RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo a pesquisa a respeito do crime do art. 217-A, tendo por objetivo principal verificar de que forma a relativização da súmula 593 do STJ poderia infringir o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente dada pelo ECA. Nesse sentido, o presente trabalho entendeu que a relativização da sumula 593 do STJ poderia fazer com que esse crime fosse bem menos gravoso, o que pode acabar estimulando a prática do tipo penal – uma vez que a norma penal tem a função preventiva e repressora, diminuir a repressão pode aumentar a ocorrência desse tipo de violência à crianças e adolescentes. Concluiu-se, também, que as medidas repressivas para esses casos de estupro de vulnerável por si só não teriam o efeito completamente necessário, sendo preciso que também haja uma ação preventiva do Estado e isso pode ser feito assegurando-se o princípio da proteção integral às crianças e adolescentes. Ainda que tais medidas não tenham efeito completo por si só, é muito importante que não haja flexibilização na gravidade de tais crimes, uma vez que eventual flexibilização posterior poderia gerar efeitos desastrosos à proteção de crianças e adolescentes, construída com muito esforço pelas normas jurídicas brasileiras no decorrer dos anos.
Palavras-Chave: Estupro de Vulnerável; Proteção; Integral; Criança; Adolescente.
ABSTRACT: The present work aims at researching the crime of art. 217-A, with the main objective of verifying how the relativization of the 593 STJ summary could violate the principle of full protection for children and adolescents given by ECA. In this sense, the present work understood that the relativization of the Supreme Court's 593 summary could make this crime much less serious, which may end up stimulating the practice of the criminal type - since the criminal rule has a preventive and repressive function, reducing repression can increase the occurrence of this type of violence to children and adolescents. It was also concluded that the repressive measures for these cases of rape of the vulnerable alone would not have the completely necessary effect, and that there must also be preventive action by the State and this can be done by ensuring the principle of full protection. children and adolescents. Although such measures do not have full effect in themselves, it is very important that there is no easing in the seriousness of such crimes, since any subsequent easing could have disastrous effects on the protection of children and adolescents, built with great effort by Brazilian legal norms over the years.
Keywords: Rape of Vulnerable; Protection; Integral; Kid; Adolescent.
INTRODUÇÃO
O estupro é um crime que choca e revolta a população em geral, haja vista suas inúmeras consequências físicas e psicológicas as vítimas deste tipo de delito. Essa afirmação pode ser verificada pelas inúmeras denúncias de tentativa de linchamentos por parte da população à acusados desse tipo de crime.
Essa situação de revolta piora ainda mais quando as vítimas do estupro são crianças e adolescentes, pois os entendemos como pessoas em situação naturalmente vulnerável em razão de sua incapacidade de entender de forma completa uma situação posta e poder julgá-la como certa ou errada, dando consentimento a ela ou não.
Um dos principais fatores dessa revolta popular é pelo fato de que esse crime acaba gerando um trauma grande na pessoa que o sofreu, carregando-o muitas vezes pelo resto de sua vida, resultando em doenças psicológicas como depressão e ansiedade ou até mesmo doenças físicas, como a ocorrência de doenças sexualmente transmissíveis, por exemplo.
Quando falamos em crianças e adolescentes, entendemos que estes estão em fase de ensino escolar, aprendendo os valores junto sua família e outros locais parte de sua cultura, como na escola, igreja e outras instituições.
Essa ideia faz com que crianças e adolescentes remetam ao seu não desenvolvimento completo de suas capacidades mentais, uma vez que ainda não tem idade suficiente para compreender determinadas implicações que atos podem causar em suas vidas, como o caso do ato sexual, por exemplo.
. Neste momento da vida do menor, temos um ser que ainda está aprendendo o que é moralmente correto para a sua vida ou não. Por conta disso, as crianças e adolescentes acabam sendo vítimas fáceis de pessoas próximas que estejam mal-intencionadas no sentido de as abusar sexualmente, pois não conseguem ter discernimento completo de como essa prática é condenável socialmente.
O trauma gerado pelo estupro poderá significar diversas dificuldades à criança e ao adolescente, como a dificuldade em se concentrar nos seus estudos, muito em decorrência dos danos psicológicos que a vítima sofreu.
Além disso, podemos encontrar em vários casos o isolamento social da vítima, que já não acredita e nem confia em mais ninguém por conta desse evento traumático em sua vida.
Levando em consideração todas essas questões pertinentes a vida da criança e do adolescente, o legislador decidiu que deveria haver algum mecanismo que pudesse coibir essas práticas danosas em especial para crianças e adolescentes: tem-se, portanto, uma das razões da existência do princípio da proteção integral à criança e ao adolescente.
Nesse sentido, podemos perceber a necessidade de o crime de estupro de vulnerável ser um tipo penal que deve abarcar muito da função repressora e preventiva do direito penal. Isso porque a certeza da pena e das suas consequências na vida do acusado (o estigma social, por exemplo) pode afugentar possíveis infratores da prática do crime em questão.
Levando em conta todas as considerações feitas anteriormente, o presente trabalho pretende analisar a súmula 593 do STJ à luz do princípio da proteção integral da criança e do adolescente, para verificar a necessidade de se manter o rigor com esse crime.
Para isso, pretende-se fazer uso da doutrina e jurisprudência, analisando e verificando suas aplicações à cada caso. No decorrer do artigo, exploraremos mais a fundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), explicando o princípio da proteção integral com a interpretação à luz da Constituição Federa; também se pretende ter uma análise mais profunda a respeito da doutrina e verificar de que forma os autores defendem ou criticam essa postura adotada atualmente pelos tribunais.
Pretende-se que este artigo contribuía de forma positiva a sociedade, com a disseminação do conhecimento e da defesa deste ideal de proteção integral aos menores.
1 ANÁLISE DO DIREITO PENAL E SUAS FUNÇÕES REPRESSIVA E PREVENTIVA
O Direito Penal é um ramo do direito diferenciado em relação aos demais, uma vez que suas implicações têm reflexo em um dos mais importantes direitos: a liberdade.
A retirada da liberdade de locomoção de um ser humano, ainda que momentânea, pode ser, por si só, uma experiência muito traumática a aquele que a vivência. Nesse sentido, o Direito Penal tutela apenas aquelas condutas que são condenadas pela sociedade e, consequentemente, pelo Direito.
Sanches (2015, p.31) entende que o Estado deve aplicar sanções aos indivíduos que causam danos a paz social e a regular convivência humana e que o Direito Penal se diferencia dos demais ramos do Direito justamente pela espécie de consequência que traz consigo – a pena ou a medida de segurança:
A manutenção da paz social, que propicia a regular convivência humana em sociedade, demanda a existência de normas destinadas a estabelecer diretrizes que, impostas aos indivíduos, determinam ou proíbem determinadas comportamentos. Quando violadas as regras de condutas, surge para o Estado o poder (dever) de aplicar as sanções, civis e/ou penais. Nessa tarefa (controle social) atuam vários ramos do Direito, cada qual com sua medida sancionadora capazes de inibir novos atos contrários à ordem social. Todavia, temos condutas que, por atentarem (de forma relevante e intolerável) contra bens jurídicos especialmente tutelados, determinam reação mais severa por parte do Estado, que passa a cominar sanções de caráter penal, regradas pelo Direito Penal. O que diferencia uma norma penal das demais impostas coativamente pelo Estado é a espécie de consequência jurídica que traz consigo (cominação das penas e medidas de segurança).
É importante citarmos que o Direito Penal tem importante missão dentro da ordem jurídica: a preservação da paz social. Justamente por esse motivo, existem duas principais funções deste ramo do direito – a função repressora e a função preventiva.
2 ESTUDO HISTÓRICO DO CRIME DE ESTUPRO E O TIPO PENAL ESTUPRO DE VULNERÁVEL:
A criminalização do crime de estupro perpassou por diversas mudanças decorrentes de evoluções do pensamento humano de acordo com a História.
Inicialmente, o crime de estupro foi tipificado pelo Código de Hamurabi. Segundo Ferreira (2019, online): “O crime de estupro foi positivado pela primeira vez no Código de Hamurábi, entre os séculos XVIII e XVII A. C. Portanto, aquele que fosse flagrado violando uma mulher virgem, que morasse com os pais, era punido com a pena de morte.”
O Código de Hamurabi é um dos mais antigos registros de lei escrita da História. Sua posição de punir com a morte a maioria dos crimes deve-se ao fato da ideia de que a sociedade da época exigia severas reparações a crimes, ocorrendo a punição grave – a morte – para aqueles em que a sociedade condenava veemente.
A partir do Código de Hamurabi e com o avanço da História, outras sociedades buscaram legislar a respeito com base em sua cultura.
Exemplo disso é a maneira que se deu a criminalização do estupro na Grécia antiga. Segundo Ferreira (2019, online), crianças e adolescentes eram, por muitas vezes, vítimas de sexualização precoce pelos pais, e sua criminalização só passou a ocorrer a partir da expansão do cristianismo na Europa:
Na Grécia antiga, a infância era marcada por muitas ocasiões eróticas, sendo que em muitos casos as próprias filhas eram estupradas por seus pais e, nessa cultura, muitas mulheres da Roma e da Grécia não tinham seu hímen integro. Ademais, vale destacar que não eram apenas as mulheres vítimas desse abuso, pois muitos filhos homens eram entregues a homens mais velhos desde os 07 (sete) anos, onde eram abusados sexualmente até completarem 21 (vinte e um) anos. (HISGAIL, 2007).
Evidencia-se, portanto, que tanto na Grécia quanto no Império Romano, muitas crianças eram objetos sexuais de adultos e tal prática era comum, sendo tolerado pela comunidade. A prática foi ganhando contornos negativos com a expansão do cristianismo
Na legislação pátria, o crime de estupro passou a ser condenado pelo Código Criminal do Império, em 1830. Ferreira (2019, online) salienta que o Código Criminal do Império, ainda que tenha sido importante norma incriminadora da época, peca ao considerar como critério de majoração da pena a suposta “pureza” da vítima, fazendo com que pessoas que sofriam marginalização, como as prostitutas, estivessem mais suscetíveis aos ataques de estupradores, uma vez que suas penas seriam mais brandas. Além disso, apenas mulheres poderiam ser consideradas vítimas de estupro:
Fica evidente a grande discriminação considerando a pureza da vítima, a qual tinha a pena mais branda caso fosse uma garota de programa. No mais, há também uma discriminação em relação a vítima, pois apenas as mulheres poderiam ser consideradas vítimas, sendo que para homens não havia punição
A partir do Código Penal Republicano, em 1890, a legislação brasileira havia avançado um pouco mais em relação à taxatividade da conduta tida como estupro. A partir daqui o crime de estupro poderia ser realizado contra dois tipos de vítimas: a mulher honesta ou a chamada mulher “pública”, ou prostituta.
No primeiro caso, a pena cominada era maior, uma vez que o crime era considerado como de maior gravidade, sendo os agressores punidos com penas que poderiam variar entre 1 até 6 anos de prisão. (FERREIRA, 2019)
Já no segundo caso, como o crime seria de menor gravidade, os agressores eram punidos com penas que variavam entre 6 meses até 2 anos, a depender da situação em que ocorreu o estupro. (FERREIRA,2019)
O Código Penal Republicano permaneceu por muitos anos como principal guia da esfera penal, ainda que no decorrer da sua permanência no sistema jurídico brasileiro sua definição do crime de estupro tenha sido bastante criticada.
Justamente por conta das críticas, tal legislação sofreu alteração em 1932, com a criação da Consolidação das Leis Penal, que viria a ser novamente revista em 1940, criando-se, assim, o atual Código Penal Brasileiro.
Atualmente, o Código Penal de 1940 trouxe, no artigo 213 a seguinte definição para o crime de estupro: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Verifica-se, portanto, que a legislação penal atual ampliou possível a vítima, uma vez que se fala em “constranger alguém”, não mais limitando o tipo penal ao sexo feminino, como ocorria nas leis penais anteriores.
O tipo penal do artigo 213 também segue a ideia de que é condição necessária a este crime a violência ou grave ameaça, além da conjunção carnal ou prática de atos libidinosos.
Segundo Ferreira (2019, online) “A evolução dos Códigos Penais trouxe uma melhor definição jurídica quanto ao tema, de forma a melhorar a capitulação e o enquadramentos dos fatos ao tipo penal, em síntese, há um melhoramento técnico por parte dos legisladores”.
Tal melhoramento técnico pode ser observado a partir da especificidade do crime do artigo 217-A, qual seja, estupro de vulnerável. O antigo artigo 217, que correspondia ao crime de sedução, não existe mais no ordenamento jurídico pátrio, fazendo com que o 217-A fosse mais bem trabalhado pelo legislador.
O caput do artigo 217-A traz a seguinte definição do crime de estupro de vulnerável: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”.
Tal crime, como se pode observar, configura-se ainda que ausentes os requisitos “violência”, “grave ameaça” e “constranger alguém”. É que o tipo penal estupro de vulnerável trabalha com a ideia da violência presumida, ou seja, aquela violência que se verifica independentemente do consentimento da vítima ou não.
É que o legislador entende que em decorrência da idade da vítima, não há possibilidade de consentimento por parte dela, uma vez que a sua idade não permite que haja plena consciência a respeito dos atos libidinosos ou a conjunção carnal que serão ali praticados.
3 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A PROTEÇÃO INTEGRAL A CRIANÇA E AO ADOLESCENTE
A Constituição de 1988, também chamada de Constituição Cidadã, tem por pilares a observância a princípios importantes ao bom funcionamento do Estado, de maneira que há especial importância dada a instituição da família.
Segundo a Constituição Federal de 1988, por meio do art. 226, “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Por meio do presente dispositivo legal, o Estado reconhece a família como primeiro núcleo da sociedade, uma vez que afirma que a base da sociedade vem das famílias e, assim, é instituição social que deve ser protegida.
Bernardo (2018, online) elucida que o conceito de família sofreu várias mudanças no decorrer da História, uma vez que as tradições e paradigmas de cada espaço de tempo também se alteravam. Dessa forma, no trecho a seguir, a autora sustenta algumas mudanças ocorridas no período colonial e imperial:
O conceito de família sofreu mudanças ao longo da História, acompanhando a própria evolução da sociedade. Assim, na sociedade colonial era bastante comum as relações concubinárias entre os estrangeiros portugueses colonizadores e as índias que aqui habitavam. Durante o período imperial, também era comum o concubinato entre os senhores de engenho e as escravas negras, que muitas vezes recebiam a carta de alforria e eram sustentadas por seus antigos senhores
Tais mudanças são sustentadas, principalmente, por interpretações jurisprudenciais e doutrinárias da abertura dada pela Constituição Federal de 1988 em relação ao reconhecimento de unidades de família fora da família matrimonial.
Dias (2015) ensina que a intervenção do Estado no âmbito do direito civil permitiu que as instituições de direito privado se moldassem ao novo texto constitucional, que impôs tarefas ao legislador infraconstitucional:
A intervenção do Estado nas relações de direito privado permite o revigoramento das instituições de direito civil e, diante do novo texto constitucional, forçoso ao intérprete redesenhar o tecido do direito civil à luz da nova Constituição. Sua força normativa não reside, tão somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade - converte-se ela mesma em força ativa. Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas.
O legislador constituinte, segundo Dias (2015), alargou o conceito de família, com o objetivo de conceder direitos a situações fáticas muito presentes já naquele momento, como foi o caso da antiga necessidade de pressupor-se o casamento para a formação da família. Outros tipos de família, formadas de maneiras diferentes das até então estabelecidas, receberam a tutela constitucional, uma vez que foi entendida como necessária e basilar ao desenvolvimento das funções da sociedade:
Procedeu o legislador constituinte ao alargamento do conceito de família e emprestou juridicidade ao relacionamento fora do casamento. Afastou da ideia de família o pressuposto do casamento, identificando como família também a união estável entre um homem e uma mulher. A família à margem do casamento passou a merecer tutela constitucional porque apresenta condições de sentimento, estabilidade e responsabilidade necessários ao desempenho das funções reconhecidamente familiares. Nesse redimensionamento, passaram a integrar o conceito de entidade familiar as relações monoparentais: um pai com os seus filhos. Agora, para a configuração da família, deixou de se exigir necessariamente a existência de um par, o que, consequentemente, subtraiu de seu conceito a finalidade procriativa.
Segundo Castilho (2014, online) atualmente “é possível falar em vários tipos de entidades familiares, quais sejam alguns exemplos a recomposta, a monoparental, unipessoal, paralela, entre outras”.
Nesse sentido, verifica-se que os direitos e obrigações relativos à instituição familiar puderam ser outorgadas a várias pessoas, o que faz com que seja importante a observação dos direitos e deveres constitucionais e infraconstitucionais destas famílias.
Tais direitos e deveres tornam-se ainda mais importantes quando verificamos a existência de menores, o que significa observar as diversas e potenciais necessidades destes menores dentro da relação familiar, como ocorre com os direitos a educação, segurança, assistência dos pais, alimentação etc.
Para além da defesa da família, a Constituição também traz que a defesa dos menores que deve ser feita pela própria família, pela sociedade e pelo Estado. Desta forma, por meio desta proteção constitucional, os menores têm alguns direitos elencados no rol do artigo 227, como direito à saúde, alimentação, educação, lazer, cultura, dignidade e liberdade, conforme veremos a seguir:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Para Roque e Ferriani (2002), o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente é um avanço muito importante a sociedade, uma vez que a criança e ao adolescente também são partes integrantes e muito importantes dentro da vida social:
A proteção integral à criança e ao adolescente representa um avanço cultural da sociedade como um todo, reconhecendo-os como parte integrante da família e da sociedade, com direito ao respeito, à dignidade, à liberdade, à opinião, à alimentação, ao estudo, dentre outros. (ROQUE E FERRIANI,2002, p. 336)
Para Luz (2018), em tese, o princípio o princípio da proteção integral surgiu no ordenamento jurídico não apenas com o fim de cessar os anseios sociais da época, mas também de implementar todos os direitos a ele decorrentes: “O princípio da proteção integral não se trata de mais um princípio incorporado na legislação pátria a fim de acalmar os ânimos dos movimentos sociais sem, contudo, implementar os direitos dele decorrentes. “
Nesse sentido, Roque e Ferriani (2002, p. 336) entendem que a partir da instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente, houve um aumento positivo de elementos as políticas públicas voltadas há crianças e adolescentes instituindo atendimento mais amplo e dando outras providências:
Com mudanças de conteúdo, método e gestão, o ECA acrescenta novos elementos às políticas públicas para a infância e juventude, com atendimento muito mais amplo, com o Estado substituindo o então assistencialismo vigente por intervenções socioeducativas baseadas no fato de crianças e adolescentes serem pessoas em desenvolvimento e cidadãos de direito, promovendo uma nova estrutura de política de promoção e defesa desses direitos baseada na descentralização político-administrativa e na participação da sociedade por meio de suas organizações representativas. O ECA é, portanto, uma legislação moderna e revolucionária em seus conceitos na letra da lei.
Entre as consequências da criação do princípio da proteção integral é que surge o dever de cuidado, que no presente caso destina-se aos pais em relação a seus filhos. Moreira (2019) entende que “o cuidado é um dever de um ser humano para com o outro e adquire papel fundamental no delineamento de direitos e obrigações no âmbito das relações familiares”.
Desta maneira, Moreira (2019) defende que em relação aos pais, o descumprimento de sua obrigação legal pode causar prejuízos muito grandes ao desenvolvimento dos filhos, como no campo do desenvolvimento moral, psíquico, socioafetivo, entre outros:
Os pais, por exemplo, que se omitem quanto ao direito de seus filhos estão descumprindo com sua obrigação legal podendo causar prejuízos ao desenvolvimento moral, psíquico e socioafetivo de sua prole. Por outro lado, descumprem com a obrigação legal de cuidado, também, os filhos que deixam de prestar a devida assistência aos seus genitores, na velhice.
4 A SUMULA 593 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E SUAS IMPLICAÇÕES NO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL
O crime de estupro de vulnerável é um tipo penal que comporta a chamada violência presumida. Isso significa dizer que a violência se encontra no fato de ter acontecido a conjunção carnal ou ato libidinoso com menores de até 14 anos, independentemente da existência do consentimento da vítima ou não.
Hoje, o estupro de vulnerável é entendido como crime hediondo – assim como ocorreu com o crime de estupro simples. Esta definição cessou a controvérsia legal a respeito da aplicação (ou não) da lei de crimes hediondos.
A controvérsia jurídica a que nos referimos se deu muito em razão da reprovabilidade social desse tipo de crime, uma das principais características presentes no rol dos crimes considerados hediondos.
O crime de estupro de vulnerável tem como principal personagem a vítima menor, de idade até 14 anos. Entendemos, portanto, se tratar de crianças e adolescentes, que devem ter seu direito à prioridade assegurado.
Para tanto, a Constituição Federal de 1988 instituiu o princípio da proteção integral. Segundo DÓI e FERREIRA (2020), o artigo 227 demonstrou a importância do instituto da família e incluiu como dever da sociedade e da própria família da criança e adolescente a obrigação de assegurar-lhe bases importantes para a garantia da sua melhor formação como pessoa, tais como o direito a alimentação, a vida e à profissionalização:
Introduziu-se a Doutrina da Proteção Integral no ordenamento jurídico brasileiro através do artigo 227 da Constituição Federal, que declarou ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Nesse sentido, verificamos que a Constituição da República entende que a criança e o adolescente são pessoas tem condições limitadas, principalmente com relação a entender a natureza real dos seus atos e, portanto, acabam subsistindo de forma muito mais difícil sem a ajuda da sociedade e de sua família, sendo essa última a primeira instituição que deve lhes assegurar o direito a vida, saúde, educação, lazer e todos os outros direitos que refletem a dignidade da pessoa humana.
Portanto, o legislador entendeu ser necessário resguardar as crianças e adolescentes justamente por conta de seu desenvolvimento mental ainda estar em progresso, o que faria com que ele não entenda completamente as dimensões e as consequências dessa ação em sua vida como a gravidez precoce e indesejada, por exemplo.
A ideia do legislador de enquadrar esse grupo de pessoas como vulneráveis no Código Penal e instituir uma qualificadora no crime de estupro simples quando a vítima do crime se tratar de criança ou adolescente menor de 14 anos, foi justamente para que não tenham seus direitos sexuais violados por alguém que se aproveitará de sua condição.
Nesse sentido, o STF e o STJ já tem entendimentos a respeito do caráter absoluto da presunção de vulnerabilidade, quando cominado ao princípio da proteção integral ao menor aplicado no âmbito do crime de estupro de vulnerável (art. 217-a, Código Penal).
A súmula 593 do STJ explica de forma bastante elucidativa essa regra:
O crime de estupro de vulnerável configura-se com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante o eventual consentimento da vítima para a prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.
A edição dessa súmula do STJ e de outras jurisprudências nesse mesmo sentido demonstram a preocupação do Estado em dar garantias a esses jovens para que aproveitem o período de crescimento sem nenhum efeito traumático que uma experiência sexual precoce poderia provocar nessa criança ou adolescente.
Foi necessária a solidificação desse entendimento uma vez que algumas pessoas entendem que a cultura do erotismo está cada vez mais presente em suas vidas. Logo, essas crianças e adolescentes iniciariam suas práticas sexuais cada vez mais cedo.
É necessário que levemos em consideração o fato de que para essa criança uma experiência sexual nessa idade pode desestruturar totalmente a sua vida, provocando-lhe traumas que podem originar doenças psicológicas como depressão e ansiedade, além de tirar-lhes o foco que deveriam tomar em suas vidas nessa época: exercer o direito a educação, a efetiva aprendizagem (que seria um exercício do direito a educação), o direito a lazer, o direito à alimentação e tantos outros que garantem a realização plena de outro princípio constitucional muito importante: o princípio da dignidade da pessoa humana.
Para CALDAS e SILVA (2019), é necessário entendermos justamente as dimensões e consequências que um ato que atente a dignidade sexual de uma criança ou adolescente pode ter em sua vida. Ressaltam, ainda, o caráter psicossocial que esse efeito pode ter na vítima, para efeitos de sua formação:
A história revela que a violência de abuso sexual contra vulneráveis vem cada vez mais sendo exposta pelos meios de comunicação de massa. Tal aspecto encontra-se intimamente ligado a formação humana. Entender e analisar essa violência, focalizar o aspecto jurídico responsabilizar penalmente o agente requer uma verificação da situação do crime e a consequência na psicopatologia, bem como os fenômenos possibilitadores da formação da personalidade no desenvolvimento humano
Lima (2017) faz uma análise detalhada a respeito de quem seriam as vítimas do crime de estupro de vulnerável ao analisar o artigo 217-a e os significados da palavra vulnerável, bem como os seus impactos para a tipificação do crime:
Entendem-se como sendo pessoas vulneráveis para a devida caracterização do tipo penal do Artigo 217 “A’ do Código Penal aquelas que não possuem a livre capacidade de entender e de querer o que seja o ato sexual e, tampouco, de consentir validamente com a prática de qualquer ato de natureza sexual, entendido como tal toda a conduta que venha a satisfazer o apetite sexual de quem a pratica.
GIORA e NAZAR (2016) complementa esses entendimentos doutrinários com a análise de como ocorriam os debates a respeito da natureza da presunção absoluta de violência nos crimes de estupro de vulnerável antes da edição da lei nº 12.015/09:
Em defesa da presunção absoluta (juris et de jure) de violência, argumentava-se que era sempre inválido o consentimento de um menor de 14 anos, mesmo que tivesse um desenvolvimento físico e psíquico avançado para sua idade, em razão de a menoridade da vítima ser elementar do tipo penal.
(...)
A relatividade gerava insegurança jurídica e feria as finalidades da pena: retribuição e prevenção.
Por outro lado, em defesa da presunção relativa (juris tantum) de violência, argumentava-se que o dispositivo tinha como intuito proteger o menor sem qualquer capacidade de discernimento e com incipiente desenvolvimento orgânico. Se a vítima, a despeito de não ter completado 14 anos, apresentasse evolução biológica precoce, bem como maturidade emocional, não haveria por que impedir a análise do caso concreto de acordo com suas peculiaridades.
Essa insegurança jurídica que as autoras GIORA e NAZAR relatam era muito preocupante do ponto de vista da justiça social para a vítima e sua família, pois poderia fazer com que o acusado saísse impune de seus atos e perpetuasse a sua prática delituosa com a vítima em questão e com outras potenciais vítimas.
Levando em consideração os autores citados, podemos depreender que se faz necessária essa proteção legal aos menores de 14 anos, uma vez que estão realmente vulneráveis em razão de sua falta de maturidade emocional para decidir a respeito de atos importantes em sua vida, como a primeira relação sexual.
Nesse sentido, o presente trabalho entende ser necessária a manutenção desse dispositivo legal e das jurisprudências a favor destes adolescentes e crianças, uma vez que relativizar a tipificação dessas condutas pode levar a um sentido de impunidade por parte dos agressores, o que pode acabar aumentando a ocorrência desses crimes.
Para defender esse argumento, pretende-se explorar o direito penal e suas funções repressiva e preventiva, argumentando e discutindo durante a pesquisa sobre de que forma essas funções podem atuar dentro do direito à conservação da dignidade sexual dos adolescentes e crianças.
Entendemos que as medidas repressivas para esses casos de estupro de vulnerável por si só não teriam o efeito completamente necessário, sendo preciso que também haja uma ação preventiva do Estado e isso pode ser feito assegurando-se o princípio da proteção integral às crianças e adolescentes.
CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto no presente trabalho, entendeu-se que uma relativização da sumula 593 do STJ poderia fazer com que o crime de estupro de vulnerável fosse bem menos gravoso, o que poderia acabar estimulando a prática do tipo penal – uma vez que a norma penal tem a função preventiva e repressora, diminuir a repressão pode aumentar a ocorrência desse tipo de violência à crianças e adolescentes.
Ainda que as medidas repressivas para esses casos de estupro de vulnerável por si só não teriam o efeito completamente necessário, é importante que a pena e o tratamento para estes casos seja sempre dura, para que o Estado possa inibir a prática de tal delito.
Além disso, é preciso que também haja uma ação preventiva do Estado e isso pode ser feito assegurando-se o princípio da proteção integral às crianças e adolescentes, por meio da realização de medidas como palestras para explicar a importância de tal princípio.
Ainda que tais medidas não tenham efeito completo por si só, é muito importante que não haja flexibilização na gravidade de tais crimes, uma vez que eventual flexibilização posterior poderia gerar efeitos desastrosos à proteção de crianças e adolescentes, construída com muito esforço pelas normas jurídicas brasileiras no decorrer dos anos.
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MOREIRA, M. As Consequências do Descumprimento do Dever de Cuidado Pelos Componentes da Família Brasileira. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-de-familia/as-consequencias-do-descumprimento-do-dever-de-cuidado-pelos-componentes-da-familia-brasileira/
LUZ, A L R. A aplicabilidade do princípio da proteção integral no procedimento infracional. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66600/aaplicabilidade-do-principio -da-protecao-integral-no-procedimento-infracional
DIAS, M B. Manual de Direito das Famílias. 10° ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
BERNARDO, R B. O conceito de família à luz da Constituição de 1988 e a necessidade de regulamentação das relações concubinárias. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63694/o-conceito-de-familia-a-luz-da-constituicao-de-1988-e-a-necessidade-de-regulamentacao-das-relacoes-concubinarias
bacharelanda do Curso de Direito na ULBRA– Universidade Lutherana do Brasil - Manaus.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DAKDOUK, Jamille rafic. Sumula 593 do Superior Tribunal de Justiça e o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jul 2021, 04:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56940/sumula-593-do-superior-tribunal-de-justia-e-o-princpio-da-proteo-integral-criana-e-ao-adolescente. Acesso em: 22 nov 2024.
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