Resumo: O presente artigo traça brevemente a evolução das normas jurídicas, em termos de sua legitimação, como descrita por Habermas, para, na sequência, tentar verificar se as normas processuais penais que permitem decisões de ofício pelos juízes, no que toca à produção probatória ou à decretação de cautelares, resistiram ao critério da aceitabilidade racional, proposto pelo autor.
Palavras-chave: Iniciativas do juiz no processo penal. Imparcialidade do juiz. Aceitabilidade racional das normas.
Sumário: 1. Introdução; 2. As normas que autorizam a tomada de medidas de ofício, no processo penal, à luz da aceitabilidade racional de HABERMAS; 3. Conclusão; 4. Referências.
1. Introdução.
Em processo penal, talvez uma das garantias individuais mais críticas, e que até hoje apresenta maiores fragilidades e dificuldades de efetivação, seja a da imparcialidade do juiz.
Um dos grandes focos de discussão, em torno da imparcialidade, é o conjunto de dispositivos legais, vigentes em nosso ordenamento, os quais atribuem aos magistrados a prerrogativa de produzir provas de ofício, ou, igualmente sem provocação da acusação, decretar medidas cautelares contra o indivíduo alvo da persecução penal.
A experiência a que este artigo se propõe é a de tentar contribuir para o debate, através de uma leitura de Habermas, e da evolução, por ele descrita, das formas de legitimação do direito, perante os destinatários das normas.
Num caminho que vai da legitimação pelas experiências comuns, passando à legitimação pela força e pelo medo, até chegar à legitimação pela razão, Habermas afirma que, nas sociedades jurídicas mais evoluídas, a legitimidade das normas se imporia apenas na medida em que as mesmas se revestissem de aceitabilidade racional.HakklçcvjklçHabahapd~sklfjakdsfjalksdfj
A ideia deste trabalho é, após conceituar essa aceitabilidade racional, procurar responder se as normas existentes, em nosso ordenamento processual penal, e que autorizam a tomada de iniciativas processuais, pelo juiz, se apresentariam como racionalmente aceitáveis.
2. As normas que autorizam a tomada de medidas de ofício, no processo penal, à luz da aceitabilidade racional de Habermas.
Há, em nosso ordenamento processual penal, uma série de dispositivos, alguns deles datando da década de 1940 do século passado, quando nosso Código de Processo Penal foi editado, que permitem, ao magistrado, a tomada de certas iniciativas, ora vinculadas à produção probatória, ora à decretação de medidas cautelares em desfavor do réu ou investigado.
Como se verá adiante, muito se critica essas hipóteses legais de iniciativa processual do próprio juiz, as quais são vistas como resquícios de inquisitoriedade, num processo penal que deveria ser acusatório, ranços de épocas pretéritas, em que o regime processual era mais autoritário, e menos preocupado com as garantias fundamentais do acusado.
O debate a esse respeito, que não é novo, pode ser enriquecido, se a questão for abordada da perspectiva do que Habermas[1] chama de aceitabilidade racional, perquirindo-se se as disposições legais que ainda franqueiam, ao juiz, espaço para que tome medidas por iniciativa própria no processo penal, resistiriam a esse critério de legitimação das normas jurídicas.
Habermas, delineia uma evolução, das formas de legitimação das normas, para que sirvam como meio de integração da sociedade. Evolução essa pautada pela maneira de se lidar com o risco do dissenso, o risco de que se venha a construir argumentações que desautorizem as razões de uma norma:
A tensão ideal que irrompe na realidade social remonta ao fato de que a aceitação de pretensões de validade, que cria fatos sociais e os perpetua, repousa sobre a aceitabilidade de razões dependentes de um contexto, que estão sempre expostas ao risco de serem desvalorizadas através de argumentos melhores e processos de aprendizagem que transformam o contexto.[2]
Segundo Habermas, a pretensão de verdade de uma proposição deve ser defensável contra possíveis objeções para, ao final, poder ser considerada o produto de um acordo racional a que chegam os integrantes do grupo, superando-se a ameaça do dissenso.
Numa fase inicial, o dissenso seria suprimido pelo contexto de experiências comuns do mundo da vida, caracterizado como aquilo que serve de pano de fundo ao consenso, pela familiaridade comum que lhe reconhecem os integrantes do grupo. Habermas fala num conjunto de lealdades, habilidades e padrões de interpretação compartilhados, como se lê:
A motivação racional para o acordo, que se apoia sobre o ‘poder dizer não’, tem certamente a vantagem de uma estabilização não-violenta de expectativas de comportamento. Todavia, o alto risco de dissenso (...) tornaria a integração social através do uso da linguagem orientado pelo entendimento inteiramente implausível, se o agir comunicativo não estivesse embutido em contextos do mundo da vida, os quais fornecem apoio através de um maciço pano de fundo consensual. (...) eles se alimentam das fontes daquilo que sempre foi familiar. Na prática do dia-a-dia, a inquietação ininterrupta através da experiência e da contradição, da contingencia e da crítica, bate de encontro a uma rocha ampla e inamovível de lealdades, habilidades e padrões de interpretação consentidos.[3]
Nesse estágio, os integrantes do grupo não contestariam a validade das normas, pois a justificação das mesmas seria reconduzida a um conjunto de experiências, a um mundo da vida comum a todos. Parece intuitivo, por exemplo, que as regras que determinassem o papel de cada um na caçada, ou que uma parte da colheita fosse guardada para o inverno, não encontrariam resistência, porque a experiência comum coletiva era a de que, sem a necessária coordenação, não se apanhava presas maiores, ou de que sem provisões, passava-se fome nas estações mais severas.
Mas a validade através das experiências do mundo da vida só funcionava para grupos reduzidos, que compartilhassem de fato experiências comuns. Com o aumento da quantidade de integrantes e da complexidade de interrelações, já não se poderia mais esperar que as experiências do grupo fossem uniformes. Portanto, o dissenso surgiria, pois integrantes com experiências diferentes não reconheceriam validade às mesmas regras. O dissenso não era mais suprimido, se os destinatários da norma não tivessem um mesmo mundo da vida:
Quanto maior a complexidade da sociedade e quanto mais se ampliar a perspectiva restringida etnocentricamente, tanto maior será a pluralização de formas de vida e a individualização de histórias de vida, as quais inibem as zonas de sobreposição ou de convergência de convicções que se encontram na base do mundo da vida; (...)[4]
À medida em que as sociedades vão se tornando mais complexas, portanto, a supressão ao risco do dissenso se transfere, segundo Habermas, do conjunto de experiências cotidianas comuns, para a inquestionabilidade da autoridade que, com amparo no sagrado ou em instituições igualmente fortes, impõe a norma[5]. Se antes as normas não eram questionadas porque a experiência coletiva as corroborava, agora elas não o são por uma espécie de “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, é dizer, em virtude do temor à autoridade que as impõe.
No estágio seguinte, no entanto, a evolução das sociedades levou à superação dos regimes alicerçados na fé ou na força, e à sua substituição por sistemas de organização que, pelo menos se almeja, sejam centrados na razão.
Surge, então, a questão de como promover a integração de sujeitos oriundos de mundos da vida diferentes, sem o recurso à autoridade inquestionável de uma instituição forte ou sagrada[6]. A legitimidade da norma passa, assim, a ser buscada, segundo Habermas, no fato de ela ter sido produzida num processo legislativo racional:
Ao contrário da validade convencional de usos e costumes, o direito normatizado não se apoia sobre a facticidade de formas de vida consuetudinárias e tradicionais, e sim sobre a facticidade artificial da ameaça de sanções definidas conforme o direito e que podem ser impostas pelo tribunal. Ao passo que a legitimidade de regras se mede pela resgatabilidade discursiva de sua pretensão de validade normativa; e o que conta, em última instância, é o fato de que elas terem surgido num processo legislativo racional – ou o fato de que elas poderiam ter sido justificadas sob pontos de vista pragmáticos, éticos e morais.[7]
E Habermas caracteriza esse processo legislativo racional, como aquele no qual o cidadão se reconheça como participante. Um processo, portanto, democrático, que fundamente a suposição de que as normas estatuídas são reconhecidas, pelos seus destinatários, como racionais. O essencial é que o destinatário da norma possa, também, se considerar, em certa medida, seu autor
Pois, sem um respaldo religioso ou metafísico, o direito coercitivo, talhado conforme o comportamento legal, só consegue garantir sua força integradora se a totalidade dos destinatários singulares das normas jurídicas puder considerar-se autora racional dessas normas.[8]
Pode-se dizer que, se aquele que deve se submeter a uma norma consegue, idealmente, se reconhecer como seu autor hipotético, se aceita que, na posição de legislador, teria tomado a mesma decisão normativa, então a norma se reveste da necessária aceitabilidade racional.
Essa é a lente através da qual se pretende, agora, voltar os olhos para os dispositivos legais que permitem, no processo penal, que o juiz tome iniciativas, quer probatórias, quer cautelares, sem prévia provocação de alguma das partes.
A polêmica gira em torno da imparcialidade do juiz. Esta, não se questiona, é uma das mais básicas garantias processuais previstas em nosso ordenamento. Mesmo não encontrando previsão expressa no texto constitucional de 1988, não se discute que a imparcialidade é, sim, uma das garantias fundamentais do cidadão, prevista, ainda que indiretamente, na Constituição Federal. Como afirmam Luciano Feldens e Andrei Zenkner Schmidt, a imparcialidade pode ser vista como decorrência da própria regra do devido processo legal:
No Brasil, a exemplo do que em regra sucede nas sociedades democráticas, a configuração do direito a um juiz imparcial ganhou contornos constitucionais. Sua caracterização como autêntico direito fundamental decorre da cláusula do devido processo legal (art. 5o, inc. LIV, da CF). Uma cláusula genérica, porém suficientemente clara no que define o modelo de processo que adotamos: um processo com todas as garantias.[9]
Para além do direito fundamental ao devido processo legal, o imperativo da imparcialidade pode ser reconduzido, também, às garantias asseguradas aos juízes, previstas no artigo 95 da Carta Magna. Parece claro que vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios são atributos que visam a permitir, ao magistrado, que se mantenha imparcial, imune a influências de qualquer ordem que pudessem turvar o seu julgamento da causa.
No mesmo sentido, temos Cintra, Grinover e Dinamarco, para quem “Justamente para assegurar a imparcialidade do juiz, as constituições lhe estipulam garantias (Const., art. 95), prescrevem-lhe vedações (Const., art. 95, par. ún.) e proíbem juízos e tribunais de exceção (art. 5o, inc. XXXVII).”[10]
Mais do que uma garantia processual implícita na Constituição, podemos afirmar, com Rubens Casara, que o próprio acesso à justiça não se faz, sem a imparcialidade do Juízo, já que “O acesso à justiça só se concretiza se o cidadão puder veicular sua pretensão perante um juiz independente. Ademais, só a intervenção de um juiz imparcial legitima o afastamento e/ou restrições aos direitos fundamentais”.[11]
E, para além de inequivocamente deduzida do texto da Constituição, a garantia do juiz imparcial encontra, ainda, previsão literal em nosso ordenamento infraconstitucional, inscrita que é, de forma expressa, no Pacto de São José da Costa Rica, que estabeleceu a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, internalizada no nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto 678, de 06/11/1992.
Em seu artigo 8, que trata das “Garantias Judiciais”, a Convenção estipula que:
Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. [12]
Comentando este artigo do Pacto, a doutrina reconhece a imparcialidade como importante garantia, especificamente, do devido processo criminal: “A imparcialidade do juiz, de outro lado, constitui sem sombra de dúvida uma das mais importantes garantias do devido processo criminal. Como vimos acima, a preocupação com o fair trail tanto se dá em nível interno como internacional.” [13]
Firmada a importância da garantia ao juiz imparcial, é certo que os dispositivos de lei aqui tratados podem ser vistos como verdadeiros caracteres do sistema inquisitório, que ainda subsistem em nossa legislação.
Afinal, como se sabe, não é a simples separação entre as funções de acusar e julgar, que distingue o sistema acusatório do inquisitório. É, mais do que isso, a gestão da prova que dá o tom entre um sistema e outro. Nas lições de Ferrajoli, ao sistema acusatório corresponde um juiz-expectador, enquanto ao inquisitório, um juiz-ator, dotado de capacidade de investigação[14].
Se a gestão da prova está unicamente a cargo das partes, o sistema se aproxima do modelo acusatório; se, ao contrário, confere-se ao juiz o poder de gerir a prova – é dizer, se ao magistrado são reconhecidos poderes instrutórios – a hipótese é de prevalência do modelo inquisitório, como é o caso, segundo Coutinho[15], do processo penal brasileiro.
Dito isso, as principais hipóteses legais de tomada de iniciativa pelo juiz, no processo penal, são elencadas por Aury Lopes Jr.[16], que reconhece, no artigo 156[17] do CPP, a mais tormentosa delas, ao se conferir ao juiz o poder de produzir provas de ofício, e até mesmo antes de instaurada a ação penal. Mas o autor também encontra exemplos problemáticos na possibilidade de o juiz, de ofício, converter a prisão em flagrante em prisão preventiva (art. 310, inciso II[18]), determinar o sequestro de bens (art. 127[19]) ou a busca e apreensão (art. 242[20]), ouvir testemunhas além das arroladas pelas partes (art. 209[21]), e até mesmo condenar, contra pedido de absolvição do Ministério Público (art. 385[22]).
Não bastassem os dispositivos do Código, podemos encontrar exemplos também na legislação especial, como o artigo 3o, caput, da Lei 9.296/1996[23], que autoriza o magistrado a, de ofício, determinar a interceptação de comunicações telefônicas.
O problema que esses artigos de lei representam à garantia da imparcialidade decorre, justamente, do inafastável vínculo psicológico que se estabelece, entre o magistrado e a prova por ele produzida de ofício.
É, nesse passo, bem lançada a crítica de Geraldo Prado, para quem
“A ordem das coisas colocadas no processo permite, pragmaticamente, constatarmos que a ação voltada à introdução do material probatório é precedida da consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado material, se efetivamente incorporado ao feito, possa determinar.”[24]
Ainda segundo esse autor, “Quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador.”[25]
Ao determinar certa diligência de ofício, não estaria o juiz agindo já movido por alguma inclinação, ainda que inconsciente, pela versão de uma das partes? E viria ele a valorar eventual contraprova, àquela produzida de ofício, com neutralidade, no confronto com os elementos que obteve por seu próprio impulso?
Talvez ainda mais grave se mostrem as hipóteses de decretação, sem prévio requerimento do Ministério Público, de medidas cautelares contra o imputado. Afinal, sejam pessoais, sejam patrimoniais, as medidas cautelares em matéria criminal têm, como um de seus pressupostos, a constatação do fumus commissi delicti. É dizer, ao decretar, de ofício, a prisão preventiva, o sequestro de bens, ou a interceptação telefônica, o magistrado necessariamente precisa reconhecer indícios mínimos de materialidade e autoria delitivas, acabando por proferir um juízo prévio negativo quanto ao investigado ou réu, ainda que preliminar, mas indissociável da decretação, de ofício, de alguma medida cautelar contra ele.
Isso não representaria, já, algum deslocamento do juiz, ainda que incipiente, do seu ponto de esperada imparcialidade, em direção à versão acusatória?
Segundo Bernd Shünemann, sim. Em um de seus estudos[26], o autor alemão acrescenta, à discussão processual penal, elementos da Teoria da Dissonância Cognitiva, do psicólogo americano Leon Festinger, teoria esta segundo a qual toda pessoa busca uma relação não contraditória entre seu conhecimento e suas opiniões. Isso faz com que o indivíduo, sistematicamente, superestime informações que confirmam uma hipótese anteriormente tida como correta, ao mesmo tempo em que menospreza informações contrárias a essa opinião anterior. Concomitantemente, a pessoa busca, predominantemente, informações que confirmem a hipótese aceita em algum momento pretérito[27].
E se essa hipótese já era desfavorável ao réu (decretação de uma cautelar), ou se ela já se instalou na mente do juiz, levando-o a procurar os elementos que a confirmem (produção de provas de ofício), o prejuízo à garantia fundamental da imparcialidade do juiz é manifesto.
Isso faz com que não se possa reconhecer qualquer aceitabilidade racional às normas que possibilitam, ao juiz, a tomada de iniciativas probatórias ou cautelares, no processo penal.
Os dispositivos em questão, pelo caráter inquisitorial de que se revestem, parecem condizer muito mais ao estágio evolutivo anterior, descrito por Habermas, o da legitimação das normas pela força da autoridade que as promulga. Aliás, muitos desses artigos de lei datam, inclusive, de período histórico no qual o Brasil efetivamente passava por uma ditadura, já que o Código de Processo Penal é de 1941.
Mas isso só torna mais grave o fato de que alguns deles foram, ao contrário, editados sob a égide do atual regime, que se pretende seja democrático.
A pessoa que integre uma sociedade da razão, que reconheça a legitimidade das normas pela sua maior ou menor vinculação aos ideais da democracia; que acompanhou a lenta e dolorosa marcha pela afirmação, em tratados de direito das gentes e em textos constitucionais, das suas garantias fundamentais, entre elas a do juiz imparcial – esse indivíduo, em hipótese alguma, se reconhece como autor hipotético de normas que franqueiam, ao magistrado, a iniciativa probatória, ou o cerceamento das liberdades do cidadão sem prévia provocação do Ministério Público.
De modo que as normas ainda hoje contidas em nosso ordenamento, que permitem a tomada de iniciativas do juiz, no processo penal, falham no teste da aceitabilidade racional descrita por Habermas, e reclamam, urgentemente, uma reforma legislativa que melhor adeque o processo penal brasileiro à democrática garantia fundamental ao magistrado imparcial.
3. Conclusão
O presente artigo pretendeu tratar do problema das iniciativas do juiz em processo penal, sob a ótica da aceitabilidade racional das normas, enquanto critério para a sua legitimação, conforme descrito por Habermas.
Dessa perspectiva, conclui-se que os diversos dispositivos processuais que permitem, ao magistrado, de ofício, produzir provas ou decretar cautelares contra o réu/investigado, pelo prejuízo que causam à garantia fundamental da imparcialidade do juiz, não podem ter reconhecida qualquer aceitabilidade racional.
A figura do juiz imparcial é de importância basilar, para a caracterização de um sistema jurídico como democrático. Não por outra razão, encontra guarida não só na Constituição, como em tratados internacionais, entre eles a Convenção Americana de Direitos Humanos, internalizada ao ordenamento nacional brasileiro.
Normas processuais como as aqui discutidas, típicas de um modelo inquisitório de processo penal, o qual correspondeu, ao longo da história, a formas de governo majoritariamente antidemocráticas, não podem estabelecer qualquer relação de identificação com os sujeitos racionais que a elas precisam se submeter.
A razão impede que os cidadãos se reconheçam enquanto participantes na formação de normas que agridem de forma tão grave uma de suas mais fundamentais garantias. E, segundo Habermas, o reconhecer-se enquanto autor da norma é o atributo que confere às leis, na visão de seus súditos, a almejada aceitabilidade racional.
Não sendo racionalmente aceitáveis, as normas que franqueiam iniciativas indevidas ao juiz criminal teriam lugar, isso sim, em regimes antidemocráticos, em que a legitimação do direito seria reconduzida apenas à força da autoridade que o impõe.
Como o Brasil não vive mais – ou pelo menos, supõe-se que não viva – sob o jugo de uma ditadura, era de se esperar que as normas em questão fossem objeto de uma reforma legislativa, que as extirpasse do ordenamento processual peal, a fim de que o mesmo se aproximasse mais de um modelo democrático e racionalmente aceitável.
4. Referências
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BRASIL. Decreto-Lei 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Rio de Janeiro, DF, out 1941.
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[1] HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
[2] Ibidem, p. 57.
[3] Ibidem, p. 40.
[4] Ibidem, p. 44.
[5] Ibidem, pp. 43-44.
[6] Ibidem, p. 46.
[7] Ibidem, p. 50.
[8] Ibidem, p. 54.
[9]FELDENS, Luciano; SCHMIDT, Andrei Zenkner. O marco normativo do direito fundamental a um juiz imparcial: do passado ao presente. In MALAN, Diogo; MIRZA, Flávio (coord.). Setenta anos do código de processo penal brasileiro: balanços e perspectivas de reforma. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 24.
[10]CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 16. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. p.52.
[11]CASARA, Rubens R.R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015. p 144.
[12]BRASIL. Decreto n. 678, de 06 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Brasília, DF, nov 1992, destacamos.
[13]MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; GOMES, Luiz Flávio. Comentários à convenção americana sobre direitos humanos: Pacto de São José da Costa Rica. 3. ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 98.
[14] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón – teoria del garantismo penal. Madri: Trotta, 1997. p . 575
[15] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. In Separata do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais. Porto Alegre: ITEC, 2000. p. 29.
[16] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 189.
[17]“ Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”
[18] “Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:
I - relaxar a prisão ilegal; ou
II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou
[19] “Art. 127. O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou do ofendido, ou mediante representação da autoridade policial, poderá ordenar o seqüestro, em qualquer fase do processo ou ainda antes de oferecida a denúncia ou queixa.”
[20] “Art. 242. A busca poderá ser determinada de ofício ou a requerimento de qualquer das partes.”
[21] “Art. 209. O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes.”
[22] “Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.”
[23] “Art. 3° A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento: (…)”
[24] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 158.
[25] Ibidem.
[26]SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz como um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e aliança. In Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito / Bernd Schünemann. Coord. Luís Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013. pp. 205-221.
[27]Ibidem, p. 208.
Mestrando em Direito Processual Penal, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Alvaro Augusto M. V. Orione. A (in)aceitabilidade racional das iniciativas do juiz, em matéria de persecução penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 maio 2021, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56527/a-in-aceitabilidade-racional-das-iniciativas-do-juiz-em-matria-de-persecuo-penal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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