RESUMO: Resquícios do modelo patriarcalista que predominou desde a formação das civilizações, renderam uma cultura exacerbada de valores conservadores que construiu na sociedade uma barreira que aparta e diferencia os gêneros, fazendo prevalecer a supremacia do homem sobre a mulher. Reflexos dessa condição de desigualdade se arrastaram pelos séculos, rendendo frutos que, até os dias de hoje, desencadeiam contínuos casos de violência contra mulheres, que beirando ao extremo, vitimam de forma fatal inúmeras destas no cotidiano. Contudo, importa ressaltar, que em termos legais, houve certa evolução, quando se direcionou a atenção aos crimes de homicídio praticados contra as mulheres, em razão de gênero, de modo específico, inserindo na legislação, um novo tipo penal, denominado feminicídio (Lei n° 13.104/2015). Incide o aludido instrumento sobre as raízes discriminatórias, a invisibilidade e a impunidade que norteiam os crimes contra as mulheres. Não obstante, o recente diploma evidencia a responsabilidade do Estado, que muitas vezes compactua com o agravamento de tal problemática, seja por ação ou omissão. Nessa conjuntura, pretende-se com esta proposta, analisar aspectos gerais da violência, dedicando uma abordagem especial à violência contra mulheres, destacando as condicionantes (fatores) que fomentam esse ciclo perverso. Para tanto, este estudo caracteriza-se por meio de uma pesquisa bibliográfica, de caráter qualitativo, com objetivo exploratório e, de finalidade descritiva.
Palavras-chave: violência, mulher, feminicídio (Lei n° 13.104/2015).
ABSTRACT: Remains of the patriarchal model yielded an exacerbated culture that instilled in society a barrier that separates and differentiates the genres, prevailing the supremacy of the man over the woman. Reflections of this condition of inequality have dragged on for centuries, yielding fruits that, to this day, trigger continuous cases of violence against women, which border on the extreme, victimize in a fatal way countless of these in daily life. However, it is important to note that, in legal terms, there was a certain evolution, when the crimes of homicide practiced against women, by reason of gender, were specifically introduced, inserting in legislation a new criminal type, called feminicide (Law n. 13.104/2015). The aforementioned instrument focuses on the discriminatory roots, invisibility and impunity that guide crimes against women. Nonetheless, the recent diploma evidences the responsibility of the State, which often agrees with the aggravation of such problems, whether by action or omission. Now, this proposal intends to analyze general aspects of violence, focusing on violence against women, highlighting the constraints (factors) that foment this perverse cycle. Therefore, this study is characterized by a bibliographical research, with a qualitative character, with an exploratory objective and, for a descriptive purpose.
Keywords: violence – woman – feminicide (Law n. 13.104/2015).
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos tempos, no cenário da realidade brasileira a violência tem tornando-se cada vez mais latente, refletindo em um panorama de insegurança generalizada, revelando crimes que chocam e assustam a sociedade, que amedrontada clama atenção do Estado no sentido de apontar soluções para reversão desse caos que se instaurou no país.
Refletida nos atos de intolerância, agressividade por quaisquer motivos, a violência fez eclodir no cenário atual, diversas de suas manifestações. Em sua forma mais extrema, mortes violentas todos os dias são noticiadas e, dentre as vítimas fatais, estão mulheres.
Todavia, sabe-se que não é fato recente evidenciar a mulher nesse contexto de violência. Ao contrário, é possível observar que ao longo da história da humanidade, fatos pontuais comprovam o desejo de supremacia do homem em relação à mulher. Na época do patriarcalismo, imbuído de poderes e privilégios, ao homem era conferido inclusive o direito de determinar sobre a vida ou a morte da mulher, como se objeto ou propriedade sua fosse. À mulher restava a condição de ser inferior, ora submissa aos desígnios do homem, outra de agressões físicas (castigos corporais), exploração de todas as formas (sexual, tarefas domésticas) e etc.
Fatos dessa natureza corroboram no sentido de que a desigualdade de gênero é uma questão antiga, que transcende os primórdios da humanidade. E, a batalha travada entre homens e mulheres, ainda que não seja em um formato declarado, existe e persiste na sociedade.
A luta das mulheres na conquista de seu espaço com direitos foi incessante, muitas precisaram passar por situações cruéis e, até fatais que foram os elementos propulsores para que não mais se calassem. As marcas que trouxeram como bagagem refletiam a angústia, os medos, as frustrações e desejos reprimidos há tempos. A vulnerabilidade incitou a coragem de alguém que apenas desejava ter visibilidade perante a sociedade, ter voz e ser ouvida, enfim constituir-se um sujeito de direitos e deveres.
Em que pese a discussão proposta, inicialmente se concentrará em abordar a violência em linhas gerais, pontuando aspectos mais relevantes. Em seguida, dispõe-se a compilar principais momentos da história do Brasil em que a violência contra as mulheres ganhou proporções, identificando na história, a origem da configuração em que o homem se sobrepõe na condição de dominante, bem como evidenciar o momento em que a mulher conseguiu reverter, ao menos em parte, o desfecho dessa história de opressão.
Resgatar a origem da violência contra a mulher, as dimensões do passado e como se apresenta nos dias de hoje, ilustrando com exemplos reais casos de grande notoriedade, pela repercussão que tiveram e que serviram, sobretudo para impulsionar o combate da violência contra as mulheres, como em que foram vítimas fatais de seus ex-companheiros, a jovem Eloá e a advogada Mércia Nakashima. Não obstante, não se podem ignorar tantos outros casos que ficaram no anonimato, mulheres que sofreram e sofrem caladas no cotidiano, dentro de suas casas, no trabalho, ou outros ambientes de seu convívio, com seus próprios companheiros, pais, filhos, irmãos, ou estranhos, o que reforça a necessidade de se reverter esse quadro alarmante de violência que o país apresenta, sendo inconcebível a ideia da existência dessa problemática ainda se procrastinando. No decorrer deste, serão destacados ainda os fatores determinantes que desencadeiam essas agressões, tais como: ciúmes, punição a traições ou inconformismo com o fim do relacionamento, entre outros. Além disso, insta explanar sobre as consequências da violência para as vítimas.
No ápice da discussão, considerando que a desigualdade de gênero é causa direta de mortes violentas de mulheres, dedica-se a atenção ao feminicídio, pontuando as causas e efeitos deste crime, declarado hediondo desde o ano de 2015 no país, que passa a configurar objeto deste estudo.
Por fim, cabível trazer à baila os instrumentos jurídicos que foram propulsores na defesa das mulheres vítimas de violência. Nesse contexto, merece destacar a Lei n° 13.104/2015, que incluiu o feminicídio no artigo 121, do Código Penal.
Configura-se este estudo, uma pesquisa de abordagem qualitativa, sendo descritiva quanto aos seus objetivos, seguindo o método dedutivo ao trazer literaturas técnicas e específicas sobre o assunto discutido. Ademais, constitui-se uma pesquisa bibliográfica com fundamentação teórica orientada por diplomas legais do ordenamento jurídico, como a Constituição Federal, doutrina, a Lei Maria da Penha, Código Penal, além de tomar como aporte trabalhos científicos que tratam desta temática.
Pretende-se com esta obra incitar a sociedade sobre a importância de se rever padrões e conceitos do passado, romper com paradigmas que inferiorizam a mulher, e propagar parâmetros legais que a fortaleçam diante de seus agressores. Para tanto, deve-se ainda, cobrar do Estado seu dever de promotor da integridade dos seus cidadãos por meio da implementação de políticas públicas de assistência, ações efetivas de prevenção, sobretudo garantindo a aplicabilidade dos instrumentos legais.
2 CONTEXTOS HISTÓRICO E DIMENSÕES DA VIOLÊNCIA
No Dicionário Aurélio, Ferreira (2010, p. 2065), define a violência como: “qualidade de violento; ato violento; ato de violentar; constrangimento físico ou moral; uso da força; coação”. Krug et al. (2002, p. 5) ressaltam o conceito aplicado pela Organização Mundial de Saúde compreendendo a violência como:
O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.
Atrelada a um conceito mais analítico, a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, do Ministério da Saúde, define violência como: “as ações humanas que afetam a integridade e a saúde física, moral, mental ou espiritual” (TOLEDO, 2013, p. 6).
No mesmo sentido, a explicação de Minayo e Souza (1998, p. 513) mostram que “a violência consiste em ações humanas de indivíduos, grupos, classes, nações que ocasionam a morte de outros seres humanos ou que afetam sua integridade física, moral, mental ou espiritual”. Esmiuçando estudos sobre a origem da violência, regressa-se à Era Primitiva, período em que é possível evidenciar agressividade instintiva do homem, que o conduzia para sobreviver na natureza, seja com a caça ou a pesca. Neste ponto, Pesavento (2006, p. 1) traz como reflexão que “a violência é antiga, parece ser mesmo congênita na trajetória do homem sobre a terra, ou mesmo antes, se remontarmos aos mitos ancestrais [...]”.
Possível afirmar que não houve ou há sociedade sem violência, ao contrário, o que existiram e existem são sociedades mais violentas que outras; cada uma com sua história (MINAYO, 1994, p. 7). A violência é histórica, “é de todos e está em todos” (GIRARD, 1990, p. 10).
Analisando a trajetória da violência, observa-se que constitui está uma problemática que fez e continua fazendo parte da conjuntura social, ganhando novas dimensões, está inserida entre os homens, enraizada em muitas culturas. Nessa perspectiva, a desigualdade desponta como fator primordial que evoca a violência a tal ponto que em muitos lugares é difícil erradicá-la.
Disso emerge que o exercício arbitrário do poder, a intolerância diante das diferenças, a desumanização do outro, a banalização de valores como a vida, a dignidade e a liberdade tão presentes no mundo atual vêm produzindo desigualdades crescentes, fazendo com que grupos, nações e indivíduos se tornem mais vulneráveis que outros ao sofrimento e a morte (MINAYO, 1994).
Nas sociedades de hoje, muito embora exista a comoção humana no sentido de praticar o bem, em paralelo afora também aspectos negativos que condicionam o indivíduo a disputas intermináveis, seja por poder, dinheiro, religião, política, entre outros, como conseqüência o mundo tem seguido padrões de brutalidade, rivalidades entre os pares, especialmente os mais vulneráveis.
Na concepção de Pereira et al. (2001, p. 96) a violência se traduz nos:
[...] atos com intenção de prejudicar, subtrair, subestimar e subjugar, envolvendo sempre um conteúdo de poder, quer seja intelectual quer seja físico, econômico, político ou social. Atingem de forma mais sutil os seres mais indefesos da sociedade, como crianças e adolescentes, e também as mulheres sem, contudo, poupar os demais.
De acordo com Rocha (1996, p. 10) analisa que, a violência, sob todas as formas de suas inúmeras manifestações, pode ser considerada como umas vis, uma força que transgrede os limites dos seres humanos, tanto na sua realidade física e psíquica, quanto no campo de suas realizações sociais, éticas, estéticas, políticas e religiosas. Em outras palavras, a violência, sob todas as suas formas, desrespeita os direitos fundamentais do ser humano, sem os quais o homem deixa de ser considerado como sujeito de direitos e de deveres, e passa a ser olhado como um puro e simples objeto.
Quanto à classificação, a Organização Mundial de Saúde (2002) classifica a violência por tipo, podendo ser: auto infligida (suicídio, auto abuso); interpessoal (família e parceiros íntimos e violência comunitária); violência coletiva (violência social, política e econômica).
a) violência auto infligida: são assim chamados os suicídios, as tentativas e as ideações de se matar e de se automutilar. Muitas vezes esses atos podem ser relacionados a momentos de rupturas no ciclo de vida como adolescência e velhice, graves crises econômicas que levam ao desemprego e a poucas expectativas de futuro, doenças graves ou terminais, transtornos mentais severos e uso abusivo de substâncias psicoativas, entre outros. Esse tipo de violência, assim como os homicídios, expressa sintomas destruidores da sociedade.
b) violência interpessoal: é uma forma de relação com o outro baseada na prepotência, discriminação, intimidação, raiva, vingança e inveja, que costuma produzir danos morais, físicos (inclusive morte) e psicológicos. Ela difere do conflito que faz parte das relações sociais e humanas. O problema é quando o conflito é transformado em intransigência e, pelo uso de autoritarismo, maus-tratos, ameaças ou provocando guerras ou mortes, exige que o outro se cale ou se anule. Podem ser atingidos: filhos, companheiros, subalternos, colegas de trabalho, pessoas de outra classe, grupo social ou país.
c) violência coletiva: caracteriza-se por qualquer distinção, exclusão ou restrição baseada em atributos como raça, classe social, crença religiosa, que anule ou prejudique o exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública. São exemplos: conflitos violentos entre nações e grupos, movimentos de grandes grupos de pessoas desalojadas, guerras entre gangues e vandalismo de massas. Faz parte desse tipo, a violência estrutural ou social que se refere à manutenção das desigualdades sociais, culturais, de gênero, etárias e étnicas que produzem a miséria, a fome e várias formas de submissão e exploração de umas pessoas pelas outras. É também o solo fértil para as principais formas de relações violentas (KRUG et al, 2002, p. 6).
Seguindo ainda a OMS (2002), a violência interpessoal pode ser intrafamiliar e comunitária:
a) Violência intrafamiliar: também chamada de violência doméstica, diz respeito aos conflitos familiares transformados em intolerância, abusos e opressão. Tem muitas manifestações, mas as mais comuns são as que submetem as mulheres, crianças e idosos à autoridade do pai, marido e provedor. Também colocam as crianças e jovens sob o domínio (ao invés da proteção) dos adultos;
b) Violência comunitária: é aquela praticada entre indivíduos sem laços de parentesco, sejam eles conhecidos ou desconhecidos. É cometida por pessoas em atos de violência gratuita, estupro e outras violências sexuais e também por instituições públicas ou privadas como escola, serviço de saúde, banco, condomínio, dentre outros.
Na classificação de Toledo (2013, p. 6), além dos indicados pela OMS, são considerados ainda como tipos de violência: a violência criminal que se refere às agressões às pessoas e aos seus bens; a violência institucional, que ocorre dentro das instituições por meio de regras, normas de funcionamento e relações burocráticas, reproduzindo as injustiças da estrutura social; e, a violência cultural, a que se expressa por meio de discriminações e preconceitos que de tão repetidos e reproduzidos se tornam comuns e naturais na sociedade. Nesta última, destaca-se dentre os tipos mais frequentes e graves:
a) Violência de gênero: é uma forma específica de violência cultural que se constitui em dominação, opressão e crueldade construídas e reproduzidas no dia a dia das relações de poder desigual entre os gêneros. É exercida principalmente contra as mulheres na forma de machismo. b) Violência racial/étnica: é uma das mais cruéis formas de violência cultural e ocorre pela discriminação de uma pessoa ou grupo pelos seus atributos étnicos como cor da pele, formato de partes do corpo, textura do cabelo, entre outros. Em geral, vem acompanhada pela desigualdade social e econômica que, no Brasil, está historicamente relacionada à escravidão de pessoas de origem africana (TOLEDO, 2013, p. 9).
Quanto à natureza dos atos violentos, a OMS (2002) evidencia as formas: física, sexual, psicológica, envolvendo privação ou negligência, em que:
a) violência física: constitui-se como o uso da força para produzir lesões, traumas, ferimentos, dores e incapacidades em outra pessoa. Ocorre em todos os ambientes, principalmente no espaço familiar e nas instituições de “proteção”. Um exemplo é o castigo corporal, usado para “educar” crianças e adolescentes, o qual deteriora a relação entre pais e filhos e ensina um modelo agressivo de solução para os problemas, quando o ideal seria buscar o diálogo;
b) violência sexual: ato ou jogo que ocorre nas relações hetero ou homossexuais e visa a estimular a vítima ou utilizá-la para obter excitação sexual nas práticas eróticas, pornográficas e sexuais, por meio de aliciamento, violência física ou ameaças. Suas principais vítimas são crianças e adolescentes, mas ocorre em todas as fases do ciclo de vida;
c) violência psicológica: se refere a agressões verbais ou gestuais com objetivo de aterrorizar, humilhar, amedrontar a vítima, restringir sua liberdade ou isolá-la do convívio social. São exemplos: testemunhar violências, ser envolvido na relação conflituosa entre os pais ao ponto de rejeitar um deles por influência do outro, ser submetido a situações humilhantes e constrangedoras no trabalho, entre outras;
d) negligência, abandono e privação de cuidados: caracteriza-se pela ausência, recusa ou falta de atendimento a alguém que deveria receber atenção e cuidados. Ela pode ocorrer mesmo quando há recursos disponíveis para a família ou responsável. Um tipo específico é a negligência emocional, que acontece quando os responsáveis, independente da justificativa, deixam de dar apoio afetivo e psicológico à criança, ao adolescente ou à pessoa idosa. O abandono é a forma mais grave de negligência (KRUG et al., 2002, p. 6).
Não obstante, segundo Minayo (1994, p. 7) classifica a violência em:
a) violência estrutural, que é a violência dentro das estruturas sociais organizadas e institucionalizadas, tais como a família e os sistemas econômicos, sociais, políticos e culturais;
b) violência de resistência, que surge como possíveis reações manifestadas contra a violência estrutural;
c) violência da delinquência, que está presente nos considerados atos ilegais em determinados grupos sociais, além de estar também associada à violência estrutural.
Nesse contexto, importa frisar que todas as formas de violência acometem grupos de pessoas mais vulneráveis, como crianças e adolescentes, mulheres, idosos, assim como outros. Para conseguir abordar de modo mais específico e contundente determinado grupo, este estudo direcionará a atenção às mulheres, a violência praticada contra estas, compreendida como violência de gênero, sobretudo em sua mais perversa forma, que é o feminicídio, mesmo crime de homicídio tipificado no artigo 121, do Código Penal, que por se tratar de uma questão pontual, bastante recorrente, acabou ganhando tal denominação. Esse tipo de violência muitas vezes foi e ainda é visto como questão cultural, posto que para muitos, é normal, natural o cometimento de tal ato. Por assim ser, merece uma análise mais apurada sobre a origem dessa problemática.
3 ANTECEDENTES DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: A DESIGUALDADE ENTRE OS GÊNEROS
No decorrer dos séculos, evidencia-se por meio de relatos históricos que desde muito tempo a mulher vivenciou inúmeras formas de violências, inclusive que resultaram em morte. Procurando a origem que culminou essa configuração, interessa pontuar um aspecto relevante: a igualdade, ou melhor, a desigualdade entre gêneros.
Nota-se que a partir do momento em que deixou de existir a igualdade, cedeu-se lugar à violência. Situando-se na cronologia da história geral, estudos dão conta que nos tempos remotos ainda não havia desigualdade entre homens e mulheres, logo, não existia violência. A solidariedade era garantia de sobrevivência, pois que a união era necessária para o bem comum. Alambert (2004, p. 27) explica que:
Na aurora da humanidade não podemos falar na existência de desigualdades entre o homem e a mulher. Naquele tempo, não existiam povos, nem Estados separados; os seres humanos viviam em pequenos grupos (hordas) e, depois em famílias e tribos. [...] os seres humanos tinham que se manter agregados, solidários entre si, para sobreviver e se defender dos animais ferozes e das intempéries. Quem se marginalizava perecia. Logo, não havia uma superioridade cultural entre homens e mulheres.
Com a formação das comunidades, o papel da mulher ganhou mais relevância, cabendo-lhe trabalhar a terra, domesticar animais, cuidar das crianças, velhos e doentes, “além de criar vasilhames, utilizar o fogo, preparar unguentos, poções, enquanto o homem ia à caça de alimentos” (ALAMBERT, 2004, p. 27). E, assim, a igualdade deixou de existir.
Entretanto, na concepção de Cabral (2008, p. 15-16), é com o surgimento das estruturas familiares, adotando o modelo patriarcal, que inflama a desigualdade entre os pares:
A organização familiar é produto da organização histórica do ser humano. Isso porque, devido à necessidade de reprodução da espécie eles acabaram encontrando diferentes formas de relação entre si. [...] Durante todo processo histórico a sociedade vivenciou diferentes formas de organização doméstica, entre elas, encontra-se o patriarcado, o qual “centra-se na figura masculina”.
De acordo com Saffioti (2004, p. 49) aponta como um dos elementos nucleares do patriarcado, “o controle da sexualidade feminina, a fim de assegurar a fidelidade da esposa ao marido”. O homem pretendia, com isso, garantir a “transmissão da herança a mãos legítimas”. Para isso, passou a “vigiar” suas mulheres “para terem certeza da sua prole”.
Além disso, Del Priore (2006, p. 33) argumenta que:
É provável que os homens tratassem suas mulheres como máquinas de fazer filhos, submetidas às relações sexuais mecânicas e despidas de expressões de afeto. Basta pensar na facilidade com que eram infectadas por doenças venéreas, nos múltiplos partos, na vida arriscada de reprodutoras.
Com o mesmo raciocínio sobre a desigualdade entre os gêneros ter emergido a partir da formação das famílias, Morin (1984) apud Januário (2016, p. 82) “sugere que a afirmação da superioridade masculina coincide com o nascimento da família enquanto microestrutura social”. Nesse aspecto, em consequência disso, as mulheres acabaram por tornarem-se submissas a seus maridos, oprimidas dentro da própria estrutura familiar, a “obediência da esposa era lei” (DEL PRIORI, 2006, p. 33).
Por assim ser, não é difícil crer que com essa condição de supremacia do homem sobre a mulher, sobressaiu-se a desigualdade entre os gêneros. O homem assume a postura de mais forte, poderoso e, como marido deveria ser dominador, insensível, egoísta. À mulher era conferida a obediência a este, deveria ser esposa fiel, recatada, submissa, recolhida, com sua maior missão: a procriação. Na análise de Beauvoir (1970, p. 14), “a mulher sempre foi, senão a escrava do homem ao menos sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições”.
Do patriarcalismo, Saad (2010) apud Bertolin e Andreucci (2010, p. 10) recordam ainda que:
A relação conjugal imitava a relação estatal com os cidadãos, de natureza hierárquica e moldada sobre o binômio autoridade-submissão, e tinha como palavras de ordem: poder doméstico, controle marital, obediência da mulher [...]. Historicamente o homem e a mulher têm sido educados para serem, respectivamente, dominante e submissa [...].
Para Engels (2006, p. 48), a família da época dos romanos que apresentava como característica principal o patriarcalismo, com o homem como detentor pátrio poder e o direito de vida ou morte sobre a mulher, os filhos e escravos, representou a “expressão de grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo”.
O pater famílias exercia sobre os filhos direito de vida e de morte (ius vitae ac necis). Podia, desse modo, vendê-los, impor-lhes castigos e penas corporais e até mesmo tirar-lhes a vida. A mulher era totalmente subordinada à autoridade marital e podia ser repudiada por ato unilateral do marido. O pater exercia a sua autoridade sobre todos os seus descendentes não emancipados, sobre a sua esposa e as mulheres casadas com manus com os seus descendentes. (GONÇALVES, 2014, p. 13).
Perceptível, que o modelo patriarcalista imbuído nas estruturas familiares evidenciou realmente uma “derrota” das mulheres, considerando que a elas não foi sequer conferido o direito de ter vontade, tão pouco outros, foram, pois, anuladas em todos os aspectos.
Assevera ainda, Foucault (2005, p. 127) que “o direito de vida e morte era um privilégio característico do soberano, derivado do conceito de patriapotestas, direito do pai de família romana de dispor da vida de seus filhos e escravos”.
O homem era polígamo e o soberano inquestionável na sociedade patriarcal, a qual pode ser descrita como o clube masculino mais exclusivista de todos ao tempo. Não apenas gozava de todos os direitos civis e políticos, como também tinha poder sobre a mulher (VRISSIMTZS, 2002, p.38).
A todo o momento, observa-se que os homens se inflam de poder e sugam quaisquer possibilidades de a mulher ascender, ou mesmo de exercer suas capacidades sem que seja no ambiente doméstico.
Para a Igreja, era preciso que a mulher fosse honrada, considerando como tal:
[...] aquela que vive reclusa no interior do lar, ocupada nos afazeres domésticos, distante do espaço público. Tutelada pelo marido, que lhe ministra – sempre em pequenas doses – alguns prazeres e atenções, ela deve quando casada ser separada do contato com a casa paterna, proibida de visitas frequentes, e viver inteiramente para o esposo. Seus desejos e ambições devem ser fingidamente satisfeitos para que tenha a sensação de que os realizou. Com um número restrito de criados e pouco dinheiro a disposição, a esposa ideal deve governar a casa evitando intimidades até mesmo com aqueles que vivem sob seu teto. Os contatos com o confessor, as idas a igreja, ou a participação em festas devem ser dosadas. Nada de folguedos, de adornos e modismo. Nada de risos e danças fora de casa, olhares galanterias. (ALGRANTI, 1993, p.116)
Quanto pior que ser regrada, vigiada, a mulher desse período, considerada bruxa, foi massacrada, perseguida até a morte pela Igreja:
[...] a morte, que sempre foi considerada pelos cristãos como um fim a ser atingido, que nunca foi encarada como um mal, que tem um significado de dignificação, é tomada como instrumento de luta sem maiores escândalos ou problemas de consciência no interior da própria Igreja. Considerava-se que o pecador era queimado para o seu próprio bem. [...] o poder mais cruel se considerava santo com todo o direito de condenar e despedaçar o feminino em nome de Deus (FREIRE et al., 2006, p. 56).
Soma-se a isso, que discursos de intelectuais e humanistas contribuíram para estigmatizar a mulher como ser inferior e impuro, incidindo uma justificação ideológica e à desvalorização feminina, no contexto da desintegração do modo de produção feudal.
Existia um forte preconceito contra as mulheres, manifestados, inclusive por ilustres filósofos, cientistas e escritores, senão veja-se: Tertuliano, teólogo cristão, nascido em Cartago no ano 155 d.C., retratava que a mulher era: “a porta do demônio”; Voltaire, filósofo nascido em Paris, que viveu de 1694 a 1778, considerava: “O sangue delas é mais aquoso, prova cabal de sua inferioridade”; Diderot, filósofo e hábil escritor, viveu de 1713 a 1784 na França, foi um dos símbolos do Iluminismo e um dos ideólogos da Revolução Francesa, disse: “Apesar de terem aparência de ‘civilizadas’, elas continuam a ser, interiormente, verdadeiras selvagens” (PARADA, 2009, p. 20).
Concentrando-se nas questões atuais, Boaventura Santos (2003, p. 301 – 314) aduz que “as relações familiares estão dominadas por uma forma de poder, o patriarcado, que está na origem da discriminação sexual de que são vítimas as mulheres”. Constitui assim, o patriarcado “a matriz dessas discriminações, ainda que em articulação com outros fatores”.
Com a Revolução Francesa, as mulheres passaram a adquirir visibilidade no convívio privado e coletivo. Além disso, a expansão capitalista e a consequente supervalorização das atividades produtivas impulsionam a valorização da pessoa em razão da sua capacidade de produção e a disposição em garantir suas necessidades de sobrevivência e de sua família, introduzindo consideráveis transformações das relações sociais, familiares, sobretudo nos papéis de homens e mulheres.
Entretanto, a mulher ainda passava por vários episódios de violência marcantes, como o incêndio ocorrido no dia 8 de março de 1857, que vitimou cerca de cento e trinta operárias de uma fábrica de tecidos em Nova York que estavam fazendo uma manifestação para reivindicar melhores condições de trabalho; em um ato desumano, trancaram aquelas mulheres dentro da fábrica e atearam fogo, matando-as carbonizadas.
Dentro desse contexto, tratar sobre os antecedentes históricos da violência contra a mulher remete-se ao passado, contudo não é possível precisar o tempo que teve início, tampouco se teve um fim realmente, posto que se intrometeu nas mais variadas estruturas sociais, desde as atividades produtivas, baseadas na divisão sexual do trabalho, até nas atividades reprodutivas, correspondentes aos papéis do homem e da mulher na reprodução humana. Tepedino (2001, p.45), intervém relembrando que “às mulheres não se reconhecia espaço mais amplo que o da casa; o alcance de suas vozes, portanto, acabava se restringindo à esfera do privado, seja por meio da correspondência epistolar, seja mantendo diários que retratavam seu árido cotidiano”.
Além disso, Beauvoir (1970, p. 9) pontua que há séculos é negado à mulher um “status” de sujeito de direitos, na medida em que na sociedade ocidental, em sua maioria machista, é dominada por valores que priorizam o homem e, muito provável que por esse fato que, a discriminação de gênero ainda persista latente nos dias de hoje.
A dominação do homem sobre a mulher que remonta do passado envolve aspectos culturais, psicológicos, morais e também sexuais. A condição de ser homem ou mulher não é meramente natural, tão pouco aleatória, mas uma construção sociocultural que impõe a superioridade de gêneros, de um sobre o outro, especificamente, do masculino sobre o feminino, apesar de os discursos que historicamente legitimaram o protagonismo masculino se ampararem em argumentos essencialistas (BOURDIEU, 2010; BUTLER, 2008. BEAUVOIR, 2015).
Ademais, convém pontuar que a violência contra a mulher durante muito tempo foi tolerada pela própria sociedade, impregnando nas identidades culturais de homens e mulheres, um grau elevado de aceitação para com as manifestações de agressividade. Tanto o é que até nos dias atuais, quando inclusive a legislação reprova e criminalizar a violência contra as mulheres, muitas das vítimas acabam por não reconhecer as agressões sofridas como sendo violência (SCHAIBER et al., 2005, p. 46). Por esse e outros motivos, que ainda hoje, embora sua condição esteja evoluindo, a mulher carrega uma enorme desvantagem intrínseca numa cultura construída com preconceitos:
Em quase nenhum país, seu estatuto legal é idêntico ao do homem e muitas vezes este último a prejudica consideravelmente. Mesmo quando os direitos lhe são abstratamente reconhecidos, um longo hábito impede que encontrem nos costumes sua expressão concreta (BEAUVOIR, 1970, p. 14).
Diante disso, urge a necessidade de reversão dessa conjuntura, partindo da concepção de que a mulher não pode mais tolerar condutas discriminatórias, com conteúdo ultrapassados, cheios de ódio, que a inferiorizam e a tornam refém de uma sociedade machista que considera naturais posturas que reproduzem quaisquer formas de violências expressas pelo homem. Some-se a isso, que bastante recorrente tem sido as ocorrências de violência contra a mulher no âmbito doméstico, uma esfera considerada íntima, mas que revela verdadeiras crueldades, que precisam ser estancadas pelo Poder Público. E, para sanar um arranjo de conceitos e condutas que vêm se procrastinando no decurso, foi criada a Lei Maria da Penha.
4 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E A CONFIGURAÇÃO DOS DIPLOMAS LEGAIS EM OBSERVÂNCIA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE IGUALDADE E DIGNIDADE HUMANA
A desigualdade e a discriminação contra a mulher são fatores que impulsionam esse ciclo vicioso da violência contra as mulheres, desde o acesso desigual a oportunidades e direitos até crimes mais graves.
Nessa conjuntura perpetuam-se os casos de homicídios de mulheres por parentes, parceiros ou ex, motivados por sentimento de posse e, as mortes associadas a crimes sexuais e aqueles em que a crueldade revela o ódio ao feminino, entre outros. Sobre discriminação, Teles e Melo (2002, p. 28) esclarecem que se refere ao “ato de distinguir ou restringir que tem como efeito a anulação ou limitação do reconhecimento de direitos fundamentais no campo político, econômico, social ou em qualquer outro domínio da vida”. Além disso, “é uma ação deliberada para excluir segmentos sociais do exercício de direitos humanos. É segregar, pôr à margem, pôr de lado, isolar. Pode ser entendido também como desconsideração e desrespeito”.
A violência contra a mulher, num contexto geral:
[...] constitui uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres, que levam à dominação e à discriminação por parte do homem, impedindo o avanço pleno da mulher e lhe atribuindo um papel secundário (FERNANDES e FERNANDES, 2002, p. 86).
Sobre os diplomas legais, vale ressaltar que a mulher encontra abrigo no ordenamento jurídico brasileiro, por meio da Constituição Federal Brasileira (1988), precisamente pelo artigo 5°, I, que dispõe:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.
Assim sendo, além dos princípios, a Constituição Federal Brasileira de 1988 incorporou aos direitos e garantias do seu texto original, os estabelecidos em decorrência de acordos e tratados internacionais, as Resoluções da Convenção de Belém do Pará1 e da CEDAW (Conventionto Eliminate All Forms of Discrimination Against Women) são também garantias constitucionais, como expressa o artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (BRASIL, 2006, p. 15-16).
Impulsionada por movimentos de mulheres, ativistas e pesquisadoras, bem como atendendo às recomendações a nível internacional (Comissão sobre a Situação da Mulher – CSW e o Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW) criou-se uma legislação específica para punir e coibir o feminicídio, um instrumento essencial para solucionar o problema da invisibilidade e creditar ao Estado a responsabilidade da continuidade das mortes de mulheres em razão do gênero. Valendo-se do Código Penal, especificamente para os casos de homicídios contra as mulheres, em razão de gênero, provocou-se a Lei n° 13.104/2015, considerando como novo tipo penal, o feminicídio.
5 O FEMINICÍDIO: CAUSAS E EFEITOS
O Feminicídio é o termo utilizado para referir-se especificamente ao homicídio de mulheres em contextos marcados pela desigualdade de gênero. Das várias faces da violência contra a mulher, o feminicídio é a mais extrema, final e fatal. Considerado crime hediondo desde o ano de 2015, no Brasil.
Advém o feminicídio justamente da construção de uma cultura que legitimou a dominação masculina e a submissão feminina e, sobretudo fez eclodir a ideologia de gênero. Nessa linha, derivam conceitos para amparar este tipo penal.
O Feminicídio e gênero são duas questões paralelas que estão intrinsecamente ligadas na sua essência. Portanto, quando se fala em gênero, torna-se primordial entender que está se referindo a “um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos”. O gênero é o primeiro “modo de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 2005, p. 134). “Mais do que estar ligado a papéis masculinos e femininos, o gênero está ligado a identidades dos sujeitos” (OLIVEIRA JÚNIOR; OLIVEIRA; NINA, 2011, p. 127).
Na explicação de Romero (2014, p. 22), feminicídio é todo e qualquer ato de agressão proveniente da dominação de gênero, cometido contra indivíduo do sexo feminino, ocasionando sua morte. Nessa perspectiva, os autores do crime podem ser pessoas próximas das vítimas, tais como: namorados, maridos e/ou companheiros, outros membros da família ou ainda, desconhecidos.
O feminicídio surge como uma qualificadora ao crime de homicídio descrito no artigo 121, VI do Código Penal. Pela letra do aludido dispositivo tem-se que: Art. 121 Matar alguém: [...] Homicídio qualificado § 2° Se o homicídio é cometido: [...] Feminicídio. VI - Contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015)
No próprio Código Penal, incluídos pela Lei nº 13.104/2015 seguem expressos os fatores determinantes para se configurar tal tipificação, como traz o “§ 2°- A: Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
Além disso, no feminicídio constitui causa de aumento de pena de 1/3 (um terço) até a metade quando praticado o crime: I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência; III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima (ARTIGO 121, § 7°, CÓDIGO PENAL).
Atenta-se ainda para as tipologias designadas para o crime de feminicídio:
a) feminicídio íntimo: o tipo mais frequente, em que o homicida mantinha ou manteve com a vítima relacionamento íntimo ou familiar;
b) feminicídio sexual: ocorre nos casos em que a vítima não possui ligação qualquer com o agressor, mas sua morte foi precedida de violência sexual, no caso de estupro seguido de morte;
c) feminicídio corporativo: ocorre nos casos de vingança ou disciplinamento, através do crime organizado, como se verifica no tráfico internacional de seres humanos;
d) feminicídio infantil: aquele imputado às crianças e adolescentes do sexo feminino através de maus-tratos dos familiares ou das pessoas que tem o dever legal de protegê-las (SEGATO, 2006; ROMERO, 2014).
Atualmente, destaca-se entre as categorias apresentadas, que o tipo feminicídio íntimo, que está intrinsecamente vinculado à violência conjugal, ou seja, aquele praticado por pessoas com as quais as mulheres mantinham ou mantiveram relações afetivas, é o mais acentuado.
O Mapa da Violência (2015), no tocante ao feminicídio, apontou que no Brasil, 50,3% dos homicídios foram perpetrados por familiares das mulheres em situação de violência e 33,2% das mulheres foram mortas pelos seus parceiros ou ex-parceiros (WAISELFISZ, 2015, p. 69).
Deixando marcas no decurso do tempo até os dias atuais, a violência continua vitimando muitas mulheres, senão vejam-se os casos noticiados na mídia: a atriz Luiza Brunet, 54 anos, acusou o ex-companheiro, o empresário Lírio Albino Parisotto, 62 anos, de ter "praticado violências físicas e psicológicas gravíssimas" contra ela, em 21 de maio de 2016; Gisele Santos de Oliveira não queria mais continuar casada com Elton Jones Luz de Freitas, marido extremamente ciumento, que no dia 2 de agosto de 2015, o casal discutiu. Elton trancou a casa, guardou a chave no bolso e, passou a agredir Gisele com um facão, atingindo-a na cabeça, e decepando as mãos e os pés desta; em 29 de agosto de 2013, Mara Rúbia Guimarães teve os olhos perfurados ao recusar reatar o casamento Wilson Bicudo. Depois de imobilizá-la, Wilson passou a agredi-la, cortando os olhos de Mara com uma faca (Reportagem G1, 2016).
Quando pior, casos como esses terminam em morte, como o que aconteceu com Eloá, 15 anos, sequestrada e assassinada em 13 de setembro de 2008, pelo ex-namorado, Lindemberg Alves, 22 anos, que não aceitava o fim do namoro; Louise Ribeiro, universitária, após ser dopada com clorofórmio foi assassinada pelo ex-namorado Vinícius Neres, em 10 de março de 2016; Ana Carolina de Souza Vieira, 30 anos, dançarina do Programa Domingão do Faustão, por ciúme, foi assassinada pelo ex-namorado Anderson Rodrigues Leitão, em 4 de novembro de 2015; Adriana Moura de Pessoa Carvalho Moraes, 39 anos, e Jade, 8 meses, foram assassinadas por Marcelo, marido de Adriana e pai de Jade, em 23 de agosto de 2015; A advogada Mércia Nakashima, 28 anos, morta pelo policial militar aposentado Mizael Bispo de Souza por não querer reatar o namoro. Seu corpo foi encontrado em 10 de junho (2010) dentro de uma represa, em Nazaré Paulista; a fisiculturista Renata Muggiatti que foi asfixiada pelo namorado, o médico Raphael Suss Marques.
E, o mais recente entre os casos de crueldade aconteceu com a advogada Tatiane Spitzner, 29 anos, que foi encontrada morta, na madrugada do dia 22 de julho, após cair do 4º andar de um prédio no Centro de Guarapuava, na região central do Paraná. O marido dela, Luis Felipe Manvailer, foi preso na manhã do mesmo dia da morte, após sofrer um acidente na rodovia BR-277, em São Miguel do Iguaçu, a 340 km de Guarapuava. Pelas imagens divulgadas observou-se que a vítima sofreu várias agressões, golpes de artes marciais do marido lutador.
Tantos casos que suscitam uma preocupação mais contundente com a violência contra as mulheres, a efetivação dos diplomas legais que revertam realmente o cenário atual, que garantam a proteção ao sexo feminino, consoante aos ditames constitucionais e, em observância ao princípio da igualdade entre os gêneros, assegurando a homogeneidade entre homem e mulher perante a lei, iguais em direitos e obrigações, propiciando igual tratamento entre ambos, contudo relativizando casos isolados para atenuar desníveis de tratamento.
6 CONCLUSÃO
Trazer à tona episódios do passado para estabelecer um comparativo com o presente requer certa sensibilidade para absorver questões um tanto quanto cruéis e não superadas, que mostram claramente as mulheres sendo violentadas, oprimidas, sobretudo, por sentimentos arraigados nas condutas próprias de homens que não permitiam transformações necessárias para o bem comum.
Tomou-se aporte inicial deste estudo, a violência em linhas gerais, compreendendo como se traduz na sociedade, conceitos e formas, dimensões sobre o tema, para adentrar na discussão proposta, ressaltando que a violência nos dias de hoje constitui uma das maiores preocupações das pessoas, que amedrontadas evocam soluções imediatas do Estado. Nessa conjuntura, as mulheres encontram-se inseridas como alvos vulneráveis, vítimas do homem ao longo dos séculos até a atualidade.
Passando a contextualizar os antecedentes da violência contra as mulheres, resgata-se da história que se trata de uma questão antiga que remonta a um sistema de dominação-subordinação, entre homem-mulher. Pela dicotomia entre os papéis de cada gênero nas civilizações existentes, foi possível perceber a condição de inferioridade, de opressão e submissão em que eram colocadas às mulheres.
Na sequência deste estudo, com a abordagem recaindo sobre o feminicídio, evidenciou-se as causas e efeitos do conflito entre gêneros, assim como se compreendeu a tipificação da expressão, que é considerada uma forma de violência contra a mulher final e fatal, praticada com tamanho extremismo.
Face à literatura reunida nesta pesquisa, é possível evidenciar que a desigualdade entre os gêneros (masculino e feminino) foi consolidada a partir de construções históricas, culturais, econômicas, políticas e sociais discriminatórias, com a mulher subjugada, invisibilizada, tratada pelo homem como coisa, que a usava e gozava desta como bem entendia, fato que era tolerado pelas sociedades antigas e, pelo que se observa, continua sendo.
No entanto, passando por certa evolução dos tempos, a violência contra a mulher passou a representar uma violação aos direitos humanos destas, que contraria sumariamente o Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, ser conivente com uma proteção ineficaz não condiz com o princípio de igualdade entre homens e mulheres, preconizado na Carta Magna. Os diplomas legais implementados no ordenamento jurídico brasileiro, como a Lei Maria da Penha, por si só, não são capazes de garantir transformações significativas. Primordial é que se garanta uma aplicabilidade mais contundente da lei vigente, atuante e vigilante para que o feminicídio seja extirpado definitivamente da sociedade, além disso, que as políticas públicas voltadas à proteção e assistência alcancem os efetivamente os objetivos propostos, de modo contemple-se o empoderamento feminino e a justiça de gênero.
Não se deve olvidar, contudo, que a Lei Maria da Penha exerce uma importante influência para as mulheres no que diz respeito à inserção na legislação brasileira de um mecanismo específico de fortalecimento da autonomia das mulheres, proporcionando meios de assistência e atendimento humanizado, sobretudo com vistas a educar a sociedade em termos de conscientização sobre a denúncia dos casos de violência contra a mulher, agregando políticas públicas e valores de direitos humanos. Entretanto, torna-se imperioso mais do que a criação de um instrumento legal ou mudanças isoladas na legislação, de modo que se trabalhe na conscientização coletiva, revertendo conceitos passados em que as relações de poder, eram baseadas no modelo patriarcalista, para que a prevenção seja atingida, de modo tal, que seja evitada a ocorrência do crime de feminicídio, que emerge como um fator essencialmente cultural.
Fica evidente que para reversão desse cenário onde a violência contra as mulheres encontra-se alarmante, é preciso mais do que nomenclaturas para essa problemática, primordial faz-se implementar ações efetivas de prevenção a esta, suscita-se um despertar de ações, sobretudo do Estado que precisa assumir sua responsabilidade no sentido de coibir a continuidade desse ciclo vicioso, perpétuo.
É preciso que se construa no âmbito da sociedade a compreensão de que o feminicídio acontece como desfecho de um histórico de violências contra as mulheres há séculos. Paralelo a isso, fundamental colocar em prática ações efetivas de prevenção e enfrentamento às raízes dessa violência extrema, promovendo o conhecimento da legislação que debruça sua proteção às mulheres, mostrando medidas que atuem igualmente na assistência a estas.
Ademais, insta como paradigma fundamental um efetivo estímulo ao respeito entre os gêneros, ressaltando a efetivação dos princípios de igualdade e da dignidade da pessoa humana, vertente de todo o ordenamento jurídico brasileiro, o que expressará o indício de uma transformação na consciência coletiva e um instrumento protetivo em favor das mulheres.
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Artigo publicado em 29/11/2021 e republicado em 27/03/2024
Graduanda em Bacharel em Direito no Centro Universitário Fametro
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PONTES, Agnes Pérola Façanha. Feminicídio: um reflexo da violência contra as mulheres e a consolidação dos diplomas legais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 nov 2021, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57688/feminicdio-um-reflexo-da-violncia-contra-as-mulheres-e-a-consolidao-dos-diplomas-legais. Acesso em: 22 nov 2024.
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