GABRIELA BANDEIRA DE SOUZA[1]
(coautora)
RESUMO: Este artigo científico busca abordar o crime de Tráfico de Pessoas no âmbito de suas diversas finalidades, como para remoção de órgãos, submissão da vítima a trabalho análogo à escravidão, adoção ilegal, ou para fins de exploração sexual. O intuito do presente é demonstrar de forma breve, a gravidade do crime de Tráfico de Pessoas, assegurado pelo artigo 149-A do Código Penal Brasileiro, que fora instituído pela Lei 13.344/2016. Apresentando através de informações concretas, que o referido crime devasta a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a vida, entre outros direitos humanos fundamentais, e, por isso, merece mais visibilidade e enfrentamento, tanto por parte das autoridades policiais, quanto por parte de toda população universal.
Palavras-chave: Tráfico de Pessoas. Tipos de Tráfico de Pessoas. Direitos Humanos. Lei 13.344/2016. Enfrentamento ao tráfico de pessoas.
ABSTRACTS: This scientific article seeks to address the crime of Trafficking in Persons within the scope of its various purposes, such as removing organs, submitting the victim to work analogous to slavery, illegal adoption, or for purposes of sexual exploitation. The purpose of this document is to briefly demonstrate the seriousness of the crime of Trafficking in Persons, guaranteed by article 149-A of the Brazilian Penal Code, which was established by Law 13.344/2016. Presenting through concrete information that the aforementioned crime devastates the dignity of the human person, freedom, life, among other fundamental human rights, and, therefore, deserves more visibility and confrontation, both by the police authorities and by the of the entire universal population.
Keywords: Trafficking in Persons. Types of Trafficking in Persons. Human rights. Law 13.344/2016. Combating human trafficking.
Sumário: Introdução. 1.Definição de tráfico de pessoas e previsão legal. 2.Breve histórico sobre os direitos humanos básicos. 3. Evolução do tráfico de pessoas na legislação brasileira. 4. Tráfico de pessoas em suas diversas finalidades. 4.1 Remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo. 4.2 Submissão de pessoa a trabalho em condições análogas à de escravo. 4.3 Submissão de pessoa a qualquer tipo de servidão. 4.4 Adoção ilegal. 4.5 Exploração sexual. 5.Formas de enfrentamento ao mercado ilegal de pessoas. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente estudo busca tratar sobre o tráfico de seres humanos, um tema pouco difundido no Brasil, mas de suma importância para os dias atuais, pois este mercado criminoso avança a cada dia, confrontando a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a segurança social, o direito à privacidade.
Um exemplo interessante para abordar a importância de tal temática, é o caso noticiado via internet da brasileira Luana, que foi vítima do crime de tráfico de pessoas no ano de 2014. Luana recebeu uma promessa de emprego, para trabalhar como secretária em uma empresa no ramo da construção civil, ocorre que a promessa era falsa. Luana desembarcou na Flórida e lá foi informada que, de carro, seguiria viagem até Chicago, onde ficava a sede da suposta empresa. No meio do caminho, houve uma mudança de itinerário. Foram dias até descobrir que estava, na verdade, no Kentucky, onde foi mantida em cativeiro e obrigada a trabalhar, sem ao menos receber. A realidade de Luana representa a de 40 milhões de vítimas ao redor do mundo. Vítimas de um crime que a Organização das Nações Unidas (ONU) classifica como um dos maiores desafios do século 21: o tráfico de pessoas, sendo que as duas finalidades mais comuns para este tipo de tráfico são a exploração sexual e a do trabalho.[2]
Visto isso, é possível perceber a seriedade e gravidade desse crime, que, portanto, merece muita visibilidade, e que as formas de enfrentamentos sejam intensificadas e que sejam mais eficazes.
O conceito, características e tipificação do mercado de gente, pode ser encontrado no artigo 149-A do Código Penal, instituído pela lei 13.344/2016, o qual estabelece que agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; submetê-la a qualquer tipo de servidão; adoção ilegal; ou exploração sexual, é tipificado como crime, e penalizado com “apenas” reclusão, de 4 a 8 anos, e multa. (BRASIL, Lei 2.848, 1940).
Algumas hipóteses de enfrentamento eficazes, podem ser extraídas da Semana Nacional de Mobilização para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (ETP), as quais consistem em ampliar o conhecimento e a mobilização da sociedade, das instituições públicas e privadas, e das redes para o enfrentamento ao tráfico de pessoas; ampliar a participação da sociedade civil e indivíduos; divulgar e dar visibilidade às ações nacionais desenvolvidas para o enfrentamento ao tráfico de pessoas; implementar o III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, publicado por meio do Decreto nº 9.400/18; e difundir a Campanha Coração Azul da ONU, como plataforma global para prevenção e ETP. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2018).
Dessa forma, o objetivo do presente artigo, é examinar a temática do mercado ilegal de pessoas, analisar de forma geral os problemas que a falta de visibilidade sobre esse crime traz para a população do Brasil e do Mundo. Verificar a importância das tutelas jurídicas e legislativas se adequarem de acordo com o tempo em que vivemos, e de serem mais rígidas a fim de buscar combate mais efetivo.
1 DEFINIÇÃO DE TRÁFICO DE PESSOAS E PREVISÃO LEGAL
O conceito aceito internacionalmente para o tráfico de pessoas, é trazido pela Organização das Nações Unidas (ONU), no artigo 3, alínea “a”, do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, também conhecido como Protocolo de Palermo, o qual consiste em:
recrutamento, o transporte, transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo-se à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. (BRASIL, Decreto Lei 5.017, 2004)
O Brasil foi um dos países que assinou o Protocolo de Palermo, e em 2003 a definição ali estabelecida foi aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo No 231, e mais tarde, em 2004, foi promulgado o Decreto Presidencial, tornando-se lei ordinária federal, em âmbito interno. (SIQUEIRA, 2013, p. 23)
Nessa premissa, em 2016 foi promulgada a Lei nº 13.344, que dispõe sobre as formas de prevenção e combate ao tráfico interno (nacional) e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas, combinando o direito nacional com internacional. (CUNHA, 2017, p.5)
Já nos primeiros artigos da referida Lei, são destacados os principais fundamentos que norteiam o enfrentamento ao tráfico de pessoas, a saber, respeito à dignidade da pessoa humana, promoção e garantia da cidadania, universalidade, indivisibilidade e interdependência, não discriminação e atenção integral às vítimas diretas e indiretas. (CUNHA, 2017, p.5).
Em harmonia a isso, o artigo 149-A do Código Penal Brasileiro (CP), também dispõe sobre o significado de tráfico de pessoas, bem como tipifica a conduta como crime e estabelece sua punição. (BRASIL, Lei 2.848, 1940).
2 BREVE HISTÓRICO SOBRE OS DIREITOS HUMANOS BÁSICOS
Antes de dissertar sobre o quanto o crime de tráfico de pessoas assola os direitos básicos humanos, é imprescindível entender e aprender quais são esses direitos, como essa ideia surgiu e como ela foi aceita em âmbito universal.
Produzida graças às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) de 1948 é o que consolida a ideia contemporânea de quais são os direitos humanos básicos, de que devem ser protegidos por todos, fortalecendo um ativismo que atua na busca de melhorias para a humanidade e no enfrentamento às desigualdades.(SILVA, 2021, p.1)
A DUDH foi elaborada em um contexto relacionado com eventos que se passaram durante a Segunda Guerra Mundial, entre os momentos marcantes do maior conflito da história humana, estão o lançamento das bombas atômicas sobre duas cidades japonesas e o Holocausto. (SILVA, 2021, p.1)
Com base nisso, as grandes autoridades do mundo, por meio da ONU, decidiram organizar um documento que enumerasse direitos básicos para toda a humanidade, com intuito de evitar que genocídios e outros horrores como os que foram cometidos na Segunda Guerra Mundial acontecessem novamente. Ou seja, essa concepção universal de direitos básicos, reconhece e protege a dignidade de todos os seres humanos.(SILVA, 2021, p.1).
Ao longo da DUDH, são taxados esses direitos essenciais, como por exemplo: dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade, direito à não discriminação, direito à vida, à liberdade e à segurança, direito de não ser submetido à escravidão, direito de não ser submetido à tortura, direito à igualdade perante a lei, direito à intimidade e à privacidade, entre outros. (ONU, Declaração Universal de Direitos Humanos, 1948).
Aliado a isso, a Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993, estabelece em seu artigo 5 que, todos os Direitos Humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional deve considerar os Direitos Humanos, globalmente, de forma justa e equitativa, no mesmo pé e com igual ênfase. Embora se deva ter sempre presente o significado das especificidades nacionais e regionais e os diversos antecedentes históricos, culturais e religiosos, compete aos Estados, independentemente dos seus sistemas políticos, econômicos e culturais, promover e proteger todos os Direitos Humanos e liberdades essenciais. (ALVES, 1994, p.5)
Portanto, universalizada essa ideia sobre o conceito e essência dos direitos básicos humanos, percebe-se a necessidade que a população do Brasil e do Mundo, bem como seus textos legislativos e jurídicos, evoluam a cada dia, a fim de garantir que esses direitos sejam reconhecidos e protegidos, e que haja punição adequada para quem violá-los.
3 EVOLUÇÃO DO CRIME DE TRÁFICO DE PESSOAS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
No ano de 2005, na publicação do relatório “Uma Aliança Global Contra o Trabalho Forçado”, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) relatou que o mercado ilegal de pessoas é uma das práticas criminosas mais lucrativas do mundo, trouxe a estimativa de que cerca de 2,4 milhões de pessoas no mundo foram traficadas para serem subjugadas a trabalhos forçados. A OIT avaliou que 43% dessas vítimas seriam submetidas para exploração sexual, 32% para exploração econômica, enquanto 25% são traficadas para uma combinação dessas formas ou por razões indeterminadas. De acordo com este relatório, o lucro total produzido com o tráfico humano chega a 31,6 bilhões de dólares por ano. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA, 2013).
Partindo dessa premissa, é possível concluir que as pessoas são comercializadas para mais de uma finalidade. No Brasil, o crime de tráfico de pessoas estava localizado nos artigos 231 e 231-A do CP, mas era reduzido apenas ao destino de exploração sexual, portanto, levando em consideração os dados apresentados, infere-se que a tutela era insuficiente. (BRASIL, Lei 2.848, 1940).
Assim, em 2016, a Lei 13.344, harmonizando direito nacional com internacional (em especial ao Protocolo de Palermo), revogou os artigos 231 e 231-A do CP, gerando basicamente um novo tipo penal: o artigo 149-A do CP, o ao qual abrange as várias finalidades do tráfico de pessoas, como o tráfico para remoção de órgãos, submissão da vítima a trabalho análogo à escravidão ou a qualquer tipo de servidão, adoção ilegal, ou para fins de exploração sexual. Portanto, a Lei 13.344 de 2016 surge para prevenir e tentar evitar que tantos direitos humanos básicos sejam violados, bem como para punir quem os viola. (BRASIL, Lei 13.344, 2016).
4 O TRÁFICO DE PESSOAS EM SUAS DIVERSAS FINALIDADES
O tráfico de pessoas ocorre quando uma pessoa é transferida de seu ambiente, seja de sua cidade ou país, tem redução de sua mobilidade, e fica sem autonomia para retirar-se da situação de aproveitamento laboral, sexual, isolamento para venda de órgãos, partes do corpo ou tecidos, etc. Percebe-se que nesse único tipo penal, vários direitos humanos essenciais dispostos no texto da DUDH são violados. (CARDOSO, 2017. p.26)
A Lei 13.344 de 2016 dispõe sobre a prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas. Por isso, fez-se necessário que as diversas finalidades do crime de tráfico de pessoas que serão brevemente abordadas abaixo, fossem reconhecidas e inseridas no tipo penal, a fim de assegurar a tutela mais efetiva a esses direitos.
Fruto de reunião de uma Câmara formada por mais de 150 representantes de organismos científicos e médicos de todo o mundo, cientistas sociais e especialistas em questões éticas, membros de governos, entre 30 de abril e 1 de maio de 2008, a Declaração de Istambul sobre Tráfico de Órgãos e Turismo de Transplante foi criada na cidade de Istambul, na Turquia. Essa Declaração traz o conceito de tráfico de órgãos como:
recrutamento, transporte, transferência, refúgio ou recepção de pessoas vivas ou mortas ou dos respectivos órgãos por intermédio de ameaça ou utilização da força ou outra forma de coação, rapto, fraude, engano, abuso de poder ou de posição de vulnerabilidade, ou da oferta ou recepção por terceiros de pagamentos ou benefícios no sentido de conseguir a transferência de controle sobre o potencial doador, para fins de exploração através da remoção de órgãos para transplante. (Declaração de Istambul, 2008).
Aliado a isso, o Brasil reconhece este conceito sobre tráfico de órgãos e o harmoniza com a definição trazida no artigo 149-A, inciso I, Código Penal, o qual além de conceituar, estabelece a conduta como crime.
Em 2007, na audiência pública sobre Tráfico de Órgãos na Amazônia, realizada pelas Comissões da Amazônia, Integração Nacional e de Desenvolvimento Regional e de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, o coordenador de operações especiais de fronteiras da Polícia Federal, Mauro Sposito, afirma que o Tráfico de órgãos é o terceiro crime organizado mais lucrativo no mundo, perdendo somente perde para o de drogas e o de armas. Mauro Sposito explicou que existem vários formas do crime organizado de tráfico de órgãos acontecer: brasileiros vão ao exterior e, por necessidade financeira, vendem seus órgãos lá; órgãos são extraídos no Brasil e enviados para o exterior; estrangeiros vem ao Brasil e vendem seus órgãos aqui; brasileiros extraem seus órgãos no Brasil e os comercializam aqui mesmo. Segundo ele, a Polícia Federal está investigando todas essas práticas.[3]
Além disso, existem diversos outros fatores sociais que contribuem para a prática deste delito, como por exemplo a alta demanda por órgãos em comparação com a oferta, a própria condição financeira das vítimas e até mesmo a falta de informação. Os receptores geralmente são pessoas de classe alta com alto poder aquisitivo, as quais podem pagar por esse órgão, ou, ainda, esse delito muitas vezes é cometido dentro dos próprios hospitais, pelos próprios profissionais de saúde. (SIQUEIRA, 2013, p. 48).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) avalia que a cada ano são executados, em todo o globo, cerca de 22 mil transplantes de fígado, 66 mil de rim e 6 mil de coração, nessa premissa, foi estimado que pelo menos 5% dos órgãos transplantados proviriam do mercado ilegal, com um volume de negócios que pode chegar a 600 milhões à 1 bilhão de dólares anualmente. Bem como, estimou o valor de R$100 mil para um coração, R$20 mil para uma córnea e R$80 mil para um rim. (INSTITUTO BRASILEIRO LEGISLATIVO, 2016, p.21).
Diante disso, percebe-se que a prática desse delito ofende o princípio da dignidade da pessoa humana garantido pela nossa Constituição Federal, bem como, viola o direito à indisponibilidade do próprio corpo e oferece risco à vida.
Inicialmente, é importante relembrar que, no Brasil, até 1888, a escravidão era considerada lícita pelo Estado, de maneira que uma pessoa poderia ser propriedade da outra, poderia ser tratada como uma mercadoria ou chegar a ser objeto de uma negociação. Em 1888, com a chegada da Lei Áurea, o trabalho escravo foi abolido no Brasil e configurado como crime, consoante o disposto no artigo 149 do Código Penal Brasileiro. (BIBLIOTECA NACIONAL, 2015).
Hoje, as situações existentes de trabalho escravo são denominadas como análogas à escravidão, primordialmente em virtude do direito de liberdade em que o trabalhador jamais poderá ser posse do empregador, como ocorria antigamente. (BIBLIOTECA NACIONAL, 2015).
Entretanto, ainda que essa conduta de reduzir uma pessoa a condição análoga à de escravo seja considerada uma prática ilícita e intolerável, muitos empregadores ainda violam a legislação, devastando os direitos humanos tanto em âmbito interno quanto em âmbito externo, sustentando a engrenagem escravagista que se mostra por meio de jornadas cansativas (submissão do trabalhador a esforço excessivo, sem possibilidade de descanso, que podem resultar em adoecimentos ou até morte), trabalhos forçados (aquele que um trabalhador, mesmo sem vontade, permanece sob o domínio do empregador mediante força física e psicológica, privado de liberdade), servidão por dívidas (condição em que o trabalhador é forçado a seguir no trabalho para saldar dívidas com o empregador, como o pagamento de passagens por exemplo), etc. Além disso, o trabalhador é submetido a condições humilhantes, mantido em condições degradantes de trabalho, como alojamentos sem estrutura adequada, falta de assistência médica, péssima alimentação, falta de saneamento básico, etc. (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2011).
Dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), órgão ligado à Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, apontam que, em 2020, a Inspeção do Trabalho descobriu 942 trabalhadores que estavam sendo explorados em situações análogas às de escravo, mesmo durante a pandemia da Covid-19 que o Brasil enfrenta, os auditores-fiscais do trabalho realizaram 266 inspeções em todo o país. Dos resgatados, 41% eram imigrantes, com predominância de paraguaios, 78% se encontravam no meio rural, a maioria em atividades como o cultivo de café e produção de carvão vegetal. Enquanto, dos trabalhadores urbanos resgatados, a maior parte trabalhava no comércio varejista e na montagem industrial. (MINISTÉRIO DA ECONOMIA, 2020).
Nessa premissa, é possível afirmar que existem várias circunstâncias que facilitam o aliciamento pelos traficantes de pessoas, tais como o desemprego, baixo salário, fome, miséria. Esses traficantes prometem uma boa remuneração, boas condições de trabalho e uma “vida melhor”, e só quando as vítimas chegam no local destino do tráfico, descobrem a realidade, que terão seus direitos constitucionais suprimidos, pois essa prática de fere a democracia, atenta contra os direitos básicos humanos, como o do valor social do trabalho, da dignidade da pessoa humana, à liberdade. (MINISTÉRIO DA CIDADANIA, 2020).
Por isso, seria muito importante que as formas de prevenção e combate ao tráfico de pessoas para fins de situações análogas a escravidão, fossem intensificadas. Um exemplo seria, aumentar a divulgação ao público brasileiro através da mídia sobre a existência e a gravidade do crime; realizar distribuição de cartilhas sobre como identificar de maneira simples, a possibilidade de estar ocorrendo o referido crime em alguma situação ou em sua região, como: duvidar sempre de propostas de emprego fácil e muito lucrativa; sugerir que a pessoa, antes de aceitar um emprego leia atentamente o contrato de trabalho, busque informações sobre o empregador ou empresa, principalmente em propostas que incluam deslocamentos e/ou viagens internacionais; orientar para que a pessoa que vai viajar, avise aos amigos e familiares e nunca deixe de se comunicar com eles, pois a prevenção é sempre a melhor iniciativa. (MINISTÉRIO DA CIDADANIA, 2020).
Além das outras modalidades mencionadas, outra situação tipificada pela Lei 13.344/2016 é a de tráfico de pessoas para fins de sujeição a qualquer tipo de servidão. Vale ressaltar, que essa servidão é uma expressão mais extensiva que a de trabalho em condições análogas à de escravo, isso porque pode haver inclusive servidão sem trabalho em sentido estrito, e no mundo, de diversas modalidades, como por exemplo, na Índia, a qual OIT indicou, há alguns anos, casos recorrentes de servidão derivada de dívidas que se estabeleciam após acordos familiares para efeito de casamento. (ANAMATRA, 2018).
No Brasil, a modalidade representada pelo artigo 149-A do CP é basicamente a de servidão por dívida, juridicamente conhecida como “truck system”. Um exemplo de como isso pode ocorrer é situação daquele trabalhador que, estabelecendo-se em propriedade rural, precisa comprar o seu alimento na “vendinha” (grifo nosso) da própria fazenda em que labora, sob preços proibitivos e absurdos, mas faz haja vista que não há concorrência no local e porque precisa se alimentar, independentemente do preço dos mantimentos. Em razão disso, como o salário acordado com o empregador provavelmente é baixo, o trabalhador acaba se endividando. Assim, quando o mês acaba, seus débitos são maiores que o valor recebido e ele não pode deixar o seu trabalho, porque segue devendo ao empregador, e isso continuará se repetindo, dia após dia, restando clara a restrição indireta à liberdade que acontece. (ANAMATRA, 2018).
Na década de noventa do século XX, em fazendas do interior do Brasil, chegou-se a identificar, em livros de “contabilidade” (grifo nosso) onde constavam os débitos e créditos dos trabalhadores rurais, a expressão “alforria”, justamente para designar o pagamento feito referente à dívida e liberar o trabalhador. (ANAMATRA, 2018).
Diante disso, fica evidente que sujeitar o indivíduo à servidão configura grave ilegalidade e desrespeito ao ser humano e à sua liberdade, e justamente por isso, a Lei 13.344/2016, inclui essa prática no rol de finalidades do tráfico de pessoas, a fim de prevenir e reprimir da melhor maneira.
O Brasil é um dos países com maior incidência em tráfico internacional de crianças ou adolescentes da América Latina, segundo a ONU. Os adolescentes ou crianças, são um tipo de mercadoria para os traficantes, elas são literalmente vendidas por preços variados, e os fatores que determinam esses preços são os tons de pele, cor dos olhos ou cabelos. Em relatório de 2016, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (United Nations Office on Drugs and Crime), estimou que quase um terço do total de vítimas do tráfico de pessoas no mundo são crianças. (UNODC, 2017).
O crime ocorre quando os bebês, crianças ou adolescentes são sequestrados em ruas, em maternidades ou até mesmo dentro de sua própria casa, e são vendidos para pessoas diversas, de regiões variadas, tanto em esfera nacional quanto internacional. Em algumas ocasiões, os próprios genitores entregam seu filho(a) à adoção ilegal em troca de dinheiro ou pelo fato de não ter condições financeiras ou psicológicas para criação do incapaz. (UNODC, 2017).
Esse tipo de adoção ocorre sem o devido procedimento legal estabelecido pela Lei 8.069 de 1990, também conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a qual assegura em seus artigos 238 e 239, que as condutas de prometer ou efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa e a conduta de promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro, são consideradas crimes. (BRASIL, Lei 8.069, 1990).
Ato contínuo, a Lei 13.344 de 2016, também prevê o tráfico de pessoas para fins de adoção ilegal como crime, com a intenção de reprimir uma das mais sórdidas modalidades de tráfico hoje existentes: a que tem por objeto crianças muito novas, em especial os bebês, traficados com intuito de serem comercializados e entregues às famílias receptoras, totalmente em desconsonancia com a legislação vigente no país de origem e do país destino, ferindo, além da lei, a dignidade, a vida e a liberdade dos menores e suas famílias. (ANAMATRA, 2018).
O mercado ilegal de pessoas para essa modalidade, é uma atividade de baixos riscos e altos lucros. Em relatório feito em 2005, a OIT trouxe a estimativa de que cerca de 2,4 milhões de pessoas no mundo foram traficadas para serem subjugadas a trabalhos forçados, sendo que 43% dessas vítimas seriam submetidas para exploração sexual. Além disso, segundo informações disponibilizadas pela Secretaria Internacional do Trabalho Brasil, em certos casos, as pessoas traficadas (em especial mulheres) podem entrar nos países com visto de turista, dessa forma as atividades ilegais são facilmente camufladas em atividades lícitas, como babás, garçonetes, faxineiras, modelos, etc., e mesmo que exista lei punindo esse crime, raramente são usadas e em alguns casos, as penas aplicadas são desproporcionais aos crimes, por exemplo, quem trafica drogas recebe pena mais alta do quem comercializa pessoas. (MIRANDA, 2010, p.7).
A Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (PESTRAF), realizou um levantamento da condição no Brasil com fulcro em entrevistas e na análise de inquéritos e processos judiciais e reportagens publicadas na mídia em vários Estados. A pesquisa demonstra que no país, as vítimas do tráfico para fins sexuais são, predominantemente, pessoas do sexo feminino, afrodescendentes, com idade entre 15 e 25 anos, que preferencialmente, tenham origem de classes populares, possuam baixo nível escolaridade, morem em periferia com algum familiar, que exerçam atividades laborais de baixa exigência, tenham sofrido alguma violência doméstica ou sexual, entre outros. (CECRIA, 2002).
Nessa premissa, quando surge alguma oportunidade de vida melhor ofertada pelos traficantes, essas mulheres acreditam em tudo que é falado e prometido, pois eles passam para elas algum encanto, fazem uma propaganda daquilo que elas podem ter no exterior, acham que terão uma profissão digna, como modelo, faxineira, garçonete e afins, e na verdade essa propaganda no futuro não se concretiza. Na realidade, a única coisa certa para essas mulheres, é que terão seus corpos e direitos violados, sua saúde e segurança comprometidas e sua vida e liberdade limitadas. (CECRIA, 2002).
Em uma das maneiras de prevenir e reprimir o crime do tráfico de pessoas e garantir a necessária assistência e proteção às vítimas, bem como a promoção de seus direitos, numa jogada harmonizada com o que deseja a sociedade brasileira e de acordo com os compromissos nacionais e internacionais estabelecidos, foi elaborado o “II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (II PNETP)”, aprovado em 2013. No artigo 5.A do Plano, é possível observar que uma das metas é desenvolver e apoiar campanhas e estratégias comunicativas sobre o tráfico de pessoas, suas modalidades, impactos e outros aspectos, uma dessas campanhas, conforme artigo 5.A.1 do Plano, seria uma campanha nacional sobre tráfico de pessoas realizada durante os grandes eventos. (UNODC, 2013).
Nessa premissa, a Lei 13.344 de 2016 surge como uma importante aliada no combate ao mercado ilegal de pessoas no Brasil. No seu capítulo VI, dispõe sobre as campanhas relacionadas ao enfrentamento ao tráfico de pessoas, e já inaugura o capítulo instituído o Dia Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, a ser comemorado, anualmente, em 30 de julho, que também é o Dia Mundial de combate a esse crime. (BRASIL, Lei 13.344, 2016).
Ato contínuo, a Lei também estabelece que serão adotadas campanhas nacionais de enfrentamento ao tráfico de pessoas, a serem divulgadas em veículos de comunicação, visando à conscientização da sociedade sobre todas as modalidades de tráfico de pessoas. (BRASIL, Lei 13.344, 2016).
Entretanto, ainda que o mercado ilegal humano seja um crime tão abrangente e complexo, a mídia brasileira não aborda com frequência e nem com a devida ênfase esse problema de nível universal. Dificilmente, nos meios de comunicação, passa alguma notícia, alguma reportagem, seja ela informativa/investigativa, seja ela informativa/educativa (para falar sobre campanhas, programas de combate, eventos de prevenção, etc.).
Essa falta de divulgação, faz, de certa forma, que as pessoas não pensem nos problemas que esse crime traz, no tanto que ele devasta os direitos humanos essenciais. Bem como, faz com que os profissionais dos meios de comunicação fiquem despreparados e desinformados quanto a abrangência e agressividade do mercado ilegal de pessoas.
Para gerar uma mudança nesse cenário, seria interessante que os órgãos responsáveis pela prevenção e repressão ao tráfico humano, com o auxílio da imprensa, realizassem ações para maior divulgação desse crime. Observando, claro, que isso fosse feito de forma correta e sensível, auxiliando os profissionais midiáticos, preparando-os para abordar a temática de uma forma objetiva e leve ao mesmo tempo, fornecendo dados, orientações, cartilhas, cursos para os profissionais da imprensa, etc., pois para abordar essa temática é importante ter conhecimento da causa, ter ética, usar linguagem cuidadosa, pois uma agressividade nas palavras, poderia gerar mais um desrespeito à dignidade das vítimas.
Ademais, é importante destacar que em 2018, foi lançado o 3º Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Na época, explicou o Secretário Nacional de Justiça[4], Luiz Pontel, que a meta agora seria reforçar a rede nacional de combate ao tráfico de pessoas, com auxílio dos órgãos governamentais e não-governamentais, juntamente com a sociedade civil, que apoia a execução do plano. Bem como, adiantou que seria realizado o monitoramento das metas, que seriam distribuídas em eixos temáticos: capacitação, prevenção e conscientização pública, gestão da política e da informação, responsabilização, assistência à vítima, e a execução conjunta com órgãos municipais, estaduais e federais para implementação do plano.
O crime de tráfico de pessoas configura uma séria violação a vários direitos humanos básicos assegurados a todos em esfera universal. Essa prática assola a dignidade da pessoa humana, retira a liberdade do indivíduo, compromete a sua saúde e segurança, e, primordialmente, limita sua vida.
É incontestável a gravidade, abrangência e complexidade desta conduta no Brasil e no Mundo, e mesmo assim, é possível perceber que é um crime praticamente invisível, e, até certo ponto, ignorado pelo Direito Penal Brasileiro. Isso porque, mesmo que a Lei 13.344 de 2016, reconheça e tipifique como crime as várias modalidades desse mercado, o crime não se esgota em uma disposição penal, pois é um fenômeno complexo, que necessita da colaboração dos órgãos estatais, da população, da mídia, para ser prevenido e reprimido de maneira adequada e eficiente.
No 2º Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, uma de suas metas seria desenvolver e apoiar campanhas e estratégias comunicativas sobre o tráfico de pessoas, suas modalidades, impactos e outros aspectos. Entretanto, em 2018, foi lançado o 3º Plano de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, e até hoje, o crime não tem a divulgação adequada e possui a visibilidade necessária para prevenção e enfrentamento por parte da população.
Muitas pessoas nem lembram que o crime existe, não sabem o quão é presente, forte e lucrativo ele é no mercado brasileiro, não sabem as diferentes táticas que os traficantes usam com suas vítimas, as quais variam de acordo com a finalidade do tráfico, outras sequer acreditam que o crime ainda existe no Brasil.
Nesse sentido, o ideal seria que houvesse uma grande disseminação de informação em todo o território nacional, a respeito desse delito. Certamente, essa divulgação deve ser feita de maneira adequada, instrutiva, por pessoas que dominem o assunto, entendam suas peculiaridades e sua sensibilidade, pela diversidade de vítimas e abrangentes finalidades.
Assim, com toda a população e profissionais de mídia conscientizados sobre a importância do assunto, harmonizados com a lei brasileira, planos e protocolos internacionais existentes e reconhecidos, a prevenção e o enfrentamento a esse crime de longa escala seriam mais eficazes, mais direitos básicos humanos seriam garantidos, protegidos e praticados, por todos e para todos.
CARDOSO, Gleyce. Tráfico de Pessoas no Brasil: De acordo com a Lei 13.344/2016. Local de publicação: Juruá, 2017.
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Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário Una Contagem/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALVES, AMANDA KAROLINE DO NASCIMENTO. Tráfico de pessoas: um mercado invisível em constante expansão que assola os direitos básicos humanos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 nov 2021, 04:29. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57511/trfico-de-pessoas-um-mercado-invisvel-em-constante-expanso-que-assola-os-direitos-bsicos-humanos. Acesso em: 22 nov 2024.
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