RESUMO: Neste artigo buscou-se realizar uma análise sobre o que é a investigação penal, apresentando as principais características do inquérito policial, por se tratar da forma mais comum de busca de elementos de convicção. Em seguida traça-se um paralelo com a atuação do Ministério Público nesta função. Apresenta-se, ao final, para fins históricos a primeira investigação realizada pelo Ministério Público.
PALAVRAS-CHAVES: investigação penal; inquérito policial; Ministério Público.
ABSTRACT: This article sought to carry out an analysis of what the criminal investigation is, presenting the main characteristics of the police investigation, as it is the most common way of searching for elements of conviction. Then a parallel is drawn with the work of the Public Prosecutor in this role. In the end, the first investigation carried out by the Public Ministry is presented for historical purposes.
KEYWORD: criminal investigation; police inquiry; Public Prosecutor.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Breves comentários sobre a função do Ministério Público. 2. Inquérito Policial. 2.1. Tipos de Inquéritos. 2.2. Características 2.3. Atribuição. 3. Investigação penal pelo Ministério Público. 3.1. A Primeira Investigação Criminal pelo Ministério Público no Brasil. Conclusão. Referências
INTRODUÇÃO
Na persecução penal tem-se a existência de duas instituições que, em conjunto, buscam aplicação da lei penal aos fatos criminosos apurados e denunciados. São a polícia judiciária e o Ministério Público.
Inicialmente, procura-se pontuar neste trabalho um breve apontamento histórico sobre a persecução penal pelo Estado até a fixação desse ônus ao Ministério Público.
De outra banda, não se pode perder de perspectiva as nuances do inquérito policial dirigido pela polícia judiciária.
A par de outras discussões, as quais serão abordadas em momento oportuno, apresenta-se a possibilidade do Ministério Público proceder diretamente às investigações de que tenha necessidade.
Por fim, aponta-se ainda o que permeou a primeira investigação realizada pelo órgão ministerial.
1. Breves comentários sobre a função do Ministério Público
O pensador pré-iluminista Jean-Jacques Rousseau acreditava que cada homem é portador de mais absoluta liberdade, mas que com as agregações de homens e de famílias surgiram pela necessidade de autopreservação, quando a força individual não era mais suficiente para prevenir agressões externas. Assim, pelo contrato social, cada indivíduo cedia parte de sua liberdade à coletividade em troca de segurança. O grande problema era garantir a convivência harmônica de um grupo formado por indivíduos que, por natureza, não se submetem uns aos outros. [1]
Já para Montesquieu, quando os homens passaram a viver em sociedade, cada uma delas passou a se sentir poderosa, o que gerou um estado de guerra. Ademais, cada indivíduo começou a buscar algum tipo de vantagem, gerando um estado de guerra entre os próprios membros. Essas duas espécies de guerra determinaram a necessidade de leis entre os indivíduos. [2]
Uma das primeiras expressões escritas do direito foi o Código de Hammurabi, que estabeleceu a vingança privada e a Lei de Talião, sendo o ofendido quem buscava punir o infrator. Por óbvio, havia infrações não punidas ou punidas com excessivo rigor, provocando um caos social.
Posteriormente, o Estado assumiu o jus puniendi das agressões aos bens jurídicos relevantes, utilizando o seu poder para punir o infrator, permanecendo restritivamente o ônus à vítima de promover a acusação.
Necessitava-se, então, de um órgão estatal capacitado para promover a acusação de forma eficiente, justa e independente. Tal missão foi conferida ao Ministério Público.
Muito bem asseverou sobre o tema o doutrinador Malatesta:[3]
Assim como o código das penas deve ser a espada infalível para golpear os delinquentes, assim o código dos ritos, inspirado na teoria da lógica sã, sendo o braço que guia com segurança aquela espada contra o peito dos réus, deve também ser o escudo inviolável da inocência.
Na mesma seara, Paulo Rangel[4] explica que o Processo Penal possui duas funções: é meio para se aplicar o Direito Penal, mas também é instrumento para se efetivar os direitos e garantias individuais.
Neste sentido, o cidadão acusado de um crime tem o direito de ser acusado por um órgão independente, objetivo, técnico, que observará todos os seus direitos previstos na Constituição da República, sendo a pena aplicada, se for o caso, após um processo justo.
O ônus da acusação recai, em regra, sobre o Ministério Público. Órgão responsável por produzir as provas do fato criminoso, desonerando a vítima, que somente em casos muito específicos, em que sua intimidade é resguardada, é que terá que tomar certas iniciativas.
Por outro lado, embora o Ministério Público seja obrigado a propor a ação penal pública na presença de um fato típico, ilícito e culpável, não há que ser confundida com a necessidade de proposição, a qualquer custo, da ação penal.
O promotor de justiça se ficar convencido da falta de provas ou da inocência do acusado, pode, utilizando-se de sua independência funcional, pronunciar-se pela absolvição do réu. Do mesmo modo, há a possibilidade de recorrer em benefício do acusado quando observar falha na sentença do juiz.
Mais recentemente tem-se alargado as possibilidades de mitigação do princípio da obrigatoriedade de propositura da ação penal movimento que, dentre outros diplomas, iniciou com a suspensão condicional do processo, a composição civil e a transação penal previstas na lei n. 9.099/95, hoje ampliada pelo Acordo de Não Persecução Penal introduzido pelo Pacote Anticrime da Lei n. 13.964/19.
Na perspectiva da natureza jurídica deste órgão, diverge a doutrina se trata-se de parte processual, pois quem é parte defende um interesse próprio, enquanto que o Ministério Público age como substituto processual da sociedade, para condenar o culpado e absolver o inocente.
A visão do Ministério Público como mero órgão acusador também não condiz com a feição dada pela Constituição da República de 1988, afinal, trata-se de promotor de justiça e não de promotor de condenação.
2. Inquérito policial
No Brasil, a apuração de delitos é responsabilidade precípua da polícia judiciária, entretanto, a dispensabilidade do inquérito policial para o oferecimento da denúncia é questão pacífica na doutrina, desde que haja outros elementos de formação da opinio delicti.
Sobre o tema, TOURINHO FILHO:[5]
O inquérito policial é peça meramente informativa. Nele se apuram a infração penal com todas as suas circunstâncias e a respectiva autoria. Tais informações têm por finalidade permitir que o titular da ação penal, seja o Ministério Público, seja o ofendido, possa exercer o jus persequendi in judicio, isto é, possa iniciar a ação penal. Se essa é a finalidade do inquérito, desde que o titular da ação penal (Ministério Público ou ofendido) tenham em mãos as informações necessárias, isto é, os elementos imprescindíveis ao oferecimento de denúncia ou queixa, é evidente que o inquérito será perfeitamente dispensável.
Convém lembrar que o ônus da prova da autoria e materialidade do fato criminoso, na ação penal pública, é exclusivo do Ministério Público.
Cabe ao Estado, por meio de seu órgão acusatório, assegurar a liberdade individual e a segurança social. Para a efetivação desta última, a investigação criminal é a elucidação do fato tido como criminoso, para instrumentalizar a denúncia.
A investigação criminal, em geral, é um procedimento pré-processual, de cognição sumária, cujo objetivo imediato é averiguar o delito e sua autoria, fornecendo elementos para que o titular da ação penal (Ministério Público) ofereça a peça exordial ou requeira o arquivamento.[6]
Ressalte-se que a investigação criminal, como o próprio nome esclarece, visa apenas investigar, desvendar se um determinado fato ocorreu de forma criminosa, buscando assim a verdade processual, mesmo que se configure a atipicidade do ato, ao final do procedimento investigatório.
Na perspectiva do doutrinador espanhol Vincenzo Manzini, a investigação tem a finalidade característica de recolher e selecionar o material que haverá de servir para o juízo, eliminando tudo o que resulte confuso, supérfluo ou inatendível. Com isso, evitam-se os debates inúteis e se prepara um material selecionado para os debates necessários.[7]
É necessário sempre pensar, em termos de natureza jurídica, qual a raiz do instituto estudado, no caso da investigação criminal trata-se de procedimento administrativo, inobstante a possibilidade de atuações judiciais ou jurisdicionais, no desenrolar do procedimento, como no caso de decretação de prisão temporária, preventiva ou liberdade provisória, que enquanto estiver sob a égide judiciária, sua natureza será a de um procedimento judicial.
O inquérito policial, analisado em especial neste tópico, está previsto no Código de Processo Penal, entre os artigos 4º a 23, que dispõe sobre o que há de mais fundamental sobre o instituto, vez que é a prática que acaba por estabelecer toda a forma de procedibilidade do inquérito policial.
Destarte, a investigação criminal através do inquérito policial é “procedimento destinado à reunião de elementos acerca de uma infração penal. É o conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária, para apuração de uma infração penal e sua autoria, para que o titular da ação penal posa ingressar em juízo, pedindo a aplicação da lei ao caso concreto.”[8]
O inquérito policial tem por objetivo levar ao conhecimento do Ministério Público informações sobre um delito, em sendo o caso de ação penal pública, ensejando o oferecimento da denúncia.
Nessa linha Frederico Marques discorre sobre o inquérito como um procedimento administrativo persecutório de instrução provisória, destinado a preparar a ação penal.[9]
Caso seja, o fato apurado, de iniciativa privada, a autoridade policial tem o dever de informar ao ofendido ou seu representante legal, que apresente queixa–crime, iniciando a ação penal de iniciativa privada.[10]
Outrossim, ensina Mirabete[11] de que se trata o instituto do inquérito policial:
Inquérito policial é todo procedimento policial destinado a reunir os elementos necessários à apuração da prática de uma infração penal e de sua autoria. Trata-se de uma instrução provisória, preparatória, informativa, em que se colhem elementos por vezes difíceis de obter na instrução judiciária, como auto de flagrante, exames periciais, etc. Seu destinatário imediato é o Ministério Público (no caso de crime que se apura mediante ação penal pública) ou o ofendido (na hipótese de ação penal privada), que com ele formam sua opinio delicti para a propositura da denúncia ou queixa. O destinatário mediato é o Juiz, que nele também pode encontrar fundamentos para julgar.
Em outros termos, mas corroborando com o mesmo entendimento assevera Nucci:[12]
O inquérito é um meio de afastar dúvidas e corrigir o prumo da investigação, evitando-se o indesejável erro judiciário. Se, desde o início, o Estado possuir elementos confiáveis para agir contra alguém na esfera criminal, torna-se mais difícil haver equívocos na eleição do autor da infração penal. Por outro lado, além da segurança, fornece a oportunidade de colher provas que não podem esperar muito tempo, sob pena de perecimento ou deturpação irreversível (ex.: exame do cadáver ou do local do crime).
O artigo 12 do Código de Processo Penal preceitua que “o inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra”.[13]
Desta feita, para que o Estado-Juiz possa exercer seu jus puniendi, que nasce da consubstanciação do fato à norma penal, é imprescindível que tenha a seu dispor elementos probantes mínimos do cometimento do delito, e de quem seja o seu autor. Ainda que essas informações possam advir de outros meios, o modo mais usual de colheita desses elementos é, sem dúvida, o inquérito policial.
Em que pese sua habitualidade é certo que o mesmo não é indispensável para o oferecimento da denúncia ou da queixa-crime, conforme se verifica das disposições dos artigos 27, 39, § 5º e 46, § 1º, todos do Código de Processo Penal.
Não se pode falar, sob pena de erro no termo jurídico, que o inquérito policial é um processo, pois se reveste apenas de caráter de procedimento administrativo informativo, destinado a fornecer um mínimo de elementos necessários à propositura da ação penal.
As formas de instauração do inquérito policial estão no artigo 5º, do Código de Processo Penal, quais sejam, ex offício (de questionável constitucionalidade após a adoção do sistema acusatório pela Constituição Federal de 1988), por portaria da autoridade policial, pela lavratura do auto de prisão em flagrante, mediante representação do ofendido, por requisição do Juiz ou do Ministério Público e ainda por requerimento da vítima.
O Código de Processo Penal não define o inquérito policial, mas, examinando os artigos 4º e 6º do referido diploma legal, é possível definir de modo simples e claro como sendo a atividade desenvolvida pela Polícia Judicial com a finalidade de averiguar o delito e sua autoria[14].
2.1 Tipos de Inquérito
Deve-se ter em perspectiva que inquérito é gênero, enquanto que inquérito policial é espécie. Há outras formas de inquérito igualmente válidas, como os instaurados por outras autoridades administrativas, contudo todos possuem a mesma finalidade, qual seja, apurar responsabilidades, penais ou não.
Na legislação pátria podemos identificar alguns tipos de inquérito, como:
O Inquérito Parlamentar: As Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), que tem sua atuação regulamentada pela Lei nº 1.579, de 18 de março de 1952, disciplina o inquérito parlamentar.[15]
O Inquérito Policial Militar: O Código de Processo Penal Militar prevê o inquérito policial militar, com características e funções semelhantes ao inquérito policial civil comum.[16]
O Inquérito Civil: Presidido pelo órgão do Ministério Público e destinado à propositura da ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens de direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (Lei n. 7.347/85).[17]
Outros inquéritos possuem peculiaridades, como no caso de infração penal cometida na sede ou dependência do STF (artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal); contra Juiz de Direito (artigo 33, parágrafo único, da Lei Orgânica Nacional da Magistratura) e contra Promotor de Justiça (artigo 40 e 41 da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público).[18]
No âmbito internacional, há previsão de inquérito no art. 53 e seguintes do Estatuto de Roma, que prevê o Tribunal Penal Internacional, o qual fica a cargo do Procurador.
Note-se, com estes exemplos, não ser o inquérito, ou a investigação, atos privativos da polícia judiciária.
Não se pode olvidar, no entanto, conforme bem asseverado por Nucci “que não deve ser admitida a produção de provas por quem não está legalmente autorizado a colher elementos para dar fundamento à ação penal, como, por exemplo, colher “declarações de pessoas” em notários, que não têm atribuição legal para isso.”[19]
Ressalte-se que não tem mais se admitido o inquérito judicialiforme, em razão da adoção do sistema acusatório.
Igualmente, para Tourinho Filho, o inquérito policial é uma das espécies de procedimento investigativo, que visa à apuração da existência de infração penal e à respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos que o autorizem a promovê-la.[20]
Na esteira da maioria da doutrina, entende-se que o objetivo do inquérito é a busca da verdade dos fatos e não somente a preparação para uma futura ação penal, não estando voltado, a priori, para acusação ou defesa.
2.2. Características
A sistemática processual penal brasileira é conhecida dividida em uma fase de investigação penal inquisitorial e uma fase judicial é acusatória.
Em que pese a grande discussão quanto a natureza do sistema penal brasileiro, misto ou acusatório, este último tem prevalecido mais modernamente, certo é que o inquérito tem natureza inquisitiva, ou seja, ao indiciado ou ao suspeito (não se pode falar aqui em réu ou acusado), não é permitida a oportunidade de ampla defesa ou do contraditório, sob o argumento de que se amplamente conhecida e contraditada o suspeito poderia fazer perecer o objeto da investigação.
De todo modo, nada impede de ser acompanhado por advogado ou defensor, se assim o desejar, salvo se tratar de policial militar ou bombeiro militar investigado por fatos relacionados ao uso da força letal no exercício profissional, nos termos do art. 16-A do Código de Processo Penal Militar, alterado pelo Pacote Anticrime, cuja presença de defensor é obrigatória.
Outrossim, o acesso ao advogado das peças já documentadas é prevista no art. 7º, XIV do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, bem como chancelada pela Súmula Vinculante n. 14.
Algumas das características essenciais do inquérito policial são:
Discricionariedade: O inquérito policial tem caráter discricionário, ou seja, tem a faculdade de operar ou deixar de operar, dentro, porém, de um campo cujos limites são fixados estritamente pelo direito. Portanto, como determina o art. 14 do CPP, a autoridade policial pode deferir ou indeferir qualquer pedido de prova feito pelo indiciado ou ofendido, não estando sujeita, a autoridade policial à suspeição.[21]
Forma escrita: É um procedimento escrito, já que é destinado a fornecer informações ao titular da ação penal. Determina o art. 9º do Código de Processo Penal que “todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade”.
Procedimento sigiloso: Qualidade necessária para que possa a autoridade policial providenciar as diligências necessárias para a completa elucidação do fato sem que lhe oponham, no caminho, empecilhos para impedir ou dificultar a colheita de informações com ocultação ou destruição de provas, influência sobre testemunhas etc.[22] Assim dispõe a lei processual penal em seu art. 20 que “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”.
Obrigatoriedade: Em se tratando de delito de ação penal pública, a instauração do inquérito policial é obrigatória, e deverá ser feita de ofício, assim que tenha a notícia da prática da infração (artigo 5º, inciso I, Código de Processo Penal).
Indisponibilidade: Uma vez instaurado regularmente, não poderá a autoridade policial, em qualquer hipótese, arquivar os autos, para tanto precisará da anuência do promotor de justiça e do magistrado (art. 17 do Código de Processo Penal).
2.3. Atribuição
Salvo exceções legais, a competência para presidir o inquérito policial é deferida, em termos constitucionais, aos delegados de polícia de carreira, de acordo com as normas de organização policial dos Estados.
Em se tratando de apuração de delitos de competência federal, pelos delegados federais. Sendo um procedimento administrativo a apuração por um delegado de outra esfera (de polícia ou federal) não anula o procedimento, que deverá ser remetido a quem de direito.
Na esfera do direito penal militar não há a figura do delegado de polícia. As investigações são as autoridades estão no 7º do Código de Processo Penal Militar, admitindo a delegação do seu exercício na forma determina nos parágrafos do referido artigo. Valendo-se pontuar que o encarregado do inquérito policial militar não precisa ter formação jurídica.
Esclarece Nucci que apesar da presidência do inquérito caber à autoridade policial, as diligências realizadas possam ser acompanhadas pelo representante do ministério público.[23]
3. Investigação penal pelo Ministério Público
Insta salientar que, em que pese haja discussão sobre a legitimidade da investigação presidida diretamente pelo Ministério Público, ainda que mais enfraquecida após a rejeição da PEC n. 37, certo é que na prática ela acontece, ainda que não seja a regra, ocorrendo em situações específicas. Para os fins a que se destina esse trabalho, classifica-se, desde logo, as situações excepcionais em três grupos, de acordo com o estágio da apuração dos fatos.
A investigação direta originária se dá quando o Ministério Público inicia uma apuração de um crime por sua responsabilidade, sem que para isso haja envolvimento policial, ainda que, em algum momento da investigação venha a requisitar o auxílio desta.[24]
Em vista das garantias constitucionais e independência funcional, o Ministério Público utiliza-se da investigação direta quando, por exemplo, o autor do fato é alguém capaz de exercer pressões contra a apuração policial, a qual não possui todas as prerrogativas e garantidas conferidas ao Ministério Público.[25]
Cumpre asseverar que, ao Ministério Público e à Magistratura, tais garantias foram conferidas exatamente para assegurar à sociedade e ao próprio ocupante do cargo a independência que tais funções devem ter.[26]
Por este motivo o Ministério Público utiliza-se de suas garantias para assegurar que a investigação criminal vá até seu deslinde sem ingerências indevidas.
A fim de aclarar tal ideia, foi amplamente divulgado na imprensa nacional, o caso envolvendo Duda Mendonça, pessoa que cuidava do marketing do ex-Presidente Lula. Após sua prisão por promover e participar de uma rinha de galo, dois policiais federais que participaram da ação foram ameaçados de transferência e o Delegado responsável foi afastado de sua chefia. Mais recentemente, o Delegado Federal Antônio Rayol, autor do flagrante, foi indiciado pela Polícia Federal, acusado de "concorrer para escândalo público" e "arranhar publicamente a reputação da Polícia Federal". Assim, o investigador passou a ser o investigado.[27]
Mais comum é o caso em que a notícia do crime chega diretamente ao promotor de justiça por uma testemunha ou vítima, que se encaminha a uma promotoria em busca de uma orientação jurídica, cujo auxílio depende o início das investigações.[28]
Para tanto, a Resolução n. 181 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) estabeleceu as regras para a formalização da investigação pelo procedimento investigatório criminal (PIC), procedimento adequado, semelhante ao inquérito policial, que visa reunir os elementos de convicção para eventual propositura de uma ação penal.
Não se pode esquecer também que há delitos, especialmente na esfera federal, em que o aparato necessário para desvendar o delito, é conseguido mais facilmente pelo Ministério Público, cujos recursos financeiros tendem a ser maiores que os destinados à polícia. Nesses casos, entende-se que busca o Ministério Público, auxiliando os demais órgãos públicos, por ter mais condições operacionais para o deslinde do fato.[29]
Por fim, como no caso do Inquérito 1.968-DF, levado ao Supremo Tribunal Federal, a investigação já chega finalizada ao Ministério Público, que apenas busca confirmar os dados recebidos.[30]
Na intitulada investigação direta derivada a iniciativa também é pelo próprio Ministério Público, contudo este tem conhecimento de um determinado delito através de outro tipo de procedimento decorrente de sua atuação, seja de natureza cível, trabalhista, fiscal ou criminal.[31]
Na atuação do Ministério Público em outros âmbitos do direito, pode ocorrer do promotor de justiça, se deparar com uma situação que se configura crime. Neste caso, pode o Ministério Público determinar a abertura de inquérito policial ou denunciar diretamente, se já possuir provas suficientes de materialidade e autoria. Pode ser, por outro lado, que o promotor do caso entenda ser aconselhável a apuração do crime de maneira direta.[32]
Finalizando, a investigação direta revisora ocorre quando o Ministério Público procura confirmar as informações e conclusões fornecidas pela polícia, fazendo uma análise se o procedimento investigatório já esta hábil a ensejar uma denúncia.[33]
Nesta suposição, o inquérito policial é concluído e relatado, sendo em seguida encaminhado ao Ministério Público. Neste momento, o promotor tem três alternativas, a escolher uma: a) oferecer denúncia; b) promover o arquivamento; ou, c) requisitar outras diligências.
Há que se observar que pode ocorrer em algum caso específico que reste dúvida quanto a uma prova ou testemunho, ou até mesmo da conduta da polícia durante a investigação. Assim, na investigação revisora, o Ministério Público pode requisitar informações, ouvir testemunhas e realizar diretamente todas as diligências que entender necessárias para formar sua opinio delicti, como destinatário da prova colhida e, eventualmente, como fiscal externo da atividade policial.[34]
Deve-se ressaltar, entretanto, que esta classificação atende apenas aos casos de investigação pré-processual, sendo que, por vezes, o Ministério Público tem acesso a um documento ou testemunho durante o processo penal.
3.1 A primeira investigação criminal pelo ministério público no Brasil
Segundo Paulo Rangel,[35] durante o regime militar, o Delegado de Polícia Sérgio Fernando Paranhos Fleury, homem forte no sistema de segurança pública do Estado de São Paulo, liderava o chamado "Esquadrão da Morte", grupo armado ligado ao tráfico de drogas e a execuções sumárias.
O Ministério Público à época não tinha independência funcional, o que lhe permitia ser pressionado por aqueles que detinham o poder. Ademais, Fleury tinha influência no cenário político, sendo inclusive ligado ao Presidente Médici, com o qual havia feito uma aliança para combater a subversão.[36]
Enquanto o Esquadrão da Morte atuava nenhuma medida coercitiva estatal era tomada, até que a pressão internacional e a insistência do Procurador de Justiça Hélio Bicudo iniciou-se uma investigação do caso.[37]
Designado para realizar, pessoal e diretamente, as investigações criminais sobre as atividades do grupo, Hélio Bicudo instaurou vários processos contra Fleury. Entretanto, em vista do grande poder exercido por Fleury, o Procurador foi afastado das investigações e foi aprovada a Lei 5941/73, que ficou conhecida como Lei Fleury, a qual foi encomendada para garantir a liberdade provisória do Delegado caso o processo realmente tivesse seguimento. O Delegado conseguiu com sua influência política encerrar a investigação criminal.[38]
Este caso, a propósito do tema, permite observar que o Ministério Público realizou investigação criminal direta já em 1973, durante o regime militar e quando ainda não possuía a maioria de suas modernas atribuições, bem como não tinha garantias constitucionais, como a inamovibilidade, o que facilitou o encerramento das investigações criminais, conforme os interesses do governo, mas foi o marco inicial da atividade investigativa do Ministério Público no Brasil.
CONCLUSÃO
A persecução de práticas criminosas pelo Estado foi idealizada pelo legislador atribuindo a investigação, como procedimento preliminar, à polícia judiciária, que ao final apresentaria os elementos de convicção relatando os fatos criminosos, em tese, praticados pelo indiciado.
Esses elementos seriam remetidos ao Ministério Público, órgão incumbido de propor a ação penal que apresentaria a denúncia, a qual se recebida pelo juiz iniciaria a fase judicial que poderia culminar com a condenação do indivíduo.
Não obstante, parecer se tratar de fases estanques, certo é que com a modernidade, a massificação da sociedade, a complexidade das relações jurídicas, o aumento da criminalidade organizada e especializada, o Ministério Público, que antes tendia a permanecer em uma posição inerte quanto a busca por elementos para propor a ação penal, viu-se instado a, por si só, proceder a investigações fora do bojo do inquérito policial.
Iniciando a investigação direta com o caso Fleury em 1973, alarga paulatinamente seu leque de atribuições com vistas a desempenhar sua função de titular da ação penal.
As tentativas de barrar o poder de investigação do Ministério Público foram freadas com a não aprovação da PEC n. 37, enquanto que a Resolução n. 181 do CNMP continua estabelecendo as regras para o procedimento investigatório criminal.
Esta atribuição não é e não deve ser utilizada como forma de enfraquecer a polícia judiciária ou de restringir direitos fundamentais dos investigados, mas de outra banda cumprir a função do Ministério Público na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, conforme preconiza o art. 127 da Constituição Federal.
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[1] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2000, p. 23.
[2] MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 19.
[3] MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A Lógica das Provas em Matéria Criminal. Campinas: LZN, 2003, p. 11.
[4] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 8ª edição. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004, p. 5.
[5] Ibidem, p. 196.
[6] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O papel do inquérito policial no sistema acusatório – O modelo brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2003, p. 197.
[7] MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. Trad. Santiago Sentís Melendo y Marino Ayerra Redin. Barcelona: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1951, p. 173.
[8] SALLES JÚNIOR, Romeu de Almeida. Inquérito Policial e Ação Penal. São Paulo: Saraiva. 3ª. ed. 1985, p. 03.
[9] MARQUES, José Frederico. Elementos de Processo Penal, V. I, Campinas: Bookseller, 2005, p. 139.
[10] RIOS, Carlos Alberto dos. Teoria e prática do Inquérito Policial. Bauru: Edipro, 1986, p. 06.
[11] MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas. 14. ed. 2003, p. 76.
[12] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2. ed. 2006, p.127.
[13] BRASIL, Código de Processo Penal, artigo 12.
[14] LOPES JUNIOR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p. 31.
[15] Idem.
[16] idem.
[17] idem.
[18] Idem.
[19] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2. ed. 2006, p.128.
[20] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, v. I, 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 75.
[21] MARQUES, José Frederico. Elementos de Processo Penal, V. I, Campinas: Bookseller, 2005, p. 154.
[22] Idem. Ibidem, p. 155.
[23] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2. ed. 2006, p.128.
[24] PONTES, Manuel Sabino. Investigação Criminal pelo Ministério Público: uma crítica aos argumentos pela sua inadmissibilidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1013, 10 abr. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8221>. Acesso em: 31.01.2021.
[25] Idem.
[26] Idem.
[27]Revista Consultor Jurídico. Rinha federal. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/static/text/37563,1>. Acesso em: 31.01.2021.
[28] PONTES, Manuel Sabino. Investigação Criminal pelo Ministério Público: uma crítica aos argumentos pela sua inadmissibilidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1013, 10 abr. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8221>. Acesso em: 31.01.2021.
[29] Idem.
[30] Idem.
[31] Idem.
[32] Idem.
[33] Idem.
[34] Idem.
[35] RANGEL, Paulo. Investigação Criminal Direta pelo Ministério Público: Visão Crítica. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003, p. 144.
[36] Idem.
[37] Idem.
[38] Idem.
Assessora Jurídica de Procurador de Justiça junto ao Ministério Público do Estado do Paraná; Especialista em Direito e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional e em Ministério Público – Estado Democrático de Direito pela Fundação Escola do Ministério Público do Paraná.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACHADO, Cristiane Pereira. A investigação penal e o Ministério Público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 ago 2021, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57061/a-investigao-penal-e-o-ministrio-pblico. Acesso em: 22 nov 2024.
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