Resumo: O presente artigo pretende discorrer sobre a origem da exigência de fundamentação das decisões judiciais e sua evolução até o Código de Processo Civil de 2015, abordando o aspecto da constitucionalização do processo e analisando como prova, fundamentação e sentença se relacionam e como a ausência da justificação de quais provas foram consideradas e quais foram refutadas, assim como a correlação entre todas as provas produzidas pode levar à nulidade da sentença.
Palavras-chave: PROVA – FUNDAMENTAÇÃO - SENTENÇA
Sumário: I. Introdução. II. Fundamentação ou motivação? III. Surgimento e evolução histórica. IV. Concepções endoprocessual e extraprocessual da fundamentação. V. A fundamentação no Código de Processo Civil. VI. A análise da prova. VII. Consequências da falta de fundamentação. VIII. Conclusão. Referências.
I. Introdução
O direito à produção de prova no processo civil é importante instrumento e desdobramento do princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa. No entanto, para que haja certeza de que as provas produzidas foram consideradas no julgamento é imprescindível a obrigatoriedade da fundamentação da sentença, que se apresenta como um modo de controle da função jurisdicional.
Pretendemos aqui fazer uma análise de como prova, fundamentação e sentença se relacionam. Para tanto, exploraremos primeiro o conceito de cada um deles.
Começaremos pela prova, instrumento indispensável de que se utilizam as partes para comprovarem as questões processuais, isto é, os fatos controvertidos.
Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart apontam que a prova está ligada à reconstrução de um fato apresentado ao juiz e que lhe permite ter certeza sobre os eventos ocorridos. Nesse sentido, trazem o conceito de Liebman para quem as provas são “os meios que servem para dar conhecimento de um fato e por isso para fornecer a demonstração e para formar a convicção da verdade de um fato específico”[1].
Ocorre que tanto a reconstrução de um fato passado, quanto a certeza de sua existência são ideias que se encontram superadas pela doutrina. Isso porque é impossível a repetição de algo que já aconteceu, assim como chegar-se à precisão das suas circunstâncias.
Melhor, portanto, um dos significados trazidos por Michele Taruffo, para quem “La prova, dunque, svolgue la funzione di fondamento per la scelta razionale dell´ipotesi destinata a constituire il contenuto dela decisione finale sul fatlo”[2].
Olavo de Oliveira Neto, Elias Marques de Medeiros Neto e Patrícia Elias Cozzolino de Oliveira, após citarem as definições de prova do que nomeiam como sendo a melhor doutrina, apresentam conceito próprio que nos parece adequado para o presente estudo segundo o qual a prova judiciária é “o conjunto de meios que permite a confirmação, no bojo do processo, das alegações de fatos apresentados pelas partes”[3].
Por sua vez, a sentença tem conceituação legal, expressa no Código de Processo Civil, que dispõe ser “o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução” (art. 203, §1º).
Trata-se de uma definição mista que considera a sentença como sendo o pronunciamento do juiz que coloca fim à fase de conhecimento ou à fase de execução, com ou sem análise do mérito.
O artigo 489 do Código de Processo Civil enumera três elementos essenciais da sentença, são eles: relatório, fundamentos e dispositivo.
A presença dos fundamentos como um dos elementos essenciais da sentença demonstra a preocupação do legislador em refletir na lei infraconstitucional os valores expressos na Carta Magna. Isso porque a obrigatoriedade da fundamentação tem previsão na Constituição Federal como direito fundamental e como desdobramento do Estado Democrático de Direito.
Com a evolução do Direito Processual Civil, deve-se pensar o processo sempre a partir da Constituição. Vejamos, portanto, a redação do 93, inciso IX, da Constituição Federal:
Art. 93. (...)
IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
O artigo consagra da garantia da motivação das decisões, que comina pena de nulidade para as decisões judiciais desmotivadas e compõe o conteúdo mínimo do devido processo legal.
A fundamentação é a exposição, lançada na decisão, das razões de fato e de direito que convenceram o magistrado a decidir a questão. É considerada garantia por ser o meio utilizado a fim de evitar o arbítrio do juiz e permitir a controlabilidade do exercício do Poder Judiciário.
Conquanto o constituinte tenha optado pelo termo fundamentação, como visto, a palavra motivação também é utilizada e há ampla discussão doutrinária sobre a existência ou não de diferenciação entre os vocábulos.
II. Fundamentação ou motivação?
O professor Olavo de Oliveira Neto defende a diferenciação dos termos motivação e fundamentação, apontando que a motivação coincidirá com a fundamentação em um mundo ideal, no entanto, pode ocorrer de os motivos que levaram à decisão não estarem expressos na fundamentação, sendo eles a motivação interna do magistrado, muitas vezes desconhecida, como no exemplo do juiz corrupto, que irá decidir instigado pela propina recebida o que, por motivos óbvios, não estará expresso na decisão.[4]
O professor João Batista Lopes também conclui pela diferenciação, como destacado na dissertação para obtenção do título de Mestre de Pétrick Joseph Janofsky Canonico:
Motivação ou fundamentação? João Batista Lopes observa que a doutrina majoritária não faz distinção entre os termos. Distingue-os, porém, o autor. Motivação é “o conjunto de motivos que levam o juiz a formar sua convicção”, ao passo que fundamentação “é uma garantia dos jurisdicionados e dever do juiz consistente em indicar as razões em que se louvou para decidir num ou noutro sentido”.[5]
Como destacado pelo autor, a doutrina majoritária não faz distinção entre os termos.
Refletindo sobre a natureza jurídica da motivação, Michele Taruffo sustenta que não há relevo jurídico ou lógico para os argumentos do juiz que permanecem em sua mente e não são expressos na decisão, de modo que é possível concluir pela coincidência entre o ato de motivar e a enunciação dos argumentos no documento escrito[6].
Cientes da divergência doutrinária, optaremos neste estudo por prosseguir considerando motivação e fundamentação como sinônimos, uma vez que importará estudar as razões da decisão que efetivamente serão consideradas para o julgamento e a forma como ela se relaciona com a prova, deixando de lado eventual móvel interno que tenha o julgador, em especial porque, como veremos, a obrigatoriedade da fundamentação busca justamente afastar a possibilidade de que razões desconhecidas levem a uma decisão eventualmente parcial, assim como pretende permitir o controle tanto das partes e das instâncias recursais, quanto da população, em uma vertente democrática.
III. Surgimento e evolução histórica
Superada a questão da terminologia, cumpre-nos discorrer acerca do surgimento da motivação como requisito obrigatório das decisões. Aqui iremos nos valer das importantes lições de Michele Taruffo, que coloca o surgimento da motivação nos ordenamentos processuais europeus na segunda metade do século XVIII.[7]
O autor destaca que antes do século XVIII era possível observar de forma difusa e não obrigatória o fenômeno das decisões fundamentadas, como na Itália, as sentenças pronunciadas por juízes longobardos, as sentenças pisanas do século XII ou as pronúncias motivadas do Tribunal do Júri na Alemanha.
Ressalta-se, no entanto, que ainda eram prevalentes as sentenças sem fundamentação.
Embora seja possível estabelecer um momento histórico de surgimento do princípio da obrigatoriedade de fundamentação na Europa, não se pode dizer que houve movimento homogêneo e globalizado que influenciou os legisladores.
Na França, por exemplo, com o advento da Revolução Francesa, na tentativa de controlar a legalidade do juízo, foi sancionada a obrigatoriedade da motivação, no art. 15, Tit. V, da Lei de Organização Judiciária de 1790 e no art. 208 da Constituição do ano III.
Tratava-se de uma forma de oposição dos revolucionários (e não de uma evolução jurídica com raízes doutrinárias e filosóficas), que trazia uma visão democrática de justiça em contraste ao exercício arbitrário do poder por parte do judiciário que existia no regime antecedente.
O destinatário da motivação era o Tribunal de Cassation (ligado diretamente ao poder legislativo), cuja função era a de “vigiar” o judiciário a fim de que este sempre seguisse o texto legal, sem margem para interpretações.
A obrigatoriedade da motivação surge na França, portanto, em um contexto de controle do judiciário pelo legislativo.
Michele Taruffo aponta ainda que no mesmo momento da história o dever de motivação apareceu na legislação processual prussiana. Entretanto, ao contrário do que ocorria na França, o surgimento teve origem em um dever anterior de fundamentação secreta destinada ao juízo recursal, com a inovação de que se põe de lado o caráter oculto, para destinar os motivos também ao conhecimento das partes.
Enquanto isso, na Itália, apenas a legislação napolitana (1774) e o código barbacoviano do Principado de Trento (1788) previram a obrigatoriedade da motivação.
Seguindo para o século XIX, nos valeremos das lições de Barbosa Moreira[8], que ensina que o dever de motivação passou a ser um traço comum à maioria dos códigos processuais. Além da previsão nas constituições da Itália, Bélgica, Grécia, Colômbia, Haiti, México e Peru.
Outros países, como a Alemanha, apesar de não possuírem a regra constitucional expressa, encaram a fundamentação como desdobramento de princípios constitucionais, no caso do exemplo citado, do direito de ser ouvido em Juízo.
Mesmo no direito inglês, cujo ordenamento é de common law, tem-se a tradição de motivar as decisões, em especial nas Cortes Superiores, inclusive pela importância das razões de decidir no sistema de precedentes.
O artigo “A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao estado de direito” demonstra a preocupação de Barbosa Moreira com a acepção constitucional da obrigatoriedade da motivação. Isso porque, como exposto no próprio texto, tal garantia já estava prevista no ordenamento jurídico brasileiro desde o Código Filipino, todavia, ao tempo em que o artigo foi escrito (1978), ainda não se observava na Constituição expressa consagração do dever de motivar.
Felizmente, a obrigatoriedade da fundamentação ganha status de garantia constitucional na Constituição Federal de 1988.
IV. Concepções endoprocessual e extraprocessual da fundamentação
Desde o século XVIII é possível vislumbrar, embora de forma difusa, duas concepções diversas da motivação: a endoprocessual e a extraprocessual.
A função endoprocessual da fundamentação consiste em permitir às partes que possam conhecer as razões da decisão, a fim de que afiram a imparcialidade do juiz, verifiquem a legitimidade da decisão e constatem que seus argumentos e as provas que produziram foram considerados. A partir disso, poderão se convencer da justeza da sentença, ou, alternativamente, discordando do seu conteúdo, dela poderão recorrer. Ainda na função endoprocessual, a motivação é destinada ao juízo recursal.
Sobre o tema discorre Barbosa Moreira:
Assim é que se registra, por exemplo, a importância da motivação para a correta interpretação do julgado, para a determinação precisa do respectivo conteúdo – o que pode revestir grande significação quando se queira delimitar o âmbito da res iudicata. Com maior vigor ainda costuma-se acentuar o papel da motivação na economia das impugnações: mesmo deixando de lado, porque frequentemente desmentido na prática, o suposto valor persuasivo das boas fundamentações, a que se pretende atribuir o efeito de desencorajar a interposição de recursos, restam outros dois aspectos de inegável relevância: só o conhecimento das razões de decidir pode permitir que os interessados recorram adequadamente e que os órgãos superiores controlem com segurança a justiça e a legalidade das decisões submetidas à sua revisão.
E prossegue:
Várias são as manifestações dessa função de garantia que se atribui à obrigatoriedade (e à publicidade) da motivação. Ela começa por ministrar elementos para aferição, in concreto, da imparcialidade do juiz: só pelo exame dos motivos em que se apoia a conclusão poder-se-á verificar se o julgamento constitui ou não o produto da apreciação objetiva da causa, em clima de neutralidade diante das partes.
O mesmo se dirá da legalidade da decisão: sem conhecer as razões que a inspiram, impossível saber se ela é ou não conforme à lei.
(...)
Last but not least, trata-se de garantir o direito que têm as partes de ser ouvidas e de ver examinadas pelo órgão julgador as questões que houverem suscitado. [9]
Por outro lado, a função extraprocessual torna possível o controle externo do Poder Judiciário por parte da sociedade como um todo.
A ideia de que a motivação das decisões se destina também à opinião pública visando à controlabilidade é exposta por Michele Taruffo e Barbosa Moreira, este último defende que a violação à garantia da motivação é um defeito que ameaça potencialmente a todos.
Em contraponto, Luigi Montesano aduz que a motivação se destina aos operadores do direito, pessoas que tenham conhecimento dos termos jurídicos e capacidade para compreender a linguagem técnica, e não a toda a população. [10]
O ordenamento jurídico brasileiro atual, sob a égide da Constituição Federal de 1988 e do Código de Processo Civil de 2015, abarca as duas dimensões da motivação. Considerando que vivemos um Estado Democrático de Direito, a publicidade e a motivação das decisões são essenciais para que a sociedade tenha conhecimento dos atos do Poder Judiciário, evitando a arbitrariedade. No que se refere à dimensão endoprocessual, a motivação está diretamente ligada a outros princípios constitucionais do direito como o contraditório e a ampla defesa.
Sobre o tema, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero ensinam que[11]:
O problema da extensão do dever de motivação das decisões judiciais tem de ser resolvido à luz do conceito de contraditório. É por essa razão que o nexo entre os conceitos é radical. E a razão é simples: a motivação das decisões judiciais constitui o último momento de manifestação do direito ao contraditório e fornece seguro parâmetro para aferição da submissão do juízo ao contraditório e ao dever de debate que dele dimana. Sem contraditório e sem motivação adequados não há processo justo.
Não basta às partes que exercitem seu direito de defesa, é preciso que a sentença aponte que os seus argumentos foram considerados, numa acepção substancial do contraditório. De nada adiantaria dar acesso à jurisdição se os argumentos trazidos aos autos e as provas produzidas fossem ignoradas no julgamento final.
E aqui nos interessa dizer que o contraditório a ser considerado na fundamentação é o direito das partes de influir no julgamento da causa, o que é feito, também, pela produção da prova. Desse modo, é indispensável que a sentença analise pormenorizadamente as provas dos autos, indicando a valoração dada a cada uma delas, bem como motivando a valoração em si.
V. A fundamentação no Código de Processo Civil
O Código de Processo Civil de 1973 já trazia os fundamentos como requisito essencial da sentença (art. 458, II), mas o Código de 2015 inovou ao elencar um rol (não taxativo) de situações em que a decisão não é considerada fundamentada, são elas:
Art. 489. (...) § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
Como se pode depreender, não há previsão expressa de que não é considerada fundamentada a sentença que não faça menção às provas. Ocorre que o artigo 371 do CPC determina que o juiz apreciará a prova constante dos autos, justificando o seu convencimento. É o que a doutrina chama de sistema da persuasão racional
O professor João Batista Lopes ensina:
Como é de sabença comum, esse artigo consagra o princípio da persuasão racional, que não se confunde com o livre convencimento do juiz. Pelo princípio da persuasão racional, o juiz goza de relativa liberdade na apreciação das provas, sujeitando-se aos seguintes limites:
a) Só podem ser consideradas e valoradas as provas constantes dos autos;
b) Não pode o juiz guiar-se exclusivamente por suas impressões pessoais, devendo valer-se dos princípios jurídicos, regras da lógica, postulados das ciências positivas, regras econômicas etc.
c) A motivação do convencimento do juiz deve ser explicita e transparente para permitir pleno conhecimento das partes e seus advogados.[12]
Desse modo, podemos concluir que quando o juiz deixa de considerar alguma prova produzida pela parte vencida, ou valora prova sem a exposição de motivos, também deverá ser reconhecida a nulidade da decisão.
VI. A análise da prova
A necessidade de realizar a análise de todas as provas constantes dos autos, com a indicação da razão da formação do convencimento tem como objetivo afastar uma atuação discricionária e subjetiva do magistrado.
Referido objetivo surge em especial por ser a regra geral do sistema brasileiro a persuasão racional. Isto é, o juiz está adstrito às provas produzidas no processo, embora possa dar a elas sua própria valoração, desde que fundamente e justifique a formação da sua convicção, dentro dos limites do ordenamento jurídico, indicando os elementos de prova que formaram a sua convicção.
O sistema da persuasão racional coloca-se no centro entre o sistema da prova tarifada, segundo o qual o valor probante é prefixado pelo ordenamento jurídico, e o da convicção íntima do juiz, em que o magistrado terá liberdade para valorar e analisar a prova.
Cabe a ressalva de que no Código de Processo Civil de 1973, embora constasse no artigo 131 que o juiz apreciaria a prova livremente, considerando a exigência àquele tempo da motivação, o sistema adotado também era o da persuasão racional, não havendo mudança significativa com o CPC de 2015, neste ponto.
Sobre o tema a lição de Cassio Scarpinella Bueno:
O “sistema da persuasão racional” ou “sistema do convencimento motivado do juiz” é, destarte, aquele em que o magistrado, observados os limites do sistema jurídico, pode dar a sua própria valoração à prova, sendo dever seu o de fundamentar, isto é, justificar a formação de sua convicção. É essa a melhor interpretação para o art. 371, mormente quando lido desde o art. 93, IX, da Constituição Federal e o princípio da motivação dele decorrente, que encontra sua disciplina infraconstitucional nos parágrafos do art. 489.[13]
Zulmar Duarte de Oliveira ensina que[14]:
As provas assumem o valor e o peso decorrentes do raciocínio do juiz, conectados aos juízos lógicos e históricos empreendidos, sendo que a motivação expressará o resultado do trabalho intelectual desenvolvido. Não quer isto dizer, entretanto, que o juiz possa assumir uma posição solipsista, decidindo de forma incontrolável, mediante sentimentos indevassáveis. O juiz deve decidir de acordo com as provas constantes dos autos, devidamente contextualizados pelo exercício do contraditório, apresentando as razões de seu convencimento.
Como disposto no CPC, não basta que o juiz decida de acordo com as provas, é preciso que ele aprecie todas as provas constantes nos autos, inclusive aquelas refutadas, o que deverá ser demonstrado por meio da fundamentação. Nesse sentido Adilson Aparecido Rodrigues Cruz destaca a reflexão de Michele Taruffo:
A este importante aspecto “O juiz que motiva fazendo referência somente às provas que confirmam a sua construção dos fatos arrisca facilmente ser vítima do confirmation bias, ou seja, da distorção do raciocínio pelo qual, individuada a priori uma versão dos fatos, tende se a levar em conta somente aquilo que a confirma, e ignorar tudo aquilo que a contradiz” (Michelle Taruffo, La motivazione dela sentenza, Revista de Direito Processual Civil, v. 31, pg. 184, Curitiba, Gênesis, jan-mar.2004).[15]
Em extensa e cuidadosa dissertação sobre o conteúdo suficiente da motivação das decisões, Pétrick Joseph Janofsky Canonico Pontes apresenta, dentre outras, as seguintes conclusões:
16. Da admissibilidade à valoração, toda a atividade probatória exige correspondente motivação.
17. A valoração da prova constitui a própria motivação fática da sentença. Se do relatório devem constar as alegações de fato trazidas pelo autor, e sua negação ou a admissão de fatos impeditivos, modificativos ou extintivos pelo réu, é na valoração da prova que se provará – se colocará à prova, se analisará – “a verdade dos fatos”, para adotar a expressão do art. 369 do Código de Processo Civil.
18. Na valoração da prova, não basta apenas a referência aos elementos de prova favoráveis à procedência ou improcedência da demanda, mas também a exposição dos motivos pelos quais outras provas constantes dos autos não ensejaram conclusão diversa.[16]
Ao analisar as provas, o magistrado primeiro precisará verificar a credibilidade, apontando se houve, por exemplo, contradição no depoimento testemunhal e em que esta consistiu. Após, seguirá realizando uma correlação entre as provas produzidas, apontando qual adotou para o seu julgamento e qual refutou, sempre de forma justificada.
Na hipótese de prova indiciária, a decisão deverá apontar o caminho seguido para se chegar à conclusão final. Primeiro irá averiguar se o indício está provado, após deverá explanar o raciocínio que liga o indício ao fato probando e, finalmente, discorrerá acerca da influência do fato para o julgamento da lide.
O juiz, como visto, deve fazer uma valoração individual de cada prova e uma valoração conjunta. Ocorre que no momento da valoração conjunta poderá encontrar duas versões possíveis que se pretendem provar, oportunidade em que se verá diante da necessidade de optar por uma das versões.
Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, no livro Prova e Convicção, trazem os ensinamentos de Michele Taruffo que “propõe a distinção entre duas dimensões do raciocínio que conduz à escolha da melhor das versões, ou seja, as dimensões analítica e sintética”.[17]
A dimensão analítica indica que o julgador deve realizar uma escolha racional da hipótese que surgir por meio da prova que permita o maior grau de convicção. Caso se depare com duas versões igualmente viáveis, tem-se a dimensão sintética, que precisará considerar os critérios de coerência e congruência.
A coerência diz respeito à não contradição, enquanto a congruência relaciona as provas produzidas com as narrativas dos fatos trazidas ao processo.
A dimensão analítica precede a sintética, sendo que esta última somente virá à tona quando a primeira chegar a mais de uma conclusão convincente, de modo a complementar a primeira.
Importante apontar que o juiz está obrigado a valorar todas as provas, inclusive aquelas que beneficiam a parte vencedora, não se confundindo com a desnecessidade de o juiz enfrentar todos os fundamentos de direito trazidos pelas partes, como previsto no parágrafo primeiro, inciso IV, do artigo 489, do CPC.
VII. Consequências da falta de fundamentação
Finalmente, conforme expressa previsão constitucional, é nula a sentença não fundamentada.
Não se pode ignorar, entretanto, a interpretação de Michele Taruffo para quem a ausência de fundamentação equivaleria a uma não decisão. Discorrendo sobre a questão no ordenamento jurídico italiano, o autor traz a seguinte reflexão:
De outro, na medida em que se entenda que a motivação seja, no atual ordenamento em virtude do princípio constitucional fixado na primeira parte do artigo 111, uma característica estrutural necessária dos provimentos em que se exerce a jurisdição, impõe-se a consequência de que a sentença carente de motivação não perfaz o “conteúdo mínimo” indispensável para que nessa se reconheça o exercício legítimo do poder jurisdicional. [18]
Seguindo a previsão constitucional brasileira, prevalece na doutrina o entendimento, com o qual concordamos, de que a sentença não fundamentada existe, porém é nula, podendo ser invalidada, inclusive de ofício, e ser rescindida por ação rescisória.
São de três tipos os vícios que podem levar ao reconhecimento da nulidade: a ausência completa de fundamentação, a deficiência de fundamentação e a ausência de correlação entre a fundamentação e a decisão. Todas equivalem à ausência de fundamentação e geram a nulidade da sentença, como bem apontado pela professora Teresa Arruda Alvim:
Todos são redutíveis à ausência de fundamentação e geram nulidade da sentença. Isto porque “fundamentação” deficiente, em rigor, não é fundamentação, e, por outro lado, “fundamentação” que não tem relação com o decisório também não é fundamentação: pelo menos não o é daquele decisório” [19]
Desse modo, a motivação da decisão poderá ser concisa, desde que não seja deficiente e que tenha relação com o que está sendo decidido.
Não se ignora o fato de que a completude e adequação da fundamentação é tema complexo sobre o qual não há consenso.
Em relação às provas, como abordamos, poderíamos conceituar como “conteúdo mínimo” a análise de cada uma delas, com a justificação de quais foram consideradas e quais foram refutadas, assim como a correlação entre todas as provas produzidas. Com isso, acreditamos que estaria atendida a garantia constitucional da fundamentação, e, de modo reflexo, do contraditório.
VIII. Conclusão
Ao longo da história vimos surgir o dever de motivação das decisões de forma difusa e por razões diversas. Na França a ideia era controlar os atos do Poder Judiciário a fim de afastar a arbitrariedade do regime político que havia sido retirado do Poder, enquanto na Prússia houve uma evolução da fundamentação secreta e destinada ao juízo recursal, expandido a publicidade para ciência das partes. No Brasil, a garantia da fundamentação somente foi consagrada na Constituição em 1988, apesar de contar com previsão legal em período anterior.
Seja pelo aspecto endoprocessual, ou pelo aspecto extraprocessual, a fundamentação, acompanhada da publicidade, é garantia indispensável ao Estado Democrático de Direito, em que o processo deve observar o contraditório e o Poder Judiciário têm o dever de justificar suas decisões com base no ordenamento jurídico, não cabendo qualquer tipo de arbitrariedade.
É certo, no entanto, que no aspecto probatório as sentenças nem sempre têm observado o dever de motivação, observando-se, ainda hoje, enorme deficiência no que se refere à análise integral das provas produzidas.
Espera-se que com o advento do Código de Processo Civil de 2015 haja um reforço no entendimento da importância da fundamentação como forma de aperfeiçoamento do sistema de justiça brasileiro.
REFERÊNCIAS
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[1] MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e convicção. São Paulo: RT, 2019. p. 66/67.
[2] TARUFFO, Michele. La prova dei fatti giuridici – Nozioni generali. p. 421.
[3] OLIVEIRA NETO, Olavo de; OLVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de. Curso de direito processual civil: volume 2: tutela de conhecimento. 1. ed. São Paulo: Verbatim, 2016. p. 208.
[4] OLIVEIRA NETO, Olavo de; OLVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de. Curso de direito processual civil: volume 2: tutela de conhecimento. 1. ed. São Paulo: Verbatim, 2016.
[5] PONTES, Pétrick Joseph Janofsky Canonico. A motivação suficiente das decisões judiciais: comitês e equilíbrio entre as garantias constitucionais e a administração da justiça. São Paulo, 2019, p. 10. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/22887/2/P%c3%a9trick%20Joseph%20Janofsky%20Canonico%20Pontes.pdf. Acesso em 06/11/2020.
[6] TARUFFO, Michele. A motivação da sentença civil. Tradução de Daniel Mitidiero, Rafael Abreym Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 379.
[7] TARUFFO, Michele. A motivação da sentença civil. Tradução de Daniel Mitidiero, Rafael Abreym Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 276.
[8] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao estado de direito. in “Temas de direito processual”. 2ª Série. São Paulo: Saraiva.
[9] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao estado de direito. in “Temas de direito processual”. 2ª Série. São Paulo: Saraiva. p. 83-95.
[10] Controlli esterni sull’amministrazione della giustizia e funzioni garantistiche della motivazione. La sentenza in Europa – método técnica e stile. Padova:Cedam, 1988, pp. 435-438.
[11] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil: teoria do processo civil. 4ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
[12] LOPES, João Batista. Princípio do contraditório e direito à prova no processo civil. Disponível em: file:///C:/Users/hgfer/OneDrive/%C3%81rea%20de%20Trabalho/794-2496-1-PB.pdf. Acesso em: 23/11/2020.
[13] BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil, vol. 2: procedimento comum, processos nos tribunais e recursos. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 218.
[14] GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Processo de Conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao CPC de 2015: parte geral. São Paulo: Forense, 2015, p. 245.
[15] CRUZ, Adilson Aparecido Rodrigues Cruz. Prova e fundamentação. Disponível em: https://epm.tjsp.jus.br/Artigo/DireitoCivilProcessualCivil/34920?pagina=1. Acesso em 23/11/2020.
[16] PONTES, Pétrick Joseph Janofsky Canonico. A motivação suficiente das decisões judiciais: comitês e equilíbrio entre as garantias constitucionais e a administração da justiça. São Paulo, 2019. p. 150. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/22887/2/P%c3%a9trick%20Joseph%20Janofsky%20Canonico%20Pontes.pdf. Acesso em: 10/10/2020.
[17] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e Convicção. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
[18] TARUFFO, Michele. A motivação da sentença civil. Tradução de Daniel Mitidiero, Rafael Abreym Vitor de Paula Ramos. 1. ed. São Paulo. Marcial Pons, 2015. p. 384-385.
[19] ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do processo e da sentença. 10. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 281.
Formada em Direito pela Faculdade Milton Campos, pós-graduada em Direito de Empresa pela Universidade Gama Filho, mestranda na área de processo civil na PUC/SP. Juíza de Direito do TJSP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ZOBOLI, FERNANDA HENRIQUES GONCALVES. Prova e fundamentação da sentença Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jul 2021, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56989/prova-e-fundamentao-da-sentena. Acesso em: 22 nov 2024.
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