RESUMO: A Lei Maria da Penha foi inserida no ordenamento jurídico a fim de prevenir e coibir a violência doméstica e familiar nos casos acometidos contra as mulheres. Em razão deste sentido, busca-se a ampliação desta Lei para que sejam contempladas por ela, as mulheres transexuais, transgêneros e travestis, pelo fato de se reconhecerem como mulheres. Desta forma, o presente artigo traz em seu corpo, pensamentos doutrinários e artigos da Lei que abrangem a proteção a essas mulheres, todavia, por não haver algo expressamente dito pelo legislador, essa proteção às mulheres transexuais acaba sendo subjetiva aos olhos do juiz, o que pode acabar trazendo consigo seus paradigmas e princípios, o que resulta em interferência no julgamento. Visando essa situação, foi criado o projeto de lei 8.032/2014 para que transexuais recebessem o amparo legal, já que se identificam, pensam e agem como mulheres. O presente artigo tem como objetivo verificar se a LMP acompanha o avanço social, amparando mulheres para que não sejam vítimas de um sistema falho.
PALAVRAS-CHAVE: Lei Maria da Penha. Mulheres Transexuais. Identidade de Gênero. Gênero Feminino.
ABSTRACT: The Maria da Penha Law was included in the legal system in order to prevent and curb domestic and family violence in cases against women. In view of this sense, we seek to expand this Law so that transsexual, transgender and transvestite women are contemplated by it, due to the fact that they recognize themselves as women. Thus, this article brings in its body doctrinal thoughts, articles of the Law that cover the protection of these women, however, as there is nothing expressly stated by the legislator, this protection for transsexual women ends up being subjective in the eyes of the judge, who may end up bringing its paradigms and principles with it, which results in interference with judgment. Aiming at this situation, bill 8032/2014 was created for transsexuals to receive legal support, since they identify, think and act like women. This article aims to verify if the LMP accompanies social advancement, supporting women so that they are not victims of a flawed system.
KEYWORDS: Maria da Penha Law. Transsexual Women. Gender Identity. Feminine gender.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. História da Maria da Penha. 2.1. A criação da Lei Maria da Penha. 3. Da Transexualidade. 4. Orientação Sexual x Identidade de Gênero. 4.1. Diferença entre Transexual, Transgênero e Travesti. 5. Aplicabilidade da Lei nos Casos de Mulheres Transexuais Vítimas de Violência Doméstica e Familiar. 6. Conclusão. 7. Referência.
1 INTRODUÇÃO
A Lei Maria da Penha surge a fim de resguardar mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, visto que, antigamente tais crimes eram tratados pela lei 9.099/95 como crime de menor potencial ofensivo, diminuindo a gravidade que deveria ser atribuída a estes. Para livrar-se da acusação, o acusado apenas pagava com cestas básicas ou trabalho comunitário, ou seja, não havia lei que tratasse de fato tal delito, muito menos que amparasse a vítima.
Com a criação da Lei Maria da Penha em 2006, a violência doméstica e familiar passa a ser vista como um crime, deixando de ser tratada como um menor potencial ofensivo. Tendo em vista que a lei se desenvolve em torno do bem da vítima, resguardando sua integridade, já que com ela cria-se a medida protetiva de urgência para as vítimas, fazendo com que esta lei seja uma das três mais avançadas do mundo.
Embora a Lei Maria da Penha seja considerada uma das melhores legislações do mundo no que concerne sobre a violência doméstica, ela acaba ficando para trás diante dos grandes avanços sociais quanto às novas denominações de gênero.
Ao que se refere às mulheres transexuais, a aplicação ou não da Lei Maria da Penha depende tão somente da interpretação do magistrado, o que evidencia que a classe transexual está em total desamparo jurídico, estando a critério da literalidade da lei, interpretação dos tribunais e opiniões pessoais dos magistrados referentes a cada caso.
A pesquisa busca investigar se a Lei Maria da Penha, com fulcro em seu artigo segundo, contempla em seu amparo legal ou não, as mulheres transexuais, em virtude destas não serem biologicamente mulheres, assim como enfatizar com bases teóricas o tema transexualidade e a Lei nº 11.340/2006, abordando ainda a questão de gênero, orientação sexual e retratando a diferença entre travesti e transexuais.
2 HISTÓRIA DA MARIA DA PENHA
Maria da Penha cursava o seu mestrado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo, e foi assim que conheceu aquele com quem iria se casar, o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, já que o mesmo cursava pós-graduação na mesma instituição.
Em 1974 começaram a namorar e em como todo início de relacionamento, Marco Antonio demonstrava ser muito carinhoso, amável e paciente. Após dois anos de relacionamento decidiram se casar, vindo ao mundo sua primeira filha. Com o término da pós-graduação e mestrado, decidiram mudar para a capital do Ceará, Fortaleza, onde nasce mais uma filha do casal.
Tudo mudou na relação deles quando Marco conseguiu sua cidadania no Brasil e se estabilizou financeiramente, passando a ser explosivo com Maria e também com as filhas.
O ciclo de violências psicológicas e verbais começou. Como em todo relacionamento abusivo, depois das agressões, vinham os arrependimentos, desculpas e mudanças momentâneas, o que fazia com que Maria acreditasse de fato nessa mudança, pois não queria desistir de seu casamento. Com essa esperança de mudança vinda de seu marido, Maria teve mais uma filha com ele.
Maria da Penha sofreu duas tentativas de homicídio, a primeira foi quando seu esposo deferiu disparos de arma de fogo enquanto ela dormia, o que resultou em um estado crítico de saúde, deixando-a paraplégica, porém, o que Marco declarou para a polícia foi que aquilo não tinha passado de uma tentativa de assalto, o que de pronto foi desmentido pela polícia.
Ao retornar para sua casa, além de mantê-la em cárcere privado por cerca de 15 dias, tentou matá-la eletrocutada enquanto a mesma tomava banho, o que por bem não aconteceu.
Quando Maria finalmente teve coragem para sair dessa situação e denunciar as agressões vividas, deparou-se com a negligência do Estado, já que este, até então, não possuía nenhuma lei que amparasse mulheres vítimas de crime doméstico.
Logo após todo o ocorrido, Maria começou a perceber que vivia em um relacionamento abusivo, o que naquele tempo era muito complicado de ser compreendido, visto que este tema não era debatido.
A vítima obteve apoio de seus amigos e familiares para obter assistência jurídica, objetivando conseguir sair de casa sem que isso pudesse configurar abandono do lar, para que não fosse usado em uma eventual ação de guarda das filhas.
2.1 A Criação da Lei Maria Da Penha
As mulheres são as principais vítimas da violência doméstica no Brasil, em decorrência de não ser um país que viabiliza amparos legais para este tipo de crime, o caso que repercutiu o país e o mundo foi o de Maria da Penha, foi tratado com negligência porque a mesma sofreu durante vários anos maus-tratos físicos e psicológicos do seu cônjuge.
As mulheres são as principais vítimas da violência doméstica no Brasil, em decorrência de não ser um país que viabiliza amparos legais para este tipo de crime, o caso que repercutiu o país e o mundo foi o de Maria da Penha, foi tratado com negligência porque a mesma sofreu durante vários anos maus-tratos físicos e psicológicos do seu cônjuge, pois ele ao conquistar sua nacionalidade e estabilidade financeira passou a agir de maneira explosiva e a disparar ofensas, não só com ela, mas também com as próprias filhas fruto deste matrimônio. O que não demorou muito para as agressões não serem mais verbais e psicológicas, passando assim, a serem físicas.
A Lei Maria da Penha surgiu após a escassez de uma lei que amparasse as mulheres vítimas de violência, na qual necessitou de uma intervenção que seria uma resposta para essa urgência em que o País se encontrava, priorizando a criação de uma lei que confrontasse à violência doméstica e familiar contra as mulheres.
A Lei Maria da Penha trouxe a possibilidade de instaurar medidas mais rigorosas em relação aos agressores, não havendo mais a possibilidade de julgamento das violências de gênero como crimes de menor potencial ofensivo e as punições corresponderem a cestas básicas ou serviços comunitários como previa a Lei 9099/5. (MENEGHEL, 2013, p.693)
Logo após a grande repercussão do caso Maria da Penha, houve uma enorme comoção em relação ao descaso do Estado para com a vítima, fazendo com que esta escrevesse um livro contando toda a sua tragédia e a negligência governamental diante das denúncias feitas contra o seu agressor.
Toda essa repercussão foi fundamental para que tornasse a violência doméstica um tema em evidência no Brasil, enfatizando que a violência contra mulher atinge as mais variadas áreas sociais, como: a violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial e violência moral.
Com a demora do Estado para dar a resposta às acusações feitas por Maria da Penha, ela precisou recorrer ao Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), ao Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) para que o seu caso fosse tratado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Dessa maneira, seu caso só veio a ser solucionado quando o Brasil foi condenado por omissão e negligência pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, fazendo com que o Brasil tivesse que reformular suas leis e políticas em relação à violência doméstica.
Toda a pressão dos movimentos feministas e de organizações internacionais acabou culminando no sancionamento da Lei 11.340/2006, após recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos diante da denúncia recebida do caso da cearense Maria da Penha Maia Fernandes. Ela ficou paraplégica em virtude da tentativa de homicídio perpetrada por seu marido em 1983 e reiterada em 1984, cujo processo se arrastou por 19 anos no judiciário, condenando-o a 10 anos dos quais não passou 1/3 em regime fechado. (Lopes e Leite, 2019, p.29)
Após todas as tragédias passadas por Maria da Penha, surge uma grande vitória que é a lei que beneficia não só ela, mas todas as mulheres brasileiras que sofrem violência doméstica.
3 DA TRANSEXUALIDADE
Com a criação da Lei Maria da Penha, todas as mulheres que são vítimas de violência doméstica e familiar foram amparadas afim de prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.
Entretanto, o que abraça várias mulheres, acaba não alcançando outras, por conta do seu artigo segundo, que diz:
Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. (BRASIL, 2006).
Neste sentido, podemos dizer que a referida lei em seu artigo segundo trata apenas sobre a questão de orientação sexual, o que acaba desamparando aquelas pessoas que se reconhecem como mulheres, deixando uma lacuna para que estas sejam ou não amparadas pela Lei, pois a aplicabilidade em casos de violência contra as mulheres transexuais acaba sendo subjetiva, ficando a critério da literalidade da lei, ou das opiniões pessoais de cada magistrado.
Por sua vez, transexuais e transgêneros acabam não gozando da proteção trazida pela lei, pois esta limita-se a orientação sexual, deixando de fora toda a questão de identidade de gênero.
Historicamente, a população transgênero ou trans é estigmatizada, marginalizada e perseguida, devido à crença na sua anormalidade, decorrente da crença de que o “natural” é que o gênero atribuído ao nascimento seja aquele com o qual as pessoas se identificam e, portanto, espera-se que elas se comportem de acordo com o que se julga ser o “adequado” para esse ou aquele gênero. (Jesus, 2012 p.11)
Quando falamos de pessoas transexuais, partimos por duas vertentes, aquelas conservadoras que acreditam que a mulher transexual não pode se beneficiar da Lei, por não ser considerada mulher do ponto de vista genético, e a outra, uma vertente moderna que compreende a evolução social, respeita a identidade de gênero de cada um e que percebe que essas pessoas devem ser amparadas por uma lei que as beneficiem, podendo inclusive, alterar seu registro civil.
De acordo com Rogerio Greco
Se existe alguma dúvida sobre a possibilidade de o legislador transformar um homem em mulher, isso não acontece quando estamos diante de uma decisão transitada em julgado. Se o Poder Judiciário, depois de cumprido o devido processo legal, determinar a modificação da condição sexual de alguém, tal fato deverá repercutir em todos os âmbitos de sua vida, inclusive o penal (apud, Cunha e Pinto, 2011, p.32).
Vale dizer que embora haja a relutância do reconhecimento sobre as mulheres trans, é importante salientar que o respeito é a priori de qualquer esfera, seja ela social, jurídica, pessoal. É neste sentido que devemos respeitar o direito conquistado por elas, parafraseando Rogerio Greco até mesmo na área penal, pois não deveria ser algo discutível o gênero que a pessoa nasce predestinada a ser, pois o que tornaria uma pauta para discussão seria apenas o respeito que se deve ter, não só com as mulheres transexuais, mas sim com toda a sociedade independente do gênero, cor, etnia e orientação sexual.
Podemos destacar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que acentua em grande parte de seus artigos a igualdade sem nenhuma distinção, sendo todos protegidos contra qualquer discriminação amparados pela igualdade da lei.
Em suma, as interpretações acerca do assunto geram grandes discussões tanto no âmbito social quanto no âmbito jurídico. Quando tratamos sobre a proteção das mulheres transexuais, são vários fatores que devem ser ponderados, não apenas o lado penal, mas também os direitos fundamentais e básicos de qualquer indivíduo em meio a sociedade.
Nesse ponto de vista destaca-se um magistrado que reconhece que para a mulher transexual ser contemplada pela Lei Maria da Penha, não se faz necessário que esta tenha feito a cirurgia de resignação de gênero ou que tenha feito alteração em seu registro civil, mas tão somente pela forma como se apresenta, se comporta ou como se reconhece.
O gênero feminino decorre da liberdade de autodeterminação individual, sendo apresentado socialmente pelo nome que adota, pela forma como se comporta, se veste e se identifica como pessoa. A alteração do registro de identidade ou a cirurgia de transgenitalização são apenas opções disponíveis para que exerça de forma plena e sem constrangimentos essa liberdade de escolha. Não se trata de condicionantes para que seja considerada mulher. (MIGALHAS, 2018, s/n).
Desta forma, a aplicação da Lei Maria da Penha, em casos de violência doméstica contra as mulheres transexuais, fica a disposição do julgador, porém, para que esta seja abrangida pela Lei, não se faz necessário a comprovação de cirurgias ou mudança de nome, mas sim como cada um reconhece a si mesmo perante a sociedade. Portanto, independente da literalidade da lei, esta deveria abrigar todas as pessoas na qual nelas se encaixam, embora torne-se necessário o entendimento do julgador, é indispensável que haja desconstrução de paradigmas, objetivando a imparcialidade no julgamento, não empregando suas crenças pessoais em casos relacionados à violência doméstica e familiar contra as mulheres transexuais.
4 ORIENTAÇÃO SEXUAL X IDENTIDADE DE GÊNERO
No momento de nosso nascimento, somos designados a nos reconhecermos com o nosso sexo biológico, aquele definido através de cromossomas, genitais etc., porém, em termos de identidade de gênero, tem-se como fator determinante a percepção social de cada um, como cada indivíduo se identifica na sociedade, da forma que se sinta representado por tal gênero, independente da anatomia, ou até mesmo por nenhum gênero. A sociedade na qual vivemos impõe o pensamento de que os órgãos genitais definem realmente se a pessoa é homem ou mulher, porém, nossa identificação com um gênero não parte do princípio biológico, mas sim, do social.
O que muito se confunde é a questão da diferença que existe entre orientação sexual e identidade de gênero, diferença essa que acaba excluindo o amparo da Lei para mulheres transexuais.
Quando abordamos a respeito da orientação sexual, trata-se da sexualidade e afetividade de alguém, é o que se define por atração pelo outro independente do sexo, seja este o mesmo ou diferente daquele que sente. Um indivíduo pode ser considerado heterossexual, que é quando sente atração pelo sexo oposto, homossexual quando a atração presente é por alguém do mesmo sexo, e temos também, os bissexuais, quando a atração é pelos dois gêneros.
Em contrapartida, identidade de gênero é como a pessoa se identifica e é identificada pela sociedade, é quando o indivíduo age e pensa de acordo ou não com o gênero que lhe é atribuído, não se limitando ao sexo biológico, mas sim, como reconhece a si mesmo. São três os tipos de identidade de gênero, os cisgêneros são aqueles que se identificam com o gênero que é designado a partir do seu nascimento, enquanto os transgêneros são aqueles que se identificam com o gênero oposto, já os não-binários não se identificam com o gênero do nascimento, nem com o oposto, ou seja, não se enxergam no gênero feminino ou masculino.
Para Stoller, identidade de gênero não é igual à qualidade de ser homem ou de ser mulher. Nenhum dos dados tem conotação com a Biologia, já que a identidade de gênero encerra um comportamento psicologicamente motivado. Embora a masculinidade combine com a qualidade de ser homem e a feminilidade com a qualidade de ser mulher, sexo e gênero não estariam necessária e diretamente relacionados, como no caso dos transexuais.” (apud Cardoso, Fernando Luiz, 2008, p. 5).
Posto isto, ser homem ou mulher não está apenas ligado ao sexo biológico tendo em vista que a identidade de gênero é um processo social de autoconhecimento no qual a pessoa se identifica por um gênero, sendo ele o de nascimento ou não.
Em outros termos, a ideia de que o sexo biológico é imutável acaba se desconstruindo, já que advém de uma construção social, partindo de vivências ao decorrer dos anos. De forma que qualificar um indivíduo como homem ou mulher não está limitado em ser do sexo feminino ou masculino, deve observar a construção social e respeitar a forma com a qual a pessoa possui identificação.
4.1 Diferença entre Transexual, Transgênero e Travesti
O que concerne a respeito deste tema, o preconceito é evidente no meio judiciário, pois acabam deixando de acompanhar o desenvolver da sociedade, fazendo com que a falta de compreensão das terminologias se faça presente no meio.
O que de certa forma, é inaceitável no âmbito jurídico, em vista de que este deve prevalecer as garantias jurídicas para situações severas que ocorrem na sociedade de forma que sejam conduzidos sem constrangimento a respeito de sua identidade de gênero, como exemplo, a questão da aplicabilidade Lei Maria da Penha em casos de mulheres transexuais, pois esse grupo deve ter seus direitos resguardados e garantidos, afim de prestar apoio às vítimas e punir quem os comete. Sendo assim, torna nítido o disparate jurídico em não aplicar a Lei Maria da Penha a casos de transexuais e transgêneros, embora não sejam mulheres biológicas, o direito prestado por esta lei é cabível às mesmas.
Em se tratando dos termos mencionados anteriormente, se faz necessária a distinção que há entres estas terminologias para demonstrar que a Lei pode ser aplicada nesses casos de pessoas que se identificam o gênero feminino.
No que tange ao transexual, este termo é usado para definir pessoas que não se reconhecem com o seu gênero de nascimento, percebendo que se identificam com o gênero oposto e com isso buscam adequar o seu corpo ao sexo de identificação.
Segundo Rodrigues e Alvarenga (2015, p. 80)
Transexual é considerado o indivíduo anatomicamente de um sexo, porém, que acredita veemente pertencer a outro sexo. Esta crença é tão forte que o transexual possui um desejo incessante de ter o corpo modificado com a finalidade de ajustar-se ao verdadeiro sexo, ou seja, ao seu sexo psicossocial.
No que se refere a transgeneridade, é aquele que se identifica com o sexo oposto do seu nascimento, esperando ser reconhecido e aceito por esse gênero. A respeito desse pensamento Jaqueline Gomes de Jesus diz que “Conceito “guarda-chuva” que abrange o grupo diversificado de pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento.” (2012, p. 25).
Dessa forma, os transgêneros são pessoas que nascem com órgãos sexuais femininos ou masculinos, porém possuem uma identidade de gênero oposta da que lhe é designada.
Quanto a respeito de travesti, são pessoas que nasceram homens, porém se reconhecem na figura feminina usando roupas e acessórios para adereçar, ou seja, tem propensão a usar trajes femininos, independendo da orientação sexual. Segundo este raciocínio, esclarece Elimar Szaniawski (1999, p. 52):” A travestilidade é entendida quando as pessoas apresentam uma predisposição ao uso de trajes típicos do sexo oposto, podendo ser pessoas heterossexuais ou homossexuais.”
Embora este termo seja considerado pejorativo ou algo que associassem a prostituição, ou até mesmo com a questão de orientação sexual, por sempre associarem as travestis sendo homossexuais, já houve um grande processo para a desconstrução deste pensamento trazendo um novo significado.
Coerente com este entendimento Rocha (2010, p.49) destaca que
O travestismo é bastante e erroneamente confundido com x’outros estados comportamentais da sexualidade, em especial com o homossexualismo e com o transexualismo, contudo, em nada se confundem, enquanto o travestismo é configurado pelo simples uso de roupas do sexo oposto, na maioria das vezes espalhafatosas, sua satisfação está na esfera psico-social, não sexual, o homossexualismo requer para sua configuração a atração sexual de uma pessoa por outra do mesmo sexo biológico e o transexualismo guarda uma discrepância entre os sexos biológicos e neural.
Em razão destas distinções relacionada a transexualidade, transgênero e travesti podemos relacionar a aplicabilidade da Lei em casos cometidos com estes grupos em razão de que se reconhecem e vivem de acordo com os padrões do gênero feminino, em concórdia as partes órgãos genitais ou não e até mesmo enfrentando todo tipo de dificuldade e preconceito que esse gênero se relaciona.
5 APLICABILIDADE DA LEI NOS CASOS DE MULHERES TRANSEXUAIS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
A Lei Maria da Penha teve sua criação baseada em prevenir e coibir crimes de violência doméstica e familiar cometidos contra as mulheres, criando mecanismos de proteção e amparo legal para essas vítimas. Entretanto, fica evidente que há uma divergência nesta lei acerca da possibilidade de aplicá-la nos casos relacionados às mulheres transexuais, já que em seu art. 2 não há menção quanto à questão da identidade de gênero.
Algumas mulheres transexuais, além de se identificarem com o gênero feminino, se submetem a alterações cirúrgicas ou hormonais para alcançar características físicas do gênero com o qual se identificam, no entanto, não se faz necessária nenhuma modificação para que estas sejam reconhecidas como mulheres.
Ao ser mencionado no art. 5 da Lei 11.340/2006 "configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero” por ser abordado a questão de gênero, fica passível a aplicabilidade da lei em casos relacionados às mulheres transexuais, levando em consideração a questão da identidade de gênero se tratar do social, no qual é construído a partir de suas vivências e influências.
Nas palavras de David Lebetron “A condição do homem e da mulher não se inscreve em seu estado corporal, ela é construída socialmente.” (2007, p. 66).
Em razão dessas circunstâncias, a LMP está ligada na ideia de ser mulher definido ou pela questão do gênero ou pelo sexo, guiando a melhor maneira para que esta seja aplicada nesses casos relacionados a violência doméstica e familiar contra as mulheres transexuais.
Segundo Leite (2015, p.5) “inserem-se no gênero feminino, todas aquelas que se comportam, sentem, pensam e reagem como mulher.” Então, o que faz jus a aplicação da Lei é a vulnerabilidade do gênero em ser mulher, o que não relaciona ao sexo. Nesse sentido, a Lei demonstra que para a aplicabilidade não se relaciona ao biológico, mas sim ao gênero e o que está por trás do significado de ser mulher.
Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) temos o quantitativo de 80 assassinatos contra travestis e transexuais em 2021, número que ainda pode aumentar até o fim do ano. É notória a falta de amparo legal que essa categoria sofre, em razão do preconceito firmado no Brasil, acarretando sofrimento para a comunidade LGBTIQA+ que vivencia diariamente agressões dos mais variados tipos, simplesmente por ser quem é.
Grande parte das travestis e transexuais sofre violência doméstica e familiar, e merecem, de fato, a proteção que a LMP disponibiliza às vítimas, por estas serem incluídas no gênero feminino, já que se reconhecem como tal.
A Lei Maria da Penha em seu artigo segundo traz um grande erro material em relação à literalidade do significado da palavra “mulher”, relacionando este somente à mulher biológica. Essa limitação acaba deixando milhares de transexuais desprotegidas e sem o amparo legal advindo da Lei.
O termo “mulher” utilizado pelo legislador evidencia o erro material em virtude do art. 5º desta referida Lei, que trata justamente da ação ou omissão baseada em gênero, o que acaba denotando a divergência da palavra “mulher” nos artigos citados, sendo referida a priori por questões biológicas e logo em seguida por gênero, ainda que não seja explícito na lei.
Desta forma, essa proteção trazida pela LMP às mulheres transexuais é baseada no Projeto de Lei nº 8.032/2014 proposto pela Deputada Federal Jandira Feghali, situado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) que tem por objetivo ampliar a proteção trazida pela Lei para às pessoas transexuais e travestis. No presente, encontra-se aguardando designação de Relator na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM). Dado a aprovação da Lei, haverá uma alteração no art. 5 em seu parágrafo único que passará a adotar esta disposição “As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual e se aplicam às pessoas transexuais e transgêneros que se identifiquem como mulheres”
Assim dizendo, as mulheres que se identificarem, sendo biológicas ou não, poderão ser amparadas legalmente em via judicial, sem a necessidade de passar por cirurgias ou até mesmo pela mudança de nome no registro civil.
Os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais acabam sofrendo alterações com o decorrer do desenvolvimento da sociedade, ocorrendo a possibilidade da ampliação da Lei, atingindo assim essas categorias de minorias. O argumento usado para que exista essa possibilidade é a partir da identidade de gênero, quando é levado em consideração a forma como este indivíduo se enxerga.
Desta forma, ao ser mencionado em seu art. 5 que a violência doméstica e familiar contra mulher baseada no gênero, há possibilidade da aplicabilidade da Lei para que as mulheres transexuais sejam inseridas, e se beneficiem da proteção que é dada pela Lei.
Essa definição de gênero, já mencionada anteriormente, está relacionada a uma construção social que o indivíduo percorre desde o seu nascimento, ou seja, até chegar na sua vida adulta, passa por grandes transformações até chegar ao ponto de conseguir definir-se, ou até mesmo entender que não existe uma definição para si.
De acordo com Ortner e Whitehead
Características naturais de gênero e processos naturais de sexo e reprodução fornecem apenas um pano de fundo sugestivo e ambíguo para a organização cultural do gênero e da sexualidade. O que é gênero, o que são homens e mulheres, que espécie de relações se obtém ou se deveria obter entre eles - todas essas noções não são simplesmente reflexos ou elaborações a partir de “dados” biológicos, mas são produtos de processos sociais e culturais. A própria ênfase no fator biológico é variável nas diferentes tradições culturais; algumas culturas afirmam que as diferenças entre machos e fêmeas são quase totalmente baseadas na biologia, enquanto outras dão bem pouca ênfase às diferenças biológicas, ou supostamente biológicas. (apud, 1997, p.3).
Desta forma, fica evidente a ideia de sexo como forma biológica, e que gênero decorre de uma construção social. Com essa diferença sendo esclarecida, nota-se que gênero está previsto na Lei, demonstrando que a Lei é aplicada a qualquer mulher, podendo ser aplicada a todas as que se reconhecem no gênero feminino, não somente pela forma biológica.
6 CONCLUSÃO
O surgimento da Lei Maria da Penha veio através de muita luta para que fossem garantidos os direitos às vítimas de violência, iniciativa extremamente necessária, visto que não se tinha algo que amparasse as vítimas e punisse de forma severa os culpados.
O movimento feminista, especialmente no Brasil, foi um dos grandes fomentadores para que fossem criados direitos que beneficiassem as mulheres. A LMP foi inserida em nossa legislação com o intuito de proteger e prevenir violências no âmbito doméstico ou familiar contra o gênero feminino.
Atualmente, quando nos referimos às mulheres, não falamos somente na questão biológica, mas incluímos também aquelas que se identificam, se enxergam e se sentem mulheres, ampliando toda uma categoria para que sejam todas beneficiadas. Desta maneira, se faz presente o Projeto de Lei nº 8.032/2014 que proporciona a abertura para que as mulheres transexuais e travestis, por pertencerem ao gênero feminino, sejam beneficiadas pela LMP, utilizando a terminologia de identidade de gênero para escopo de amparo legal.
É de suma importância que este projeto seja priorizado e levado adiante para que pessoas transexuais e transgêneros não sofram com a subjetividade do julgador, de seus paradigmas, achismos e crenças, para que este crime acometido contra essa categoria seja regulamentado de fato.
Diante de uma sociedade patriarcal e machista, é notório o quanto as mulheres sofrem com diversos tipos de violência, seja na área de trabalho, ou até ao caminhar na rua. Não é correto afirmar que as mulheres transexuais sofrem mais, porém, além de sofrerem tudo o que uma mulher biológica sofre, ainda lidam com a transfobia presente na sociedade.
Nesse sentido, se compreende que a LMP deve sim amparar todas aquelas que se identificam com o gênero feminino a fim de proteger e punir crimes contra as mulheres, observando sempre os princípios constitucionais, enfatizando o da dignidade da pessoa humana e o da liberdade com enfoque no art. 3 § 1 da Lei 11.340/2006 que diz que o poder público tem o intuito de resguardar a mulher sem qualquer discriminação, o que acaba deixando subentendido juntamente com o art. 5 da mesma Lei, a possibilidade das mulheres transexuais obterem o amparo da LMP.
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Graduanda em Direito pela Faculdade Metropolitana de Manaus - FAMETRO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, whenna sandra de melo. A aplicabilidade da Lei Maria da Penha em casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres transexuais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 nov 2021, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57422/a-aplicabilidade-da-lei-maria-da-penha-em-casos-de-violncia-domstica-e-familiar-contra-as-mulheres-transexuais. Acesso em: 22 nov 2024.
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