ANDRÉ DE PAULA VIANA
(orientador)
RESUMO: O presente artigo busca, em seis capítulos, demonstrar a atual situação dos estabelecimentos prisionais no Brasil, principalmente diante da pandemia da Covid-19, fator que ressaltou ainda mais a precariedade dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos reclusos. A pesquisa bibliográfica e qualitativa inicia com a abordagem histórica do direito penal no mundo e no Brasil, que o tornou símbolo de manutenção da ordem pública e social, bem como método de aplicação de sanções coercitivas, como as penas privativas de liberdade, em caráter preventivo e ressocializador. Além disso, o artigo dispõe sobre a veracidade da ressocialização e sua eficácia no Brasil, face aos estabelecimentos prisionais nacionais, sobre os quais segue discorrendo e retrata o desrespeito total aos direitos básicos dos presos, quais sejam dignidade, saúde, saneamento básico e, por vezes, a vida. Por conseguinte, apresenta dados oficiais que comprovam a precariedade dos presídios, principalmente diante da atual situação causada pela pandemia da Covid-19, altamente infecciosa, quanto mais em locais de más condições sanitárias, demonstrando a realidade dos estabelecimentos prisionais e dos indivíduos que não possuem o mínimo respeito aos seus direitos e garantias fundamentais. Por fim, o artigo demonstra a relação entre a necessidade de valorização dos direitos humanos dentro do direito penal e da aplicação das penas, ressaltando a interdisciplinaridade entre os temas, a fim de destacar a situação vivida pelos indivíduos reclusos nos presídios e a inércia do Estado diante disso.
Palavras-chave: Presídios; Covid-19; Direitos; Penal; Estado;
ABSTRACT: This article seeks, in six chapters, to demonstrate the current situation of prison criteria in Brazil, especially in the face of the Covid-19 pandemic, a factor that further underscored the precariousness of fundamental rights and guarantees of prisoners' rights. Bibliographic and qualitative research begins with the historical approach to criminal law in the world and in Brazil, which has made it a symbol of maintaining public and social order, as well as a method of applying coercive sanctions, such as custodial sentences, in a preventive and resocializer. In addition, the article deals with the veracity of resocialization and its effectiveness in Brazil, given the national prison requirements, on which it continues to discourse and portrays the total disrespect for the basic rights of prisoners, namely dignity, health, basic sanitation and, for sometimes life. At present, it presents official data that prove the precariousness of prisons, mainly prior to the current situation caused by the highly infectious Covid-19 pandemic, let alone in places with poor sanitary conditions, demonstrating the reality of the obligatory and the obligated who do not have the minimum respect for their fundamental rights and guarantees. Finally, the article demonstrates the relationship between the need to value human rights within criminal law and the application of penalties, highlighting the interdisciplinary nature of the themes, in order to highlight the situation experienced by prisoners in prisons and the inertia of the State in the face of of this.
Keywords: Prisons; Covid-19; Rights; Criminal; Order;
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 O DIREITO PENAL NA HISTÓRIA. 3 O DIREITO PENAL COMO INSTRUMENTO DE MANUTENÇÃO DA ORDEM SOCIAL. 4 PENA RESTRITIVA DE LIBERDADE COMO MEIO DE RESSOSCIALIZAÇÃO. 4.1 DA EFICÁCIA DA RESSOSCIALIZAÇÃO. 5 REALIDADE DOS ESTABELECIMENTOS PRISIONAIS. 6 A SITUAÇÃO DOS PRESÍDIOS DIANTE DA PANDEMIA DA COVID-19. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
A superlotação nos presídios brasileiros é um tema recorrente na literatura jurídica, amplamente debatido e estudado por pesquisadores e doutrinadores do direito penal e dos direitos humanos. Todavia, as situações causadas no país com a chegada da Covid-19, ocasionada pelo coronavírus Sars-Cov-2, elevaram a discussão sobre o tema a um novo patamar.
Cuida-se de um assunto de trato delicado e ainda mais polêmico por conta da pandemia, haja vista que um medo frequente na sociedade e na doutrina defensora dos direitos humanos se tornou realidade. O questionamento acerca do que ocorreria nos presídios brasileiros em uma situação pandêmica deixou de ser apenas mera discussão jurídica literária, transformando-se numa situação real, prática e urgente.
Nesse sentido, o estudo sobre a superlotação carcerária tomou uma nova proporção, visto que, na atualidade, é necessário que sejam observadas, de uma só vez, todas as questões pertinentes ao caso, opiniões contrapostas e a realidade dos fatos. Em um aglomerado de informações e discussões, destacam-se aquelas que encontram sede de contradição entre a aplicabilidade do direito penal e processual penal e a valorização e o respeito aos direitos humanos.
A contraposição entre direitos humanos e direito penal encontra justificativa que permeia desde os princípios constitucionais até a consciência política e crítica da população. O primeiro ponto a ser ressaltado trata da manutenção dos direitos humanos dos indivíduos que são reclusos em regime fechado após o cometimento de um crime.
Não obstante, a reclusão em si já se trata de uma limitação de direitos fundamentais, porém, prevista constitucional e juridicamente, amplamente discutida, porém, aceita. Todavia, os direitos humanos limitam a aplicabilidade da prisão em regime fechado e restringem o cerceamento de direitos somente à liberdade de locomoção.
Entretanto, há entendimentos no sentido de que a reclusão não atinge seu fim, qual seja a ressocialização do indivíduo, e que deveria ser mais severa, ou estar acompanhada de outras formas de restrição de direitos. Esse posicionamento, no entanto, encontra barreiras nos direitos humanos e no respeito aos princípios e garantias constitucionais de proteção à vida e à dignidade humana.
É no meio desses entendimentos que a superlotação se encontra. A sociedade clama pelo cumprimento da lei e pela prisão em regime fechado de seus transgressores. O Estado não possui aparato suficiente para abrigar todos aqueles que deveriam estar reclusos, nem ao menos para fornecer condições humanas aos que já se encontram nos estabelecimentos prisionais.
Assim, a situação da superlotação nos presídios reside na falta de meios coercitivos para cumprimento da lei e manutenção da ordem social, no desrespeito aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo recluso e, no atual momento, na situação de uma pandemia causada por um doença respiratória, de transmissão rápida, invisível e agressiva, quando deveriam ser evitadas aglomerações de pessoas, face às celas prisionais que abrigam 30 presos, onde caberiam 10.
Desta forma, a pesquisa tem como objetivo apresentar e discutir os pontos que permeiam a questão da superlotação dos presídios em relação ao cumprimento do direito penal e processual penal, o respeito aos direitos humanos, a falta de amparo Estatal e a pandemia da Covid-19.
O Direito Penal é a área jurídica responsável por tratar dos delitos, dos crimes e das penas. É o ramo do direito que representa mais fielmente a imposição Estatal do cumprimento da lei, visto que, sua desobediência gera consequências ao indivíduo que a transgrediu.
Dessa forma, a origem do direito penal se confunde com a origem da própria pretensão punitiva. Desde que a sociedade se formou e o indivíduo passou a viver em grupos, viu-se a necessidade de que fossem instauradas regras para a manutenção da ordem. No entanto, notou-se que era necessário algum meio prático de fazer com que essas leis fossem cumpridas. Assim, nasceram as sanções penais.
Todavia, o direito penal não surge apenas como meio de imposição de punições, mas também como método de avaliação e quantificação destas sanções punitivas, haja vista as torturas e os excessos cometidos pelo indivíduos nas primeiras punições das quais se tem notícia.
Segundo Capez (2011),
O Direito Penal é o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los como infrações penais, cominando-lhes, em consequência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação.
No mesmo sentido, Cunha (2017), relata que, mesmo estando diretamente relacionado com a formação da sociedade, não se pode dizer que, nos tempos primitivos, haviam normas penais capazes de coibir a prática de delitos pela sociedade. Havia, tão somente, a existência da punição por vingança, nos moldes que pregado pelo Código de Hamurabi.
O referido Código, datado do Século XVIII antes de Cristo, foi a primeira manifestação escrita de leis codificadas. Originário da Mesopotâmia, o Código de Hamurabi trazia normas que determinavam a vingança como método punitivo.
O dizer “olho por olho, dente por dente”, talvez o mais conhecido desta legislação, expressava claramente que, tudo o que fosse feito por um indivíduo de modo a ferir outro, lhe seria devolvido na mesma quantia e intensidade, de maneira a equilibrar o direito.
Portanto, Kersten (2007) é claro ao retratar que o referido código legislativo servia como modelo de organização, utilizava preceitos religiosos, funcionou como a primeira legislação escrita de que se tem notícia e também primeiro ímpeto de justiça. Todavia, uma justiça bem diferente da conhecida na atualidade.
Segundo Cunha (2017):
Em vista da evolução social, mas sem se distanciar da finalidade de vingança, o Código de Hamurabi, na Babilônia, traz a regra do talião, onde a punição passou a ser graduada de forma a se igualar à ofensa. Todavia, esse sistema, embora adiantado em relação ao anterior, não evitava penas cruéis e desumanas, fazendo distinção entre homens livres e escravos, prevendo maior rigor para os últimos, ainda tratados como objetos.
Assim, Cunha (2017) relata ainda que as fases de imposições punitivas vão desde a vingança divina, privada, até a pública, que se encerra com as descobertas e inovações Gregas e, posteriormente, Romanas, sobre o direito, principalmente, no âmbito penal.
Além disso, o direito penal, ao longo da história, desvincula-se do direito civil, dos conceitos religiosos e chega, na idade moderna, após o iluminismo francês, nas concepções humanistas e de organização social estudadas e analisadas na atualidade. Para esta nova fase do Direito Penal, a mera punição em si não é interessante, mas sim seus efeitos, sua capacidade de ressocializar o indivíduo e reintegrá-lo na sociedade, de modo a manter a ordem pela educação dos transgressores, e não por vingança ou agressões à vida e à dignidade humana.
3 O DIREITO PENAL COMO INSTRUMENTO DE MANUTENÇÃO DA ORDEM SOCIAL
A manutenção da ordem social, no presente, torna-se o objetivo da existência do Direito Penal, em contrapartida às suas justificativas autoritárias existentes no passado. Desse modo, a ressocialização do indivíduo e a educação por exemplo passam a conduzir a existência das normas penais e sua aplicação.
Neste viés, Aguiar (2016), relata:
Ainda que toda ordem social disponha de mecanismos que garantem a sua estabilidade, que conformam os chamados controles sociais informais, tais controles necessitam ser reforçados por um controle específico, de ordem jurídica. O controle social formal da intervenção jurídico penal é a face mais aguda desse controle. O Direito Penal cumpre uma função essencial, enquanto ramo do ordenamento jurídico encarregado de zelar por condições sociais indispensáveis para a ordem social.
No mais, os preceitos humanistas e de valorização da dignidade da pessoa humana, inspirados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição Federal de 1988, são tomados também pelo direito penal como base para seu funcionamento prático.
No Brasil, o Código Penal data de 1.940, ou seja, ainda é carregado de preceitos ideológicos antiquados e baseados em uma sociedade totalmente diferente política e socialmente daquela em que foi publicado. Assim, a responsabilidade pela atualização da aplicação legal e adequação ao momento passa aos membros do judiciário, os quais pautam seus julgamentos na base legal e, principalmente, na questão social atual.
Diante dessa necessidade de atualização e inovação, um dos mais recentes exemplos de busca pela melhoria do sistema penal é o chamado pacote anticrime, criado pela Lei 13.964/19. O referido dispositivo forçou o Código Penal à inovação em inúmeras questões, principalmente no que diz respeito à pena máxima de prisão e à inversão do ônus da prova sobre a identificação do produto do crime, além de novas regras para a prescrição criminal.
Todas as ideias apresentadas, no entanto, possuem um só objetivo, cumprir com a destinação do Direito Penal e fazer com que a Ordem Social ou pública seja mantida. Todavia, o conceito de ordem social/pública, segundo Zackseski e Gomes (2016) é eivado de subjetividade, visto que pode ser associado à aplicação do poder do Estado ou ao clamor público, ou ainda à segurança do ofendido pelas violações penais.
Nas palavras de Zaverucha (2015), a ordem pública ou social é o seguinte:
[...] conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, de interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo Poder de Polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum.
Apesar das diversas interpretações e teorias sobre o que realmente seria/é a ordem social e pública, todas encontram-se no mesmo sentido, que é o de que este conceito representa a paz e a tranquilidade social.
Dessa forma, o direito penal evoluiu, no presente, para um método coercitivo de manutenção da ordem social através se seus mecanismos coibidores da prática criminosa. O mais famoso e importante destes é, portanto, a prisão em regime fechado.
Entretanto, a reclusão, ou o cerceamento da liberdade do indivíduo, já não representa tão bem a aplicabilidade do direito penal quanto representava antigamente, visto que existem novos meios de cerceamento de direitos, bem como diante das dificuldades encontradas pelo Estado para manter a prisão em regime fechado como efetivamente deve ser.
3.1 APLICABILIDADE PRÁTICA DO DIREITO PENAL NO BRASIL
No que tange à aplicabilidade prática do direito penal no Brasil, é importante salientar, como dito anteriormente, a função da pena restritiva de liberdade e sua efetividade atual. Ou seja, importa destacar as formas como o direito penal tem sido aplicado e a real eficácia desses métodos na sociedade, a fim de cumprir os objetivos de manutenção da ordem social e ressocialização dos indivíduos.
Alguns juristas da atualidade acreditam que o direito penal passa por uma crise no momento, na qual contrapõem-se questões pertinentes à legislação, aplicação da lei, cumprimento da pena, eficácia da reclusão, e aos meios alternativos de penalização criminal.
Sobre a legislação, como já mencionado, destacam-se os pensamentos a respeito de sua antiguidade em relação à sociedade e sua diferença da realidade atual dos fatos.
Marcão e Marcon (2003), assim dissertam sobre esta situação:
É evidente que a legislação penal brasileira precisa ser revista, contudo, não para se criar novas figuras penais, despenalizar condutas, aumentar ou reduzir drasticamente as penas, sem qualquer critério conhecido e aceitável, como vem ocorrendo. Por primeiro, destaca-se no panorama atual a necessidade de se rever a prática legislativa, estabelecendo rigor científico, sem descuidar da dogmática e dos princípios que informam a ciência penal, e, num segundo momento, administrar a segurança pública, ao menos aparelhando os mecanismos já existentes, de forma a viabilizar sua efetivação.
Acerca da aplicação da lei, tem-se a questão interpretativa e de falta de segurança jurídica, verificada e ressaltada, por vezes, pelo Supremo Tribunal Federal em seus julgamentos. A lei penal, em contraponto à realidade social, deixa brecha para que sua interpretação seja extensiva e, consequentemente, sua aplicação seja diferenciada em diversos pontos do país, inexistindo ainda um consenso nos órgãos superiores que facilite o julgamento dos tribunais.
Neste limiar, Leite (2018), ressalta:
A mal falada "crise do judiciário", em sua leitura feita pelos instrumentalistas do processo e constitucionalistas nacionais, deixa transparecer na realidade outro problema: uma crise de legitimidade das decisões proferidas pelo Judiciário brasileiro, quer por submisso aos interesses funcionais do Mercado ou Poder Administrativo, quer por ainda ser apegado a uma leitura paradigmática de Estado incompatível (a nosso ver) com a atual. Na realidade, estamos em meio do turbilhão apontando uma ruptura que é iminente; enquanto isso, nossos juristas viram as costas ou se limitam a apresentar propostas paliativas tais como súmulas vinculantes[31], repercussões gerais/ transcendências e demais efeito vinculantes, procurando por meio de força e uma pseudoautoridade (já que carente de legitimação) fixar e re(afirmar) uma "segurança jurídica" equivocada. Em resumo, as taxas de congestionamento do Judiciário constituem um problema que nega aos jurisdicionados a segurança jurídica formal e precisam de uma solução, na medida em que deixam em suspenso por vários anos a solução de conflitos.
Por conseguinte, quando se trata de cumprimento da pena e eficácia da reclusão, o direito penal e sua crise saem da questão jurisdicional e atingem uma esfera Estatal administrativa. A função de julgar não tem espaço nesse momento, pois se reserva até o ponto em que a lei é aplicada, bem ou mal.
O problema destacado reside, portanto, na falta de estrutura do sistema prisional, consequência da falta de amparo Estatal à sociedade como um todo, mas principalmente, aos indivíduos reclusos pela prática delituosa.
A criação de mecanismos de cumprimento alternativo das penas é uma das possibilidade de solução, todavia, que não tem ainda surtido o efeito necessário, de modo que não se vê efetivo cumprimento da pena, como devido, por quem deveria, ao mesmo tempo em que nota-se penalização em excesso a quem não merecia.
Além disso, o termo ressocialização se tornou mera utopia e as condições dos presídios vão de mal a pior, escancaradas para a sociedade e para a administração pública, que mantém-se inerte, às vezes, por conta própria, outras, por pressão popular.
No entanto, o que a doutrina, os artigos e até o judiciário brasileiro atuais concordam é que o direito penal precisa de evolução, mas que esta evolução não é somente jurídica, mas, principalmente, administrativa, a fim de cumprir com o ideal de ressocialização da punição criminal.
4 PENA RESTRITIVA DE LIBERDADE COMO MEIO DE RESSOSCIALIZAÇÃO
A ideia por trás das penas restritivas de direitos surge no contexto histórico do direito penal como mera forma de punição, como já elucidado neste artigo. No entanto, o atual momento social humanista e em defesa dos direitos humanos trouxe nova concepção à aplicação destas penas, a de ressocialização do indivíduo.
No ideal jurídico, as espécies de penas criminais são de caráter preventivo, servindo como forma de evitar os desvios legais e a prática delituosa. Assim, resumem-se em privativas de liberdade, restritivas de direitos e multa, todas orientadas pelo princípio de defesa à dignidade humana, limitadas pelo artigo 5º da Constituição Federal de 1988, em seu inciso XLVII:
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis;
Dessas três espécies penais supracitadas, destacam-se as penas restritivas de liberdade, definidas pelo art. 53 do Código Penal Brasileiro: “As penas privativas de liberdade têm seus limites estabelecidos na sanção correspondente a cada tipo legal de crime”.
Este tipo de pena deve ser cumprido em estabelecimento prisionais, cadeias, presídios ou prisões, de modo que tomam do indivíduo um de seus direitos fundamentais mais valorizados, a liberdade.
Nas palavras de Escolano (2014):
São penas que limitam a liberdade de ir e vir do condenado, onde o indivíduo perde direitos amplos dessa liberdade, conforme estampado na Constituição Federal, já que há uma restrição legal oriunda da condenação pela prática de um fato ilícito.
Essa pena é cumprida em forma de regimes, quais sejam o fechado, semiaberto e aberto, todavia, serão exercidas em estabelecimentos separados e específicos, obedecidas as particularidades de cada uma delas e dos indivíduos reclusos.
O objetivo principal deste tipo de pena é, portanto, a já mencionada e tão debatida ressocialização do indivíduo.
4.1 DA EFICÁCIA DA RESSOSCIALIZAÇÃO
A ressocialização pode ser vista, na atualidade, como a intenção de reintegrar o indivíduo transgressor da lei na sociedade. Partindo-se do pressuposto que a lei penal é necessária à manutenção da ordem pública e social, como já observado, entende-se que o seu transgressor é aquele que viola esta ordem.
Nesse sentido, a violação da ordem social gera a aplicação da lei penal e das penas privativas de liberdade, a fim de que o indivíduo possa ter um tempo de entender sua transgressão, compreender a violação da ordem e seja restabelecido na sociedade.
Esse restabelecimento social, ou reintegração, é a ressocialização propriamente dita, verificada no artigo 1º da Lei de Execuções Penais, Lei n. 7.210/84, a normativa responsável por dar cumprimento às penas estabelecidas no Código Penal.
Lei n. 7.210/1984. Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.
A Lei de execuções penais traz, portanto, o conceito de integração social do condenado e do internado, a fim de demonstrar o cunho social da pena e ressaltar a dignidade, mesmo daquele que viola a ordem social. Afinal, de acordo com as diretrizes trazidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição Federal de 1988, a mera transgressão legal não gera a perda da dignidade humana.
É nesse sentido de manutenção e respeito à dignidade humana, aliado à ideia de ressocialização do indivíduo, que a situação atual dos presídios gera polêmica e discussão na doutrina, jurisprudência, nos tribunais, na mídia e na sociedade como um todos.
Observa-se, assim, que não basta apenas a ideia de ressocialização, é necessário que o direito e o Estado se atenham à sua eficácia dentro dos estabelecimentos prisionais, o que, como visto na mídia, não tem ocorrido.
5 REALIDADE DOS ESTABELECIMENTOS PRISIONAIS
A realidade dos estabelecimentos prisionais no Brasil destaca o contraponto entre a teoria e a prática. Na teoria, tem-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Constituição Federal do Brasil (1988), respectivamente destacadas:
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;
[...]
A Assembléia Geral das Nações Unidas proclama a presente "Declaração Universal dos Direitos do Homem" como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Na prática, quando se fala sobre a situação dos presídios, dificilmente a realidade encontra veracidade no que é estabelecido nessas normativas. O atual estado carcerário do Brasil faz com que o indivíduo transgressor da norma penal não perca somente seu direito à liberdade, mas também, na maioria das vezes, direito à educação, saúde, saneamento básico, dignidade e, quando não, à vida.
Ressocialização, aliás, é um termo do qual não se ousa discutir em meio à situação prisional, haja vista que os maiores grupos criminais brasileiros se formaram e estabeleceram sua ordem dentro dos estabelecimentos prisionais, alguns dos quais comandam internamente, inclusive.
A realidade escancara na sociedade o descumprimento total do Estado Brasileiro ao que dispões as normas supracitadas, além da falta de controle do crime e do prejuízo àqueles que praticaram delitos de menor potencial ofensivo ou que, em diversas vezes, já cumpriram suas penas, mas permanecem reclusos.
Nesses termos, destacam-se os artigos 87, 88 e 89 da Lei de Execuções Penais (1984):
Art. 87. A penitenciária destina-se ao condenado à pena de reclusão, em regime fechado.
Parágrafo único. A União Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios poderão construir Penitenciárias destinadas, exclusivamente, aos presos provisórios e condenados que estejam em regime fechado, sujeitos ao regime disciplinar diferenciado, nos termos do art. 52 desta Lei.
Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório.
Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular:
a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana;
b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).
Art. 89. Além dos requisitos referidos no artigo anterior, a penitenciária de mulheres poderá ser dotada de seção para gestante e parturiente e de creche com a finalidade de assistir ao menor desamparado cuja responsável esteja presa.
Art. 89. Além dos requisitos referidos no art. 88, a penitenciária de mulheres será dotada de seção para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianças maiores de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja responsável estiver presa.
Parágrafo único. São requisitos básicos da seção e da creche referidas neste artigo:
I – atendimento por pessoal qualificado, de acordo com as diretrizes adotadas pela legislação educacional e em unidades autônomas; e
II – horário de funcionamento que garanta a melhor assistência à criança e à sua responsável.
Art. 90. A penitenciária de homens será construída, em local afastado do centro urbano, à distância que não restrinja a visitação.
Tem-se a utopia, enquanto, na realidade, os indivíduos vivenciam o pesadelo, onde falta alimentação, ventilação, condições sanitárias, ou, no geral, dignidade. A população dos presídios é de proporções desumanas, bem como a proliferação de doenças e a violência presente nos estabelecimentos, grande parte das vezes motivada pela busca por mínimas condições de saúde.
Parte da população, todavia, mantém o pensamento retrógrado de que aquele que transgrediu a lei deve ser punido, independentemente da forma da punição ou do respeito a outros direitos. Outra parcela acredita que se nem aqueles que cumprem a lei tem seus direitos básicos respeitados, aqueles que descumprem, deveriam ter muito menos.
Enquanto isso, uma minoria, ainda respaldada por conceitos humanistas e na tentativa de mudar a situação judiciária e, principalmente, administrativa, que geram os mencionados problemas, luta diariamente pela valorização dos direitos e garantias fundamentais desses indivíduos em situações precárias e degradantes.
Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o número de presos no Brasil em 2019 chega a 773.151 pessoas:
Considerando presos em estabelecimentos penais e presos detidos em outras carceragens, o Infopen 2019 aponta que o Brasil possui uma população prisional de 773.151 pessoas privadas de liberdade em todos os regimes. Caso sejam analisados presos custodiados apenas em unidades prisionais, sem contar delegacias, o país detém 758.676 presos.
Martines (2019), apresenta mais dados em relação ao sistema prisional brasileiro, ainda no ano de 2018:
A situação mais crítica é na região Norte, onde a superlotação atingiu a taxa de 200%. A região com a menor taxa é a Sul, com 130%. Os números são todos de 2018.
Considerando apenas as mulheres presas, a situação fica menos grave. A superlotação fica em 109%. Ao todo são 35.176 mulheres presas no Brasil. Já considerando apenas homens, a taxa sobe para 170%. O levantamento também mostra o cenário da integridade física dos presos. Foram 1.424 presos mortos em presídios em 2018. São Paulo corresponde a um terço disso: 495 mortes. Foram 23.518 fugas ao todos em 2018. Neste ponto, o pior índice é do Sul: o equivalente a 7,85% dos presos da região fugiram.
A referida situação, bastante precária nos anos de 2018 e 2019, justificava revoltas e movimentos em busca da melhoria do sistema prisional, visto que em situações de doenças infecciosas graves ou epidemias, a saúde nesses locais seria de impossível manutenção.
Em confirmação a esses anseios, em março de 2020 iniciou-se a pandemia causada pela Covid-19, o que agravou ainda mais a saúde pública no geral e, principalmente, dentro dos estabelecimentos que não possuem controle populacional e muito menos sanitário.
6 A SITUAÇÃO DOS PRESÍDIOS DIANTE DA PANDEMIA DA COVID-19
A Covid-19 trata-se de uma doença respiratória de caráter altamente infeccioso, iniciada na China e que, até outubro, segundo dados do Ministério da Saúde, atingiu mais de 5,5 milhões de pessoas.
O site oficial do Governo Federal sobre a doença apresenta a seguinte denominação:
A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus, denominado SARS-CoV-2, que apresenta um espectro clínico variando de infecções assintomáticas a quadros graves. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a maioria (cerca de 80%) dos pacientes com COVID-19 podem ser assintomáticos ou oligossintomáticos (poucos sintomas), e aproximadamente 20% dos casos detectados requer atendimento hospitalar por apresentarem dificuldade respiratória, dos quais aproximadamente 5% podem necessitar de suporte ventilatório.
Assim, as proporções da doença em âmbito nacional foram massivas, atingindo todas as camadas sociais, mas, principalmente, aquelas mais abastadas e de menores condições econômicas, haja vista a falta de preparo e de recursos, bem como de possibilidade de proteção.
Nos presídios, diante das superlotações e das situações já demonstradas, o caso tem sido pior ainda. Segundo dados do DEPEN (2020), até o final do mês de agosto, mais de 101 presos já haviam morrido em razão da Covid-19, e mais de 18 mil teriam sido infectados.
Além dos presos, os funcionários também ficam a mercê do vírus, em contato diário com as situações precárias dos estabelecimentos e sem o respaldo necessário do poder público.
De modo a tentar resolver a situação e reduzir os danos dentro dos presídios, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ elaborou a Recomendação 62/2020, pela qual foram definidas medidas para evitar a contaminação em massa nos estabelecimentos prisionais:
CONSIDERANDO o alto índice de transmissibilidade do novo coronavírus e o agravamento significativo do risco de contágio em estabelecimentos prisionais e socioeducativos, tendo em vista fatores como a aglomeração de pessoas, a insalubridade dessas unidades, as dificuldades para garantia da observância dos procedimentos mínimos de higiene e isolamento rápido dos indivíduos sintomáticos, insuficiência de equipes de saúde, entre outros, características inerentes ao “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347;
[...]
RESOLVE:
[...]
Art. 1º Recomendar aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 no âmbito dos estabelecimentos do sistema prisional e do sistema socioeducativo.
Parágrafo único. As recomendações têm como finalidades específicas:
I – a proteção da vida e da saúde das pessoas privadas de liberdade, dos magistrados, e de todos os servidores e agentes públicos que integram o sistema de justiça penal, prisional e socioeducativo, sobretudo daqueles que integram o grupo de risco, tais como idosos, gestantes e pessoas com doenças crônicas, imunossupressoras, respiratórias e outras comorbidades preexistentes que possam conduzir a um agravamento do estado geral de saúde a partir do contágio, com especial atenção para diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV e coinfecções;
II – redução dos fatores de propagação do vírus, pela adoção de medidas sanitárias, redução de aglomerações nas unidades judiciárias, prisionais e socioeducativas, e restrição às interações físicas na realização de atos processuais; e
III – garantia da continuidade da prestação jurisdicional, observando-se os direitos e garantias individuais e o devido processo legal.
Tal recomendação, no entanto, não evitou que o Brasil fosse denunciado à Organização das Nações Unidas – ONU por violação às normas e recomendações internacionais de prevenção e combate à doença.
Segundo o Portal de notícias do Uol:
De acordo com o documento, apresentado por 213 entidades, existem violações de normas e recomendações internacionais em falta de acesso à saúde, entraves ao desencarceramento incomunicabilidade, problemas no registro de óbitos, rebeliões e uso de estruturas temporárias precárias para o abrigo das pessoas presas.... - Veja mais em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/23/brasil-e-denunciado-na-onu-e-oea-por-avanco-da-covid-19-nos-presidios.htm?cmpid=copiaecola
Dessa forma, verificado que a pandemia continua atuante no país e observado que a situação dos presídios continua precária, espera-se que haja medidas melhores e mais eficazes de enfrentamento que possam conduzir o futuro do sistema prisional brasileiro e dos indivíduos reclusos, de modo a garantir o mínimo de dignidade humana que lhes é devido.
Diante dos fatos e dados apresentados, não há conclusão diferente que não seja a de que a situação do sistema prisional brasileiro é uma barbárie e que os indivíduos reclusos vivem um terror diário. Não sabem se haverá alimentação, lugar para dormir ou mesmo possibilidade de fazer suas necessidades básicas, enquanto isso, o poder público tapa os olhos e aguarda uma tragédia cada vez maior.
Nota-se que o direito traz em suas normativas mais importantes a fundamentação e a previsão necessárias à atuação do Estado de forma massiva na sociedade como um todo e, principalmente, em estabelecimentos prisionais, visto de tratar de um local criado, originariamente, para a reintegração das pessoas na sociedade.
Todavia, o que os dados mostram é que a previsão legal não é suficiente, nem tampouco a movimentação social pela validação dos direitos dos presos. O Estado permanece relativamente ativo dentro dos presídios, mantendo presos que já deveriam estar na sociedade e fornecendo condições desumanas para aqueles que estão ainda em cumprimento de pena.
A dignidade da pessoa humana, princípio norteador da Constituição Federal de 1988, passa longe das celas, bem como em outros setores mais abastados da sociedade. Dessa forma, aqueles que cometem delitos e que deveriam ter apenas a sua liberdade retirada, ficam sem saúde, educação, trabalho, saneamento básico e, por vezes, vida, quando não retornam à sociedade e tem como única opção a manutenção no crime, pois não há respaldo social ou estatal.
Entretanto, é importante salientar que o Estado é formado de representantes da sociedade, ou seja, pessoas que aplicam aquilo que a sociedade acredita. Desse modo, enquanto a maior parte da sociedade não compreender que presos também são humanos e também possuem direitos, o poder público permanecerá o mesmo e os presídios continuarão a decair diante de situações normais e, principalmente, em face de pandemias e doenças infecciosas.
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Bacharel em Direito pela Universidade Brasil, Campus Fernandópolis/SP. Pós Graduanda em Direito Penal e Processo Penal
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARANTES, Maitana Moara Alves. Superlotação nos presídios diante da pandemia da covid-19 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 ago 2021, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57140/superlotao-nos-presdios-diante-da-pandemia-da-covid-19. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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