JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL
(orientador)
RESUMO: O presente estudo visa demonstrar a importância do Juiz das Garantias para a manutenção da imparcialidade no processo penal. Nesse sentido, fez-se menção à historicidade dos sistemas processuais para que se demonstre a dicotomia entre sistema inquisitório e sistema acusatório, a partir dos poderes atribuídos aos juízes ao longo da história. Adiante haverá análise da “Teoria da Dissonância Cognitiva e da necessidade da exclusão física do inquérito policial dos autos do processo de conhecimento, cuja finalidade é assegurar os direitos fundamentais e garantias individuais dos réus. Por fim, a figura Juiz das Garantias será conceituada, caracterizada, classificada quanto a importância, competência, limitação de poderes e prevenção. Esclarece-se que, o presente estudo foi desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, sob o método indutivo e a técnica utilizada para estabelecer a problemática e a respectiva conclusão foi o método histórico e comparativo, pois, assim, foi possível estabelecer a evolução dos sistemas processuais penais desde o período greco-romano até os dias atuais e, assim, evidenciar a importância da imparcialidade do juiz nos julgamentos para que haja garantia de segurança jurídica aos réus no processo penal, sob a óptica da Constituição Federal de 1988.
Palavras-chave: Processo penal, sistemas penais, accusatio, cognitio, extra-ordinem, acusatório, inquisitório, misto, imparcialidade, dissonância cognitiva, juiz-das-garantias.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. SISTEMAS PROCESSUAIS NO TEMPO E INSTRUMENTALIDADE GARANTISTA. 2.1 História dos sistemas processuais. 2.2 A instrumentalidade constitucional garantida pelo devido processo legal. 2.3 Sistema acusatório. 2.4 Sistema Inquisitório. 2.5 Sistema processual misto. 3 IMPARCIALIDADE: O PRINCÍPIO SUPREMO DO PROCESSO PENAL. 4 INFLUÊNCIA DA TEORIA DA DISSONÂNCIA COGNITIVA NO PROCESSO PENAL. 4.1. A Teoria da Dissonância Cognitiva. 4.2. Reflexos da Teoria da Dissonância Cognitiva nos julgamentos. 4.3. O Juiz das Garantias – mantenedor da imparcialidade no processo penal. 5. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
Em uma breve análise, os sistemas processuais penais e a imparcialidade do julgador, a partir do viés constitucional, enfatizam os direitos fundamentais do indivíduo; enaltecer a contribuição da “Teoria da Dissonância Cognitiva” para melhor embasar o entendimento sobre a imparcialidade como princípio supremo do processo penal para que se entenda que é indispensável à preservação da justiça; e analisar a importância do Juiz das Garantias para que se possa resgatar a imparcialidade no âmbito da persecução penal.
Historicamente, um dos papeis do Juiz é atuar também na investigação preliminar (inquérito policial), seja de ofício ou por provocação do Ministério Público, determinando a produção de provas (156, I, CPP). Nesse diapasão, o mesmo magistrado que determina diligências no inquérito policial também prolatará a sentença, seja condenatória ou absolutória, vez que a prevenção, no Brasil, vale como critério da fixação da competência julgadora. Assim, resta evidente que, para o réu, quiçá para toda a sociedade, essa “exorbitância” da atividade judicante desemboca em violações de vários direitos fundamentais, pois um magistrado já contaminado pelas evidências colhidas na etapa administrativa não julgará a superveniente ação penal com a devida isenção atinente ao “Juiz Imparcial, previsto no art. 5º, XXXVII, da Carta Política brasileira”.
Em 2009 tramitou no Senado Federal o Projeto de Lei nº 156/2009, da autoria do Senador José Sarney, que propunha a implementação do Juiz das Garantias – um Magistrado cuja função, em acordo com o art. 15 do supradito projeto de lei, é “exercer o controle da legalidade da investigação criminal e salvaguardar os direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização do Poder Judiciário” [...]. Todavia, esse novo agente da investigação criminal esteve “engavetado” até o ano de 2019, quando ocorreu a retomada das discussões pelo Senador Cid Gomes (PDT/CE) ao propor o Projeto de Lei nº 4891. O Juiz das Garantias foi posteriormente fixado pela Lei nº 13.964/2019 – Pacote Anticrime – que alterou o Código de Processo Penal inserindo o artigo 3º-B. Entretanto, esse novo juízo ainda não foi definitivamente estabelecido porque existem acirradas discussões no meio político e jurídico acerca da constitucionalidade desta implementação, tanto que, tramitam no Supremo Tribunal Federal 04 (quatro) Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra a inserção desse novo magistrado. Trata-se das ADI 6298, 6299, 62300 e 62305. Caso sejam julgadas improcedentes, o Juiz das Garantias atuará na fase investigativa e terá poderes para, dentre outros, receber a comunicação imediata da prisão; receber o auto de prisão em flagrante para que faça o controle da legalidade; zelar pela observância dos direitos do preso; receber informações sobre a instauração de inquérito policial; decidir sobre requerimento de prisão provisória e cautelar; etc (Art. 3º-B, CPP).
Resta claro que o objeto deste estudo é a análise do papel a ser desempenhado pelo Juiz das Garantias. Contudo, não se olvida que este novo personagem pode ser considerado o responsável por reviver e fortalecer o princípio da imparcialidade no âmbito do processo penal, assim como será visto adiante. Levando em consideração o modus operandi desse novo magistrado, evidencia-se o seguinte quesito: É, de fato, possível que o Juiz das Garantias assegure a tão almejada imparcialidade no âmbito do Processo Penal?
A resposta para o questionamento em supra pode ser obtida através da compreensão (histórica) das imparcialidades subjetiva e objetiva, que serão oportunamente conceituadas, a partir das visões desses institutos pelos Tribunais de Direitos Humanos mundo a fora.
A imparcialidade deve ser vista como princípio supremo da jurisdição, um ponto de grande importância que merece sublime detalhamento. Entretanto, em uma análise preliminar, apresentar-se-á uma breve retrospectiva dos sistemas processuais penais inquisitório, acusatório e misto, demostrando as evoluções ideológicas acerca destes sistemas, sobrelevando, contudo, o sistema acusatório, pois este parece ser o que mais se adequa à instrumentalidade constitucional vigente, muito embora, sob a óptica de vários processualistas penais, a exemplo de Aury Celso Lima Lopes Jr., Salah Hassan Khaled Jr., Ricardo Jacobsen Gloeckner e Juliano de Oliveira Leonel, não seja este o modelo vigente no Brasil. É nesse ponto que se insere o Juiz das Garantias, que, como já foi aventado, terá a função de “exercer o controle da legalidade da investigação criminal e salvaguardar os direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização do Poder Judiciário”. Nesse sentido, a dissociação dos poderes de investigar (acusar) e de julgar, ainda centrados nas mãos de um único magistrado, parece ser fator de maior relevância para que haja a preservação da imparcialidade no processo penal e adequação ao sistema acusatório, de que trata o art. 3º-A, CPP.
Pelo exposto, verifica-se que o presente estudo merece relevância no cenário do processo penal brasileiro, tendo em vista, que com advento do Juiz das Garantias restará salvaguardada a eficácia dos direitos e garantias fundamentais dos acusados/réus, fixados na Carta Magna brasileira. Merece igual relevância para a comunidade acadêmica/jurídica brasileiras, pois a discussão nele contido contribui com o rompimento das barreiras do sistema inquisitório, situando o processo penal no modelo acusatório já vivenciado em outras nações, a exemplo da Itália. O presente estudo também é importante para a comunidade de alunos do Centro Universitário Santo Agostinho e igualmente para o curso de Direito da citada Instituição de Ensino Superior por se tratar de um tema que ainda não foi abordado naquele ambiente acadêmico e que pode vir a proporcionar melhor visibilidade à Faculdade e ao respectivo curso de Direito.
Num breve esboço histórico dos sistemas processuais hoje concebidos, ver-se-á que sua origem advém da Grécia antiga. Destarte, de forma resumida, percorrer-se-á os caminhos traçados ao longo da história por esses sistemas processuais até chegar aos dias atuais.
A mais expoente expressão do ordenamento jurídico grego é o sistema ateniense. Naquela civilização, os crimes eram classificados em “públicos” e “privados”. Nos crimes públicos, qualquer cidadão tinha legitimidade representativa, enquanto que os crimes privados “pertenciam” apenas às partes litigantes: faz-se aqui uma alusão ao processo civil.
Dentre as quatro espécies de tribunais atenienses (Heliasta, Éfetas, Areópago e Assembleia do povo), o que mais se destacava, o Heliasta, situado na Heliéia – daí a nomenclatura – era composto por cidadãos honrados, com mais de trinta anos e seus julgamentos aconteciam em público, sob a luz do sol (RITTER, 2016).
Heliéia - Era aqui que eram julgados a maioria dos processos. E, tal como nos assuntos políticos, o povo ateniense era soberano em matéria judiciária. Assim, anualmente, os arcontes sorteavam seis mil jurados de entre todos os cidadãos com mais de 30 anos. Depois escolhidos, os heliastas (nome que tinham os membros da Heliéia), prestavam juramento. Após este juramento, os seis mil jurados eram divididos em dez secções de quinhentos membros cada, ficando os restantes mil como suplentes. O número de heliastas convocado para cada julgamento era determinado pelo magistrado que efetuava a instrução do processo e escolhido mediante a importância da causa em julgamento. Aos heliastas era-lhes paga uma indemnização diária, relativamente elevada, o que levava a que a função de jurado se tenha tornado um meio de vida para os Atenienses pobres. Esta situação foi ridicularizada por Aristófanes, na comédia As Vespas. (POMBO, 2009)
Neste diapasão, o processo ateniense foi o que destacou os elementos fundantes do sistema acusatório, vez que havia, de fato, a paridade de armas e a igualdade de oportunidades entre acusador e acusado, publicidade, oralidade, valoração da prova, entre outras. Naquele sistema democrático as ações do juiz não se davam por sua própria iniciativa, restando os atos investigativos apenas às partes. Destarte, o juiz não podia determinar produção das provas que melhor lhe conviessem para a melhor solução do crime. Assim, consubstanciava-se um modelo lastreado na argumentação e na produção da verdade (RITTER, 2016).
Em outro lugar da civilização antiga, em Roma, existiram diversos sistemas de organização política que se formaram no decorrer da história: Monarquia, República e Império. Surgiram na fase republicana de Roma dois sistemas processuais: cognitio, accusatio e na fase do Império instaurou-se o sistema processual denominado cognitio extra ordinem.
No modelo da cognitio os poderes de investigar, acusar e julgar estavam concentrados nas mãos de um único magistrado (LOPES Jr., 2019). Esse sistema passou a não mais satisfazer a persecução criminal de forma efetiva, dando lugar à accusatio, no fim do período da Alta República. A accusatio, foi um sistema procedimental em que o magistrado já não detinha unicidade dos poderes, restando patente a separação das funções de acusar e julgar, dividindo-as em personas distintas. Quando esse modelo passou a não mais ser compatível com a forma política, tendo em vista que o poder estava nas mãos do imperador, o modelo de jurisdição também sofreu mudanças (retrocesso), pois foi afastada a noção de soberania popular (RITTER, 2016).
Nesse contexto, surgiu a cognitio extra ordinem. No (não tão) novo sistema a investigação era conduzida por agentes estatais e, efetuadas as devidas investigações, estas eram apresentadas ao magistrado. Entretanto, essa forma de procedimento durou pouco tempo e, assim, o magistrado recebera novamente os poderes para interferir em todas as fases do processo, acumulando as funções de acusar, defender e julgar, suprimindo a imparcialidade. Assim, o impulso do processo pelo juiz, da investigação ao julgamento, tornou-se regra (RITTER, 2016).
Eis que surgia o sistema inquisitório apregoado pela Igreja Católica, pois esta foi a única instituição que se manteve fiel aos dogmas do Império Romano, mesmo após sua derrocada e posterior domínio germânico (RITTER, 2016).
Esse sistema procedimental perdurou até o fim da Alta Idade Média, quando os senhores feudais se insurgiram contra os poderes do Rei, buscando maior participação na vida política da Europa do Séc. XV. Não obstante, no período de dominação da Igreja Católica, os juízes nomeados pelo Clero receberam poderes para julgar todos que contrariassem a fé cristã, instituindo o direito penal canônico, que substituiu a estrutura acusatória pela inquisitória.
A jurisdição eclesiástica considerava a prática de crimes um empecilho para a salvação da alma e, assim, o Clero passou a empreender uma verdadeira “caça às bruxas”, ordenando a captura dos comitentes de crimes, por menor potencial lesivo que causassem, sem ao menos propiciar-lhes o justo julgamento. Outrossim, esse modelo jurisdicional admitia as penas aflitivas e até as capitais como forma de se obter a verdade (mas qual verdade?). A reestruturação do modelo jurisdicional penal da cognitio extinguiu a imparcialidade dos julgamentos percebida na accusatio.
Neste vértice, o juiz inquisidor atuava como parte e era detentor dos poderes de acusar, julgar e defender. Assim, toda a gestão das provas necessárias ao seu convencimento estava concentrada em suas próprias mãos. Não obstante, naquele modelo processual o elemento probatório mais robusto era a confissão, que poderia ser obtida através de tortura, ordálias ou outros meios insidiosos.
Em 1231, o Papa Gregório IX reivindicou a tarefa de perseguição aos cátaros ordenada pelo Imperador Frederico II, instituindo, sob o cuidado da ordem dos Dominicanos, o Tribunal da Inquisição, que se consolidou com a Bula Ex Excomuniamus. Duas décadas depois, no ano de 1252, com a Bula Ad extirpanda, de Inocêncio IV, a tortura foi institucionalizada como meio de prova e restou estruturado o sistema inquisitorial que passou a vigorar (RITTER, 2016, p. 26 e 27).
O início do declínio desse sistema inquisitório coincidiu com o Iluminismo, que foi um movimento intelectual no qual o antropocentrismo era a principal característica. Posteriormente, após séculos de opressão e tirania, surgiram os ideais de libertação que deram origem à Revolução Francesa de 1789, a partir da qual o modelo jurisdicional passou por uma importante transformação, dando origem a um sistema misto, insculpido no Code d’Instructions Criminalle, que dividiu o processo penal em duas fases: a primeira remetia à instrução processual (investigação) para depois submetê-lo à apreciação judicial. A fase investigativa era secreta e dispunha de juiz-instrutor para conduzi-la. A segunda fase do processo era pública e garantia às partes o direito aos debates. Eis que esse sistema processual percebido na França do final do Séc. XVIII recebeu a alcunha de “sistema misto”, pois reunia características dos dois sistemas (LOPES Jr., 2019).
Na carta constitucional de 1988, mais precisamente no art. 5º, LIV, LV e LVII, estão consagradas as garantias fundamentais que merecem o maior destaque, quando falamos do principal pilar da democracia brasileira: a dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, principalmente no processo penal, todas essas garantias dispostas na Constituição da República Federativa do Brasil precisam ser respeitadas no decorrer do aludido procedimento para que se mantenha hígido o pilar-mor da ordenação brasileira – a dignidade da pessoa humana – mencionado anteriormente. À segurança oferecida aos jurisdicionados através dos dispositivos constitucionais supracitados dá-se o nome de “instrumentalidade constitucional”. Nesse sentido:
“A uma Constituição Autoritária vai corresponder um processo penal autoritário (fascista) e a uma Constituição democrática corresponderá um processo penal democrático” (LOPES Jr, 2019)
Não é difícil entender que a observância das garantias constitucionais deve nortear o processo penal, vez que este é o meio utilizado pelo julgador para alcançar a verdade ou, ao menos, aproximar-se ao máximo dela. Desse modo, para que não haja excessos, todos os elementos do devido processo legal devem se fazer presentes desde a petição inicial criminal até a prolação da respectiva sentença, seja condenatória ou absolutória. Afinal, nessa democracia a liberdade é a regra e também um dos bens jurídicos mais importantes garantidos à pessoa humana, de tal forma, que apenas o poder estatal poderá limitá-la, porém, somente após estritamente as regras.
Nesse sentido, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, 2017, em acertada dicção, afirmou que “O devido processo legal cresce em importância no âmbito penal, porque nele se coloca em jogo a liberdade que, depois da vida, é o bem mais precioso das pessoas”.
Acerca do que deve ser entendido por instrumentalidade, temos que “Em suma, nossa noção de instrumentalidade tem como conteúdo a máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais da Constituição, pautando-se pelo valor dignidade da pessoa humana submetida à violência do ritual judiciário” (LOPES Jr. e GLOECKNER, 2014)
Nesta toada, verifica-se, na instrução dos autores, que o processo penal, como instrumento de persecução, só terá plena eficácia se as garantias individuais e direitos fundamentais estiverem devidamente assegurados.
Os Direitos Fundamentais devem ser atrelados também ao código de processo penal para a proteção do indivíduo contra os excessos do Estado, sendo-lhe assegurada igual força para se defender. Não à toa, e para o fortalecimento da parte passiva do processo penal, a Constituição brasileira de 1988 estabeleceu que são assegurados os direitos ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal. Além desses, mas não menos importante para a proposta deste estudo, o livro constitucional também assegura que “ninguém será processado ou sentenciado senão pela autoridade competente”. Trata-se da aplicação do princípio do “Juiz Natural”, do qual se extrai a suma importância da instrumentalidade procedimental para que sejam assegurados todos os direitos fundamentais e garantias individuais a quem é submetido à tutela jurisdicional. Então temos:
O sistema garantista está sustentado por seis princípios básicos, sobre os quais deve ser erguido o processo penal:
1º Jurisdicionalidade - Nulla poena, nulla culpa sine iudicio: Não só como necessidade do processo penal, mas também em sentido amplo, como garantia orgânica da figura e do estatuto do juiz. Também representa a exclusividade do poder jurisdicional, direito ao juiz natural, independência da magistratura e exclusiva submissão à lei (LOPES Jr., 2012)
Em outro ângulo, no processo penal deve prevalecer a Presunção de Inocência elencada no artigo 5°, LVII da Carta Política de 1988, que menciona: “ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Texto também presente também na Convenção Americana de Direitos Humanos. Contudo, todos devem ser considerados inocentes, até que uma futura sentença prove o contrário. (BRASIL, 1988).
A dignidade da pessoa humana deve ser sempre enaltecida na seara processual penal, pois a condição de ser humano é uma característica inerente a todos os indivíduos, sem nenhuma distinção. Nesse viés é que se busca englobar todas as prerrogativas daquela pessoa que está submetida a um processo.
Por isso, há necessidade de lastrear a persecução penal com essas garantias, que se efetivam através do Estado de Direito:
Essa face protetiva e que trata de tentar equilibrar a balança compõe o cenário no qual se desenvolve o processo penal no Estado de Direito. Daí decorre a necessidade não apenas da existência formal do processo, mas de um processo substancialmente arvorado em preceitos protetivos, capazes de tentar reduzir ao máximo possível o nível de arbitrariedade da seleção do material humano (LOPES Jr., e GLOECKNER, 2014).
Por conseguinte, deve haver tutela de todas as proteções individuais no processo penal em congruência com o Estado Democrático de Direito, para que não ocorra nenhum vilipêndio no transcurso do procedimento persecutório, sob pena de violação do livro que rege a harmonia social neste país – a Constituição Federal de 1988.
No presente estudo já foi apresentada uma breve síntese da história dos sistemas processuais. Fruto do período da accusatio, o sistema acusatório consistiu em um modelo em que o juiz não era titular de todas as ações inerentes à persecução penal. A accusatio era a manifestação popular de justiça, na qual um “cidadão do povo” assumia a posição de acusador. Nesse sistema não se procedia contra pessoa ausente e a denunciação caluniosa era punida com multas, torturas e ordálias (RITTER, 2016). Assim como já se expôs, na accusatio predominava um modelo acusatório de processo penal, no qual o juiz não detinha amplos poderes, restando a ele apenas a função de julgar. Com efeito, resta patente a percepção de imparcialidade, que clareia a noção de julgamento justo e isento.
Na atualidade, o processo penal acusatório apresenta as seguintes características:
clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; b) a iniciativa probatória deve ser das partes decorrência lógica da distinção entre as atividades; c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo; d) tratamento igualitário das partes igualdade de oportunidades no processo; e) procedimento é em regra oral ou predominantemente; f) plena publicidade de todo o procedimento ou de sua maior parte; g) contraditório e possibilidade de resistência defesa; h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; i) instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica e social da coisa julgada; j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição. (LOPES Jr, 2019. n.p).
Evidenciadas as características do sistema acusatório, não restam dúvidas de que é este o que melhor se adequa ao modelo constitucional vigente, pois é sob estes aspectos que se oportuniza o tratamento igualitário às partes (RITTER, 2016).
Muito embora esse almejado sistema um dia venha prevalecer, colidirá, inevitavelmente com algumas barreiras – diríamos naturais – pois não são impostas pelos atores do processo, a exemplo das custas processuais ou mesmo dos honorários de um bom advogado (LOPES Jr., 2019. n.p). Assim, restarão abaladas a paridade de armas, o contraditório, o devido processo legal, e a imparcialidade, mais visíveis em um modelo acusatório do processo penal, assim como tentou-se demonstrar até aqui.
Vimos, neste estudo, que os sistemas processuais passaram por várias mudanças e se amoldaram ao cenário político de cada época, com avanços e retrocessos, até serem presenciados nos dias atuais.
Vimos também que são três as percepções do processo penal ao longo da história: cognitio, accusatio e cognitio extra ordinem, que apresentavam, respectivamente, traços dos sistemas inquisitório, acusatório e misto (?). O ponto fulcral da diferença entre esses sistemas é a gestão da prova, como vimos, pois, quando ela é posta nas mãos do juiz o processo penal é inquisitório, mas quando a gestão das provas é entregue às partes o processo penal é acusatório e proporciona a legítima igualdade entre acusador e acusado, estando o magistrado na posição de expectador.
A partir daqui, buscar-se-á enfatizar sistema inquisitório para que se entenda que este não é o que mais se adequa ao senso de justiça sob a óptica do Estado Democrático de Direito.
Com efeito, a noção de inquisição decorre do período em que a Igreja Católica empreendeu a retromencionada, “caça-às-bruxas”. Nesse contexto:
A Inquisição é um grupo de instituições dentro do sistema jurídico da Igreja Católica Romana cujo objetivo é combater a heresia. Começou no século XII na França para combater a propagação do sectarismo religioso, em particular, em relação aos cátaros e valdenses. Entre os outros grupos que foram investigados mais tarde encontram-se os fraticellis, os hussitas (seguidores de Jan Hus) e as beguinas. A partir da década de 1250, os inquisidores eram geralmente escolhidos entre os membros da Ordem Dominicana para substituir a prática anterior de utilizar o clero local como juízes. O termo Inquisição Medieval cobre os tribunais ao longo do século XIV (WIKIPEDIA, 2020).
No sistema inquisitorial, o magistrado interfere em todo o decorrer do processo, determinando quais as provas que lhe servirão para o bel convencimento, seja para condenar ou para absolver. Nesse sentido, percebe-se que um traço marcante desse sistema é o autoritarismo, que pode ser comparado ao nazifascismo (LOPES Jr., 2019, n.p).
Nesse passo, no aludido sistema jurisdicional penal o juiz acumula as funções de acusar, provar e julgar, manifestando a excelência da parcialidade em sua atividade judicante, pois, o que desejar fazer, fará. Na investigação preliminar, em que também interfere, se o magistrado – futuro instrutor processual – envereda o a produção das provas com a intenção de condenar, no processo conhecimento ele certamente condenará o réu, sem ao menos propiciar-lhe os meios adequados para manifestar a sua defesa. Neste aspecto, “ao inquisidor cabe o mister de acusar e julgar, transformando-se o imputado em mero objeto de verificação, razão a noção de parte não tem nenhum sentido” (COUTINHO, 2001 apud LOPES Jr., 2019).
No sistema processual da inquisição a confissão era a “rainha das provas”, sendo ela suficiente para a condenação; os acusados eram torturados por quinze dias e se resistissem ao período da tortura, eram “liberados”, mas ainda ficavam sob a espreita da inquisição, pois não eram considerados inocentes, nesse caso, apenas não se provava nada contra eles; não existia a ideia de coisa julgada (LOPES Jr., 2019). Diante do exposto, notável é a insegurança jurídica que predominava naquele período. Não obstante, vez que vigorou durante a Idade Média, a inquisição era mais um traço característico da “idade das trevas”.
Com efeito, Lopes JR. (2019, n.p) nos diz que
O sistema inquisitório muda a fisionomia do processo de forma radical. O que era um duelo leal e franco entre acusador e acusado, com igualdade de poderes e oportunidades, se transforma em disputa desigual entre o juiz-inquisidor e o acusado. O primeiro abandona sua posição de árbitro imparcial e assume a atividade de inquisidor, atuando desde o início também como acusador. Confundem-se as atividades do juiz e acusador, e o acusado perde a condição de sujeito processual e se converte em mero objeto da investigação. (...) O juiz atua como parte, investiga, dirige, acusa e julga. Com relação ao procedimento, sói ser escrito, secreto e não contraditório.
A história nos conta que esse sistema inquisitório perdurou até a Revolução Francesa de 1789, quando, paulatinamente, deu lugar ao que se conhece até hoje como “sistema misto”, que, como vimos, porta características dos outros dois sistemas (LOPES Jr., 2019).
Seguindo a evolução dos sistemas processuais, deparamo-nos com o que se conhece, até os nossos dias, como sistema misto, que, conforme exposição anterior, demonstra características do sistema inquisitório e do sistema acusatório, “consagrado na França, no Código de Instrução Criminal de 1808” (RITTER, 2016 p.34). Nesta linha de raciocínio impera relembrar que o sistema acusatório vigorou até o século XII, época em que esse sistema passou a ser insuficiente para o modelo político, passando o Juiz a receber críticas sobre a gestão da prova, vez que a sua inércia se demonstrava precária e prejudicial, pois a atividade probatória era destinada às partes, fazendo com que o julgador decidisse com base no material probatório incompleto e defeituoso (Lopes Jr., 2019). Destarte, o sistema inquisitivo ganhou mais espaço em decorrência da inatividade das partes na produção das provas, fazendo com que o Estado assumisse a gestão da prova.
É verdade que a gestão da prova é núcleo fundante dos sistemas processuais. Este é o elemento que possibilita distinguir o sistema acusatório do inquisitório, assim como esclarece Coutinho (2015, n.p):
A característica fundamental do sistema inquisitório, em verdade, está na gestão da prova, confiada essencialmente ao magistrado que, em geral, no modelo em análise, recolhe-a secretamente[44], sendo que "a vantagem (aparente) de uma tal estrutura residiria em que o juiz poderia mais fácil e amplamente informar-se sobre a verdade dos factos – de todos os factos penalmente relevantes, mesmo que não contidos na 'acusação' –, dado o seu domínio único e omnipotente do processo em qualquer das suas fases."[45] Como refere Foucault, com razão, "ele constituía, sozinho e com pleno poder, uma verdade com a qual investia o acusado."[46][...]
A par da gestão da prova não estar nas mãos dos juízes, mas ser confiada às partes - aqui existentes na sua concepção mais radical –, outras características dão ao sistema acusatório uma visão distinta daquele inquisitorial. Deste modo, com Barreiros[70], é possível referir que o órgão julgador é uma Assembleia ou jurados populares (Júri); que há igualdade das partes e o juiz (estatal) é árbitro, sem iniciação de investigação; que a acusação nos delitos públicos é desencadeada por ação popular, ao passo que nos delitos privados a atribuição é do ofendido, mas nunca é pública; que o processo é, por excelência e obviamente, oral, público e contraditório; que a prova é avaliada dentro da livre convicção; que a sentença passa em julgado e, por fim, que a liberdade do acusado é a regra, antes da condenação, até para poder dar conta da prova a ser produzida.
Importa salientar que o termo “sistema”, remete a uma estrutura orientada pelo princípio informador e unificador, com foco na sua finalidade, ou seja, a reconstrução de um fato pretérito, assim é possível situar a gestão da prova no núcleo fundante dos sistemas processuais, fato que possibilita identifica-los com mais visibilidade.
Impende dizer que, no sistema acusatório, a gestão da prova aponta o princípio dispositivo, também conhecido como princípio da demanda (RITTER, 2016), como o núcleo estruturante, notadamente sendo a produção das provas uma atribuição das partes, cabendo ao juiz a função de mero expectador. A outro tanto, no sistema inquisitivo essa produção de provas também pertence ao magistrado, que pode agir também de oficio, inclusive na fase da investigação preliminar, fato que é duramente criticado pelos doutrinadores da atualidade. Neste ponto, enfatiza Lopes Jr. (2019):
O mais interessante é que não aprendemos com os erros, nem mesmo com os mais graves, como foi a inquisição. Basta constatar que o atual CPP atribui poderes instrutórios para o juiz, a maioria dos tribunais e doutrinadores defende essa “postura ativa” por parte do juiz (muitas vezes invocando a tal “verdade real”, esquecendo a origem desse mito e não percebendo o absurdo do conceito), proliferam projetos de lei criando juízes inquisidores e “juizados de instrução” etc.
Sob este prisma, pode-se concluir sumariamente que é inviável conceber o aludido sistema misto, vez que a lei (CPP), permitindo que o juiz determine a produção antecipada das provas na fase do inquérito policial (que poderão ou não ser utilizadas na fase de instrução processual), o processo penal estará automaticamente mergulhado no perigoso sistema inquisitório. Coutinho (2015, p.6) alerta para o seguinte:
O dito sistema misto, reformado ou napoleônico é a conjugação dos outros dois, mas não tem um princípio unificador próprio, sendo certo que ou é essencialmente inquisitório (como o nosso), com algo (características secundárias) proveniente do sistema acusatório, ou é essencialmente acusatório, com alguns elementos característicos (novamente secundários) recolhidos do sistema inquisitório. Por isto, só formalmente podemos considerá-lo como um terceiro sistema, mantendo viva, sempre, a noção referente a seu princípio unificador, até porque está aqui, quiçá, o ponto de partida da alienação que se verifica no operador do direito, mormente o processual, descompromissando-o diante de um atuar que o sistema está a exigir ou, pior, não o imunizando contra os vícios gerados por ele. Visitá-los, ainda que brevemente, é tarefa imprescindível, para se verificar suas estruturas e, a partir daí, situar o papel que desempenha no atuar dos operadores jurídicos e, mais particularmente, dos juízes no processo penal.
Com efeito, a ideia de um sistema processual misto se mostra, de fato, inviável por não comportar um princípio unificador. Este elemento deve funcionar como alicerce para a percepção de um sistema puro e, vez que o sistema misto contém características do sistema acusatório e do sistema inquisitório, não se pode pensar nele como um terceiro sistema.
Não obstante, o presente estudo mostra que o sistema acusatório parece ser o que melhor se adequa à instrumentalidade constitucional, desenhada sobre os direitos fundamentais e as garantias individuais, mas precisamente quando se fala em ampla defesa, contraditório, devido processo legal, presunção de inocência, juiz natural, etc. Por outro lado, o sistema inquisitorial contém elementos nazifascistas, no qual o juiz é o principal ator do processo, dotado de todos os poderes: o de investigar, produzir provas, acusar e julgar. O julgamento embasado nas provas colhidas sob os critérios do juiz faz dele uma terceira parte onipotente no processo penal, daí impende dizer que nesse sistema não existe imparcialidade.
Neste ponto faz-se referência ao artigo 156, I do Código do Processo Penal (CPP), que delega atividades de investigação ao juiz que também será responsável pela instrução processual, permitindo que, de ofício, ele interfira na fase não processual, na qual não cabe alegar o contraditório. Assim, corrobora Ritter, 2016, p.45:
Por mais “monstruoso” que possa ser, é este o sistema adotado pelo direito processual brasileiro, em que a investigação preliminar se dá por meio de inquérito policial, conduzida pelo delegado de polícia de forma secreta, escrita, com ausência de contraditório e ampla defesa, na busca da confirmação da “verdade do delito” que lhe foi noticiado.
O processo penal brasileiro é colocado no baluarte do mítico sistema misto (LOPES Jr., 2019) porque a persecução penal é dividida em duas fases: a da investigação, que, em tese, se desenha sobre o modelo acusatório; e, após, a fase da apreciação do poder judiciário. Nestes termos seria possível pensar em um sistema misto, pois, como se pôde perceber, não houve nenhuma menção à atividade do juiz na fase da investigação preliminar. Entretanto, não se pode olvidar que o dispositivo do diploma processual penal em debate permite que o juiz atue também na investigação. Destarte, abandonadas as características do modelo acusatório, não é possível estabelecer o processo penal brasileiro no sistema misto, quiçá, no acusatório, apesar de o recém-inserido artigo 3º-A, CPP dispor que “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”. (BRASIL, 2019. Código de Processo Penal).
Após a explicação sobre a falsa percepção sobre o sistema misto que, supostamente, envolve o processo penal brasileiro, podemos validar a inconstitucionalidade do at.156 do CPP, vez que fere o princípio do Juiz Imparcial, fixado no art. 5º, XXXVII da Constituição Federal. Vale informar que o artigo 3º-A do Código de Processo Penal revogou tacitamente o artigo 156, I do mesmo diploma processual.
De uma forma muito clara, o diploma processual informa que o processo penal terá estrutura acusatória. Destarte, como vem sendo exposto no decorrer do presente estudo, o modelo acusatório não aceita que o magistrado detenha todos os poderes na persecução penal e, contudo, pugna pela dissociação das atividades de acusar e julgar (resumidamente). Isto porque o aludido modelo processual visa, dentre outros, à preservação da imparcialidade do julgador perante os litigantes. Assim, doravante, passar-se-á à explicação deste elemento como um norte a ser seguido para que se perceba, ainda que timidamente, o senso de justiça quando se fala do “jogo” de estratégias.
“O termo partial expressa a condição de parte na relação jurídica processual e, por isso, a imparcialidade do julgador constitui uma consequência lógica da adoção da heterocomposição, por meio da qual um terceiro impartial substitui a autonomia das partes” (GOLDSCHIMIDT, apud LOPES Jr., 2018).
A Imparcialidade é o princípio supremo do processo (ARAGONENES, 1997, apud POZZEBON, 2007 p. 167). Ainda, a imparcialidade, que em 1950 recebeu da Convenção Europeia de Direitos Humanos o status de direito protegido (POZZEBON, 2007), corresponde a um dos pressupostos de validade do processo penal, fato que permite concluir que parcialidade de um juiz, ao conduzir um processo penal, revestirá o procedimento com nulidades formais e materiais.
A jurisdição não existe se não for imparcial”. Isto deve ser devidamente esclarecido: não se trata de que a jurisdição possa ou não ser imparcial e se não o for não cumpra eficazmente sua função, mas que sem imparcialidade, não há jurisdição. A imparcialidade é a essência da jurisdicionariedade e não o seu acidente (Zaffaroni, 1995, p.86 apud Pozzebom, 2007, p. 167).
Partindo desses entendimentos, veremos que, em termos doutrinários, existem duas espécies de imparcialidade: a imparcialidade subjetiva e a imparcialidade objetiva.
A primeira espécie citada remete à convicção do juiz quanto o receio de julgar por meio de uma preconcepção dos fatos, enquanto que a imparcialidade objetiva permite ao magistrado a certeza de que está julgando de maneira acertada, sem pôr em detrimento o direito de qualquer das partes do processo (RITTER, 2016).
O julgador, por óbvio, deve ser imparcial, conforme o exposto até aqui, pois é seu dever ex ofício, ou seja, inerente à atividade judicante que exerce. Com igual sorte, sabe-se que um lampejo de parcialidade pode causar desconfiança na sociedade ou mesmo no meio judicial em que o magistrado está inserido. Dessa forma, o juiz não deve apenas ser imparcial, mas deve também transparecer que o é, causando boas impressões sobre o desempenho do seu papel jurisdicional em toda a comunidade (RITTER, 2016). E também, “a possibilidade de parcialidade judicial é vista assim, como degeneradora da própria prestação jurisdicional” (POZZEBON, 2007 P. 169).
Entretanto, ser imparcial não significa ser neutro. Aliás, historicamente, a neutralidade do juiz consistiu em uma das falhas do sistema acusatório e contribuiu, como já vimos, para o declínio daquele sistema. O fato de o juiz figurar no processo penal como mero expectador, na accusatio, causou o declínio do próprio sistema acusatório.
É importante destacar que a crítica que se fez (e se faz até hoje) ao modelo acusatório é exatamente com relação à inércia do juiz (imposição das imparcialidades), pois este deve resignar-se com as consequências de uma atividade incompleta das partes, tendo que decidir com base em um material defeituoso que lhe foi proporcionado. Esse sempre o fundamento histórico que conduziu à atribuição de poderes instrutórios e revelou-se (por meio da inquisição) um gravíssimo erro (LOPES Jr., 2019).
De qualquer sorte, a ideia de imparcialidade também pode ser atribuída pelo viés das garantias conferidas aos juízes pela constituição: vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de subsídios. Essas garantias evitam que agentes dos outros dois poderes estatais interfiram nos julgamentos (RITTER, 2016). Conclui-se, contudo, que a imparcialidade pela qual o julgador deve primar durante o processo penal reside em sua própria consciência, que deve condiciona-lo a não subverter os direitos fundamentais e as garantias individuais.
Leon Festinger (1919 – 1989) foi um psicólogo norte americano que ganhou fama através de sua Teoria da Dissonância Cognitiva, conhecida em 1957, quando publicou sua obra “A Theory of Cognitive Dissonance”, que tratava, em regra, das inquietações naturais dos seres humanos ao se depararem com suas incoerências cognitivas involuntárias e a consequente busca pelo retorno à coerência. De acordo com esta teoria, os sujeitos empreendem uma busca incansável por respaldo naquilo que acreditam ser certo, a partir do seu próprio ponto de vista, efetuando uma busca seletiva das informações cognoscentes. Este processo, redutor das dissonâncias, foi intitulado “efeito inércia ou efeito perseverança” por Bernd Shünemann (RITTER, 2016). É certo que as pessoas, naturalmente, tendem a se convencer com aquilo que é compatível com a sua cognição (consonância). Por outro lado, menosprezam, inconscientemente, os elementos que não agregam valor à sua ideia de “correto”, mesmo que não esteja, de fato, correto. Tal convencimento leva o indivíduo à tomada de decisões, claro, enveredando pelo que considera racional e condicente com as suas próprias convicções. Um exemplo das considerações postas é a dúvida que, comumente se abate sobre as pessoas ao escolher um veículo para comprar. Nesse aspecto, quando o comprador escolhe um veículo, ele automaticamente descarta os demais, acreditando que escolheu a opção correta. Entretanto, após a compra, este mesmo indivíduo questiona se teria feito melhor escolha optando por outro veículo (RITTER, 2016 p. 100). Contudo, após sanear essa dúvida, o indivíduo passa a valorizar a sua escolha e pormenorizar aquilo que não escolheu, convencendo-se, por definitivo, de que agiu corretamente perante a decisão tomada. De acordo com Ritter (2016, p.102) “Portanto, depois de ser tomada uma decisão, há uma tendência para passar a gostar mais daquilo que se escolheu e a gostar menos do que não se escolheu”.
À vista disso, cumpre esclarecer que a associação da Teoria da Dissonância Cognitiva, de Festinger, burilada por Martin Irle (1927-2013), foi apresentada pelo Filósofo do Direito Bernd Schünemann. O citado jurista questionava, com base na supracitada teoria, se a leitura do inquérito policial influenciava a cognição do magistrado que instruiria o processo penal no caso concreto.
O que questiona Schünemann, portanto, lastreado em tal teoria, é se a leitura dos autos da investigação preliminar (inquérito policial) não acaba fixando uma imagem unilateral e tendenciosa do fato na psique do juiz, capaz de lhe vendar para outras possibilidades, visto que apegado a esta, buscará comprová-la no processo, comprometendo definitivamente sua imparcialidade (Ritter, 2016).
Após quatro etapas de averiguação, com a participação de 58 juízes, Schünemman concluiu que o inquérito influencia, de fato, a decisão do juiz. Verificou-se que havia mais condenações quando os juízes conheciam o teor da investigação preliminar, na qual, relembrando, não é permitido invocar o direito ao contraditório, lido no art. 5º, LV, CF88. Assim, inexoravelmente, a leitura dos autos do inquérito policial compromete a imparcialidade do juiz no processo penal (RITTER, 2016).
Com efeito, o modelo de persecução penal adotado, ainda hoje, no Brasil, confere ao magistrado a faculdade de atuar tanto na investigação preliminar, sob o advento do fascista artigo 156, I, CPP quanto na instrução processual. Desta feita, o jargão “a primeira impressão é a que fica” – o que, tecnicamente é intitulado “efeito primazia” – ilustra perfeitamente a concepção de (im)parcialidade que se tem sobre a atuação do juiz na persecução penal e, muito embora, o art. 3º-A, CPP, inserido nesse diploma legal pela lei ordinária nº 13.964/2019 – Pacote Anticrime – nos induza a crer que o processo penal apresenta estrutura acusatória, ainda não é possível atestar sua veracidade, pois a possibilidade conferida pelo “dispositivo fascista”, o macula. Cabe realçar a importância da exclusão física do inquérito policial dos autos do processo penal, vez que consiste numa tarefa fundamental para que o julgador não seja influenciado pelo que constatou na fase da investigação preliminar.
É de se supor – afirma Schünemann – que ‘tendencialmente o juiz a ela se apegará (a imagem já construída) de modo que ele tentará confirmá-la na audiência (instrução), isto é, tendencialmente deverá superestimar as informações consoantes e menosprezar as informações dissonantes (LOPES Jr., 2019).
Diante do exposto, consta respondida parte da problemática contida no presente estudo, pois, a partir da constatação sobre os elementos trazidos à baila – efeito inércia ou perseverança e efeito primazia – com a leitura da Teoria da Dissonância Cognitiva e conclusão sobre a “contaminação” da atividade judicante no processo penal pela leitura do inquérito policial, resta demonstrado que sua exclusão é primordial para a manutenção da imparcialidade do juiz da instrução processual.
Com perspicácia, neste estudo foi demonstrado que a imparcialidade – princípio supremo da jurisdição – é fundamental para que se faça justiça no decurso de um processo penal. Explicou-se que o juiz, além de carregar o dever de ser imparcial em seus julgamentos para que siga em paz com sua consciência (imparcialidade subjetiva), também deve demonstrar ser imparcial para que não gere desconfiança na comunidade em que é inserido (imparcialidade objetiva).
Após, vimos que em 1957 foi desenvolvida a Teoria da Dissonância Cognitiva e que, mais tarde, ela foi aplicada ao processo penal pelo jus filósofo alemão Bernd Schünemann, que, por seu turno, comprovou cientificamente que o efeito inércia ou perseverança (a crença em preconcepções e a negação de novas concepções para satisfazer a “paz espiritual”) e o efeito primazia (concepção sobre algo, que se forma com o primeiro contato) influenciam um juiz e comprometem a imparcialidade em seus julgamentos. Neste ponto, referimos a crítica de Schünemann ao contato do juiz de instrução com os autos da investigação. Em suas pesquisas, o citado jurista confirmou que, havido o aludido contato, os magistrados condenaram mais do que absolveram.
Em vista disso, cabe o retorno ao problema de pesquisa deste estudo: Em que medida o juiz das garantias e a exclusão física do inquérito policial são necessários para a preservação da imparcialidade do juiz, a partir da teoria da dissonância cognitiva?
Enfim, é chegada a hora de discorrer sobre o elemento-chave do presente estudo: o Juiz das Garantias. Este é o novo personagem da persecução penal, que recebe(rá) poderes para conduzir ao lado do Ministério Público as investigações preliminares.
O Juiz das Garantias foi inserido no contexto do código de processo penal pela lei ordinária nº 13.964/19, apelidada de lei anticrime ou pacote anticrime. A antedita lei incluiu o art. 3º-B no CPP, que assim dispõe:
Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: I - receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal; II - receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310 deste Código; III - zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo; IV - ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal; V - decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no § 1º deste artigo; VI - prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente; VII - decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral; VIII - prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo; IX - determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento; X - requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação; XI - decidir sobre os requerimentos de: a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação; b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico; c) busca e apreensão domiciliar; d) acesso a informações sigilosas; e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado; XII - julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia; XIII - determinar a instauração de incidente de insanidade mental; XIV - decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código; XV - assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento; XVI - deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia; XVII - decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação; XVIII - outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo § 1º (VETADO). § 2º Se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada.
Esse novo magistrado, que atuará conjuntamente com o Ministério Público nas investigações criminais de médio e alto potencial lesivo (penas superiores a dois anos de prisão), terá a missão de garantir a preservação dos direitos e garantias constitucionais do acusado, pois a sua inserção no âmbito do processo penal afastará das investigações o juiz da instrução processual. Como vimos, atualmente o juiz tem poderes para determinar a produção antecipada de provas, fato que se percebe com a leitura do art. 156, I, CPP. Destarte, essa atuação na fase do inquérito policial compromete sua imparcialidade, pois, manifesta-se aí o seu “interesse” na causa, que como já foi explicado, gera nulidades formais e materiais no procedimento.
Em outro vértice, restou demonstrado através da Teoria da Dissonância Cognitiva, que um magistrado, convencido de sua concepção adquirida após o conhecimento dos autos da investigação preliminar em que lhe ofereça oportunidade para a conclusão sobre o cometimento do ilícito, tende a condenar (efeito primazia). Neste ponto, é muito importante rememorar que o sujeito passivo de um inquérito policial não exerce o direito ao contraditório, pois a Constituição Federal prevê essa garantia apenas aos litigantes em processo (stricto sensu) penal ou administrativo. Assim, pode-se observar que a exclusão física do inquérito é necessária à manutenção da imparcialidade do julgador, porém, como observou Ritter, 2016, p. 165, o art. 12, CPP, permite concluir que, apesar de necessária, não haverá a exclusão física dos autos do inquérito.
[...] extrai-se a conclusão de que não há no Código projetado qualquer inovação à atual sistemática, na qual o inquérito policial integra os autos do processo, tendo-se apenas ratificado a previsão do artigo 12 do CPP vigente, que dispõe que o expediente da investigação preliminar deve acompanhar a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra.
À vista disso e de tudo que já se sabe sobre o modelo acusatório, não é possível afirmar que o processo penal brasileiro está inserido neste modelo, mesmo com a inserção do Juiz das Garantias e a consequente exclusão física dos autos do inquérito policial. Ao contrário, atesta-se, sobremaneira, a permanente inquisição processual.
Com efeito, para que haja a modernização do sistema processual penal brasileiro, deve-se considerar a importância do Juiz das Garantias como mantenedor da jurisdição (pois, sem imparcialidade ela não existe). Deflagrada a contaminação da cognição do julgador pelo contato com os autos do inquérito, reputa-se aconselhável o afastamento do juiz da instrução processual da fase pré-processual, em razão do devido processo legal garantido pela Constituição Federal de 1988.
Ademais, as oposições doutrinárias aos poderes conferidos ao julgador culminam na separação das funções de acusar e julgar. Assim, o que se pretende com a instituição desse novo personagem é a materialização do modelo acusatório no processo penal brasileiro. O Juiz das Garantias propicia ao julgador de mérito a manutenção da imparcialidade, assim como uma maior autonomia para julgar.
É simples o raciocínio. Havendo uma autoridade judiciária exclusivamente responsável pela fase pré-processual (juiz das garantias) há também a libertação do julgador do processo do passivo da investigação e do compromisso pessoal com decisões já tomadas naquele momento inicial. Ademais, não se lhe impõe que colabore com a identificação de fontes de prova ou que compartilhe da perspectiva dos órgãos de persecução penal, tudo à preservar a sua imparcialidade (RITTER, 2016 p. 152).
Após a abordagens presentes neste estudo, resta patente a importância do Juiz das Garantias como agente responsável pela fase pré-processual da persecução criminal e manutenção dos direitos individuais do acusado, pois já dizia Zaffaroni: “a imparcialidade do julgador é pressuposto de existência da jurisdição”.
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POZZEBON, Fabrício Dreyer de Avila. A imparcialidade do juiz no processo penal. brasileiro. Revista AJURIS. Rio Grande do Sul, 2007.
Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário Santo Agostinho.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Diego Rimisck de. Juiz das garantias: o resgate da imparcialidade no processo penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 maio 2021, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56543/juiz-das-garantias-o-resgate-da-imparcialidade-no-processo-penal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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