WENAS SILVA SANTOS[1]
(orientador)
RESUMO: A busca pela elucidação do crime de estupro de vulnerável pode ser um desafio para o Estado brasileiro quanto à prova da materialidade delitiva e os indícios de autoria, uma vez que, pode acontecer sem que haja a presença de testemunhas, nesse ponto é preciso ouvir o depoimento das partes, do autor e da vítima. Nos casos em que o crime é cometido sem testemunhas, o questionamento que surge é o valor probatório do depoimento da vítima quando confrontado com o do acusado. A considerar esse cenário, o trabalho científico tem como objetivo verificar o valor probatório da palavra da vítima de estupro de vulnerável segundo o ordenamento criminal brasileiro através de pesquisa bibliográfica, com objetivo de explorar e analisar qualitativamente o material coletado. Após o estudo, concluiu-se que a valoração do depoimento da vítima de estupro de vulnerável é maior do que nos crimes de outra natureza, mas que precisa convencer o julgador de se trata da verdade. Ou seja, ainda que a vítima tenha importante participação no processo penal, deve o Julgador proferir seu veredicto condenatório se estiver convencido da existência do crime, em respeito à máxima de absolvição em caso de dúvida.
Palavras-chave: Estupro de Vulnerável. Meios de Prova. Palavra da Vítima. Valor.
ABSTRACT: The search for the elucidation of the crime of rape of the vulnerable can be a challenge for the Brazilian State in terms of proof of criminal materiality and evidence of authorship, since it can happen without witnesses, at this point it is necessary to listen to the testimony of the parties, the perpetrator and the victim. In cases where the crime is committed without witnesses, the question that arises is the probative value of the victim's testimony when confronted with that of the accused. In considering this scenario, the scientific work aims to verify the probative value of the word of the victim of rape of the vulnerable according to the Brazilian criminal order through bibliographic research, in order to explore and qualitatively analyze the material collected. After the study, it was concluded that the valuation of the testimony of the victim of rape of the vulnerable is higher than in crimes of another nature, but that he needs to convince the judge that this is the truth. That is, even if the victim has an important participation in the criminal process, the Judge must render his condemnatory verdict if he is convinced of the existence of the crime, with respect to the maximum acquittal in case of doubt.
Keywords: Rape of Vulnerable. Means of Evidence. Victim's Word. Value.
Sumário: Introdução. Material e Métodos. 1. Estupro de Vulnerável. 1.1 Tipo penal. 1.2. Elementos para sua caracterização. 2. As provas no Direito Penal. 3. O valor probatório do depoimento da vítima no crime de estupro de vulnerável. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O delito de estupro de vulnerável encontra-se tipificado no artigo 217-A do Código Penal Brasileiro e processa-se mediante ação penal pública incondicionada. Logo quando noticiado o delito, compete ao Estado, através da atuação da polícia investigativa, apresentar as provas de materialidade e indícios de autoria, para fundamentar o recebimento da denúncia.
Ocorre que existem situações em que a prática delituosa não deixa vestígios identificáveis através do exame de corpo de delito, o que faz com que a investigação se paute em elementos fáticos apontados por depoimentos de pessoas envolvidas e outras circunstâncias. Assim, havendo coerência entre o apurado pela oitiva das testemunhas com o contexto local, restará provado, em tese, o enquadramento no tipo penal.
Todavia, por ser delito intimo, diante da discordância entre a palavra da vítima e a do acusado, questiona-se o valor probatório que a primeira possui no direito processual penal; isto porque, ao acusado é assegurado o direito ao contraditório e a ampla defesa, não podendo ser condenado sem um robusto acervo probatório.
Desta feita, a pesquisa tem o objetivo de verificar qual é o valor probatório da palavra da vítima nos processos que apuram a prática do crime de estupro de vulnerável, que comumente é praticado sem a presença de testemunhas.
Para isso, a pesquisa irá discorrer sobre o crime tipificado no artigo 217-A e suas elementares, os meios de prova e analisar, com base na proteção dada à vítima de violência sexual, o valor de seu depoimento para a condenação do acusado.
No tocante à metodologia adotada, a pesquisa científica se enquadra na modalidade de estudo bibliográfico, baseado em conteúdos já publicados. Redigida segundo o método dedutivo, a pesquisa classifica-se como qualitativa, na medida em que apresentará os mais relevantes entendimentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o valor da palavra da vítima de estupro de vulnerável.
MATERIAL E MÉTODOS
A pesquisa científica denominada de Estupro de Vulnerável: o valor probatório do depoimento da vítima é classificada como bibliográfica, porque foi baseada em materiais já disponibilizados na literatura, com objetivo de explorar o material coletado e tornar conhecida a discussão sobre o valor do depoimento da vítima e a interpretação dada pelos Tribunais Brasileiros.
A metodologia aplicada foi a de análise qualitativa do texto, através do confrontamento de opiniões, interpretações e conteúdos com a análise de doutrinas sobre o crime de estupro de vulnerável e o valor probatório do depoimento da vítima. Os resultados que obtidos foram apresentados de forma argumentativa, com a transcrição dos trechos que embase o posicionamento adotado pelo sistema penal brasileiro.
Quanto aos aspectos éticos, o trabalho não precisou se sujeitar a aprovação prévia do Comitê de Ética em Pesquisa exigida pela Resolução CNS 466/2012 porque apresentou informações e dados que constam em doutrinas, leis e jurisprudências já disponibilizadas em livros ou em sites jurídicos, sem implicar em qualquer risco aos seres humanos.
1 O ESTUPRO DE VULNERÁVEL
Tipificado no artigo 217-A do Código Penal, o crime de estupro de vulnerável é um dos delitos sexuais, agravado por ser crime hediondo, em que há grande interesse estatal em punir o autor do fato, uma vez que atenta contra a dignidade sexual de pessoas tidas como vulneráveis.
A discussão sobre o delito de estupro de vulnerável no direito brasileiro é permeada pelos seguintes apontamentos legais e doutrinários acerca de sua tipificação.
1.1 TIPO PENAL
O Estupro de vulnerável é crime no Brasil e está tipificado no artigo 217-A do Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848/1940) com a seguinte redação legal:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência (BRASIL, 1940).
§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4o Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime (BRASIL, 1940).
Esse delito está inserido no Título VI da parte especial do Código Penal denominado “Dos Crimes contra a Dignidade Sexual” denominação que, conforme esclarece Rogério Greco:
Tem o condão de influenciar na análise de cada figura típica nele contida, pois que, por meio de uma interpretação sistêmica ou mesmo de uma interpretação teleológica, em que se busca a finalidade da proteção legal, pode-se concluir a respeito do bem que se quer proteger, conduzindo, assim, o intérprete, que não poderá fugir às orientações nele contidas (GRECO, 2017, p. 1,120).
A tipificação específica do crime de estupro de vulnerável foi inserida no Código Penal por meio da Lei 12.015/2009, que criou um crime com sanção própria de estupro quando praticado contra vulneráveis.
Na modalidade simples, o estupro de vulnerável é punido com pena de reclusão de 08 a 15 anos. Existem também duas hipóteses em que a sanção é qualificada, a qual será de 10 a 20 anos se resultar em lesão grave, e 12 a 30 anos se a vítima do estupro vir a óbito (BRASIL, 1940).
Caso a conduta do agente se enquadre nas disposições legais apontadas acima, será o indivíduo acusado da prática de estupro de vulnerável, por isso é essencial abordar os elementos doutrinários e jurisprudenciais acerca da sua caracterização.
1.2 ELEMENTOS PARA SUA CARACTERIZAÇÃO
Conforme define Damásio Evangelista de Jesus, “o crime em apreço constitui a realização de qualquer ato libidinoso (contato sexual tendente à satisfação da lascívia), consensual ou não com pessoas em situação de vulnerabilidade” (DAMÁSIO, 2014, p. 813).
A ação nuclear desse crime é prática de conjunção carnal, que se caracteriza com a cópula vagínica, ou a prática de ato libidinoso, que compreende outros atos sexuais diversos, como exemplo a cópula oral ou anal (CAPEZ, 2012).
Ou seja, no estupro de vulnerável o constrangimento e a violência não são elementares para a caracterização do delito.
O núcleo ter, previsto pelo mencionado tipo penal, ao contrário do verbo constranger, não exige que a conduta seja cometida mediante violência ou grave ameaça. Basta, portanto, que o agente tenha, efetivamente, conjunção carnal, que poderá até mesmo ser consentida pela vítima, ou que com ela pratique outro ato libidinoso (GRECO, 2017, p. 1.187).
Portanto, não é necessária a violência para sua consumação, fato que foi sedimentado pela inserção do parágrafo 5º, criado após constantes questionamentos na doutrina sobre a interferência da vida pregressa da vítima ou seu consentimento para o ato sexual. Assim dispõe a Lei:
§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime. (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018) (BRASIL, 1940).
A sua consumação ocorre com a prática de qualquer ato libidinoso contra a vítima por se tratar de delito de mera conduta, sendo admitida a sua modalidade tentada.
Enquanto o sujeito ativo é comum, isto é, crime que pode ser praticado por qualquer pessoa, o sujeito passivo do delito é somente aquele considerado vulnerável pela norma (JESUS, 2014).
Diferente do que ocorre no crime de estupro previsto no artigo 213 do Código Penal, o delito descrito no artigo 217-A somente se caracteriza com a vulnerabilidade da vítima, que é assim definida por Fernando Capez:
Vulnerável é qualquer pessoa em situação de fragilidade ou perigo. A lei não se refere aqui à capacidade para consentir ou à maturidade sexual da vítima, mas ao fato de se encontrar em situação de maior fraqueza moral, social, cultural, fisiológica, biológica etc. Uma jovem menor, sexualmente experimentada e envolvida em prostituição, pode atingir às custas desse prematuro envolvimento um amadurecimento precoce. Não se pode afirmar que seja incapaz de compreender o que faz. No entanto, é considerada vulnerável, dada a sua condição de menor sujeita à exploração sexual (CAPEZ, 2012, p.103).
A vulnerabilidade não é apenas a decorrente da menoridade inferior à 14 anos, mas também aquelas decorrentes de deficiências, como estabelece o parágrafo 1º:
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009) (BRASIL, 1940).
Estando, pois a vítima inserida em uma dessas hipóteses de vulnerabilidade, o crime será classificado como o descrito no artigo 217-A do Código Penal, situação que não é afastada mesmo que haja consentimento e coabitação entre vítima e autor. Nesse sentido é a decisão recentemente proferida pelo Superior Tribunal de Justiça.
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL, VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE VIOLÊNCIA. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. NAMORO E COABITAÇÃO. IRRELEVÂNCIA. SÚMULA 593 DO STJ. RECURSO PROVIDO. 1. A Terceira Seção, no julgamento do REsp 1.480.881/PI, submetido ao rito dos recursos repetitivos, reafirmou a orientação jurisprudencial, então dominante, de que absoluta a presunção de violência em casos da prática de conjunção carnal ou ato libidinoso diverso com pessoa menor de 14 anos. 2. Em que pese a sensível situação retratada nos autos, que ensejou a absolvição do réu em ambas as instâncias, porque, sendo colega de escola da vítima menor de 14 anos, com ela namorou e coabitou, mediante o consentimento da mãe, entende esta Corte que “O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente” (Súmula 593/STJ). 3. Demonstrada a autoria e materialidade delitiva, deve ser afastada a presunção relativa de violência para julgar procedente a pretensão acusatória pela prática do delito de estupro de vulnerável. 4. Recurso especial provido para condenar o recorrido L M P como incurso no art. 217-A do CP, determinando ao Tribunal de origem que proceda à dosimetria da pena, como entender de direito. (STJ – REsp: 1852598 RO 2019/0366164-7, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 02/02/2021, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/02/2021)
Contudo, assim como ocorre em todo processo penal, a condenação do agente somente é admitida com a comprovação da autoria e da materialidade delitiva, o que ocorre no decorrer da instrução processual, com a utilização dos variados meios de prova previstos na legislação.
2 AS PROVAS NO DIREITO PENAL
A confirmação da autoria delitiva e da materialidade do crime se dá por meio da apuração de indícios e da sua comprovação por meio das provas produzidas no decorrer do processo penal.
As provas são essenciais para o processo penal haja vista que o direito penal tem como fundamento a aplicação do princípio da verdade real, que é assim definido por Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar:
O princípio da verdade real (ou “substancial”, de acordo com termologia adotada pelo art. 566, CPP) também é conhecido como princípio da livre-investigação da prova no interior do pedido, princípio da imparcialidade do juiz na direção e apreciação da prova, princípio da investigação, princípio inquisitivo e princípio da investigação judicial da prova (TAVORA e ALENCAR, 2016, p. 55).
Na busca pela verdade real, o julgador vale-se das provas contidas nos autos para apurar a ocorrência de um ilícito penal e aplicar a sanção correspondente. A prova é, por definição de Alexandre C. A. Reis e Victor Eduardo R. Gonçalves “ o elemento que autoriza a conclusão acerca da veracidade de um fato ou circunstância” (REIS e GONÇALVES, 2016, p. 308).
Fernando Capez a define do seguinte modo:
Do latim probatio, é o conjunto de atos praticados pelas partes, pelo juiz (CPP, arts. 156, I e II, 209 e 234) e por terceiros (p. ex., peritos), destinados a levar ao magistrado a convicção acerca da existência ou inexistência de um fato, da falsidade ou veracidade de uma afirmação. Trata-se, portanto, de todo e qualquer meio de percepção empregado pelo homem com a finalidade de comprovar a verdade de uma alegação (CAPEZ, 2018, p.364).
As provas são produzidas com o intuito de aclarar os fatos e a dinâmica do crime para que o julgador, quem irá aplicar a Lei, tenha conhecimento da verdade e dê uma resposta justa e condizente com a conduta do agente. Ou seja, seu objetivo é solucionar as incertezas e questionamentos acerca do crime ocorrido.
Assim dispõe o artigo 155 do Código de Processo Penal:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas (BRASIL, 1941).
São admitidos vários meios de produção de provas, exceto aquelas tidas como ilícitas por violarem os fundamentos constitucionais e legais em vigor. O Inciso LVI do artigo 5º da Constituição Federal, que trata dos direitos fundamentais, assevera que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos“ (BRASIL, 1988).
Quando produzida de forma ilícita, a prova é considerada nula e retirada do processo. Nesse sentido é o entendimento do STJ:
PROCESSUAL PENAL E PENAL. RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. PROVA ILÍCITA. NULIDADE. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA ACESSO DE DADOS DE APLICATIVO CELULAR WHATSAPP. INADMISSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. Ilícita é a devassa de dados, bem como das conversas de whatsapp, obtidas diretamente pela polícia em celular apreendido no flagrante, sem prévia autorização judicial. 2. Recurso especial provido para declarar a nulidade das provas obtidas no celular do recorrente sem autorização judicial e, bem assim, das provas consequentes, a serem aferidas pelo magistrado na origem, devendo o material respectivo ser extraído dos autos, procedendo-se à prolação de nova sentença com base nas provas remanescentes, estendido seus efeitos aos demais corréus, ficando prejudicadas as demais questões arguidas no recurso. (STJ – Resp: 1701504 SC 2017/0252704-2. Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 27/02/2018, T¨- SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/03/2018)
Consideram-se meios de provas “tudo aquilo que pode ser utilizado, direta ou indiretamente, para demonstrar o que se alega no processo” (TAVORA e ALENCAR, 2016, p. 839), sendo as principais formas produção através de materiais, documentos e testemunhos.
Fernando Capez as define de forma simplificada:
Quanto à forma ou aparência, a prova é: (i) testemunhal: resultante do depoimento prestado por sujeito estranho ao processo sobre fatos de seu conhecimento pertinentes ao litígio;(ii) documental: produzida por meio de documentos; (iii) material: obtida por meio químico, físico ou biológico (ex.: exames, vistorias, corpo de delito etc.) (CAPEZ, 2018, p. 398).
Conforme explanado anteriormente, são vários os meios de prova, produzidos para comprovação de variados aspectos do crime, todas voltadas ao livre convencimento e persuasão racional do Julgador.
Outro meio de prova levado em consideração no processo penal refere-se à oitiva do ofendido, que está disciplinada no artigo 201 do Código de Processo Penal, que em seu caput dispõe:
Art. 201. Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações (BRASIL, 1941).
Esclarece Alexandre C. A. Reis e Victor Eduardo R. Gonçalves que “ofendido é o titular do interesse jurídico lesado pela conduta criminosa, ou seja, é a vítima, o sujeito passivo do delito. (REIS e GONÇALVES, 2016, p.357)”.
O seu depoimento tem natureza probatória e por isso deve ser realizado sempre que possível.
O ofendido, que não é testemunha, e não pode ser tratado como tal, presta suas declarações sempre que possível, sendo qualificado e interpelado acerca das circunstâncias da infração, de quem presuma ser o infrator, das provas que possa indicar, sendo tudo reduzido a termo. Não será compromissado a dizer a verdade, e caso minta, não incide em falso testemunho (art. 342, CP), podendo ser responsabilizado, dando ensejo à instauração de inquérito ou processo contra pessoa sabidamente inocente, pelo crime de denunciação caluniosa (art. 339, CP) (TAVORA e ALENCAR, 2016, p.954).
Em regra, o depoimento do ofendido é prova a ser considerada, mas a doutrina recomenda cautela do julgador na sua valoração. A discussão torna-se mais complexa nos casos em que não existem outras testemunhas, como é o caso dos crimes sexuais, dentre eles o estupro de vulnerável.
3 O VALOR PROBATÓRIO DO DEPOIMENTO DA VÍTIMA NO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL
Conforme falado anteriormente, o depoimento da vítima é considerado um meio de prova utilizado pelo julgador para obter a verdade sobre os fatos e apontar a autoria e materialidade delitiva, que são essenciais para a condenação penal.
No decorrer da ação criminal, cabe ao Magistrado analisar o processo e valorar as provas segundo sua convicção, em razão dos princípios processuais penais do livre convencimento e da persuasão racional.
Assim, o juiz tem liberdade para formar a sua convicção, não estando preso a qualquer critério legal de prefixação de valores probatórios. No entanto, essa liberdade não é absoluta, sendo necessária a devida fundamentação. Consoante, bem assinala Vicente Greco Filho, “Quanto à valoração do conteúdo da prova, passar-se-á certamente pelo sistema da persuasão racional, o confronto com as demais provas e, inclusive, a confiabilidade de quem a colheu”(CAPEZ, 2018, p.395).
Ou seja, as provas são valoradas pelo Magistrado, que analisa o conjunto de provas e a partir daí forma seu convencimento.
Acontece que, em processos relativos a crimes sexuais, são poucas as provas possíveis de serem produzidas, situação que deu início ao questionamento acerca do valor do depoimento pessoal da vítima nos crimes desta natureza, entre eles o estupro de vulnerável.
Conforme explicam Alexandre C. A. Reis e Victor Eduardo R. Gonçalves, o depoimento da vítima, apesar de ser considerado uma prova relativa, tem valor probatório maior nos crimes de natureza sexual, veja:
Se, por um lado, a narrativa da vítima deve ser aceita com reservas quando houver fundamento para se concluir que pretende, deliberadamente, prejudicar ou beneficiar o acusado, tal como ocorre, respectivamente, em caso de existência de prévio antagonismo ou de existência de vínculos de afetividade entre ambos, é corrente o entendimento de que, nos delitos praticados clandestinamente e, sobretudo, nas infrações sexuais, as palavras da vítima revestem-se de elevadíssimo valor (REIS e GONÇALVES, 2016, p. 359).
Essa interpretação está sedimentada pelo STF há mais de uma década e tem sido aplicada também pelo Superior Tribunal de Justiça. Nesse sentido é decisão do Tribunal Superior:
AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. APELAÇÃO INTERPOSTA PELO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO. LEGITIMIDADE. PALAVRA DA VÍTIMA. ESPECIAL RELEVÂNCIA. SÚMULA 83/STJ. REVOLVIMENTO FÁTICO PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. DOSIMETRIA. PENA-BASE. CONSEQUÊNCIAS DO CRIME. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. AGRAVO IMPROVIDO. [...] 4. Nos crimes sexuais, a palavra da vítima possui especial relevo, tendo em vista sobretudo o modus operandi empregado na prática desses delitos, cometidos, via de regra, às escondidas. Súmula 83/STJ. 5. O fato de a conduta delituosa, concretamente, ter causado trauma psicológico à vítima, a qual, segundo consta do acórdão, ficou revoltada, agressiva, apresentou mudança de comportamento na escola, começou a usar drogas, chegando até mesmo a tentar suicídio, justifica a valoração negativa das consequências do delito, por desbordar das ínsitas ou comuns ao delito. 6. Agravo regimental improvido. (STJ – AgRg nos EDcl no AREsp: 1565652 RJ 2019/0249966-0, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 16/06/2020, T6- SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/06/2020)
Com maior valor probatório do que nos demais crimes, o depoimento da vítima deve ser considerado pelo Julgador, sendo essencial para um decreto condenatório, aliado às demais provas coletadas no decorrer do processo. Assim tem decidido os tribunais estaduais brasileiros:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. SENTENÇA CONDENATÓRIA. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO POR AUSÊNCIA DE PROVAS DA AUTORIA. EXISTÊNCIA DE PROVAS APTAS A ENSEJAR A CONDENAÇÃO DO RÉU. RELEVÂNCIA DA PALAVRA DA VÍTIMA NOS DELITOS DE CUNHO SEXUAL. COERÊNCIA COM OS DEPOIMENTOS DAS TESTEMUNHAS. LAUDO PSICOLÓGICO. NÃO HÁ QUE SE FALAR EM DÚVIDAS OU EM FRAGILIDADE DAS PROVAS. RECURSO IMPROVIDO. DECISÃO UNÂNIME. 1. A doutrina e jurisprudência, de maneira pacífica, atribuem extrema relevância ao depoimento prestado pela vítima, especialmente em razão de ser ela, na maior parte das vezes, a única testemunha ocular de ação delituosa e se tratar de crime cujos vestígios desaparecem rapidamente. 2. Ora, numa análise conjunta da prova produzida, não resta dúvida nos autos de que houve o delito descrito no artigo 217-A do Código Penal. Na hipótese, em que pese não tenha ocorrido efetiva conjunção carnal, a vítima W.R.L, sobrinha do recorrente, que contava com apenas 12 (doze) anos à época do fato, esclareceu, com riqueza de detalhes, todos os atos libidinosos contra ela cometidos. Outrossim, foram colhidos depoimentos de testemunhas, os quais eram harmônicos e coerentes com a palavra da vítima, não havendo que se falar em fragilidade das provas produzidas. Portanto, vê-se que a ocorrência do crime encontra-se amplamente comprovada não só pela palavra da vítima, mas por depoimentos prestados sob o crivo do contraditório, os quais indicam que o réu tem o comportamento voltado à prática de delitos de cunho sexual. 3. Recurso conhecido e improvido. (TJ – AL – APR: 07002373320158020067 AL 0700237-33.2015.8.02.0067, Relator: Des. João Luiz Azevedo Lessa, Data de Julgamento: 19/08/2020, Câmara Criminal, Data de Publicação: 21/08/2020).
Esse foi o entendimento adotado também pelo Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, que ao julgar um recurso de apelação que colocava em questionamento o valor do depoimento da vítima e sua suposta fragilidade, decidiu manter incólume a sentença proferida pelo Juízo de 1º Grau. Consta no Acórdão a interpretação de que um depoimento de vítima de estupro de vulnerável que seja coeso, harmônico e que esteja em consonância com o testemunho de sua genitora e com Laudo de exame pericial realizado na vítima é sim prova suficiente para um decreto condenatório, por ser ainda uma prova que possui especial relevo em crimes de natureza sexual. (TJ-SE: APR: 00319113020188250001, Relator: Diógenes Barreto, Data de Julgamento: 13/08/2019, CÂMARA CRIMINAL).
Quanto à sua relevância não existem dúvidas. Nos crimes de estupro de vulnerável, geralmente praticado às escuras, os relatos da vítima do ato são essenciais para o deslinde do processo, mas não é o único fator a ser observado pelo Julgador.
Para que o acusado seja condenado, é preciso que o acervo probatório seja robusto, de modo que o depoimento da vítima deve estar em concordância com as demais provas ou, ao menos, ser firme e sem contradições. Caso não convença o magistrado, a absolvição deve ser a medida tomada.
APELAÇÃO CRIMINAL – ESTUPRO DE VULNERÁVEL EM CONCURSO DE PESSOAS E AGENTES ASCENDENTES, PAI E AVÔ (CP, ART. 217-A C/C ART. 226, I E II) – SENTENÇA ABSOLUTÓRIA – RECURSO DO ÓRGÃO ACUSATÓRIO. PRETENDIDA CONDENAÇÃO NOS TERMOS DA AUDIÊNCIA – IMPOSSIBILIDADE – RELATOS DE CONJUNÇÃO CARNAL E ATOS LIBIDINOSOS OCORRIDOS NO MESMO CONTEXTO POR UMA ÚNICA VEZ – VERSÃO DA VÍTIMA IMPRECISA QUANTO AOS DETALHES DO FATO, ALIADO À PROVA TESTEMUNHAL DA NEGATIVA DO FATO – DIVERSOS DEPOIMENTOS DESCREVENDO QUE, FORA DOS AUTOS, A VÍTIMA NEGOU O ABUSO E IMPUTOU COERÇÃO DA MÃE PARA TANTO – PALAVRAS DA VÍTIMA QUE NÃO ASSUMEM A ESPECIAL RELEVÂNCIA COMO NATURALMENTE SE TEM EM DELITOS DESSA ESPÉCIE – AUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVA SEM FIRMEZA NECESSÁRIA – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO – ABSOLVIÇÃO QUE DEVE SER MANTIDA. I – Verificado o entrechoque de provas, mormente em razão da palavrada da vítima inseguras e imprecisas, imperativa se mostra a absolvição dos acusados, em reverencia ao princípio in dubio pro reo. II – No sistema processual penal brasileiro, vige o princípio in dubio pro reo, consubstanciado na tese de que a existência de provas conflitantes nos autos, ou mesmo a ausência de elementos aptos a confirmarem a materialidade do delito, conduz à absolvição do acusado. Referida assertiva pressupõe, também, que o ônus da prova deve recair sobre a acusação, de sorte a ensejar a improcedência da denúncia caso não venha acompanhada de conjunto probatório suficiente à prolação de um decreto condenatório seguro (TJ-SC – APR:00015280220158240034 Itapiranga 0001528-02.2015.8.24.0034, Relator: Luiz Antônio Zanini Fornerolli, Data de Julgamento: 11/07/2019, Quarta Câmara Criminal).
Portanto, o crime de estupro de vulnerável, assim como os demais crimes de natureza sexual, leva em consideração o depoimento da vítima e o considera essencial para a apuração da verdade – com valor probatório maior do que comumente considerado nas demais ações penais, mas, quando é o único meio de prova, necessita ser averiguado pelo Julgador, sob pena de causar injustiça.
Deste modo, a pesquisa concluiu que de fato o depoimento da vítima tem um peso maior nos processos que investigam a prática do crime de estupro de vulnerável porque é comumente praticado sem a presença de testemunhas. Todavia, ainda nessas ações deve prevalecer a presunção de inocência, com a condenação do acusado mediante acervo probatório que aponte a verdade dos fatos.
Ainda que se busque punir com rigor os crimes sexuais, não se pode permitir a aplicação de sanção de tamanha gravidade sem que esteja o Julgador convencido da prática delitiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando há a notícia de um crime, compete ao Estado, através da atuação da polícia, a realização de investigação criminal a fim de indicar um provável autor do fato. Concluída a investigação, em seguida, se instaura o processo penal. Ao se tratar de crimes de ação penal pública incondicionada, a titularidade da ação é do Ministério Público.
Tipificado no artigo 217-A do Código Penal, o crime de estupro de vulnerável é um dos delitos sexuais, agravado por ser crime hediondo, em que há grande interesse estatal em punir o autor do fato, uma vez que atenta contra a dignidade sexual de pessoas tidas como vulneráveis.
Por vitimar vulneráveis, seja em razão da idade (menores de catorze anos) ou de enfermidade ou deficiência mental, sem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa não pode oferecer resistência, a comprovação do fato pode ser um desafio no processo penal.
Por ocorrer, muitas vezes, sem a presença de testemunhas, se concretizando com a prática de atos libidinosos, dispensada a conjunção carnal, tomada do depoimento da vítima pode ser a única prova da ocorrência da conduta criminosa.
A considerar as características desse delito, é pacífico na jurisprudência pátria a interpretação de que o depoimento da vítima de estupro de vulnerável tem sim um valor probatório maior do que nos crimes de natureza diversa, por ser um crime que tem como característica a prática às escuras, por agente delitivo que se aproveita da vulnerabilidade da vítima para cometer o crime e mantê-lo em sigilo.
As decisões judiciais apontadas ao longo do estudo demonstraram que os depoimentos dessas vítimas possuem um valor probatório maior do que o dado aos crimes de outras naturezas, mas não são tidos como absolutos. As decisões dos tribunais fazem uma ressalva de que tal depoimento deve estar em concordância com as demais provas ou, ao menos, ser robusto; isto é, dar ao Magistrado a convicção de que se trata da verdade posto que, assim como ocorre nos demais processos de apuração de crime, a condenação deve estar pautada em um acervo probatório que convença o Magistrado, não deixando dúvidas acerca da autoria e da materialidade delitiva.
Portanto, o depoimento da vítima deve convencer o julgador acerca da ocorrência delitiva, haja vista que, em que pese a gravidade do delito, não pode o Magistrado proferir julgamento sem levar em consideração os princípios constitucionais do contraditório e da presunção de inocência.
Caberá ao Magistrado que julga a ação penal valorar o depoimento da vítima e proferir sua sentença conforme sua livre convicção, sem deixar de lado os princípios e fundamentos que norteiam o processo penal, ramo que pune com a privação da liberdade.
REFERÊNCIAS
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[1] Professor Orientador do Curso de Direito da Universidade de Gurupi – Unirg. Pós-graduado em Direito Público e Docência Universitária pela Faculdade Católica Dom Orione (FACDO) e Mestre em Estudos Interdisciplinares de cultura e território pela Universidade Federal do Tocantins (UFT).
Bacharelando do do Curso de Direito da Universidade de Gurupi- UnirG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Gregory Matheus Azevedo da. Estupro de vulnerável: o valor probatório do depoimento da vítima Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jun 2021, 04:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56630/estupro-de-vulnervel-o-valor-probatrio-do-depoimento-da-vtima. Acesso em: 22 nov 2024.
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