já foi discutido no primeiro capítulo deste trabalho (SILVA, 2020).
O soberano tinha o poder de, subjetivamente, decidir quem seria culpado ou inocentado de uma acusação. Independente das provas, do contraditório, da ampla defesa, estava a cargo do soberano decidir a aplicação da pena. Para conter o ímpeto subjetivo do soberano, o Direito Penal evoluiu e passou a criar freios para garantir o mínimo de justiça nos julgamentos penais. Dessa evolução nasce o princípio da legalidade, e, é de suma importância entender este princípio básico do Direito Penal antes de prosseguirmos na análise da aplicação subjetiva da tipificação da Lei de Drogas. O princípio da legalidade é tão importante para a democracia e para a aplicação do Direito Penal que está esculpido na Constituição Federal de 1988 como um dos direitos fundamentais (SILVA, 2020).
O texto constitucional traz em seu artigo 5º, inciso XXIX dispõe que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, e a importância desse princípio é replicada também no Código Penal que dispõe logo em seu artigo 1º que “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal. O princípio da legalidade deve ser entendido de forma ampla, ou seja, a lei deve definir com precisão e de forma cristalina a conduta proibida. Essa precisão e cristalinidade exige um certo cuidado do legislador (BRASIL, 1988).
Para que o princípio de legalidade seja, na prática, efetivo, cumprindo com a finalidade de estabelecer quais são as condutas puníveis e as sanções a elas cominadas, é necessário que o legislador penal evite ao máximo o uso de expressões vagas, equívocas ou ambíguas. Nesse sentido profetiza Claus Roxin, afirmando que: uma lei indeterminada ou imprecisa e, por isso mesmo, pouco clara não pode proteger o cidadão da arbitrariedade, porque não implica uma autolimitação do ius puniendi estatal, ao qual se possa recorrer. Ademais, contraria o princípio da divisão dos poderes, porque permite ao juiz realizar a interpretação que quiser, invadindo, dessa forma, a esfera do legislativo (BITENCOURT, 2012, p. 91).
O texto do professor Bitencourt deixa claro que a lei penal não pode, em nenhuma hipótese, deixar a cargo da subjetividade do juiz a sua adequação ao caso concreto. Porém, o que faz a Lei 11.343/06 é ainda pior: deixa a cargo da subjetividade da autoridade policial fazer a adequação típica das condutas descritas no tipo penal.
Essa subjetividade é responsável pelo esvaziamento do objetivo da atual Lei de Drogas e deixa, muitas vezes, a cargo do policial de rua escolher, pelas condições da abordagem, pelo estereótipo do abordado, pelo local da abordagem se aquele cidadão é um traficante perigoso para sociedade e deve ser encarcerado, ou, se aquele cidadão é uma vítima do tráfico, um usuário que deve receber atenção de saúde Estatal.
É neste momento que o policial vira juiz, pois, conforme analisaremos no próximo tópico, a maioria dos processos relacionados à apreensão de drogas é pautado pela palavra dos policiais que fizeram a apreensão. A falta de critérios objetivos para determinar se aquela droga é para consumo pessoal ou para a venda, deixa ao critério subjetivo dos policiais que fizeram a apreensão, já que, nem o artigo 28 e nem o 33 da Lei de Drogas traz de forma objetiva como determinar sua tipificação, não há uma quantidade determinada para cada tipo penal, não há critérios que embasem aquela tipificação. Assim, nos processos de tráfico de drogas, o Policial é o Juiz.
O procedimento, portanto, segue um rito próprio: o policial, geralmente o militar em patrulhamento, apreende um cidadão com uma determinada quantidade de drogas, o encaminha para a delegacia onde é ratificado o flagrante que posteriormente é convertido em prisão preventiva.
Depois da seleção efetivada na rua a pessoa é detida e levada a delegacia de polícia, onde o delegado, que deveria ser a autoridade superior a avaliar a prisão efetuada, sem muito mais elementos, a não ser os que foram trazidos pela autoridade da rua – normalmente um policial militar – acaba ratificando a prisão. [...] E o que dizem os policiais condutores e testemunhas no auto de prisão em flagrante? Praticamente nada. Fosse exigido que o delegado fundamentasse seriamente as razões pela qual considera a pessoa em flagrante, teria que, efetivamente, fazer mais perguntas aos policiais, estes que praticamente são sucintos, declaram o que querem, não raramente sendo um depoimento cópia do outro, nunca indicando, os próprios policiais condutores, as razões pelas quais consideram o indiciado traficante (VALOIS, 2019, p. 504).
Em uma análise de prisões em flagrante realizadas por policiais militares relacionadas com a problemática das drogas, Valois (2019) identificou os principais argumentos dos policiais condutores quando da lavratura do auto de prisão em flagrante (argumentos que são cumulativos, ou seja, podem estar presentes mais de um argumento no mesmo auto de prisão): 67% destas prisões foram feitas em patrulhamento de rotina, 55,2% porque o indiciado estava com uma atitude suspeita, 26% baseadas em denúncias anônimas, 15,5% em abordagens efetuadas em blitz, 13,6% porque o local era conhecido por ser um ponto de tráfico de drogas e, apenas 6,4% após investigação. Nota-se que 93% dos procedimentos de condução sequer fazem menção à investigação policial prévia, ou seja, os policiais estão escolhendo (e colhendo) nas ruas seus alvos, de uma forma totalmente seletiva.
De acordo com Silva (2020) O valor do depoimento dos policiais nas prisões por tráfico de drogas fica ainda mais evidente quando se analisa o depoimento dos indiciados.
Valois (2019) aponta que, ouvidos na delegacia de polícia, 64,4% dos indiciados ficam em silêncio, 35,2% prestam algum tipo de informação, 15,2% negam os fatos a eles imputados, 16,4% se dizem usuários e apenas 6,8% confessam o comércio ilícito de drogas. Desta forma o flagrante que deveria ser a certeza do crime, é um teatro de policiais, um monólogo ensaiado e, às vezes, copiado e colado.
Silva (2020) acrescenta que o papel do Policial (em especial o militar, pois geralmente é quem faz as prisões nas ruas) no processo penal nas prisões relacionadas a Lei de Drogas, recebe um status de protagonismo desproporcional ao Estado Democrático de Direito. A Lei de Drogas é o grande exemplo do punitivismo penal que tomou conta do judiciário brasileiro.
6 A QUESTÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 28 DA LEI DE DROGAS
O artigo 28 da Lei 11.343/06 está em evidência, não apenas pela subjetividade citada no tópico anterior, mas também pela ampla discussão a respeito de sua inconstitucionalidade. Essa discussão envolve o direito fundamental a liberdade, intimidade e a vida privada, previsto na Constituição Federal em seu artigo 5º, X, o limite do Direito Penal para tutelar as ações que causam autolesão e o direito à saúde pública (BRASIL, 1988).
A discussão se inicia com a ideia de que a pessoa que consome qualquer substância, lícita ou ilícita, que o único abalo é em sua própria saúde tem o direito de fazê-lo. Essa discussão se acalorou recentemente quando a Defensoria Pública do Estado de São Paulo ingressou com o Recurso Ordinário n.º 635.659/SP, com repercussão geral reconhecida. Neste recurso a discussão é fundamentada no artigo 102, III, ‘a’ da Constituição Federal, que prevê o cabimento do Recurso Extraordinário nos casos em que uma decisão judicial contraria dispositivos constitucionais. Antes de avançar na discussão da inconstitucionalidade, vale a pena fazer uma breve síntese do recurso da Defensoria Pública.
SILVA (2020) menciona que o caso concreto que motivou o recurso extraordinário foi uma apreensão de drogas dentro do Centro de Detenção Provisória da cidade de Diadema/SP. O detento Francisco Benedito de Souza, que estava recolhido no centro de detenção, tinha três gramas de maconha dentro de sua marmita. Condenado pelo artigo 28 da Lei 11.343/06 pelo crime de posse de drogas para consumo pessoal. Inconformado com a condenação, em primeira e segunda instância, Francisco representado pela Defensoria Pública, ingressou com o Recurso Extraordinário alegando que a criminalização do consumo de drogas fere o disposto no artigo 5º, inciso X da Constituição Federal, que dispõe:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X - São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (BRASIL, 1988, não paginado).
O Ministério Público alega que o bem protegido é a saúde pública, pois o viciado tende a aumentar o vício em toda sociedade. O recurso começou a ser julgado em 2015 tendo como relator o Ministro Gilmar Mendes. O voto do ministro relator foi pelo reconhecimento da inconstitucionalidade e foi acompanhado pelos votos dos ministros Roberto Barroso e Edson Fachin. O ministro Teori Zavascki pediu vista do processo e, após seu trágico falecimento, o processo encontra-se suspenso. A discussão a respeito da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06 não teve início com recurso da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Essa discussão é anterior, inclusive, a promulgação da Lei de Drogas.
Carvalho (1996) destaca que a descriminalização pode ser apontada, desde a perspectiva alternativa, como um dos requisitos fundamentais para o respeito e tutela dos direitos e garantias de primeira (direitos individuais), segunda (direitos coletivos) e terceira geração (direitos difusos). Portanto, muito antes da atual Lei de Drogas, diversos estudiosos de Direito Penal já apontavam que a criminalização das drogas para consumo pessoal feria os direitos fundamentais. A discussão se acalorou após a promulgação da Lei 11.343/06.
Carvalho (1996) defendeu que a proibição do porte para uso fere direitos fundamentais, sendo que o sustentáculo da programação punitiva ocorre em dois pontos relevantes: (a) ser o delito previsto no art. 28 da Lei 11.343/06 de perigo abstrato e (b) ser a saúde pública o bem jurídico tutelado. O discurso da periculosidade presumida do ato (expansividade) e do escopo da lei em tutelar interesses coletivos e não individuais permite, inclusive, que a posse de pequena quantidade de droga seja objeto de incriminação. A impossibilidade de constatação empírica das teses de legitimação do discurso criminalizador, decorrente, sobretudo, da intangibilidade do bem jurídico, por si só́ desqualifica a manutenção da opção proibicionista.
De acordo com Silva (2020) toda a discussão da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06 se dá em torno de alguns princípios constitucionais e do próprio Direito Penal, tendo em vista que o discurso proibicionista em prol da saúde pública não conseguiu legitimar a violação destes princípios. Além do princípio constitucional do artigo 5º, inciso X, fere também o princípio da alteridade do Direito penal, que prevê que os danos de uma conduta para ser passíveis de punição penal devem transcender a pessoa do próprio autor, lesando bens ou interesses de terceiros.
De acordo com Queiroz (2014) o artigo 28, que criminaliza a posse de droga para consumo, é inconstitucional, porque o indivíduo é senhor de seu próprio destino, corpo e saúde, razão pela qual compete-lhe decidir sobre o que é melhor (e pior) para si mesmo. Assim, por força do princípio da lesividade21, só pode constituir infração penal uma conduta que implique violação a interesse, à liberdade ou a bem jurídico de terceiro, razão pelo qual ações que encerrem apenas má disposição de direito ou interesse próprio não podem ser objeto do direito penal, a exemplo da autolesão, do suicídio tentado ou do dano à coisa própria.
Há claras demonstrações de que o artigo 28 da Lei 11.343/06 é inconstitucional, por ser uma evidente tentativa do Estado tutelar a vida particular do cidadão, em descompasso com os direitos e princípios fundamentais de um Estado Democrático de Direito.
O Brasil foi construindo sua política anti-drogas, baseada no discurso punitivista de que as drogas são as grandes inimigas da sociedade. Em 1976 promulgou uma de suas mais importantes legislações de combate às drogas, lei que previa uma pena de três a cinco anos para quem se enquadrasse no crime de tráfico de drogas. Lei 6.368/76 colocara de vez o Brasil na Guerra às Drogas, e fomentava o encarceramento de quem fosse surpreendido com qualquer substância proibida.
O grande marco da legislação de drogas no Brasil foi a Lei 11.343/06, a lei que surgiu com elogios de grande parte dos intelectuais e estudiosos das questões penitenciárias no Brasil, porque separava as figuras do traficante e do usuário. Punia duramente o traficante, afinal a Guerra às Drogas não interrompe seu curso, mas abrandava as punições para o usuário, que era visto como uma vítima do criminoso e deveria ser tratado por conta de sua dependência química.
Vale ressaltar que muito embora tenha sido recebida com entusiasmo pelos ativistas do desencarceramento, a lei teve o efeito reverso: aumentou em 300% o número de encarcerados por tráfico de drogas no país de 2005 a 2016. Esse aumento exponencial se dá pelo aspecto subjetivo que a lei trouxe ao tipificar as figuras do traficante e do usuário, deixando a cargo da autoridade policial, de forma subjetiva, enquadrar o abordado no crime de tráfico de drogas ou de posse para consumo pessoal. Essa subjetividade da lei ultrapassa o poder do policial nas ruas e replica esse julgamento, por vezes eivado de preconceitos, nas delegacias e nas salas de audiência de todo país.
7 CONCLUSÃO
A subjetividade da Lei 11.343/06 foi fundamental para o aumento expressivo do encarceramento em massa.
No Brasil o punitivismo tem origem na mentalidade policialesca do fascismo italiano, tendo em vista que, nosso Código de Processo Penal que data de 1941 é totalmente inspirado no Código de Processo Penal Fascista. A ideia punitivista está enraizada no imaginário brasileiro, o que contrasta com os ideais garantistas assumidos pela nossa Constituição Cidadã de 1988.
O punitivismo, infelizmente, tem sido a carta da vez na aplicação das políticas penais e, pode-se observar isso em especial quando observamos como o próprio sistema capitalista direciona suas políticas penais para grupos específicos de pessoas, aquelas que não se enquadram na visão do mercado, que são consideradas dispensáveis pelo Estado.
A subjetividade da Lei 11.343/06 é uma das grandes responsáveis pelo encarceramento em massa no país, sendo constantemente utilizada a favor do punitivismo estatal, apreendendo em sua maioria jovens com baixa escolaridade, negros e pobres.
É urgente um debate sério e incisivo sobre a atual legislação de drogas no Brasil, em especial sobre a forma subjetiva de tipificação.
Cumpre mencionar o disposto pelo Superior Tribunal de Justiça/SP (2020) determinou que os condenados que cumprem pena e aos que vierem a ser sancionados pela prática do crime de tráfico na modalidade privilegiada, não deve ser imposto o regime inicial fechado para cumprimento de pena, devendo haver pronta correção aos já assim sentenciados. Vital (2020) analisa que esse é o entendimento da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que concedeu Habeas Corpus coletivo para proibir que juízes e desembargadores da Justiça de São Paulo apliquem regime fechado a presos enquadrados no parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas). Aos que já cumprem pena nessa situação, o Judiciário paulista deve fazer a devida correção.
Em relação aos condenados por tráfico privilegiado a penas menores do que quatro anos, a 6ª Turma determina que os juízos da execução penal reavaliem com máxima urgência a situação de cada um de modo a verificar a possibilidade de progressão ao regime aberto em face de eventual detração penal decorrente do período em que estiveram presos cautelarmente. A concessão foi para que se determine ao Judiciário paulista o cumprimento da ordem de Habeas Corpus inclusive para providenciar a imediata expedição do alvará de soltura aos presos que, beneficiados por essas medidas, não estejam encarcerados por outros motivos.
Nessa perspectiva, é fundamental estimular um debate sério em relação ao consumo de entorpecentes, e da maneira que o Estado deve tratar os dependentes químicos, tirando a dependência química da esfera penal e transferindo-a para a rede de apoio de assistência social e de saúde. Só assim conseguiremos combater o encarceramento em massa, que traz prejuízos imensuráveis para sociedade brasileira, como por exemplo, o aumento da violência, o fortalecimento das organizações criminosas que atuam dentro dos presídios, e o próprio aumento do consumo de drogas no país.
REFERÊNCIAS
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WEIGERT, M. A. B. Uso de drogas e sistema penal: Entre o proibicionismo e a redução de danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[1] Não apenas no que diz respeito às drogas, mas aos entorpecentes de maneira muito especial.
Acadêmico de Direito pela Universidade Brasil - Campos de Fernandópolis/SP. Auxiliar no Tabelionato de Notas e Protestos da Comarca de Urânia/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GREGORIO, Leonardo Neves. Drogas no Brasil: Evolução Legislativa e Críticas sobre a lei atual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 maio 2021, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56506/drogas-no-brasil-evoluo-legislativa-e-crticas-sobre-a-lei-atual. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: LEONARDO DE SOUZA MARTINS
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