DÁRIO AMAURI LOPES DE ALMEIDA
(orientador)
RESUMO: A presente pesquisa tem por objetivo analisar o fenômeno do estupro de vulnerável e o caráter investigativo do depoimento especial das crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, a partir do papel que o depoimento destas desempenha face a uma investigação, como sendo a principal ferramenta de prova. Tendo em vista a pandemia que se enfrenta desde 2020, as estatísticas mostram que o isolamento social potencializou o aumento de casos de estupro contra crianças e adolescentes e propiciou o silenciamento das vítimas de tais crimes. Por tal motivo, necessita-se cada vez mais a abertura de espaços e ferramentas que se dediquem a propiciar o acolhimento e a proteção da vítima por parte do Estado, tendo como exemplo o surgimento do “Depoimento Sem Dano”, com o advento da Lei nº 13.431/2017, criada com o objetivo de evitar que a vítima reviva os traumas causados pelo abuso sexual sofrido. Como resultado, nota-se a necessidade de aplicação de novos métodos de abordagem da oitiva da vítima, tais como a Escuta Especializada e o Depoimento Especial. Para o êxito da pesquisa, foi utilizado o método bibliográfico, qualitativo e descritivo, combinados com legislação constitucional e infraconstitucional sobre os temas tratados.
Palavras-chave: Abuso sexual infantil. Depoimento especial. Direito da criança e do adolescente.
ABSTRACT: The purpose of the present research is to analyze the phenomenon of rape against the vulnerable and the investigative character of the special testimony of children and adolescents victims of sexual violence, based on the role that their testimony plays in an investigation, as the main evidence tool. Given the pandemic that has been faced since 2020, statistics show that social isolation has increased the number of cases of rape against children and adolescents and provided the silencing of victims of such crimes. For this reason, there is an increasing opportunity for the opening of spaces and tools that provide the reception and protection of the victim by the State, with the emergence of the “Testimony Without Damage” as an example, with the advent of the Law nº 13.431/2017, created with the objective of preventing the victim from reliving the traumas caused by the sexual abuse suffered. As a result, is needed the application of new methods of approaching the victim's speech, such as the Specialized Listening and the Special Testimony. For the success of the research, the bibliographic, qualitative and descriptive methods were used, combined with constitucional and infra-constitucional legislation on the topics covered.
Keywords: Child sexual abuse. Special Testimony. Children and adolescent’s rights.
1 INTRODUÇÃO
O problema do abuso sexual infanto-juvenil está presente no país há muitos anos, sendo uma das principais questões que afetam o direito da criança e do adolescente. O presente artigo tem por objetivo inicial demonstrar como essa problemática ganhou espaço no ordenamento jurídico brasileiro, levando em conta as características e condições da pessoa vulnerável e as suas necessidades.
Em primeiro lugar, busca-se a compreensão das diferentes legislações a abordarem o tema, as quais incorporam princípios e costumes da época em que entraram em vigência. A observância de que crianças e adolescentes são seres em formação, incapazes de tomar decisões, atenderem suas necessidades e resolverem conflitos independentemente do auxílio e proteção dos adultos, é um norte para que se destaque o dever da sociedade e do Estado de proporcionarem uma atenção especial a tais grupos.
Além disso, diante do contexto geopolítico da pandemia da Covid-19, os casos de abuso sexual infanto-juvenil se revestiram ainda mais da característica de clandestinidade, o que acarretou o aumento da subnotificação de casos, um problema que denota ainda mais o fato desses crimes se tratarem de uma questão também de saúde pública.
Diante disso, é necessário apreciar que a criança e o adolescente merecem uma abordagem específica frente à Legislação Brasileira, como a consideração do critério objetivo da idade, que dá origem ao crime de estupro de vulnerável, praticado contra os menores de 14 (quatorze) anos.
Com o advento dos crimes contra a dignidade sexual do vulnerável, é importante ressaltar que a presença de crianças e adolescentes em Juízo exige um sistema que garanta a sua máxima proteção, através de um ambiente e de um procedimento que garanta maior celeridade ao processo e respeito às vítimas.
A violência sexual é um crime de difícil mensuração, que nem sempre deixa rastros e vestígios aparentes e muito menos testemunhas oculares capazes de tornar mais imediata a investigação. Tendo isso em vista, a oitiva da vítima ganha destaque como meio de prova durante a investigação policial e o julgamento dos casos.
Porém, o estupro tendo como vítima o menor de 14 (quatorze) anos merece especial atenção, visto que, na prática processual penal, existe predominantemente a situação de a vítima ser ouvida várias vezes no mesmo processo, revivendo os traumas causados pelo abuso sofrido.
Pensando nisso, deve-se aplicar o chamado “Depoimento Sem Dano”. Com a edição da Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, que normatiza e organiza o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente, surgem mecanismos para prevenir e coibir a violência em forma de vitimização secundária, ou seja, a “violência institucional”.
A Lei institui a Escuta Especializada e o Depoimento Especial, aliados à uma rede de proteção e à um fluxo de atendimento que proporcione uma investigação sem que haja danos à vítima. Observa-se que a não aplicação desde método acarreta em impactos negativos tanto na criança ou adolescente, quanto à celeridade da Justiça, que pode vir a ser afetada pelo alargado decorrer entre a denúncia do crime e a audiência de instrução e julgamento.
Para o êxito da pesquisa, foi utilizado o método bibliográfico, qualitativo e descritivo. Além disso, se faz presente a pesquisa de legislação constitucional e infraconstitucional sobre os temas tratados, a fim de observar o que predomina no ordenamento jurídico acerca do depoimento especial da vítima.
A violência sexual pode ser definida como qualquer ato ou contato sexual ou libidinoso onde a vítima é usada para a gratificação sexual do agressor, sem seu consentimento, por meio de “expressões verbais ou corporais que não são do agrado da pessoa; toques e carícias não desejados” (TAQUETTE, 2007, n.p.), configurando um crime de difícil constatação. Segundo Engel (2017), diversos são os valores, crenças e práticas sobre os papéis de gênero e sobre as interações sexuais que não só permitem como também estruturam relações desiguais nas quais o interesse sexual ativo deve conquistar e submeter o objeto de desejo.
No ordenamento jurídico brasileiro, as diferentes legislações sobre o estupro ao longo dos anos, como é de praxe na Justiça, incorporaram os costumes mais recorrentes em dada época. A primeira lei a tipificar o estupro como crime foi o Código Penal do Império, que vigorou entre 1831 e 1891. Nele, o estupro era julgado a partir da “honestidade da mulher violada”, havendo uma relativização do crime referente à posição que a vítima ocupava e aos costumes que adotava em sua vida pessoal, como era o caso das prostitutas que, uma vez estupradas, o seu agressor recebia o perdão caso se casasse com elas. Nesta época, para poder se caracterizar o estupro, era necessário que a violência causasse dor e apresentasse alguma consequência física aparente na mulher (Cajal e Lima, n.p)
Já no Código Penal da República, que vigorou até 1940, é registrada pela primeira vez a diferença entre crime de estupro e atentado violento ao pudor. Segundo o Código, o estupro ocorreria quando houvesse conjunção carnal, compreendida como a penetração do pênis de um homem na vagina de uma mulher ou menina, não existindo a hipótese de homens e meninos serem vítimas de estupro.
2.1 OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
A proteção dos direitos da criança e do adolescente é um dos temas centrais da Constituição Federal brasileira, que se preocupa em destacar, por meio de um rol exemplificativo, o dever da sociedade e do Estado em estabelecerem um cuidado especial quanto aos direitos da infância e da juventude. O artigo 277 da Carta Magna ressalta pontos importantes para a defesa da dignidade humana, assim dispondo:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).
Tendo em vista que, ao longo dos anos, crianças e adolescentes têm sido, reiteradamente, vítimas de violência física, psicológica e sexual, em sua maioria ocorrendo em ambiente familiar e sendo praticadas por quem os deveria proteger, a negação desse tipo de abuso corrobora para que o tema permaneça indiscutido e sob o manto do silêncio e da impunidade.
Por esses fatos, a presença das crianças nos tribunais e a crescente preocupação com a sua proteção provocaram uma série de mudanças nos sistemas jurídicos em âmbito internacional, tendo como exemplo o art. 12 da Convenção das Nações Unidas em 1989, que garante à criança o direito de livre expressão de opinião e manifestação nos processos judiciais que lhe dizem respeito, seja de forma direta ou por meio de um representante legal.
Além disso, cumpre destacar a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1990, que em seu art. 36 manifesta o compromisso dos Estados Partes quanto à proteção da criança contra todas as formas de exploração que sejam prejudiciais para qualquer aspecto de seu bem-estar, zelando para que nenhuma criança seja submetida a tortura nem a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes (BRASIL, 1990).
Em 1948, as Nações Unidas proclamaram o direito aos cuidados e à assistência especial à infância através da Declaração Universal dos Direitos Humanos, considerada a maior prova histórica do consensus omnium gentium sobre um determinado sistema de valores (Bobbio, 2004, p. 47). A Declaração destaca a importância de todas as nações desenvolverem um trabalho sistemático e multifacetado para responder à violência contra a criança, com a criação de estratégias coordenadas por agências com a capacidade de envolver múltiplos setores, legais, policiais, de planejamento e programas com base no conhecimento científico corrente.
Visando ampliar a proteção aos direitos da criança e do adolescente, foi criada em 13 de julho de 1990, a Lei nº 8.069, conhecida como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nesse contexto, estabelece-se uma legislação específica inovadora, que levanta explicitamente os direitos da infância e da juventude. Com o advento do ECA, as crianças e adolescentes passam a ser enxergados como sujeitos no ordenamento jurídico brasileiro, tendo resguardada a sua proteção e respeitada a sua condição de pessoa em desenvolvimento.
A legislação que assegura os direitos aos menores de 18 anos provocou alterações relevantes na estrutura de atendimento e na elaboração de políticas públicas voltadas aos direitos das crianças e adolescentes. Para se viabilizar essa proteção de direitos, foi instituído, dentre outros, os Conselhos Tutelares que, conforme explica Azambuja (2017, p. 54), representam um aspecto importante da nova proposta de política de atendimento aos direitos da população infantojuvenil, permitindo a participação popular na vida de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
A partir da criação do Estatuto, então, passamos a enxergar o direito da criança e do adolescente como um ramo autônomo do Direito, que antes estava presente de forma desconcentrada na Constituição, e passa a reclamar um novo olhar sobre essa camada tão importante da sociedade. O reconhecimento da criança como sujeito de direitos, pessoa em fase especial de desenvolvimento e prioridade absoluta, revolucionou conceitos e práticas até então incorporadas pelo mundo adulto, dando destaque a condutas que, num passado recente, ficavam na clandestinidade, sem visibilidade no campo social e político.
2.2 A TUTELA DA DIGNIDADE SEXUAL NO CÓDIGO PENAL
O Código Penal brasileiro de 1940, criado pelo decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, pelo então presidente Getúlio Vargas, trouxe inovações quanto ao crime de estupro, sendo assim tipificado no artigo 213: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos” (BRASIL, 1940).
Com a atualização do Código Penal brasileiro em 2009, o bem jurídico protegido passou a ser a dignidade sexual. Sendo assim, o Código entra em sintonia com a Constituição Federal de 1988, que legisla sobre a dignidade da pessoa humana, estabelecendo em seu art. 1º, III, que toda pessoa tem direito à liberdade e ao respeito pela sua vida sexual, sendo papel do Estado o dever de proteger esse direito (MAGGIO, 2013, n.p).
A lei penal então passa a considerar relevante a relação sexual não consentida, estabelecendo o crime de estupro. Anteriormente à Lei nº 12.015/2009, havia o tipo penal da presunção de violência, que elencava presumida a violência quando praticada contra as vítimas menores de quatorze anos, alienadas ou débeis mentais e aquelas que não podem, por qualquer outra causa, oferecer resistência. Antes da citada Lei, existiam dois delitos: o de estupro, no art. 213, e o de atentado violento ao pudor, no art. 214, ambos tendo como meio de execução empregado a violência ou grave ameaça. No entanto, falava-se de presunção de violência em relação a vítimas menores de 14 (quatorze) anos.
Com o advento da Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009, estabeleceu-se o critério objetivo da idade, dando origem ao crime de estupro de vulnerável, tipificado no art. 217-A como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos” (BRASIL, 2009). O tipo penal mencionado além de fazer parte do capítulo dos “crimes contra a dignidade sexual”, também passou a ser considerado crime hediondo. Com isso, o crime de estupro de vulnerável deixa de ser uma espécie do crime de estupro e passa a ter texto próprio, assumindo uma denominação específica. Nesse diapasão, destaca Greco que o artigo 217-A tem como foco pessoas determinadas como os menores de 14 (catorze) anos, que são vulneráveis por não terem o discernimento necessário para a prática de atos sexuais (2016, p. 87).
No mesmo sentido, Nucci ensina que é vedada a prática sexual com pessoas menores de 18 (dezoito) anos, visto que nesta faixa etária, não se tem discernimento e nem as condições suficientes para autorizar o ato. Logo, a vulnerabilidade de suas situações indica a presunção de ter sido violenta a prática do sexo (2014, p. 939). Além disso, tem prevalecido esse entendimento no STJ:
A anterior experiência sexual ou o consentimento da vítima menor de 14 (quatorze) anos são irrelevantes para a configuração do delito de estupro, devendo a presunção da violência, antes disciplinada no artigo 224, alínea “a”, do Código Penal, ser considerada de natureza absoluta. (REsp 11184236, 5.ª T., rel. Jorge Mussi, julgado em 07/12/2010, DJe 17/12/2010).
A sexualidade é um componente relevante para a formação humana, sendo assim, intrínseca da dignidade da pessoa humana e tratando-se, também, de princípio constitucional. Uma vez que o delito sexual contra a criança ganha denominação própria, ressalta-se uma violação mais grave e digna de uma atenção especial. Cumpre ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça, em 2017, emitiu a Súmula 593, decidindo que a presunção de vulnerabilidade deve ser absoluta independentemente do consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso anterior com o agente. (STJ, 2017).
Existem casos de crianças que são violentadas sexualmente por anos pelo mesmo agressor, que muitas vezes representa um papel de autoridade sob a vítima, fortalecendo a relação injusta entre vítima e abusador. Tendo isso em vista, a lei estabelece que os fatores de proximidade e autoridade sob a vítima não mais servirão para relativizar o delito cometido contra ela.
A violência sexual contra crianças e adolescentes, no que antecedeu o ordenamento jurídico brasileiro que conhecemos hoje e mais especificamente a Constituição Federal de 1988, pouco chegava aos sistemas de saúde, educação e Justiça, permanecendo sob a obscuridade e a impunidade. Na atualidade, passa a exigir uma capacitação ainda mais frequente por parte das entidades públicas e dos profissionais envolvidos com as vítimas, na medida em que estes desempenham um papel relevante, permitindo a intervenção do Poder Judiciário.
3 O ESTUPRO DE VULNERÁVEL FACE À PANDEMIA
A violência sexual apresenta particularidades que aumentam a dificuldade de identificação, combate e investigação, atingindo crianças e adolescentes no mundo inteiro, fazendo-se presente o fenômeno nos mais diversos meios e esferas: no cotidiano de profissionais de educação, direito, serviço social e saúde, que desempenham papéis relevantes e interdisciplinares no enfrentamento dos casos de abuso sexual infanto-juvenil.
Considerando que crianças e adolescentes são grupos historicamente vulneráveis e, tendo em vista a pandemia da Covid-19, que vem sido enfrentada desde meados de 2020 no Brasil, as estatísticas apontam que o isolamento social propiciou o aumento de casos de abuso contra esses grupos e relevou um ambiente silenciador de vítimas. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2020, houve mais de 60.926 casos de estupro no Brasil, sendo 73,7% estupros de vulnerável, e mais de 60% das vítimas foram crianças de até 13 anos. Tais dados representam uma preocupação ainda maior diante o cenário pandêmico, onde todos permaneceram em suas casas adotando medidas de distanciamento social.
Conforme o levantamento, em 85,2% dos casos o autor é um conhecido da vítima. Em um estado de calamidade pública como uma pandemia, que faz com que as famílias permaneçam em casa e as crianças não mais tenham acesso ao ensino presencial, essas vítimas passam a ficar mais tempo expostas ao perigo, considerando que permanecem isoladas no mesmo ambiente que seus agressores, onde “os atos violentos de abuso sexual, por pertenceram à esfera privada, acabam se revestindo da tradicional característica do sigilo” (GUERRA, 1998, p. 32).
Ocorre que, apesar do número elevado de casos de estupro de vulnerável no país, os números revelam o diagnóstico de que o período da pandemia contribuiu para a redução dos registros, o que não necessariamente significou a diminuição da frequência em que esses delitos ocorreram, mas sobretudo a redução das denúncias e, consequentemente, das investigações acerca de tais fatos, permanecendo os seus autores impunes. A subnotificação já existente em crimes deste gênero se fez ainda mais presente durante o isolamento social e o período pandêmico. Para Engel, os aspectos como uma construção coletiva de pactos que ocultam e silenciam estes crimes, a assim chamada cultura do estupro, somada ao compartilhamento de práticas de masculinidade violentas perpassam essas ações, tornando ainda mais difícil sua mensuração (2017, p. 22).
Cumpre ressaltar que a violência sexual é um problema de saúde pública, que compreende desde o atendimento hospitalar a vítimas até o papel do Estado de fornecer um ambiente ao amparo psicológico destas. A Lei nº 12.845 de 2013 dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual, obrigando os hospitais do Sistema Único de Saúde a prestar atendimento emergencial às vítimas de estupro, incluindo o diagnóstico e tratamento de lesões e a realização de exames para detectar gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. Há casos concretos, como no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, onde a mera suspeita de abuso leva à necessidade de uma avaliação breve que muitas vezes requer a hospitalização da criança (ZAVASCHI et. al., 1991, p. 139).
O artigo 1º da supracitada Lei acentua que “os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial, integral e multidisciplinar, visando ao controle e ao tratamento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual, e encaminhamento, se for o caso, aos serviços de assistência social” (BRASIL, 2013).
O princípio da “prioridade absoluta” à criança e ao adolescente, em destaque no art. 227, caput da Constituição Federal e ressaltado pelo art. 4º, caput e parágrafo único, do ECA, também se aplica aos órgãos de segurança pública e ao Poder Judiciário, que estarão igualmente sujeitos às sanções decorrentes do contido nos arts. 208, inciso XI e 216, do Estatuto da Criança e do Adolescente (DIGIÁCOMO, M; DIGIÁCOMO, E., 2018, p. 41), que enumeram as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente. O Estatuto trata ainda da possibilidade de haver apuração da responsabilidade civil e administrativa do agente público.
Nota-se que o texto do diploma legal enfatiza a atenção à qual as vítimas de crimes deste gênero fazem jus, destacando a ideia de que a violência sexual é uma questão que concerne ao Estado também no âmbito da saúde. Portanto, reconhecer que a busca pela constatação e averiguação da violência sexual, bem como a noção de prioridade, dada a urgência na coleta de provas, deve se estender aos profissionais de saúde pública, mostrando que mesmo em meio à uma pandemia, as crianças e os adolescentes vítimas de violência sexual merecem especial atenção.
4 A CARGA PROBATÓRIA DA OITIVA DA VÍTIMA
À luz do crime de estupro de vulnerável, é importante compreender que, por ser um delito de difícil apuração, tem como a palavra da vítima a sua principal fonte probatória. O depoimento judicial do ofendido é o meio de prova mais comumente utilizado para se buscar a condenação do réu, por se tratar de um crime cometido às escondidas, não havendo testemunhas e nem sempre deixando vestígios materiais que possam ser comprovados por meio pericial.
De acordo com Bonfim (2008, p. 304), a atividade probatória é uma série de atos realizados com a finalidade de desvendar os fatos pertinentes à lide, portanto, prova é uma ferramenta utilizada pelas partes envolvidas no processo judicial com o intuito de provarem os seus direitos e alegações e convencerem o julgador dos fatos que a ele são apresentados.
À respeito da prova, é importante garantir que o Juiz seja convencido de que determinado fato ocorreu, a sua magnitude e as consequências que causou. Conforme explica Tourinho Filho (2010, p. 232):
Prova é a soma dos motivos geradores da certeza dos fatos. Sua finalidade é formar a convicção do juiz sobre os elementos necessários para a decisão da causa. Para julgar o litígio, precisa o Juiz ficar conhecendo a existência do fato sobre o qual versa a lide. Pois bem: a finalidade da prova é tornar aquele fato conhecido do Juiz, convencendo-o da sua existência.
Esta prova pode ser elaborada a partir de procedimentos como o depoimento testemunhal, a perícia, a exibição de documentos, o reconhecimento de pessoas e, tendo em vista o crime de estupro de vulnerável, carrega um peso maior a prova adquirida por meio do depoimento da vítima. Azambuja (2006, p. 435) destaca a ideia de que a vítima de estupro de vulnerável será a fonte de prova central do julgamento do processo, ao visar essencialmente a produção de prova da materialidade, em face dos escassos elementos que costumam instruir o processo, com o fim de obter a condenação ou absolvição do abusador. Os exames periciais nem sempre confirmarão, por si sós, a prática dos crimes. Tanto são regradas em jurisprudência pátria:
APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO - MATERIALIDADE E AUTORIA CONFIGURADAS - LAUDO PERICIAL, TESTEMUNHOS E A PALAVRA DA VÍTIMA APONTAM DE MODO ROBUSTO A RESPONSABILIDADE DO RÉU PELA CONDUTA CRIMINOSA - CONDENAÇÃO MANTIDA. 1 - A palavra da vítima nos crimes sexuais merece relevância ímpar para a aferição de um juízo de condenação, especialmente quando vem corroborada por exames periciais e testemunhos, como ocorreu na hipótese dos autos. 2.Omissis; 3.Omissis ".(2009315538 TJ/SE , Relator: Des. NETÔNIO BEZERRA MACHADO , Data de Julgamento: 25/01/2010. CÂMARA CRIMINAL); "PENAL E PROCESSUAL PENAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. VÍTIMA MENOR DE QUATORZE ANOS. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. PALAVRA DA VÍTIMA. VALOR PROBANTE. DESCLASSIFICAÇÃO. CONTRAVENÇÃO DE IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR. IMPOSSIBILIDADE 1) Nos crimes sexuais, cometidos quase sempre às ocultas, inexiste fragilidade probatória quando a autoria delitiva foi comprovada pela palavra da vítima, em harmonia com os demais elementos de certeza dos autos; 2) omissis.(317672520058030001 TJ/AP. Apelação Criminal. Relator: Desembargador LUIZ CARLOS, Data de Julgamento: 31/05/2011, CÂMARA ÚNICA; Publicação: no DJe N.o 104 de 09 de Junho de 2011).
É essencial analisar as condições particulares de desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, somadas à situação de trauma pelo abuso sexual sofrido, que exigem competências interdisciplinares dos diversos profissionais que realizam o seu atendimento perante a Justiça. Os estudos revisados salientam a necessidade de capacitação, treinamento técnico e preparação emocional constante desses profissionais para intervenções adequadas com as crianças. Por sua vez, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, em seu Art. 3.1, salienta que “todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.” (BRASIL, 1990)
São esses aspectos que, ao longo dos anos, trouxeram a necessidade de se tratar o depoimento judicial da criança e do adolescente vítima de violência sexual de forma mais meticulosa, assegurando que não sejam submetidos a ambientes hostis e a situações que tornem ainda mais difícil a abordagem do abuso vivenciado.
5 O SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE VÍTIMA DE VIOLÊNCIA SEXUAL
A partir da vigência da Constituição Federal de 1988 e, especialmente, com a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, que consagraram a doutrina da proteção integral e a prioridade absoluta da população infanto-juvenil, ganha destaque a lei brasileira em razão das normas de proteção aos crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes, em especial a Lei nº 13.431, que “normatiza e organiza o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, cria mecanismos para prevenir e coibir a violência” (Artigo 1º da Lei nº 13.431/2017). A Lei de autoria da Deputada Federal Maria do Rosário, do Rio Grande do Sul, primeiro Estado a implantar o depoimento acolhedor, tem relevância ímpar para o Direito da Criança e do Adolescente.
5.1 O DEPOIMENTO ESPECIAL E A ESCUTA ESPECIALIZADA
Com a promulgação da Lei nº 13.431, de 04 de abril de 2017, sobreveio a necessidade de integração entre o sistema de justiça criminal e a Rede de Proteção à criança e ao adolescente, com a previsão de imperativos para o alcance de uma escuta especializada, procedimento extrajudicial previsto na norma, que se limita ao relato necessário para o cumprimento de sua finalidade: uma adequada elaboração dos fatos, identificando indícios da situação de violência sofrida, de modo que a vítima possa discorrer sobre o fato vivido, de forma livre e espontânea, sendo narrados, de forma voluntária, elementos importantes à investigação, como autoria, local, data e circunstâncias do fato, sendo realizadas perguntas pela autoridade policial ao final de suas declarações, se necessário para fins de maior elucidação do caso (BRASIL, 2017).
A supracitada Rede de Proteção foi expressamente instituída pela Lei, que enxergou a necessidade da criação e organização de um órgão de proteção à criança e ao adolescente, tendo em vista a necessidade da realização da escuta especializada das vítimas e testemunhas (art. 7º), com fins de coordenar a ação dos demais, zelando para que todas as necessidades daquelas sejam prontamente atendidas por quem de direito (art. 14, §2º).
A Lei nº 13.431/2017 teve o cuidado de estabelecer duas formas de ouvir crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência: o depoimento especial e a escuta especializada, que são reconhecidas como métodos válidos e juridicamente admissíveis para coleta de prova junto aos mesmos. Nesse sentido, o depoimento especial e a escuta especializada constituem-se como as duas formas preferenciais para que crianças e adolescentes sejam ouvidas nos processos judiciais nos quais configurem como partes ou testemunhas (DIGIÁCOMO, M. 2018) (DIGIÁCOMO, E. 2018)
A escuta especializada, segundo os autores supracitados, poderá ser empregada pelos próprios técnicos a serviço da Secretaria de Segurança Pública e/ou do Poder Judiciário, quando a realização do depoimento especial não for recomendada ou, não puder ser realizada no caso em concreto. Conforme ensinam:
Ao contrário do que ocorre com o depoimento especial, que é realizado sob a supervisão direta da autoridade policial ou judiciária (cf. art. 8º desta Lei) e segue um rito próprio definido pelos arts. 12 e seguintes desta Lei, a escuta especializada, a princípio, é efetuada no âmbito da “rede de proteção” à criança e ao adolescente (que o município tem o dever de articular e manter), e não possui uma “forma” ou rito específico a ser observado, cabendo aos profissionais responsáveis, no entanto, seguir os protocolos (como o NICHD - National Institute of Child Health and Human Development) e as normas técnicas aplicáveis. (DIGIÁCOMO, M. 2018, p.38) (DIGIÁCOMO, E. 2018, p. 38)
Portanto, o depoimento especial figura como um procedimento de oitiva estruturada subsidiário, que deve ser utilizado em situações em que não se faz possível e/ou suficiente a realização da escuta especializada. Deve-se levar em conta, ainda, que o depoimento especial tem caráter preferencial para coleta da prova testemunhal junto a crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, contudo, a oitiva perante a autoridade judiciária, com fulcro no art. 12, §1º da multicitada Lei, somente deve ocorrer quando requerido ou se entender adequado ao caso concreto. Do contrário, o primordial é que o vulnerável seja ouvido apenas uma vez, por meio da escuta especializada.
5.2 A VITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA E O “DEPOIMENTO SEM DANO”
O texto legal inova quando aborda a vitimização secundária, ou revitimização, da criança e do adolescente vítima de violência sexual, como sendo uma forma de violência institucional (art. 4º da Lei nº 13.341/2017), comprometendo-se com o oferecimento de suporte psicológico que proporcione ao ofendido um ambiente em que possa se sentir livre de culpas e temores comuns à espécie do crime e, se possível, colaborando para a superação de traumas. Para isso, faz-se necessária a articulação da Justiça Criminal com a chamada “Rede de Proteção”, de modo que a vítima seja ouvida em uma única oportunidade e o quanto antes, conforme o art. 11 da citada Lei.
Evidencia-se a necessidade de articulação da Rede de Proteção e dos órgãos de persecução penal, a fim de que tão logo sejam detectados indícios da violência durante a escuta especializada, evitando o surgimento de distorções da memória no depoimento infantil, visto que, segundo Manzanero (2010, n.p) “a precisão da memória infantil para eventos autobiográficos pode variar, dependendo de fatores como o nível de estresse ou carga emocional implícito na codificação e na sequência da recuperação e do evento vivido”.
A estruturação do fluxo de atendimento para que o ato seja realizado uma única vez torna o processo menos doloroso para a vítima e contribui para a preservação de eventuais detalhes sobre a violência vivida, os quais são indispensáveis para a elucidação do caso, visto que, principalmente com as crianças, o prolongamento do tempo, além de promover o esquecimento e viabilizar o surgimento de distorções de memória, associa-se à ocorrência de inúmeras mudanças no desenvolvimento da compreensão de si e dos outros, o que pode vir a influenciar a construção de falsas memórias e alterar a exatidão de recordações (Pinho, 2010, p. 477).
As falsas memórias compreendem um episódio causado pelo lapso temporal, onde muitas vezes o delito ocorre em uma época e custa a ser descoberto ou denunciado e, por consequência, a criança sofre a perda da memória ou até mesmo pense ter vivido algo que não viveu. De acordo com Pisa (2007, p. 465), falsas memórias são as recordações de algo que jamais aconteceu, em que a criança narra como verdadeira uma situação mal interpretada que a leva a acreditar que foi vítima de um abuso sexual. Portanto, esse é um aspecto que ressalta a necessidade de ser realizado o quanto antes a escuta especializada da criança.
O artigo 11 da multicitada norma impõe que, uma vez realizada a oitiva da vítima em sede de produção antecipada de prova, não será admitida a tomada de novo depoimento especial, salvo quando justificada a sua imprescindibilidade pela autoridade competente e houver concordância da vítima ou da testemunha, ou de seu representante legal (BRASIL, 2017). Essa determinação tem o escopo de evitar que a criança seja revitimizada através de atos em que necessite verbalizar ou demonstrar mediante gestos as práticas sexuais em que se supõem os abusos, visto que sem a observância do procedimento previsto no artigo 12 da mesma norma, pode configurar, em tese, “violência institucional”, conforme definição contida no artigo 5º, inciso I, do Decreto nº 9.603/2018 e no art. 4º, inciso IV, da multicitada Lei, que é aquela praticada por instituições públicas ou conveniadas, como delegacias de polícia, hospitais, centros de apoio, Judiciário e Ministério Público.
A Lei 13.431/2017 estabelece um procedimento mais humanizado de ouvir a criança e adolescente vítima ou testemunha de violência sexual, com a maior celeridade possível e em ambiente adequado. Foi a partir da Lei que nasceu o denominado “Depoimento Sem Dano”, técnica que visa evitar o “dano secundário” a que está sujeita a vítima que é entrevistada sobre o mesmo fato por mais de uma vez. Segundo Cezar (2007, p. 60), a inquirição em juízo de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual apresentava dificuldades no que concerne à confirmação dos fatos alegados em fase policial, visto que muitas vezes não eram confirmados e nem corroborados em juízo.
Tabajaski (2010, p. 63), ressalta que, ao serem entrevistadas uma ou duas vezes, as crianças tendem a dar detalhes que na segunda vez não foram mencionados, detalhes esses que podem vir a ser imprecisos, muitas vezes pela inadequação da entrevista realizada com o uso de questionamentos sugestivos.
A antecipação na coleta do depoimento especial mostra-se relevante para a preservação da qualidade da prova, haja vista que o decurso do tempo tende a fazer com que a vítima, enquanto criança ou adolescente, esqueça detalhes relevantes sobre o fato, sem mencionar a possibilidade de interferências externas que possam “contaminar” seu relato, como a violência psicológica caracterizada pela alienação parental, que afeta o desenvolvimento psíquico e/ou emocional do menor por um conjunto de sintomas, dentre eles a manipulação por parte do genitor alienador, que prejudica a consciência e comportamento dos filhos, objetivando impedir, dificultar ou até mesmo destruir vínculos com o genitor alvo da alienação (VELLY, 2010).
Portanto, a realização de um único depoimento especial, mediante colheita antecipada de provas, preserva as memórias e colaboram para uma elucidação mais eficaz do caso, contribuindo, assim, para a celeridade do processo, sobretudo em questões concernentes às provas urgentes, que são ameaçadas de desaparecimento. Segundo Schacter (2010, p. 25), o decorrer do tempo entre o evento e o momento em que se presta o depoimento influencia diretamente no esquecimento dos detalhes.
5.3 DA IMPLEMENTAÇÃO DA LEI Nº 13.431/2017
A Lei nº 13.431/2017 sistematizou a preservação da dignidade da vítima de violência sexual, de modo que esta não seja submetida a mais de um depoimento, sendo, portanto, importante avanço para o ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, a implementação de tal política de atendimento persiste sendo um desafio. De início, é fundamental obter, junto aos gestores competentes, informações acerca da estrutura disponível para o atendimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência (assim como suas respectivas famílias), de sua forma de atuação e da ''qualidade e eficácia'' do atendimento prestado, diante da demanda existente.
Nos moldes da Lei nº 13.431/2017, é fundamental que exista, dentre os órgãos que compõem a ''rede de proteção'', um que seja encarregado do atendimento de vítimas de violência sexual, ao qual incumbirá garantir a urgência e a celeridade necessárias ao atendimento de saúde e à produção probatória.
É nesse contexto em que inserimos a escuta especializada, procedimento que cabe ao órgão (técnico), indicado pela ''rede de proteção'', que servirá de ponto de partida para uma série de providências tanto na esfera protetiva, no que diz respeito à vítima, quanto repressiva, que se refere ao autor da violência. Para tanto, a aplicação da antecipação de prova é a medida que se requer, com o máximo de urgência, de modo que a criança ou o adolescente possa receber toda as intervenções protetivas de maneira integral e célere, de preferência em um mesmo local.
A notícia de violência é o pontapé inicial do rito cautelar de antecipação de prova, no qual a Rede de Proteção, através do órgão capacitado para tanto, poderá realizar a escuta especializada para, então, ser comunicado à autoridade policial para registro de boletim de ocorrência ou, caso não seja realizada neste órgão, que se proceda o encaminhamento da criança ou do adolescente para atendimento em saúde e serviço de referência da assistência social, comunicando o Conselho Tutelar, conforme art. 15, inciso II da supracitada Lei.
Uma vez instaurado o procedimento policial com tramitação prioritária, serão colhidas as informações de praxe pela autoridade policial, através da oitiva de testemunhas e do acusado, do encaminhamento para a realização de perícias, dentre outras diligências (art. 5º, I e VI, 8º a 10º da Lei 13.431/2017).
Os artigos mencionados também explicam que o depoimento da criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência sexual poderá ser realizado em sede de investigação policial, desde que a autoridade policial o considere necessário, diante das circunstâncias do caso concreto, à elucidação do fato e à adoção das providências de competência do Delegado de Polícia, atentando para o direito de ser ouvido ou de permanecer em silêncio, assim como para realização da escuta por profissional treinado, em local apropriado e acolhedor, que garanta a privacidade e de forma que evite o contato da vítima com o suspeito de ter cometido o crime.
Caso constatado risco à criança ou ao adolescente, a autoridade policial representará ao Juízo Criminal, em qualquer momento do procedimento de investigação, pela concessão das medidas de proteção elencadas no art. 21 da Lei 13.341/2017. A autoridade policial, por sua vez, deverá analisar a representação pela aplicação de medidas de proteção, adotando cautelas necessárias para averiguar a eventual existência de decisão anterior sobre o mesmo fato.
Diante da apuração de elementos mínimos de indícios de autoria e materialidade, a autoridade policial poderá representar, de imediato, ao Ministério Público, pela produção antecipada de prova para a coleta do depoimento especial judicial, caracterizado pela escuta especializada, sem o prejuízo de prosseguir investigando o fato. Segundo o Ministério Público do Paraná, nos casos que envolvem violência sexual da criança ou do adolescente, sempre que a demora puder causar dano ao desenvolvimento da vítima, representará pela tomada de seu depoimento especial judicial, através da cautelar de antecipação de prova.
Assim, dando prosseguimento ao rito, o Ministério Público, diante da representação pelo ajuizamento da ação cautelar de antecipação de prova para tomada do depoimento especial, de forma célere, deverá encaminhar o pedido de diligências complementares, para fins de ajuizamento da ação cautelar e, em seguida, ajuizará a ação perante o Juízo Criminal, se entender imprescindível a escuta da criança/adolescente para elucidação do fato. Se já houver elementos, elaborará manifestação pela desnecessidade da tomada do depoimento, oferecendo denúncia desde logo, com comunicação à autoridade policial, para finalização do procedimento policial.
Entretanto, existe uma alternativa para este procedimento, em que uma vez registrada a ocorrência perante a autoridade policial, esta pode requisitar a produção antecipada de prova e outras medidas de proteção diretamente ao Juiz, podendo este indeferir ou determinar o agendamento do Depoimento Especial, sendo intimados a vítima e seu representante, o Ministério Público e a Defesa, conforme o artigo 21 da supracitada Lei.
Após a colheita dos depoimentos, realiza-se o encaminhamento para o Juízo Cível para verificação das medidas protetivas cabíveis, remetendo-se a ação cautelar de produção de prova à autoridade policial para instrução do Inquérito Policial, a ser concluído e encaminhado ao Ministério Público, que poderá propor o arquivamento ou ajuizar a Ação Penal no juízo prevento, à qual designará a audiência de instrução e julgamento para, posteriormente, dar conclusão ao processo por meio de sentença condenatória ou absolutória.
Portanto, resta claro tratar-se de um procedimento mais célere, que garante à Justiça a colheita antecipada da prova que, como visto, é extremamente importante dos casos de violência sexual sofrida por criança e adolescente.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo teve como objetivo analisar o caráter investigativo do depoimento especial da vítima de estupro de vulnerável, bem como ressaltar a relevância da aplicação do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima de violência sexual, introduzido pela Lei nº 13.431/2017.
Cumpre-se ressaltar o impacto negativo que a pandemia da Covid-19 causou quanto à condição do vulnerável, propiciando ambientes facilitadores do abuso sexual e, em consequência do isolamento social, enquadrando tais crimes em um alto grau de subnotificação.
De todo o exposto, cumpre-se ressaltar as características que tipificam o crime de estupro de vulnerável, estabelecido pelo critério objetivo da idade, onde as vítimas são menores de 14 (quatorze) anos.
Diante da observância de tais características e visando garantir os direitos da criança e do adolescente, com o intuito de promover um ambiente acolhedor e coibir a vitimização secundária, o estudo em tela ressalta a técnica do “Depoimento Sem Dano”, um sistema de escuta judicial que integra a polícia, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Poder Judiciário.
Em meio a isso, o estudo demonstrou que a opção pela técnica do “Depoimento Sem Dano” é também mais eficaz para o julgamento dos casos concretos, vez que a oitiva realizada uma única vez possui uma carga maior de veracidade que, pelo decurso do tempo, pode sofrer a interferência de falsas memórias e detalhes imprecisos.
Portanto, a técnica almeja tornar o procedimento judicial menos doloroso para a vítima, evitando que esta precise reviver traumas e manter memórias do abuso sexual sofrido, assim passando por uma nova vitimização.
Com isso, a criança e o adolescente vítimas de abuso sexual merecem ter suas singularidades respeitadas inclusive no âmbito do Processo Penal e sobretudo durante a colheita de sua oitiva. Através da Escuta Especializada e do Depoimento Especial, realizados em ambiente seguro e com profissionais especializados, a essa vítima é assegurada a proteção integral disposta no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição Federal.
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Graduanda em Direito pelo Instituto Metropolitano de Ensino - IME, Centro Universitário Fametro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALVES, Gabriela dos Santos. O caráter investigativo do depoimento especial e a implementação da Lei nº13.431/2017 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 nov 2021, 05:52. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57635/o-carter-investigativo-do-depoimento-especial-e-a-implementao-da-lei-n13-431-2017. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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