RESUMO: O Direito Penal, ainda que funcione como ultima ratio, desempenha relevante função de controle social, não só estabelecendo limites para o poder punitivo estatal, mas também (e especialmente) viabilizando a imposição de penas que ostentam, a um só tempo, caráter aflitivo (ou retributivo) e preventivo. Dentre as espécies de sanções das quais o Direito Penal retira contributo efetivo para a pacificação social, inclui-se a pena de multa, que, por se tratar de pena propriamente dita, carrega consigo os atributos da retribuição e prevenção, tal e qual as demais espécies de sanção penal. Não obstante a aparente obviedade dessa assertiva, recorrentemente se levantam vozes que, seja por uma leitura equivocada decorrente do aspecto pecuniário imanente à pena de multa, seja por uma má compreensão acerca dos fins perseguidos pelo Estado no seu mister de pacificação social, soerguem raciocínios tendentes a banalizar a pena de multa e a mitigar a obrigatoriedade de adimplemento. É exemplo disso a tese que sustenta a extinção das execuções de penas de multa de pequeno valor, valendo-se, para tanto, de uma lógica eminentemente arrecadatória. No presente ensaio, busca-se demonstrar a inadequação desse posicionamento e, em última análise, enaltecer a pena de multa como relevante mecanismo de controle social.
Palavras-chave: Pena de multa. Extinção da execução. Lógica arrecadatória.
Desde a ruptura do Estado Liberal e a consequente passagem para o Estado de Bem-Estar Social (Welfare State, Estado assistência ou Estado providência), tornou-se usual a asserção de que o Estado existe para a consecução do bem comum, aqui entendido como o conjunto das condições necessárias para que a pessoa humana realize sua dignidade. Para atingir tal mister, o Estado age em diversas frentes e sob diferentes métodos, seja garantindo a paz e segurança públicas e exercendo a função de controle social, notadamente por meio do Direito Penal, seja lançando mão de atividades prestacionais, a exemplo da oferta de serviços públicos de saúde, educação, habitação, etc.
Por óbvio, para a execução dos programas constitucionais, mormente em Estados regidos por Constituições programáticas e de feição social (ou pós-liberal), como o é a Constituição Federal brasileira de 1988, o Poder Público precisa obter recursos financeiros, o que faz, de acordo com o escólio de ALEXANDRE (2017, p. 40), sob duas formas distintas, segundo a já tradicional classificação dada pelos financistas às receitas públicas:
Para obter receitas originárias, o Estado se despe das tradicionais vantagens que o regime jurídico de direito público lhe proporciona e, de maneira semelhante a um particular, obtém receitas patrimoniais ou empresariais. A título de exemplo, cite-se um contrato de aluguel em que o locatário é um particular e o locador é o Estado. O particular somente se obriga a pagar o aluguel porque manifesta sua vontade ao assinar o contrato, não havendo manifestação de qualquer parcela do poder de império estatal.
Na obtenção de receitas derivadas, o Estado, agindo como tal, utiliza-se das suas prerrogativas de direito público, edita uma lei obrigando o particular que pratique determinados atos ou se ponha em certas situações a entregar valores aos cofres públicos, independentemente de sua vontade. Como exemplo, aquele que auferiu rendimento será devedor do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza (imposto de renda) independentemente de qualquer manifestação volitiva.
De plano, infere-se que a imposição de sanções penais (mesmo as de natureza pecuniária, como o são as penas de multa), não integra qualquer das estratégias estatais para a incorporação de receitas. Aliás, a só análise do conceito de tributo previsto no art. 3º, do Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/66) já nos traz uma luz nesse sentido, ao dispor que “tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada” (grifo nosso).
No ponto, é pertinente a lição de PAULSEN (2017, p. 34), de acordo com quem
(...) não há que se confundir o tributo em si com a receita, também derivada e compulsória, que são as multas por prática de ato ilícito, fundadas no poder de punir, e não no poder fiscal. (...) O tributo não é sanção de ato ilícito e, portanto, não poderá o legislador colocar o ilícito, abstratamente, como gerador da obrigação tributária ou dimensionar o montante devido tendo como critério a ilicitude.
Destarte, é perceptível que, mesmo quando age no mister de obtenção de receitas derivadas, com o socorro do seu poder de império, o Estado não o faz mediante sancionamento de ilícitos penais, por uma simplória razão: não é esse o desígnio das penas aplicadas em decorrência da prática de condutas criminosas. Não é essa, aliás, a finalidade do próprio Direito Penal.
Assim, muito embora apresentem pontos de afinidade, notadamente o respaldo do império estatal, é certo que as atuações do Estado no âmbito criminal e no âmbito fiscal/arrecadatório regem-se por lógicas suficientemente distintas e absolutamente inconfundíveis, mesmo nos casos de imposição de sanções criminais com feição pecuniária, como é o caso das penas de multa.
A despeito da aparente trivialidade dessa constatação, o fato é que a pena de multa, para além da evidente crise de efetividade que a abate já desde algum tempo, vem sendo aquebrantada com base em raciocínios que afligem a sua própria essência enquanto sanção penal, a exemplo daquele que apregoa a necessidade de extinção das execuções de multas criminais de pequeno valor, com fundamento na lógica do custo-benefício econômico-financeiro, comumente empregada pela Fazenda Pública no exercício da sua função fiscal/ arrecadatória.
A aspiração do presente ensaio é precisamente a de rechaçar o viés de banalização das penas de multa, apresentando argumentos sólidos em contraposição ao discurso repudiado, bem como operando uma leitura da problemática à luz da Análise Econômica do Direito e do Garantismo Penal Integral, cujas balizas igualmente se prestam a refutar a tese que caminha para a extinção temerária de penas e execuções penais.
Sem embargo das vozes dissonantes por parte da escola abolicionista penal, de índole meramente alegórica, dada a ausência de empirismo e o distanciamento da realidade que impregnam essa teoria, parece haver preponderância do entendimento de que o Direito Penal, embora merecedor de críticas em face do arcaísmo de certos institutos dos quais se vale, ainda constitui relevante mecanismo de controle social, no ponto em que viabiliza um aparato jurídico necessário para que o Estado se substitua à sociedade no controle da transgressão de normas de conduta e na busca última pela pacificação social, através da imposição de penas, caracterizadas pela restrição ou privação de bens jurídicos determinados do indivíduo.
Segundo o brilhante escólio de MASSON (2020, p. 460), “pena é a espécie de sanção penal consistente na privação ou restrição de determinados bens jurídicos do condenado, aplicada pelo Estado em decorrência do cometimento de uma infração penal, com as finalidades de castigar seu responsável, readaptá-lo ao convívio em comunidade e, mediante a intimidação endereçada à sociedade, evitar a prática de novos crimes ou contravenções penais”.
De logo se percebe que a ideia de pena está intimamente atrelada às finalidades buscadas pelo jus puniendi estatal. Sem a pretensão de nos estendermos sobre o tema em face dos limites metodológicos deste artigo, é possível afirmar que ao longo da história se conceberam diferentes teorias sobre as finalidades da pena. Dentre elas, apresentaram maior relevância: (i) a teoria absoluta (ou da finalidade retributiva), difundida através dos estudos de Wilhelm Friedrich Hegel e Emmanuel Kant, segundo a qual a pena consistiria na justa repressão estatal de um mal causado pelo agente delitivo, sem se preocupar com a função de readaptação social; (ii) a teoria relativa (ou da finalidade preventiva), com respaldo em Hans Welzel, Gunther Jakobs e Anselm von Feuerbach, que defendia uma finalidade preventiva para a pena, preocupando-se mais em evitar a prática de novas infrações pelo condenado (prevenção especial) e pela sociedade (prevenção geral); e (iii) a teoria unitária (unificadora ou mista), de acordo com a qual a reprimenda penal se presta, concomitantemente, a castigar o criminoso pela sua conduta e a evitar a prática de novos crimes.
Por força do vigente art. 59 do Código Penal[1], há certo consenso doutrinário no sentido de que a sanção penal no ordenamento jurídico brasileiro orienta-se pela teoria unitária, ou seja, a pena, entre nós, ostenta as finalidades retributiva e preventiva.
Precisamente no que toca à pena de multa BUSATO (2015, p. 840) leciona que essa espécie de sanção penal teve larga aplicação na antiguidade, ressurgiu na alta Idade Média e passou a ser gradualmente substituída pelo sistema de penas corporais e capitais, as quais cederam terreno, por volta do século XVII, às penas privativas de liberdade. BRUNO (1959, p. 73), por sua vez, apresenta relatos do emprego da multa pelo sistema penal romano, tanto como medida de poder de polícia como propriamente de sanção penal, variando do confisco até a multa propriamente dita, enquanto DOTTI (1998, p. 383) esclarece que em Portugal, ou antes mesmo da sua formação, na península ibérica, a multa ostentava estrutura distinta da feição pecuniária atual, cuja essência constitui-se em um pagamento em favor do Estado, despida de qualquer ideia de indenização. Destaca que, naquele período histórico, as multas eram impostas sob as formas de colúmbia, para os casos de homicídio, estupro, rapto e roubo; de coima, aplicada à hipótese de pequenos furtos, e de achada, aos que deixassem animais invadirem a lavoura alheia.
A par de tais considerações de ordem histórica, convém pontuar que, como verdadeira sanção penal que é, a multa está imbuída das mesmas finalidades imanentes às demais espécies penais, quais sejam, a retribuição e a prevenção de novos delitos. Igualmente, se submete aos princípios gerais da legalidade e da anterioridade, reclamando previsão por lei (em sentido formal e material) vigente à data do fato criminoso.
A fundamental distinção que se impõe em relação às penas de privação de liberdade, por demais óbvia, reside precisamente no bem jurídico afligido pelas multas: enquanto aquelas se voltam à restrição da locomoção do indivíduo, atingindo diretamente a sua liberdade, as penas de multa fustigam o patrimônio do agente delitivo. Possuem, pois, acepção eminentemente pecuniária, malgrado a arrecadação de riqueza pelo Estado ou mesmo a indenização pelo dano causado não constituam objetivos dessa espécie sancionatória.
Segundo leciona GRECO (2015, p. 619), “nos dias de hoje, a pena de multa atende às necessidades atuais de descarcerização, punindo o autor da infração penal com o pagamento de importância determinada pelo juiz, cujo valor deverá obedecer aos limites mínimo e máximo ditados pelo Código Penal”.
Sobre esse aspecto, não se desconfia da asserção de que as sanções pecuniárias assumem, em cenários específicos e quando devidamente empregadas e executadas, feição intimidatória ou dissuasória mais eficaz do que outras modalidades sancionatórias, inclusive do que as penas privativas de liberdade, mormente quando impostas a criminosos menos favorecidos financeiramente.
Noutro giro, igualmente não se pode deixar ao relento o risco, sempre presente, de que as penas de multa, dado o seu baixo grau de pessoalidade, se afigurem iníquas para atingimento das finalidades retributiva e preventiva, ante a possibilidade de que a sanção, no final das contas, não seja suportada efetivamente pelo autor do fato criminoso. Em tempos em que a criminalidade organizada e os aparatos paralelos de poder ganham espaço, essa preocupação revela-se com ainda mais vigor.
FERRAJOLI (2002, p. 34) chama atenção para esse aspecto negativo da pena de multa, sustentando que “a pena pecuniária é uma pena aberrante sob vários pontos de vista. Sobretudo porque é uma pena impessoal, que qualquer um pode saldar, de forma que resulta duplamente injusta: em relação ao réu, que não a quita e se subtrai, assim, à pena; e em relação ao terceiro, parente ou amigo, que paga e fica, assim, submetido a uma pena por um fato alheio. Ademais, a pena pecuniária é uma pena desigual, ao ser sua formal igualdade bem mais abstrata do que a pena privativa de liberdade. Recai de maneira diversamente aflitiva segundo o patrimônio e, por conseguinte, é fonte de intoleráveis discriminações no plano substancial”.
Entre nós, ao menos desde o advento do Decreto-Lei nº 2.848/40 (Código Penal), a regulamentação da pena de multa tem se afigurado deveras cambiante, quanto às consequências para o seu inadimplemento e, especialmente, quanto ao modo de execução, circunstância que seguramente constitui fator decisivo para a não assimilação dessa espécie como pena propriamente dita e, consequentemente, para a imprecisão técnica do raciocínio que se pretende rebater neste ensaio científico.
Com efeito, a redação originária do art. 38, do Código Penal, previa como consequência para o caso de não pagamento da multa a sua conversão em pena privativa de liberdade, na modalidade de detenção.
A partir da primeira grande reforma da Parte Geral do Código Penal, levada a efeito pela Lei nº 7.209/84, a disciplina da pena de multa foi deslocada para o art. 51 e seguintes, mantendo-se, entretanto, a previsão de convolação em pena de detenção, com sucintas alterações na sistemática de conversão.
Posteriormente, com o advento da Lei nº 9.268/96, diante da compreensão de que a multa deveria funcionar como alternativa ao cárcere e que essa função não era satisfatoriamente alcançada pela previsão normativa de conversão em detenção, passou-se a prever, como consequência para o mesmo inadimplemento, a convolação da multa em dívida de valor, regida pelas mesmas normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição, a ser exigida por meio de execução.
A absorção de características inerentes à dívida ativa da Fazenda Pública trouxe como implicação a atribuição de legitimidade às Procuradorias fazendárias, nacional e estadual, para a execução das penas de multa criminal (e não apenas das multas tributárias), bem como de competência aos Juízos de Execução Fiscal para o processamento das respectivas execuções.
Com o devido cuidado para não avançarmos sobre o conteúdo dos tópicos posteriores deste trabalho, de logo é possível notar que a inovação legislativa trouxe o inconveniente de retirar da alçada do Ministério Público, enquanto titular da pretensão punitiva estatal, o controle sobre a efetivação das sanções pecuniárias impostas no bojo da ação penal precedente, atribuindo-o a órgãos estranhos à persecução criminal e cujo mote de atuação, na cobrança de valores inscritos em Dívida Ativa, parte de um juízo de custo-benefício econômico-financeiro.
Em termos mais claros, mesmo que não o tenha feito de forma expressa, a Lei nº 9.268/96 findou por impor às multas penais verdadeira feição arrecadatória, ao passo que atribuiu à Fazenda Pública o juízo de conveniência e oportunidade em executá-las ou não. Por ululante, outro não poderia ser o efeito dessa norma, senão a instauração de uma profunda crise de efetividade das penas de multa criminal, mormente considerando o abismo existente entre os valores irrisórios previstos pela legislação penal e os elevados patamares tidos como minimamente hábeis a justificar uma execução pelas Procuradorias Fazendárias.
Registre-se que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, de forma aparentemente despreocupada com a característica da indisponibilidade da sanção penal, passou a convalidar o malfeito da Lei nº 9.268/96, conferindo legitimidade exclusiva às Procuradorias da Fazenda para executar as penas de multa, entendimento esse que persistiu por longo período.[2]
Essa construção pretoriana, todavia, sofreu uma verdadeira viragem jurisprudencial a partir do julgamento da ADI nº 3150, no bojo da qual o Supremo Tribunal Federal firmou em definitivo a tese de que a Lei nº 9.268/96 não retirou o caráter de sanção criminal inerente à pena de multa, reconhecendo, como consequência dessa premissa, a legitimação prioritária do Ministério Público para a execução da multa penal perante a Vara de Execuções Penais, reservando-a apenas subsidiariamente às Procuradorias da Fazenda Pública, perante as Varas de Execução Fiscal, para o caso de inércia do Parquet.
Confira-se, por pertinente, a ementa do julgado:
Execução penal. Constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Pena de multa. Legitimidade prioritária do Ministério Público. Necessidade de interpretação conforme. Procedência parcial do pedido. 1. A Lei nº 9.268/1996, ao considerar a multa penal como dívida de valor, não retirou dela o caráter de sanção criminal, que lhe é inerente por força do art. 5º, XLVI, c, da Constituição Federal. 2. Como consequência, a legitimação prioritária para a execução da multa penal é do Ministério Público perante a Vara de Execuções Penais. 3. Por ser também dívida de valor em face do Poder Público, a multa pode ser subsidiariamente cobrada pela Fazenda Pública, na Vara de Execução Fiscal, se o Ministério Público não houver atuado em prazo razoável (90 dias). 4. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga parcialmente procedente para, conferindo interpretação conforme à Constituição ao art. 51 do Código Penal, explicitar que a expressão “aplicando-se-lhes as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição”, não exclui a legitimação prioritária do Ministério Público para a cobrança da multa na Vara de Execução Penal. Fixação das seguintes teses: (i) O Ministério Público é o órgão legitimado para promover a execução da pena de multa, perante a Vara de Execução Criminal, observado o procedimento descrito pelos artigos 164 e seguintes da Lei de Execução Penal; (ii) Caso o titular da ação penal, devidamente intimado, não proponha a execução da multa no prazo de 90 (noventa) dias, o Juiz da execução criminal dará ciência do feito ao órgão competente da Fazenda Pública (Federal ou Estadual, conforme o caso) para a respectiva cobrança na própria Vara de Execução Fiscal, com a observância do rito da Lei 6.830/1980. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 3150, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 13/12/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-170 DIVULG 05-08-2019 PUBLIC 06-08-2019)
Por último, como já não era sem tempo, adveio a Lei nº 13.964/2019, a qual, alinhando-se ao entendimento sufragado em sede de controle abstrato de constitucionalidade pelo STF, consagrou a redação atual do art. 51 do Código Penal, passando a dispor que “Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será executada perante o juiz da execução penal e será considerada dívida de valor, aplicáveis as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição” (grifo nosso).
Como se nota, num espaço temporal de cerca de 80 (oitenta) anos de vigência do Código Penal brasileiro, diversas foram as soluções buscadas, em nível legislativo e jurisprudencial, para dar cabo à crise de efetividade da pena de multa em nosso país. Ao que nos parece, apenas agora passa-se a ingressar em um nível confiável de estabilidade, especialmente como denota a notória movimentação no âmbito do Ministério Público brasileiro com vistas a efetivar a execução penal dessa espécie sancionatória.
Digno de lamentação, entretanto, é o fato de que, a despeito da aparente solidificação e harmonização do entendimento entre a mais alta Corte de Justiça do nosso país e o Poder Legislativo, por meio da Lei nº 13.964/2019, a pena de multa continue envolta em um injustificável dilema de identidade, ainda como resquício da feição arrecadatória que durante certo período lhe foi outorgada. E, o que é pior: em um dilema instigado por integrantes do próprio Ministério Público, que insistem em não exercer em sua plenitude a função de titular da pretensão punitiva estatal, e do Poder Judiciário, que teimam em internalizar as finalidades retributiva, preventiva e de pacificação social da pena de multa e, ao fim e ao cabo, da sua própria atuação institucional.
Consoante declinado nas linhas introdutórias deste estudo, o cumprimento dos programas intervencionistas e assistencialistas instituídos pela Constituição Federal brasileira, de índole marcadamente programática e social, reclama do Estado uma atuação incisiva na lida arrecadatória, com o fim de obter receitas em níveis hábeis a fazer frente às necessidades coletivas e aos custos com a prestação dos serviços públicos a que se propõe.
As lições preliminares de Direito Financeiro apresentadas por LEITE (2016, p. 26) dão conta de que a atividade financeira do Estado, enquanto mecanismo imprescindível para a realização do próprio fim estatal, desenvolve-se através de um ciclo que abarca quatro fenômenos bem delimitados, a saber, as receitas públicas, as despesas públicas, o orçamento público e o crédito público.
No que interessa ao presente ensaio, importa observar que a administração fazendária, quando da efetivação da primeira etapa do ciclo financeiro, qual seja, a da obtenção de receitas públicas, não raramente lança mão de atos de renúncia de receita que, prima facie, vão na contramão das crescentes necessidades coletivas. Apenas para situarmos o leitor no caminho que estamos a percorrer, constituem bons exemplos dessa estratégia financeira as dispensas de inscrição e de cobrança de dívidas de pequeno valor.
Com toda evidência, ao adotar tal postura, à primeira vista temerária, tendo em conta os elevados custos da despesa pública, a Fazenda age (pelo menos é o que se espera) amparada em estudos prévios de viabilidade e com olhos fixos, impreterivelmente, em princípios de assento constitucional, notadamente os da eficiência e da economicidade.
Com apoio em DAVID (2010, p. 89), destaca-se que os conceitos de eficiência e economicidade, tão caros ao agir da Administração Pública, mormente da administração fazendária, apresentam evidente sinergia, sendo o primeiro normalmente atrelado a uma função mais ampla de sopesamento entre os custos e resultados sociais da ação estatal, ao passo que a economicidade atua como uma prescrição de que o Estado gaste o mínimo possível para fazer determinados investimentos. No mesmo mote, BINENBOJM (2008, p. 346) esclarece que
O princípio da economicidade, inobstante sua autonomia no texto constitucional, é abrangido pela ideia de eficiência. A economicidade corresponde a uma análise de otimização de custos para os melhores benefícios. A economicidade é, assim, uma das dimensões da eficiência. [...] A eficiência administrativa encerra um vetor para a ação administrativa, devendo ser entendida como a busca da otimização da gestão com vistas à consecução dos melhores resultados com os menores custos possíveis.
Postas essas premissas, é de rigor caminharmos para a ilação de que a dispensa da inscrição e/ou da cobrança de dívidas de pequeno valor pela Fazenda Pública perpassa, necessariamente, por uma análise de custo-benefício ou, com menor rigor científico, por uma ponderação entre ganhar ou perder em termos econômico-financeiros, sempre com vistas ao resguardo da economicidade e, finalisticamente, ao atingimento de uma maior eficiência. O fenômeno é descortinado por PAULSEN (2017, p. 312), ao lecionar que
A inscrição e a cobrança de débitos de pequeno valor revelam-se, por vezes, desinteressantes e antieconômicas para a Fazenda Pública. Como os recursos financeiros e de pessoal são escassos, melhor atende aos princípios da economicidade e da eficiência concentrá-los na inscrição e cobrança de dívidas mais elevadas. Daí a existência de previsões legais estabelecendo limites mínimos para inscrição e execução e determinando o arquivamento das execuções de pequeno valor já existentes até que surjam outros débitos ou que seus acréscimos justifiquem sua retomada. Aliás, há normas determinando que sequer sejam lançados valores diminutos.
Seguindo essa aspiração, vige atualmente em âmbito federal a Portaria nº 75, de 22 de março de 2012, da lavra do Ministério da Fazenda, que dispõe sobre a inscrição de débitos na Dívida Ativa da União e o ajuizamento de execuções fiscais pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. O diploma fixa, logo em seu art. 1º, os seguintes limites:
Art. 1º Determinar:
I - a não inscrição na Dívida Ativa da União de débito de um mesmo devedor com a Fazenda Nacional de valor consolidado igual ou inferior a R$ 1.000,00 (mil reais); e
II - o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
A previsão normativa tem respaldo no art. 5º, do Decreto-Lei nº 1.569/77, o qual estatui que “o Ministro da Fazenda poderá determinar a não inscrição como Dívida Ativa da União ou a sustação da cobrança judicial dos débitos de comprovada inexequibilidade e de reduzido valor”. Assenta-se, ainda, no art. 65, parágrafo único, da Lei nº 7.799/89, que igualmente autoriza o Ministro da Fazenda a “dispensar a constituição de créditos tributários, a inscrição ou ajuizamento, bem assim determinar o cancelamento de débito de qualquer natureza para com a Fazenda Nacional, observados os critérios de custos de administração e cobrança”.
Seguindo idêntica lógica, também os Estados editaram, nas suas respectivas circunscrições, disposições normativas que dispensam a inscrição de créditos em Dívida Ativa e a execução de valores específicos, quando os custos para administração e cobrança não representem ganho patrimonial aos cofres públicos.
À guisa ilustrativa, no Estado de Rondônia vige a Lei Estadual nº 1.546/2005, que altera dispositivos da Lei Estadual nº 688/96 e dispõe sobre a dispensa de cobrança executiva de pequenos valores inscritos em Dívida Ativa, assim prevendo o seu art. 2º:
Art. 2º Não serão ajuizados os créditos tributários ou não tributários inscritos em Dívida Ativa cujo valor, acumulado por devedor e por tributo, quando se tratar de Dívida Ativa tributária, ou por devedor e por entidade credora, quando se tratar de Dívida Ativa não tributária, incluídos os encargos moratórios, seja inferior a 10 (dez) UPF/RO.
Até aqui tudo caminha aparentemente bem, porquanto no microssistema que rege a atividade financeira, o balanceamento entre o montante a ser arrecadado e os custos para a arrecadação encontra respaldo em regras e princípios com aptidão suficiente para fornecer uma justificativa razoável à dispensa da execução de dívidas de pequeno valor: em linhas gerais, a finalidade única que se almeja com a atividade executiva, que é o incremento patrimonial aos cofres públicos, não poderá ser alcançada porque os custos para cobrança superam a receita.
O raciocínio, banhado pela racionalidade inerente às ciências exatas, é dotado de uma logicidade tal que eventuais questionamentos sobre o ato de dispensa da execução de créditos não podem incidir sobre a construção lógica propriamente dita, mas tão somente sobre a exatidão do cálculo de custo-benefício, ou seja, sobre a correção do valor definido pela autoridade fazendária como patamar mínimo para justificar os atos de cobrança.
Ilustrativamente, as críticas que são direcionadas à regulamentação consagrada na Portaria MF nº 75/2012 não se direcionam propriamente à dispensa de cobrança de débitos inscritos em Dívida Ativa da União, mas, sim, ao montante de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) definido como o mínimo a ser executado pelas Procuradorias da Fazenda Nacional.
Igual precisão de raciocínio, entretanto, não se observa no posicionamento que apregoa a necessidade de extinção das execuções de multas criminais, mediante utilização de parâmetros de custo-benefício que são definidos pela Fazenda Pública para emprego no desempenho do seu múnus arrecadatório.
Obviamente, sem a pretensão de esgotar o tema, passamos a discorrer sobre 04 (quatro) razões de cunho técnico-jurídico que reputamos sólidas e suficientes para demonstrar o desacerto dessa tese. Vejamos.
O primeiro dos argumentos é embebido de uma obviedade tamanha, que sequer necessitaria ser trazido a lume, estivéssemos nós em um país em que o Direito Penal e a atividade persecutória criminal fossem encarados com um mínimo de seriedade e transitassem livres de teorias oportunistas, que muito mais se prestam a evidenciar os interesses dos seus defensores, do que propriamente a entregar contributo relevante ao aprimoramento científico da matéria penal.
Ora, defender a extinção das execuções de penas de multa de baixo valor com base em parâmetro firmado pela Fazenda Pública para atuação na seara fiscal/arrecadatória implica, simplesmente, atropelar uma noção basilar aos operadores do Direito Penal, qual seja, a de que a pena de multa, malgrado convolada em dívida de valor e inscrita em Dívida Ativa, nos moldes do art. 51, do Código Penal, não tem desnaturada a sua condição de pena propriamente dita e, por consectário lógico, não deixa de ostentar as finalidades retributiva e preventiva que são ínsitas à sua natureza.
A propósito da obviedade dessa afirmação, vale o destaque para o fato de que a própria Portaria MF nº 75/2012, ao definir, no art. 1º, os parâmetros para a dispensa de execução de dívidas pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, apressou-se em fazer expressa ressalva, logo no §1º do mesmo dispositivo, no sentido de que “Os limites estabelecidos no caput não se aplicam quando se tratar de débitos decorrentes de aplicação de multa criminal”.
Registre-se que a posição aqui defendida, inclusive, serviu como fundamento primevo durante o julgamento da ADI nº 3.150, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja ementa já restou transcrita em linhas anteriores, às quais remetemos o leitor com o fim de evitar repetições desnecessárias.
Por ora, merecem transcrição as criteriosas razões externadas pelo Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto, que findou prevalecendo sobre o posicionamento do Relator originário do processo e formando maioria para a decisão sobre a manutenção do caráter de sanção criminal da pena de multa. Ao discorrer sobre as alterações impostas ao art. 51, do Código Penal, pela Lei nº 9.268/96, o Ministro assim se manifestou:
(...) 11. A referida modificação legislativa não retirou da multa o seu caráter de pena, de sanção criminal. O objetivo da alteração legal foi simplesmente evitar a conversão da multa em detenção, em observância à proporcionalidade da resposta penal, e para “facilitar a cobrança da multa criminal, afastando obstáculos que, presentemente, têm conduzido à prescrição essa modalidade de sanção” (Exposição de Motivos nº 288, de 12 de julho de 1995, do Ministro da Justiça).
12. Em rigor, a alteração legislativa nem sequer poderia cogitar de retirar da sanção pecuniária o seu caráter de resposta penal, uma vez que o art. 5°, XLVI, da Constituição, ao cuidar da individualização da pena, faz menção expressa à multa, ao lado da privação da liberdade e de outras modalidades de sanção penal. Coerentemente, o art. 32 do Código Penal, ao contemplar as espécies de pena, listou expressamente a multa (art. 32, III).
13. Veja-se, ainda, que a execução da pena de multa fica suspensa, “se sobrevém ao condenado doença mental” (art. 52 do CP 3 ). Se fosse mera dívida de natureza civil não seria possível falar em suspensão da execução, como determina a lei penal. Note-se, também, que o art. 36, § 2º, do Código Penal e o art. 118, § 1º, da Lei de Execução Penal 4 estabelecem a regressão de regime para o condenado que não pagar, podendo, a multa cumulativamente imposta. Tais previsões não deixam nenhuma dúvida acerca da natureza essencialmente penal da sanção pecuniária.
14. Como tenho sustentado em diversas manifestações, o sistema punitivo no Brasil encontra-se desarrumado. E cabe ao Supremo Tribunal Federal, nos limites de sua competência, contribuir para sua rearrumação. Nas circunstâncias brasileiras, o direito penal deve ser moderado, mas sério. Moderado significa evitar a expansão desmedida do seu alcance, seja pelo excesso de tipificações, seja pela exacerbação desproporcional de penas. Sério significa que sua aplicação deve ser efetiva, de modo a desempenhar o papel dissuasório da criminalidade, que é da sua essência.
15. Em matéria de criminalidade econômica, a pena de multa há de desempenhar papel proeminente. Mais até do que a pena de prisão – que, nas condições atuais, é relativamente breve e não é capaz de promover a ressocialização –, cabe à multa o papel retributivo e preventivo geral da pena, desestimulando, no próprio infrator ou em infratores potenciais, a conduta estigmatizada pela legislação penal. (...)
16. Foi com base nas premissas até aqui desenvolvidas que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da EP 12-AgR, de minha relatoria (Sessão de 08.04.2015), chegou às seguintes conclusões: (i) a pena de multa não perdeu o seu caráter de sanção penal; (ii) em matéria de criminalidade econômica, a pena de multa desempenha um papel proeminente de prevenção específica, prevenção geral e retribuição; e (iii) como consequência, a multa deve ser fixada com seriedade, proporcionalidade e, sobretudo, deve ser efetivamente paga.
De rigor, portanto, a conclusão de que as finalidades retributiva e preventiva da pena de multa mantêm-se hígidas, a despeito da imposição legal de convolação em dívida de valor e inscrição em Dívida Ativa da Fazenda Pública, de sorte que a tais finalidades não podem se sobrepor raciocínios meramente arrecadatórios levados a efeito pela administração fazendária com o afã de obtenção de receitas. Outra conclusão, aliás, significaria admitir que os órgãos agentes da persecução criminal transacionassem com bens jurídicos e interesses dos quais efetivamente não são titulares, consoante explicitaremos melhor em tópico posterior.
É consabido que o Ministério Público é “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput, da Constituição Federal).
Como ferramenta imprescindível ao regular exercício dessas missões institucionais, a Constituição Federal erigiu o Ministério Público à condição de titular da pretensão punitiva estatal (dominus litis), ao incumbir-lhe da função de promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei (art. 129, inciso I). Igual atribuição consta, ainda, nos arts. 100, §1º, do Código Penal, e 257, inciso I, do Código de Processo Penal.
Noutro giro, o art. 67, da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84), impõe ao Ministério Público o dever de fiscalizar a execução da pena, incumbência que é ratificada pelo art. 38, inciso I, da Lei Complementar nº 75/1993 (Lei orgânica do Ministério Público Federal).
De todo esse acervo normativo, portanto, é possível extrair, com grau de certeza, a legitimidade do Ministério Público para perseguir a plena efetivação das penas de multa fixadas em sentença penal condenatória, mormente partindo da premissa de que estamos a tratar de uma sanção propriamente dita, nos termos do que já foi exposto alhures.
Aliás, conforme também já exposto em linhas pretéritas, a subtração de legitimidade ao Ministério Público para conferi-la às Procuradorias da Fazenda, em relação à execução das penas de multa, foi uma interpretação que prevaleceu durante certo tempo após o advento da Lei nº 9.268/96, inclusive com respaldo jurisprudencial, circunstância que indubitavelmente representou fator decisivo para o agravamento das crises de efetividade e de identidade que afligiram (e até hoje afligem) a pena de multa.
Felizmente, as compreensões atuais das duas mais altas Cortes de Justiça do nosso país (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça) encontram-se alinhadas quanto à confirmação da legitimidade prioritária do Ministério Público para a execução das penas de multa, perante os Juízos de Execução Penal. O posicionamento, frise-se, ganhou ares de estabilidade com o advento da Lei nº 13.964/2019, que conferiu nova redação ao art. 51, do Código Penal exatamente com o fito de preservar a atribuição de legitimidade prioritária ao Parquet.
Mais uma vez, calha trazer à colação as precisas lições do Ministro Luís Roberto Barroso por ocasião da prolação do voto vencedor no julgamento da ADI nº 3.150. Sobre o ponto em foco neste tópico, o Ministro esclareceu o seguinte:
19. Nessas condições, ainda que convertida a pena de multa em dívida de valor, não vejo como deixar de reconhecer ao titular da ação penal a legitimidade para a respectiva execução, justamente na terceira, e última, etapa de individualização da reprimenda. Sabido que “o processo de individualização da pena é um caminhar no rumo da personalização da resposta punitiva do Estado, desenvolvendo-se em três momentos individuados e complementares: o legislativo, o judicial e o executório ou administrativo” (HC 97.256, Rel. Min. Ayres Britto, Plenário).
20. Coerentemente com o perfil institucional do Ministério Público, a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) disciplina de modo expresso e analítico a cobrança da pena de multa, nos arts. 164 a 170. E a atribuição de tal procedimento à iniciativa do Ministério Público encontra-se taxativamente prevista no art. 164 (...).
21. A Lei de Execução Penal prevê, ainda, a penhora de bens (art. 164, §§ 1º e 2º), o desconto em folha (art. 168) e o parcelamento da multa em prestações (art. 169). Tudo na Vara de Execução Penal, “em autos apartados” (art. 164, caput). Significa dizer que o órgão legitimado inclusive para requerer medidas assecuratórias à execução da pena de multa é o Ministério Público (REsp 1.275.834, Rel. Min. Ericson Maranho, Sexta Turma do STJ).
22. Além da natureza essencial de pena, o que por si só já justificaria a atuação prioritária do Ministério Público, os arts. 164 a 170 da LEP não foram revogados pela Lei nº 9.268/1996 ou por qualquer outro diploma normativo. De modo que permanece em vigor previsão legal expressa a conferir titularidade ao Ministério Público para a cobrança da multa. A linha adotada neste voto conta com o apoio doutrinário de inúmeros autores que incluem, além dos já citados Damásio Evangelista de Jesus, Júlio Fabbrini Mirabete e Guilherme de Souza Nucci, também Celso Delmanto e Cezar Roberto Bittencourt (...).
Destarte, é ponto fora de discussão que o reconhecimento da legitimidade do Ministério Público, prioritariamente em relação às Procuradorias da Fazenda, para a execução das penas de multa, em substituição a um entendimento que absurdamente chegou a ser prevalente em um passado não muito distante, constitui mais um fundamento válido de convencimento acerca da necessidade de aplicarem-se à execução das sanções pecuniárias raciocínios que efetivamente respeitem a sua condição de penas propriamente ditas e, mais veementemente, que preservem as finalidades inatas às penas e ao Direito Penal como um todo.
Da asserção de que a pena de multa não se desnatura, mesmo quando convertida em dívida de valor e inscrita em Dívida Ativa da Fazenda Pública, decorre mais um consectário lógico: o adimplemento da sanção pecuniária em sua integralidade constitui pressuposto intransponível à declaração da extinção da punibilidade do fato criminoso.
Ora, se de pena efetivamente estamos tratando, nada mais lógico e razoável que a ela seja estendido tratamento igual ao que se reserva às demais espécies sancionatórias, a exemplo das privativas de liberdade, na exata medida das suas igualdades. Essa isonomia substancial entre as sanções penais, pois, impõe que, sendo o cumprimento integral das penas privativas de liberdade um pressuposto para a declaração de extinção da punibilidade, igual conclusão deve ser aplicada à sanção pecuniária, considerando que não há qualquer fator desigualador que justifique tratamento diferenciado nesse ponto.
Essa conclusão, aliás, se alinha ao posicionamento mais recente da jurisprudência pátria, consoante deflui do seguinte excerto:
RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. EXECUÇÃO PENAL. REVISÃO DE TESE. TEMA 931. CUMPRIMENTO DA SANÇÃO CORPORAL. PENDÊNCIA DA PENA DE MULTA. CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE OU DE RESTRITIVA DE DIREITOS SUBSTITUTIVA. INADIMPLEMENTO DA PENA DE MULTA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. IMPOSSIBILIDADE. COMPREENSÃO FIRMADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO JULGAMENTO DA ADI N. 3.150/DF. MANUTENÇÃO DO CARÁTER DE SANÇÃO CRIMINAL DA PENA DE MULTA. PRIMAZIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA EXECUÇÃO DA SANÇÃO PECUNIÁRIA. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA DO ART. 51 DO CÓDIGO PENAL. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, na ocasião do julgamento do Recurso Especial Representativo da Controvérsia n. 1.519.777/SP (REsp n. 1.519.777/SP, Rel. Ministro Rogerio Schietti, 3ª S., DJe 10/9/2015), assentou a tese de que "[n]os casos em que haja condenação a pena privativa de liberdade e multa, cumprida a primeira (ou a restritiva de direitos que eventualmente a tenha substituído), o inadimplemento da sanção pecuniária não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade".
2. Entretanto, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.150 (Rel. Ministro Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe-170 divulg. 5/8/2019 public. 6/8/2019), o Pretório Excelso firmou o entendimento de que a alteração do art. 51 do Código Penal, promovida Lei n. 9.268/1996, não retirou o caráter de sanção criminal da pena de multa, de modo que a primazia para sua execução incumbe ao Ministério Público e o seu inadimplemento obsta a extinção da punibilidade do apenado. Tal compreensão foi posteriormente sintetizada em nova alteração do referido dispositivo legal, levada a cabo pela Lei n. 13.964/2019.
3. Recurso especial não provido para manter os efeitos do acórdão que reconheceu a necessidade do integral pagamento da pena de multa para fins de reconhecimento da extinção da punibilidade, e acolher a tese segundo a qual, na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, ProAfR no REsp 1785861/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 20/10/2020, DJe 02/12/2020). Grifo acrescido.
No ponto, reputamos válido abrir breve aparte para refutar, peremptoriamente, qualquer pretensão de aplicação da teoria do adimplemento substancial, como subterfúgio para banalização da pena de multa, já tão fustigada por raciocínios da estirpe do que se discute neste trabalho.
A uma, porque a teoria ostenta índole eminentemente privatista e, portanto, destina-se a solucionar problemas de ordem obrigacional, regidos por uma lógica completamente incompatível com a ideia de sanção penal e suas finalidades.
A duas, porque tal tese, ao menos na esfera penal, ainda mantém o seu status de mera teoria, eis que carece de positivação legal, o que constitui efetivo óbice à sua aplicação, ainda que com fundamento na analogia in bona partem. Isso porque, como se sabe, a analogia é instrumento de integração do Direito, próprio para a colmatação de lacunas, as quais inexistem no campo do direito criminal, especificamente nesse ponto. É que nesta seara já há atribuição de legitimação a atores pré-definidos para que, mediante um juízo de conveniência e oportunidade, deliberem sobre a dispensa do cumprimento de penas de qualquer natureza, lançando mão de institutos como o indulto, a graça, a anistia e a comutação de penas.
Portanto, por qualquer ângulo que se encare a questão, a impossibilidade de extinção da punibilidade do fato criminoso, enquanto não saldada a pena de multa pelo pagamento ou por algum dos institutos referidos no parágrafo anterior, constitui mais um argumento sólido para refutar a tese que propaga a viabilidade da extinção das execuções penais com base em parâmetros de pequeno valor definidos pela Fazenda Pública.
Por derradeiro, cremos que a pretensão de extinção das penas de multa de baixo valor esbarra em um último óbice, igualmente óbvio: o necessário atendimento ao preceito da indisponibilidade da pretensão punitiva (aqui encarada em sentido amplo, para abranger a pretensão executória) por parte do Ministério Público.
Em que pese o princípio da indisponibilidade seja analisado em doutrina, com certa persistência, restringindo-o ao viés da obrigatoriedade de propositura da ação penal ou da impossibilidade de desistência recursal, tal exame limitado se faz, muito possivelmente, em razão de apenas haver previsões legais expressas sobre a indisponibilidade quanto a essas duas etapas da persecução criminal.
Com efeito, diversos são os exemplos extraídos da legislação processual penal brasileira costumeiramente apontados em doutrina como consagrações dessa indisponibilidade. Dentre outros, destacam-se: (i) o art. 28, do Código de Processo Penal, que prevê a revisão da proposta de arquivamento formulada pelo Promotor de Justiça; (ii) o art. 42, do Código de Processo Penal, que consagra de maneira expressa o princípio da indisponibilidade quando veda que o Ministério Público desista da ação; (iii) o art. 572, do Código de Processo Penal, que lhe proíbe a desistência do recurso; (iv) o art. 385, do Código de Processo Penal, que faculta ao Juiz, no processo dos crimes de ação pública, proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público entenda ser caso de absolvição.
Nada obstante, é certo que a indisponibilidade, muito além disso, deve ser encarada sob uma feição ampla (não restritiva), de modo a albergar, também e com muito mais razão, a etapa executiva da persecução criminal.
Primeiro, porque o fundamento que anima a previsão de regras de indisponibilidade para as etapas anteriores da persecução penal não sofre qualquer mutação com a passagem para a etapa executiva. Se o Ministério Público não pode dispor da ação penal ou desistir de um recurso, simplesmente porque atua como substituto processual, na defesa de interesses pertencentes à sociedade (e não à própria instituição), com muito mais razão não poderá dispor de uma sanção penal já alicerçada em sentença penal condenatória definitiva, justamente porque tal pena não lhe pertence.
Segundo, porque, quando quis mitigar a indisponibilidade da execução penal, a lei penal o fez expressamente, por meio da previsão do instituto da suspensão condicional da pena, autorizando não só a sua aplicação na etapa de conhecimento da lide penal, pelo Juiz sentenciante ou pelo Tribunal, na forma 77 e seguintes do Código Penal, como também pelo juízo da execução penal, na forma do art. 66, inciso III, alínea “a”, e dos arts. 156 e seguintes, da Lei de Execução Penal.
Não bastasse isso, é de se ponderar que a extinção prematura da execução penal de multas de baixo valor incorre, ainda, em outro inconveniente, que consiste no desrespeito à coisa julgada material. Não se pode descuidar, pois, de que a execução penal repousa em um título executivo judicial definitivo, validamente constituído a partir de um processo no bojo do qual ambas as partes (e não apenas o réu) puderam exercer as suas respectivas pretensões, inclusive a de impugnar o valor da multa, caso assim entendessem pertinente.
Por óbvio, se não o fez em tempo e modo oportunos, não pode o titular da pretensão punitiva estatal manifestar agora, somente na fase executiva, a sua insatisfação com a irrisoriedade do valor imposto a título de sanção pecuniária e, o que é pior, fazê-lo da forma mais perniciosa possível, ou seja, dispondo por completo daquela sanção que, baixa ou alta, permanece sendo sanção e, por conseguinte, deve ser executada.
A mesma observação se direciona aos membros do Poder Judiciário que caminham em idêntico sentido de banalização das penas pecuniárias. A esse respeito, aliás, é pertinente a lição de NUCCI (2020, p. 600), ao discorrer sobre os critérios para fixação da pena de multa:
Não se pode esquecer o peculiar fator determinado pela lei para a fixação da pena de multa: o magistrado deve atentar principalmente para a situação econômica do réu (art. 60, caput, CP). Verificando-se que a sua situação financeira é consistente e elevada, deverá ter o valor de cada dia-multa estabelecido em valores superiores a um trigésimo do salário mínimo. Se, feito isso, continuar insuficiente, pode o juiz elevar o número de dias-multa. O mais relevante é que a sanção pecuniária tenha repercussão considerável no patrimônio do condenado. Não se compreende a razão pela qual haja, atualmente, tanto descuido para a fixação da pena de multa, tratando o julgador, por vezes, com minúcia da pena privativa de liberdade e padronizando a multa em “10 dias-multa, calculado cada dia no mínimo legal”.
Daí a afirmarmos que o pressuposto do qual se deve partir é o de que, por ocasião da imposição da pena de multa, foram valorados todos os aspectos imprescindíveis à efetivação das finalidades da pena, em especial o seu efeito dissuasório em relação ao apenado. Eventual desleixo por ocasião da dosimetria, ou até mesmo a compreensão atual do Promotor de Justiça e do Juiz da Execução Penal (naturalmente influenciada pelas suas próprias lentes) quanto à inutilidade da sanção pecuniária, não podem servir como subterfúgio para que se socorram de argumentos quaisquer com o fim de dar cabo da execução penal e fazer menoscabo da coisa julgada.
Isso tudo sem falarmos no desprezo total e irrestrito que esse posicionamento impõe à movimentação da máquina pública já levada a efeito até que se chegasse à etapa executória, aí incluídas as atuações das polícias, da Defensoria Pública (eventualmente), do Ministério Público e do Poder Judiciário, em todas as suas instâncias. Ora, se o raciocínio que se faz é o de custo-benefício econômico-financeiro, atribuindo-se tamanha relevância aos gastos que advirão da execução da pena de multa, o mínimo que se deve fazer é atentar, com o fito de evitar desperdícios, para os elevados custos que já foram realizados com a investigação criminal, com o processamento da ação penal e com as subsequentes interposições recursais.
A julgar por esse raciocínio, sequer a persecução criminal deveria ser deflagrada, porque naturalmente envolve custos elevados para o Estado. Certamente os defensores desse raciocínio assim não agem por força do princípio da indisponibilidade da ação penal. E se assim é, nenhuma razão lógica existe para que, chegado o momento da execução penal, simplesmente dela se prescinda, sob a alegação de que levá-la adiante acarretaria prejuízo financeiro ao Estado.
Questiona-se, a propósito, a razão pela qual igual raciocínio não é aplicado às penas privativas de liberdade, quando se sabe que a execução das penas prisionais acarreta custos notoriamente altos aos cofres públicos. Ao que parece, há, por parte dos defensores desse entendimento, o depósito de maior confiança na eficácia das penas privativas de liberdade, o que mais uma vez evidencia a internalização da banalização das penas de multa.
Ora, ainda que visivelmente não atentem para isso, a lógica que vige para as sanções privativas de liberdade é exatamente a mesma que opera em relação às penas de multa: há uma pena (e disso não se pode descuidar jamais) de cuja execução poderão advir ônus financeiros ao Estado, circunstância essa que, em absoluto, não determina (e tampouco recomenda) a sua eliminação e o consequente sacrifício das finalidades retributiva e preventiva que a impregnam.
O dispêndio de valores por parte do Estado para a manutenção da paz e segurança públicas é inerente à sua condição de garantidor da pacificação social e, com toda evidência, não pode ser encarado ao revés dessa lógica, ou seja, como fundamento para que o Estado se exima do cumprimento do seu dever.
Por todos esses fundamentos, concluímos que a indisponibilidade da persecução penal (o que abrange naturalmente a indisponibilidade da execução penal e da sanção penal respectiva), constitui mais um argumento sólido para refutar o posicionamento que apregoa a extinção, prematura e inconcebível, das execuções de penas de multa de baixo valor.
Certamente incorreríamos em pecado capital caso abordássemos a temática ora em debate sem nos socorrer, ainda que brevemente, da leitura do Direito Penal sob o viés econômico e, consequentemente, sem atrair para este ensaio pontuações, por mais sucintas que sejam, sobre a necessária análise da relação de custo-benefício na execução das penas de multa, já que estamos aqui a rebater posicionamento que se fia basicamente por essa lógica, sob o prisma enviesado da atividade arrecadatória estatal.
Com efeito, a Análise Econômica do Direito (AED), em especial do Direito Penal, empresta relevante contributo ao presente debate, no ponto em que propõe uma leitura das regras jurídicas a partir dos seus efeitos de estímulo e das mudanças de comportamento das pessoas em resposta a tais regras. Na lição de RAMOS (2021, p. 44), a abordagem juseconômica
(...) passa pela premissa de que os agentes respondem a incentivos e se valem de escolhas, mensurando os custos e benefícios com o estabelecimento de um equilíbrio entre eles, com o objetivo de maximizar aquilo que lhe proporciona maior bem-estar. As teorias econômicas se esforçam para prever as reações humanas e como a alteração na estrutura dos incentivos pode alterar o comportamento dos agentes. (...) Desta forma, a metodologia é eminentemente comportamental, dissociando-se da visão mínima de que a Análise Econômica é exclusivamente a análise de números, lucros, juros e perspectivas de Mercado. Isto significa abarcar a possibilidade de análise de toda a ação humana que envolva a realização de uma escolha (ainda que não econômica): o ato de escolher envolve o sopesamento de possibilidades, um julgamento pelo qual influenciam inúmeras variáveis apreensíveis pela Análise Econômica.
Nessa perspectiva entregue pela análise econômica do direito, a ideia de sanção penal (aí incluída a pena de multa) equipara-se, em certa escala, ao conceito de preço, diante da percepção de que os indivíduos reagem aos maiores preços optando por não efetuar determinada transação ou por modificarem seu padrão de consumo em face da certeza de opções com melhor custo-benefício, da mesma forma que poderão repensar suas atitudes ilegais diante da certeza da aplicação de uma sanção penal[3].
Trata-se de uma leitura metafórica e de alto teor didático acerca do efeito dissuasório da sanção penal, que, partindo de uma lógica de custo-benefício, descortina a ideia geral de que o indivíduo apenas será seduzido pelo crime se o preço a ser pago (pena) revelar-se inferior ou insignificante em relação ao ganho esperado. Cuida-se, portanto, de emprestar ao fenômeno criminológico uma perspectiva racional, típica das ciências econômicas.
A importância dessa perspectiva para o presente estudo exsurge a partir da percepção de que igual raciocínio deve ser aplicado quando investigamos a imposição das sanções penais sob a ótica do Estado, no desempenho do seu mister persecutório criminal. Aliás, é este, precisamente, o locus em que pretendemos acomodar este trabalho.
Isso porque, ao fustigarem a execução penal das multas de pequeno valor com base em argumentos de cariz arrecadatório, os defensores dessa tese se valem exatamente de uma análise de custo-benefício entre o dispêndio para a movimentação da máquina pública, de um lado, e o proveito a ser obtido em caso de adimplemento da multa penal, de outro.
Por óbvio, nenhum repúdio se faz contra a pretensão de revisitar criticamente o Direito Penal e a sua aplicação em concreto. A inquietude e a desconfiança científica são apanágios inatos aos melhores operadores do Direito, fundamentais à evolução do pensamento jurídico. Não se descuida, pois, de que é salutar o exercício da crítica ao Direito Penal e, especialmente, da autocrítica, para os agentes investidos nas funções de persecução criminal.
Igualmente não se despreza a relevância de levar a efeito uma análise econômica do Direito Penal e das penas de multa e, especialmente, da serventia de voltar os olhos para a relação de custo-benefício na execução dessa espécie de sanção. Não fosse assim, razão alguma haveria para a abertura do presente tópico.
O problema do raciocínio, em absoluto, não incide sobre o agir crítico. Diferente disso, o embaraço repousa em eleger equivocadamente a vantagem que deve ser sopesada nesse exercício de racionalização do jus puniendi estatal ou, de forma mais direta, reside em representar erradamente o benefício que o Estado persegue com a imposição das penas de multa.
Consoante já largamente exposto nos tópicos precedentes, doutrina e jurisprudência pátrias são assentes no sentido de que a sanção pecuniária, ainda que convertida em dívida de valor e inscrita em Dívida Ativa da Fazenda Pública, não perde o seu caráter de sanção penal propriamente dita, banhada, portanto, das finalidades retributiva e preventiva. Disso deflui que, na análise da relação de custo-benefício da pena de multa, o benefício a ser ponderado nada tem a ver com o ganho financeiro do Estado.
A lição de ZAFFARONI e PIERANGELI (2011, p. 696/697) a esse respeito é precisa:
Na sua forma atual, a multa importa na obrigação de pagar uma soma em dinheiro ao Estado, com característica de pena, isto é, com um sentido de perda de um bem jurídico a título de contramotivação para o condenado (...) A multa penal, ou seja, a multa como pena, não perde, nunca, este seu caráter, pelo que conserva a sua principal função preventiva. (Grifos acrescidos)
De toda essa construção teórica, portanto, resulta imperioso o desenlace de que a relação custo-benefício da pena de multa não deve ser processada sob a lógica do quantum financeiro a ser dispendido pelo Estado com sua execução, em contraposição ao montante a ser arrecadado. Diferente disso, na busca pela atribuição de protagonismo à vantagem a ser obtida com a execução das penas de multa, é preciso ter como norte o alcance da retribuição pelo injusto praticado, da prevenção à prática de novos delitos e, a partir disso, da pacificação social.
Em termos mais claros, o caminho escorreito não está em perquirir se o valor da pena é suficiente para gerar benefício financeiro ao Estado, mas em perscrutar se esse valor é necessário, adequado e suficiente para viabilizar os fins de expiação do criminoso e de dissuasão da prática de novos delitos. O aspecto fiscal/arrecadatório é fator verdadeiramente irrelevante quando estamos a tratar da execução de uma multa criminal, mesmo sob uma análise econômica do Direito.
A propósito, não podemos deixar de registrar a nossa clara sensação de que, mesmo incorrendo em imprecisão técnico-jurídica para eleger a via argumentativa correta, muitos dos que se valem do raciocínio que conduz à extinção das execuções de penas de multa de pequena monta escoram-se exatamente na premissa de que a irrisoriedade dos valores dessas sanções impossibilita atingir qualquer fim útil.
Quando realizam o juízo de ponderação sobre o custo-benefício em prosseguir com a execução e se convencem da inutilidade da continuação em razão do baixo valor, tais operadores raramente se dão conta de que, em verdade, implícita ou inconscientemente, são levados a essa conclusão justamente por entenderem que a multa não se revela suficiente para atender às finalidades retributiva e preventiva da pena.
No afã de protestar pela evidente ineficácia das penas de multa fixadas em valores irrisórios, se apegam de forma imponderada a um argumento de ordem fiscal ou arrecadatória para sustentar a inconveniência do prosseguimento da execução, quando, em verdade, desejam gritar aos quatro cantos que a execução daquela mísera pena não servirá para coisa alguma, nem mesmo para gerar um secundário e não perseguido acúmulo de riqueza ao Estado.
Por isso mesmo é que temos chamado atenção para a conclusão de que o momento oportuno para exercer um juízo de razoabilidade ou proporcionalidade sobre o valor da pena de multa não é o da execução penal (pretensão executória), e sim o da imposição da pena (pretensão punitiva) ou, com ainda mais razão, o da sua cominação legal no preceito secundário do tipo penal incriminador (pretensão intimidatória), exercida no plano abstrato pelo legislador.
Se é certo que a sanção de multa ocupa posição destacada no atual cenário do sistema penal, por ostentar feição pecuniária e funcionar como alternativa ao cárcere, é igualmente certo que, há muito, está caducando a necessidade de revisão geral dos montantes cominados pela lei penal. A manutenção da pena de multa em patamares ínfimos apenas se presta à perpetuação dos argumentos de banalização dessa espécie sancionatória e, o que é pior, à sua consolidação como mera ficção, verdadeiro faz de contas no combate à criminalidade.
Ainda que nos esforcemos para não crer em tamanho despautério, não podemos desprezar a possibilidade de que o menoscabo à sanção pecuniária, à execução penal, à coisa julgada material e à atividade persecutória criminal, posto em evidência pelo raciocínio repudiado neste ensaio científico, decorra do lamentável desvirtuamento que se impõe em tempos atuais e, especialmente, em terras tupiniquins, à doutrina do garantismo penal.
Deveras, é com pesar que observamos, entre nós, um movimento ascendente de vulgarização dessa relevante construção teórica cunhada por LUIGI FERRAJIOLI. Lamentavelmente, o garantismo penal tornou-se lugar comum no qual são, rotineira e inadvertidamente, alocados todos os “juristas” ou raciocínios jurídicos que se posicionam exclusivamente em favor do réu no processo criminal e, ao fim e ao cabo, se prestam como pano de fundo à garantia da irresponsabilidade penal.
Em termos mais claros, a praxis jurídica tem evidenciado o emprego do termo “garantista” com o fim de identificar, invariavelmente, o operador do direito ou o pensamento jurídico que tenda a acolher posições demasiadamente benéficas ao ofensor, razoáveis ou não, como consagração do que FISCHER (2017, p. 69) denominou de garantismo penal monocular e hiperbólico. Vejamos:
Com efeito, e na linha do que já foi dito, têm-se encontrado reiteradas manifestações doutrinárias e jurisprudenciais em que há simples referência aos ditames do garantismo penal ou da doutrina de garantias, sem que se veja nelas a assimilação, na essência, de qual a extensão e quais os critérios da aplicação das bases teóricas invocadas. Em muitas situações, ainda, há (pelo menos alguma) distorção dos reais pilares fundantes da doutrina de Luigi Ferrajoli (quiçá pela compreensão não integral dos seus postulados). Daí que falamos, em nossa crítica, que se tem difundido um garantismo penal unicamente monocular e hiperbólico: evidencia-se desproporcionalmente e de forma isolada (monocular) a necessidade de proteção apenas dos direitos fundamentais individuais dos cidadãos que se vêem investigados, processados ou condenados. Jamais propusemos ou proporemos a desconsideração dos direitos fundamentais individuais previstos na Constituição. Não é disso que se trata. Quer-se, unicamente, uma visão sistêmica do Direito, para além de visualizar exclusivamente direitos individuais.
Tornou-se comum avistar a movimentação de operadores do Direito que, imponderadamente ou não, movidos por interesses nem sempre republicanos, se apropriam do garantismo penal para buscar soluções que privilegiam, em larga medida, os indivíduos submetidos à persecução criminal, em total desprezo a interesses outros que são igualmente relevantes e dignos de especial tutela sob os auspícios da teoria garantista, dos quais são expoentes a dignidade da pessoa humana vítima de um delito e os bens jurídicos titularizados pela coletividade, tais como a paz, a incolumidade e a segurança públicas.
Aliás, a só leitura dos clássicos axiomas sufragados pelo garantismo penal de FERRAJIOLI já deixam antever que a finalidade perseguida por essa doutrina é a de resguardar a efetivação de um Direito Penal (aqui entendido em suas acepções material e processual) justo e necessário, e não a de consagrar posições subjetivas, irrazoável e desproporcionalmente favoráveis ao sujeito que cometeu um crime.
Por sorte, tais argumentos, seja pela sua intrínseca fragilidade, seja pela ineficaz estratégia de desfaçatez quanto aos seus fins, sucumbem diante de uma análise realista e integralmente garantista do Direito Penal. Partilhamos, pois, da análise feita por SOUZA (2018, p. 198), para quem
A análise dos fatos concretos é suficiente para que qualquer indivíduo dotado de mínima inteligência perceba a desventura dos caminhos trilhados por meio de uma visão de mundo garantista, atraente na teoria, mas que, na prática, garante mesmo apenas o crime e sua prosperidade, em um círculo vicioso de tal forma arraigada na cultura em geral, que hoje causas e efeitos são quase indiscerníveis.
A partir dessa construção, afirmamos, sem receios, que, se é esse o cariz que soergue o posicionamento pela extinção das execuções de penas de multa de baixo valor, ou seja, se o operador que trilha esse caminho assim age por se autointitular garantista, com toda obviedade incorre em desmedido e copioso equívoco teórico, por buscar no garantismo penal uma resposta que inegavelmente dele não deflui.
Mais do que isso, rende-se (ainda que inconscientemente) a uma onda de desonestidade intelectual, típica de uma ideologia que manipula o complexo de normas jurídicas de forma invariavelmente arbitrária e destinada a uma finalidade pragmática bem delimitada: a irresponsabilidade penal, não raras vezes alcançada mediante atribuição de protagonismo excessivo ao réu e de descrédito à atuação estatal na proteção de bens jurídicos e interesses imanentes à coletividade.
Após detidas reflexões sobre a natureza jurídica das penas de multa e, mais largamente, sobre as finalidades perseguidas pelo Estado ao lançar mão de sanções dessa natureza, outra conclusão não reputamos possível, senão a de que incorre em completo equívoco o posicionamento que sustenta a necessidade de extinção da execuções penais de multas de baixo valor, com amparo em uma lógica eminentemente arrecadatória, levada a efeito pela Fazenda Pública no desempenho da sua atividade financeira, mais precisamente, no ciclo de obtenção de receitas.
Trilhar o caminho que ora repudiamos implica ingressar no terreno temerário da banalização das penas de multa, da invalidação do próprio Direito Penal como instrumento de controle social e, ao fim e ao cabo, da deslegitimação do agir estatal no mister de pacificação social, notoriamente por se desconsiderar a premissa inafastável de que essas sanções pecuniárias, como penas propriamente ditas que são, não se prestam a conferir ganho patrimonial aos cofres públicos, mas, sim, a afligir o autor de um fato criminoso e dissuadir, a ele e à comunidade em geral, da prática de novos delitos.
Conclusões que se perfilam ao posicionamento defendido neste trabalho, frise-se, já vêm sendo sufragadas pelos Tribunais pátrios, que se veem, com indesejada frequência, chamados a deliberar sobre contendas atinentes à pena de multa, o que bem evidencia, ainda em tempos atuais, uma injustificada vacilação na assimilação desse instituto.
Felizmente, a resposta jurisdicional tem sido assertiva no sentido de reafirmar a natureza penal da multa, seja reconhecendo, como consectário lógico, a legitimidade prioritária do Ministério Público para a execução dessas sanções pecuniárias, seja qualificando o seu adimplemento como pressuposto insuperável à declaração de extinção da punibilidade do fato criminoso correlato. Com toda obviedade, tais posicionamentos jurisprudenciais igualmente se prestam a refutar a tese de extinção prematura de penas de multa com espeque em uma lógica arrecadatória.
Concluímos, outrossim, que essa tese não se sustenta quando encarada sob a ótica da análise econômica do direito, visto que, ao realizar o processamento da relação de custo-benefício, esse viés representa indevidamente a arrecadação de capital como única vantagem a ser obtida pelo Estado com a execução das penas de multa criminal, em desprestígio, mais uma vez, às finalidades precípuas dessa pena.
Para além disso, arrematamos nosso estudo com a conclusão de que o raciocínio ora impugnado igualmente não encontraria guarida na perspectiva difundida pelo garantismo penal, sobretudo quando encarado este em sua feição integral, tendo em conta que o acolhimento da tese extintiva demandaria, inarredavelmente, uma aplicação meramente monocular da teoria garantista, que privilegiaria unicamente a construção de uma posição subjetiva favorável aos interesses do sujeito passivo da persecução criminal, em detrimento de outros bens jurídicos e interesses dignos de tutela, com destaque para aqueles titularizados pela vítima do fato criminoso e pela coletividade.
Como fechamento, assentamos a nossa convicção de que a solução para as crises de efetividade e de identidade que afligem a pena de multa, já há algum tempo, não perpassa pelo menoscabo a essa espécie sancionatória, à execução penal, à coisa julgada e à atividade persecutória criminal. Muito menos reclama o apego a um argumento que, com toda evidência, sequer pode ser alocado epistemologicamente na disciplina de Direito Penal.
Antes disso, compreendemos que a multa criminal ainda se apresenta como ferramenta viável e eficaz, da qual pode se valer o Estado no seu mister de controle social, evidentemente, se pensada e concretizada com o devido respeito à sua natureza jurídica e aos seus desígnios. A saída escorreita, pois, não reside na extinção prematura e temerária de execuções penais, mas, muito antes disso, no trato adequado da questão pelo legislador penal, dada a evidente necessidade de ajustamento nos patamares das penas de multa atualmente previstos, e, especialmente, pelos agentes de persecução criminal, aos quais compete a relevante tarefa de fixar as sanções pecuniárias em patamar necessário, adequado e proporcional ao atingimento das finalidades buscadas pela pena.
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[1] De acordo com o art. 59 do Código Penal “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime (…) as penas aplicáveis dentre as cominadas”.
[2] Confira-se, à guisa ilustrativa, o seguinte excerto: “AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PENAL. LEGITIMIDADE PARA A EXECUÇÃO DA PENA DE MULTA IMPOSTA EM PROCESSO CRIMINAL. ATRIBUIÇÃO DA FAZENDA PÚBLICA. IMPROVIMENTO. 1. É firme o entendimento desta Corte Superior de Justiça no sentido de que, com o advento da Lei nº 9.268/96, dando nova redação ao artigo 51 do Código Penal, afastou-se do Ministério Público a legitimidade para promover a execução de pena de multa imposta em decorrência de processo criminal. Trata-se, pois, de atribuição da Procuradoria da Fazenda Pública, havendo juízo especializado para a cobrança da dívida, que não o da Vara de Execuções Penais. 2. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 226.981/SP, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 18/09/2001, DJ 04/02/2002, p. 581)
[3] RAMOS, Op. cit., p. 44-45.
Artigo publicado em 18/08/2021 e republicado em 22/05/2024
Promotor de Justiça, no Ministério Público do Estado de Rondônia. Ex-servidor público federal da Justiça Federal, Subseção Judiciária de Campina Grande/PB. Ex-Coordenador de Ações Judiciais da Procuradoria Federal (AGU) na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Graduado em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Pós-graduado lato sensu em Direito Público pela Universidade Anhanguera (UNIDERP/LFG) e em Gestão Pública pela UEPB. Pós-graduando em Direito Ambiental pela Escola Superior da Magistratura de Rondônia (EMERON).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FONSECA, Felipe Magno Silva. Da impossibilidade de extinção da execução de multas criminais de pequeno valor com base na lógica arrecadatória estatal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 maio 2024, 04:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57114/da-impossibilidade-de-extino-da-execuo-de-multas-criminais-de-pequeno-valor-com-base-na-lgica-arrecadatria-estatal. Acesso em: 22 nov 2024.
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