RESUMO: A obra “Estação Carandiru”, de Drauzio Varella, é o relato da experiência pessoal do autor como médico voluntário do maior presídio da América Latina na época. Além de evidenciar o que viveu durante seu voluntariado, exterioriza um sistema penitenciário antiquado e desumano. Esta pesquisa estuda a evolução das sociedades em paralelo com o desenvolver da pena, desde os tempos antigos até o sistema carcerário presente no livro. Além disso, analisa e expõe o best seller de Drauzio Varella à luz da lei de Execução Penal, dilucidando os direitos garantidos no dispositivo legal supracitado presentes do livro, bem como as falhas na aplicação da Lei dentre as tentativas de tornar a Casa de Detenção de São Paulo em um presídio modelo da Lei de Execução Penal, bem como o que ocorreu para que este projeto falhasse. Por fim, comenta o papel testemunhal que obra teve em relação ao fatídico “Massacre do Carandiru”.
Palavra Chave: Carandiru. Lei de Execução Penal. Direitos Fundamentais. Penas.
ABSTRACT: The book “Estação Carandiru”, by Drauzio Varella, it’s the author’s personal experience report as a volunteer doctor in the biggest jail of latin américa at the time. Beside pointing out his own experience during the volunteering, exposes na old-fashioned and inhuman penitentiary system. This research studies the evolution of the societies in parallel with the penalty development, since the old times unitl the early 90’s (time of the book). Beyond that, the best seller analyses and externalizes in the light of Criminal Execution Law, elucidating the rights guaranteed on the legal device that remains present on the book, as well as the flaws on the laws application between the attempts of making the Detention House a role model, as also what happened for that Project to fail. Lastly, comments the testimonial roll that the book has about the untoward “Carandiru’s Massacre”.
KEYWORDS: Carandiru. Criminal Execution Law. Fundamental Rights. Penalty.
Na contemporaneidade, o ato de pensar o Direito está diretamente articulado com a abordagem constitutiva da noção de Estado e democracia, tendo os direitos humanos enquanto núcleo axiológico destas e outras práticas discursivas. Neste cenário, a construção da semiótica jurídica vigente procede um constante retorno à filosofia clássica enquanto progenitora dos conceitos operativos centrais, atribuindo-lhes o papel de “ato de resistência contra a autoridade tradicional e suas injustiças” (DOUZINAS, 2009, p. 41).
No ocidente, a defesa da igualdade entre os sujeitos passa pela afirmação de “um padrão universal moral para a condição humana” (DEVINE; HANSEN; WILDE, 2008, p. 15). Na maioria dos casos, opera-se a reciclagem de antigas e representações e releituras, a partir da qual “c’est une vision de certains hommes d’aujourd’hui – occidentaux – sur les hommes du monde en général et du monde global en particulier” (HOURS, 1998, p. 13).
Neste quadro, o culto narrativo do Direito, nascido no idealismo do progresso e por ele alimentado (VILLEY, 2016, p. 6), guarda consigo uma história um tanto controversa. Isto é, tem-se na linguagem do Direito o fundamento necessário tanto para a refundação quanto para a atualização dos expedientes repressivos do Estado.
Todavia, tanto o Direito quanto o Estado compartilham uma história permeada de contradições fractais. Neste tocante, o direito penal e processual penal figuram enquanto dimensões centrais nas discussões envolvendo ambas dimensões históricas da vida em sociedade. Aqui, três dimensões estão em constante disputa: a legalidade, a eficácia social e a correção material (ALEXY, 2009, p. 15).
Ao observar as normas diretamente relacionadas ao exercício da coerção punitiva estatal, deve-se ter em conta que o Direito “constitui uma proteção superior ou adicional contra o Estado” (DOUZINAS, 2009, p. 129), sendo, em última análise, a própria “ilustração do caçador transformado em guarda-caça” (DOUZINAS, 2009, p. 131).
Portanto, partindo deste arcabouço epistemológico, concebeu-se o presente projeto de investigação, cuja motivação surgiu ao notar que a Lei de Execução Penal em sua essência nos trazia o sistema prisional “perfeito”. Tal percepção foi confutada pela obra de Dráuzio Varella, por meio da qual percebemos que, apesar da legislação vigente contemplar um conjunto de direitos relativos aos sujeitos submetidos ao poder coercitivo do Estado, a mesma parece não guardar estreita relação à experiência cotidiana da população carcerária do país.
A referida lei traz um ideal reabilitador da pena, para que o condenado busque sua reintegração em uma sociedade que não aceita seus atos passados, ao mesmo tempo que impõe um caráter punitivo com suas penas privativas de liberdade e punições para faltas disciplinares. Na exata definição de Mirabete: “notou-se a relevância do estudo da execução da pena privativa de liberdade à medida que não tem ela somente a finalidade retributiva e preventiva, mas também, e principalmente, a reintegração do condenado na comunidade.” (MIRABETE, São Paulo, p. 30).
Para alguns autores, tal finalidade reabilitadora não existe, como para Ricardo Augusto Schmitt:
“(...) o ordenamento penal brasileiro – incluída a LEP – traz a baila um discurso ressocializador ultrapassado e falacioso, primeiro, frente ao caos do sistema carcerário, o qual, com raríssimas exceções, demonstra a presença de uma única finalidade na execução da pena – a de natureza punitiva e, segundo, porque não se tem como reintegrar quem nunca se sentiu integrado na sociedade, por lhe ter sido tolhido todos os direitos básicos fundamentais, necessários a vivência com qualidade digna de vida”. (SCHMITT, Ricardo Augusto, 2006, p.75).
Na visão de outros autores, a Lei de Execução Penal é uma norma jurídica atualizada e oferece todos os instrumentos necessários para a ressocialização do condenado. O que falta, por exemplo, na visão do Desembargador Celso Luiz Limongi (apud NUNES, 2013, P. 370): “(...) é a falta de estrutura material e humana para cumprir a Lei de Execução Penal. Se os chefes dos executivos não se preocupam em dotar o Judiciário e as Secretarias de Assuntos Penitenciários de verbas, o resultado só pode ser o recrudescimento do crime”
Complementando a linha do magistrado, no pensamento de Adeildo Nunes, “É engano imaginar, portanto, que, mudando-se a lei, tudo será resolvido no âmbito do sistema penitenciário brasileiro, porque o motivo principal da sua falência está na omissão do Estado em cumprir, completamente, a atual Lei de Execução Penal.” (NUNES, Adeildo. 3° Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 370).
Tal falência é clara na obra a ser analisada. A principal carência retratada em Estação Carandiru é a superlotação. Trechos do livro apontam que os presos, por vezes, se revezavam para dormir, ou ainda dormiam em papelões ou colchonetes velhos por conta da falta de espaço em celas.
O ex-secretário de segurança pública do Estado de São Paulo, Nagashi Furukawa, comenta sobre em uma entrevista concedida ao dr. Fernando Salla, Pesquisador-Sênior do Núcleo de Estudos da Violência da USP: “havia a Casa de Detenção do Carandiru, com 3.300 vagas preenchidas por mais de 7 mil presos, recebendo mais 800 presos por mês” (FURUKAWA, Nagashi, https://www.scielo.br/j/nec/a/jjmJHCjykY3G6jzDPQgTXCJ/?lang=pt. Acesso em 10 jun. 2021). Ou seja, o presídio suportava pouco mais do dobro de detentos para o qual foi projetado para receber, e ainda recebia grande quantitativo de novos encarcerados mensalmente. Mesmo ressaltando que estes dados são referentes a 1999, sete anos após o massacre do Carandiru, a situação da época não difere muito da retratada pelo ex titular da pasta. Ao tempo retratado no livro, eram cerca de 10 mil detentos em um presídio que deveria suportar 3.300.
Esta superlotação desencadeou outro problema: a perda do controle estatal sobre os encarcerados. Eram pouquíssimos agentes carcerários para vigiar tantos detentos. A partir desse aspecto, passamos a analisar como grupos de detentos comandavam os demais, dando a eles a palavra de ordem e punindo os apenados que a desobedecesse. Assim surge na obra a figura da “faxina” que, de acordo com Dráuzio Varella, é a espinha dorsal da cadeia.
A cúpula da Faxina, em linhas gerais, era quem comandava a cadeia. Eram encarregados da limpeza do presídio e da alimentação dos presos, o que até certo ponto é de acordo até mesmo com a L.E.P, objetivando a remição de pena do encarcerado. O cerne da questão é que os membros da faxina é quem resolviam desavenças entre os presos e davam até mesmo permissão para que o apenado prejudicado matasse aquele que lhe trouxe o dano. Só havia rebelião de qualquer tipo se a faxina autorizasse, e qualquer um que tentasse agir sem o conhecimento da mesma era severamente punido.
Ao ler o um pouco mais adiante na obra, nota-se que a intervenção da administração da Casa de Detenção quanto a essa situação era mínima. Inclusive, um dos diretores antigos chegou a compartilhar uma visão darwiniana sobre o caso:
“- Na competição, os presos mais hábeis dominam os fracos. É inevitável. Nós não impomos um chefe para eles – seria ótimo se pudéssemos. O que nós fazemos é tirar partido da seleção natural do líder, usando a estrutura da Faxina para que ele assuma o comando dos outros. Se cada um fizesse o que bem entende, quem controlaria isso aqui? O diálogo da administração com a cúpula da Faxina é fundamental para a manutenção da ordem.”
E assim, com a anuência da administração do presídio, o grupo que até então era denominado “faxina” passou a ser a disciplina do presídio. Por vezes, os carcereiros tinham de negociar com os mesmos para que a ordem fosse mantida. O livro, inclusive, retrata situações em que as negociações com a Cúpula da Faxina incluíam celeridade nas solicitações de transferência em troca da interrupção dos recorrentes atos de fazer dos carcereiros reféns à ponta de faca.
Em um apanhado dentre os pontos críticos previamente citados e outros trazidos na obra, “Estação Carandiru” nos traz um exemplo claro de algo que deveria ser competência do Estado completamente entregue nas mãos dos detentos que o mesmo deveria ressocializar.
1. A construção do Direito na contemporaneidade e o exercício do poder de punir: A lei de Execução Penal enquanto direito declarado.
1.2 Duas invenções: O Estado e o poder de punir;
Estuda-se a origem das penas na sociedade a partir da idade antiga, onde se formaram os primeiros Estados organizados, bem como as primeiras religiões ainda existentes se desenvolveram.
Por viver sempre agrupado, o ser humano viola regras de convivência desde os primórdios, ferindo aqueles que viviam em sua comunidade ou até mesmo a comunidade como um todo. Estes eram passíveis de punição, que no início não passavam de reação coletiva contra a atitude antissocial. Neste tempo, a pena possuía dupla finalidade: a) eliminar aquele que se tornara um inimigo da comunidade e dos seus Deuses e forças mágicas; e b) evitar o contágio pela mácula de que se contaminara o agente e as reações vingadoras dos seres sobrenaturais.
Após este, que foi chamado “período da reação social”, chega o “período da vingança privada”. Neste, os Estados organizados se dividem em grupos menores e secundários, e a ideia da vingança surge quando o membro de um grupo ofende o outro, gerando reação vingativa por parte do grupo ora agredido. Neste período, ganha destaque a famosa “Lei de Talião”, trazendo a máxima “olho por olho, dente por dente”. Neste códex, inicia-se o desenho do princípio da proporcionalidade: se um indivíduo ceifa a vida do outro, a pena que lhe cabe é a morte.
Com a evolução das sociedades e das religiões, da união entre o Estado e o culto aos deuses surge o período da “vingança Divina”, onde as normas possuíam natureza religiosa. Quando alguém cometia um ilícito, este deveria ser castigado para amenizar a ira dos deuses.
Por fim, chega o período da “vingança pública”. Nele, as guerras privadas eram consideradas obstáculos à paz pública, logo, a sociedade se impôs ao objetivo de fazê-la cessar. Assim, o poder passou a ser cada vez mais centralizado, passando a pena a representar uma reação desta comunidade, objetivando sua autopreservação.
O direito de punir, desde o nascer da sociedade em poder do Estado, de acordo com Michael Foucault:
Resumindo toda a evolução da pena, o filósofo aponta a centralização do poder de punir nas mãos do Estado, passando este a regular o que é o ilícito e qual punição é devida para cada ato nefasto.
2. O outro lado da narrativa: a “Estação Carandiru” e a Lei de Execução Penal.
2.1 A Lei de Execução Penal refletida na “Estação Carandiru”;
A Lei de Execução Penal é um dispositivo jurídico com duas finalidades. Conforme dita Renato Marcão:
“A execução penal deve objetivar a integração social do condenado ou do internado, já que adotada a teoria mista ou eclética, segundo a qual a natureza retributiva da pena não busca apenas a prevenção, mas também a humanização. Objetiva-se, por meio da execução, punir e humanizar.” (MARCÃO, Renato. 10º ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 29)
(GRIFO NOSSO)
O dispositivo em comento cumpre este objetivo, punindo através da restrição de direitos (seja privando a liberdade ou restringindo direitos civis) e ao mesmo tempo ressocializando o apenado, através do trabalho, do estudo, da religião e das atividades desportivas.
No decorrer da leitura de “Estação Carandiru”, apesar de seu autor ser de área diversa do direito, é nítida a aplicação de certos direitos e deveres elencados na Lei de Execução Penal. São inúmeros os exemplos de remição de pena, direitos fundamentais garantidos, dentre outros. Exemplificando alguns dos presentes no livro, temos:
a) Trabalho
O trabalho é, além de direito garantido pela Lei de Execução Penal, uma das mais famosas formas de remição de pena trazido no dispositivo legal em comento.
É citado como direito no art. 41 da LEP, vejamos:
“Art. 41 – Constituem direitos do preso:
(…)
VI – exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;”
O trabalho está elencado em meio aos direitos garantidos aos presos para ajudar no cumprimento da função do cárcere: objetiva a ressocialização do preso por meio do aprendizado de um ofício. Assim, ao cumprir sua pena e alcançar sua liberdade, espera-se que o preso continue a exercer a função obtida no cárcere e não retorne ao mundo do crime.
Para incentivar tal conduta, é utilizada a remição de pena. Conforme o art. 126 da Lei de Execução Penal, o apenado em regime fechado ou semiaberto pode remir a pena por trabalho nos termos do §1º, inciso II:
Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena.
§ 1º A contagem de tempo referida no caput será feita à razão de:
II – 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho.
Na obra “Estação Carandiru”, Drauzio Varella expõe diversas vezes o trabalho dos presos enquanto descreve a Casa de Detenção e, durante tal análise descritiva, demonstra diversos tipos de trabalho oferecidos na detenção:
“É a entrada da cadeia. Vivem ali oitocentos presos que cuidam da Administração: Chefia, Carceragem, serviço de som e refeitório dos funcionários. Além dos setores de apoio, no térreo do dois funcionam a alfaiataria, a barbearia, a fotografia, a rouparia e a laborterapia, que controla a remição de pena à qual fazem jus aqueles que trabalham (para cada três dias trabalhados, o detendo ganha um de remição de pena).” (VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 21)
“No térreo, como nos outros pavilhões, funcionam a burocracia, o setores de manutenção e o patronato, que organiza o trabalho encomendado de fora: colocar espirais em caderno, elásticos em pastas, construção de miniaturas de barcos e vela (antiga tradição das cadeias brasileiras), costurar bolas de futebol e outras tarefas manuais.” (VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 31)
Desta forma, além de combater o ócio que assola os encarcerados, o apenado aprendia um novo ofício que não envolvia atividades ilícitas e ainda remia sua pena.
b) acesso à saúde;
A saúde é um direito fundamental assegurado pela Constituição:
“Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”
Para fins desta análise, vale ressaltar que o único direito privado no caso de encarceramento é o direito de ir e vir (por isso chama-se “pena privativa de liberdade”). Não se pode privar o apenado do acesso à saúde básica, tanto que o legislador reconhece o direito ao encarcerado novamente na Lei de Execução Penal:
“Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.”
“Art. 11. A assistência será:
(...)
II - à saúde;”
“Art. 14. A assistência à saúde do preso e do internado de caráter preventivo e curativo, compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico.”
Na obra em comento, vemos inúmeros exemplos da assistência médica ao encarcerado, visto que o próprio autor era o médico incumbido de prestar esta assistência. Percebe-se como a Casa de Detenção fora pensada de modo a cumprir a Lei nº 7.210/84:
“A intenção original era a de que fosse um pavilhão exclusivo do Departamento de Saúde. De fato, no térreo estão os xadrezes dos presos com tuberculose e no quinto andar funciona a enfermaria geral. (...)” (VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 24)
“(...) Quase sempre são ladrões que perderam o movimento das pernas em tiroteios, e cumprem pena no Quatro para cuidar das sondas urinárias e das escaras que não cicatrizam. Além disso, podem utilizar o elevador do pavilhão, o único que ainda funciona na cadeia. (...)”(VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 25)
Fato previsível, a superpopulação da massa encarcerada na Casa de Detenção (ponto negativo que veremos mais à frente) fez com que o pavilhão voltado à saúde passasse a cumprir sua função de modo mais precário, utilizando partes do pavilhão para abrigar outras classes de apenados. Apesar deste fato, a assistência à saúde é sempre presente no presídio, apesar de precária.
c) liberdade religiosa;
A liberdade religiosa também é um direito garantido pela Constituição, em seu notável art. 5º:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;”
Assim como na Carta Magna, a Lei de Execução Penal também garante de forma clara o direito ao livre culto:
“Art. 3º Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.
Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política.”
“Art. 11. A assistência será:
(...)
VI - religiosa.”
“Art. 24. A assistência religiosa, com liberdade de culto, será prestada aos presos e aos internados, permitindo-se-lhes a participação nos serviços organizados no estabelecimento penal, bem como a posse de livros de instrução religiosa.
§ 1º No estabelecimento haverá local apropriado para os cultos religiosos.”
“Estação Carandiru” traz a liberdade de culto de forma simples, mas abrangente:
“No térreo, além das seções burocráticas, funcionam uma capela católica, os templos da Assembleia de Deus, a Igreja Universal, a Deus é Amor e o Centro de Umbanda” (VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 32)
Qualquer apenado era livre para frequentar o local de culto que escolhera, respeitando os horários de funcionamento e a religião dos demais.
No entanto, assim como havia o cumprimento, o descumprimento das leis e a falta de sanções era nítido: castigos definidos por outros presos, posse de arma branca, tráfico de drogas, formação de organização criminosa dentre outros delitos se encontram presentes no livro. Dentre estes:
a) drogas no cárcere;
Conforme o art. 52 da Lei de Execução Penal, constitui falta grave a prática de fato previsto como crime doloso. Elencando o art. 33 da lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas), incorre em crime quem produz e vende drogas:
“Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”
Além desta tipificação, a pena é majorada quando praticada em estabelecimento prisional:
“Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se:
(...)
III - a infração tiver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais, de ensino ou hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas, ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de unidades militares ou policiais ou em transportes públicos;”
Além do evidente crime, o uso de drogas dentro da casa de detenção teve relação direta com a saúde da população encarcerada. Conforme observamos na obra, o período narrado se sobrepõe à entrada do crack nas prisões e a diminuição do “baque” (cocaína injetável):
“O crack entrou e varreu a cocaína injetável do mapa. (...)
O usuário de cocaína injetável não se interessa pelo efeito lento da via inalatória, forma de administração que ele considera careta. O crack, porém, provoca sensação semelhante à do baque, além de trazer vantagens: é mais barato, não deixa cicatrizes nos braços e, principalmente, não transmite AIDS” (VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 130/131)
“No presídio, em poucos meses a via endovenosa ficou restrita a uns poucos baqueiros velhos, que mais tarde morreram de AIDS na enfermaria do Quatro. Silenciosamente, como entrou, o baque saiu de moda no Carandiru.” (VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 131)
“Com o passar dos anos, muitos ex-usuários de cocaína injetável revelaram ter mudado para o crack por causa das palestras do cinema. (...)”(VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 131)
O uso de drogas dentro dos presídios é um problema que vem desde tempos anteriores aos narrados no livro e perdura até hoje, sem solução definitiva. Independente das sanções severas trazidas pelos entorpecentes, o tráfico e uso dos mesmos dentro dos estabelecimentos prisionais perdura com novas substâncias, sem controle eficiente das administrações prisionais.
b) posse de armas brancas;
Dentre os itens elencados na pesquisa, este é o mais simples de ser exemplificado na Lei de Execução Penal, sendo considerado falta grave pelo próprio dispositivo legal:
“Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que:
III - possuir, indevidamente, instrumento capaz de ofender a integridade física de outrem;”
No decorrer da leitura de “Estação Carandiru”, nota-se que a presença de objetos perfuro-cortantes é frequente entre os presos: alegavam os mesmo que serviam, principalmente, para proteção contra desafetos.
“(...) O chefe deles, um ladrão magrinho, implacável com os inimigos cujo maior desgosto era o irmão mais novo ter entrado para a PM, sorriu amarelo:
- Caiu uma faca nossa que estava mocosada na estufa de esterilizar os instrumentos. Faca miúda, só para defesa pessoal.” (VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 150)
“(...) Os sete saíram em silêncio, e os carcereiros vasculharam tudo. Estavam quase desistindo, quando um deles despregou o fundo de um armário junto à parede e encontrou duas facas. (...)” (VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 152)
”(...) O carcereiro-rondante olhou pelo guichê, viu o doente azul de falta de ar e abriu a cela. Os seis ocupantes saíram com facas, renderam o rondante, desceram para a carceragem e dominaram os cinco funcionários de plantão. (...)” (VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 164)
Como visto nos poucos exemplos acima, pesar da presença de detector de metais, revista, dentre outros métodos com o intuito de prevenir o contrabando de itens proibidos, os detentos improvisam as chamadas facas com pedaços de ferro, cerâmicas e qualquer outro material com potencial ofensivo.
c) Formação do crime organizado;
Ao decorrer da obra, nota-se frequente presença de um distinto grupo de apenados: a faxina. Esta, como bem descreve o próprio autor, é a espinha dorsal da Casa de Detenção. Aos poucos tomando para si a autoridade que a administração prisional deveria ter, a faxina é uma verdadeira corporação, encarregada por dirimir conflitos entre os encarcerados, autorizar “castigos”, delegar funções e até mesmo negociar benefícios ou suspensão de motins com a direção do presídio. Observa-se:
“O diálogo da administração com a cúpula da faxina é fundamental para a manutenção da ordem. Uma tarde, houve uma reunião do diretor com os encarregados-gerais dos pavilhões, para acabar com a moda de fazer funcionários reféns em ponta de faca como meio de forçar transferência para outros presídios. O diretor prometeu agilizar a burocracia das transferências e os encarregados assumiram o compromisso de acalmar os desesperançados.” (VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 101)
“(...) Se alguém deve e não paga, o credor não pode soltar a faca sem antes conversar com o encarregado-geral [do pavilhão], que houve as partes e dá um prazo para a situação ser resolvida. Antes que este expire, pobre do credor que ousar agredir o outro. Sem o aval do encarregado-geral, nada pode ser feito (...)” (VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 101)
“Na verdade, nas fases mais agitadas do pavilhão, nem na cama Bolacha [um encarregado-geral] tinha sossego:
- No silêncio da noite, a minha mente trabalha solitária porque a decisão final é minha e dela depende a sorte de um ser humano. Sou o juiz do pavilhão. Só que o juiz da rua trabalha aquelas horinhas dele e vai pra casa com o motorista; eu, é 24 por 48. Ele, só tem que julgar se o acusado vai preso; no máximo, uma pena mais longa. Eu, assino pena de morte.” (VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 104)
Nota-se que o boa parte do controle do presídio encontra-se nas mãos da cúpula da faxina. Em um estudo mais aprofundado, conclui-se que esta organização se formou para combater as injustiças cometidas pelos funcionários, que antes dos novos dispositivos legais (Constituição de 1988 e Lei de Execução penal, principalmente) tratavam os apenados de forma degradante: castigos físicos e tortura eram considerados procedimento de rotina dentro das antigas Casas de Detenção:
“Na Detenção, as agressões aos presos, tradição forte no sistema prisional brasileiro, não desapareceram, mas diminuíram de intensidade com o passar dos anos, pois, como diz Luisão, atualmente aposentado:
- Quando eu comecei, a moda era ser caceteiro; hoje é parar de bater. (...)”(VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 114)
“Uma vez, seu Lourival, funcionário calejado, comentou a respeito de um episódio rumoroso, no qual dois presos se queixaram ao padre de terem levado uma surra de cano de ferro e o caso foi parar na Corregedoria (...)”(VARELLA, Drauzio. 2° Ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 115)
Em uma visão pós massacre e pós implosão da Casa de Detenção, a figura da faxina se tornou ainda mais unida, e sociólogos estudiosos do tema associam este cenário à formação de uma das maiores organizações criminosas do Brasil: o PCC. Tal estopim é confirmado por Marcos Willians Herbas Camacho, conhecido como “Marcola”, um dos membros fundadores do PCC, durante a CPI do Tráfico de Armas em 2006:
“(...) relacionado ao que aconteceu no Carandiru, a princípio. Só que o diretor do Carandiru foi para Taubaté, e lá ele impôs a mesma lei do espancamento. Então, quer dizer, juntou a situação do Carandiru com a de Taubaté, deu o PCC.”
Para além do seu papel documental acerca da experiência do dr. Drauzio Varella dentro da cadeia, o livro “Estação Carandiru” exerce uma função que poucos se disporiam a cumprir: ouvir a versão dos apenados quanto ao fatídico “Massacre do Carandiru”, onde uma intervenção da Polícia Militar do Estado de São Paulo culminou na morte de 111 detentos do Pavilhão Nove.
Um desentendimento repentino entre dois integrantes de facções rivais se tornou uma rebelião que, de acordo com os próprios detentos que sobreviveram, não havia maneira de se resolver pacificamente:
“Parecia feira de peixe, doutor. Quando está assim, é bobagem querer apaziguar. O sangue ferve e fica todo mundo desvairado. Subi, na minha, mas em vista das facas que estão passando na escada, bateu no meu presságio de que aquilo não vai acabar legal.”
Por estar inserido na rotina dos detentos, o autor conseguiu comparar os depoimentos dos detentos com as informações oficiais que a Secretaria de Segurança Pública divulgava, exibindo uma série de inconsistências entre os relatos. Breve parte do testemunho, Varella logo deixa as diferenças de depoimentos para trás e traz à baila o verdadeiro destaque de todo o conjunto da obra: o relato dos detentos sobre o Massacre do Carandiru.
Analisando os fatos elencados, temos que a pena desenvolveu-se, desde a antiguidade até o ponto de transição exposto no livro, sendo a Lei de Execução Penal recente àquela época.
Em um lugar criado para ser uma prisão-modelo o crime organizado, o abuso de drogas, dentre outras condutas infrativas se amontoavam aos milhares em pavilhões superlotados e degradantes. Garantias fundamentais foram descumpridas por anos à fio, sem a devida atenção do Estado, até que o inevitável aconteceu: uma rebelião tomou proporções catastróficas e marcou a história da Casa de Detenção de São Paulo com o fatídico Massacre do Carandiru.
Drauzio Varella apresenta muito mais que um relato documental acerca de sua experiência como médico: o autor dá voz a uma parcela da população marginalizada que viu e viveu o massacre com os próprios olhos.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CUNHA, Rogério Sanches (organizador). Leituras Complementares de Execução Penal. Salvador: JusPODIVM, 2006.
DEVINE, Carol; HANSEN, Carol Era; WILDE, Ralph. Direitos Humanos: Referências essenciais. São Paulo: Edusp, 2008.
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009.
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Graduando em em Direito pela Faculdade Metropolitana de Manaus - FAMETRO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAETANO, Ana Beatriz Duque Johnson. A aplicação da Lei de Execução Penal narrada na obra “Estação Carandiru”, de Dráuzio Varella Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 nov 2021, 04:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57691/a-aplicao-da-lei-de-execuo-penal-narrada-na-obra-estao-carandiru-de-druzio-varella. Acesso em: 22 nov 2024.
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Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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