ÊNIO WALCÁCER DE OLIVEIRA FILHO [1]
(orientador)
RESUMO: Este trabalho possui o desígnio de explorar o contexto histórico do sistema processual penal brasileiro, elencando as fases evolutivas que o Brasil exerceu ao longo da legislação processual penal até chegar o momento da implementação definitiva do sistema acusatório coadunando com a Carta Magna de 1988. A pesquisa em comento terá primordialmente uma abordagem qualitativa e de natureza básica, sendo utilizado metodologicamente o objetivo explicativo, colhendo os fatores que contribuíram para os acontecimentos de novos fenômenos jurídicos. O procedimento adotado nesta análise será de pesquisa bibliográfica, com enfoque principal nas doutrinas e artigos jurídicos. Ademais, aborda a necessidade da implantação do Juiz das Garantias trazido pela novel Lei Nº 13.964/19, relacionando com a formação da decisão proferida por magistrado envolvido na persecução penal, desde a fase investigativa até a sentença, em confronto com a dissonância cognitiva do juiz. Outrossim, importante listar o caso em ascensão no mundo jurídico, onde o Supremo Tribunal Federal reconhece a suspeição e a parcialidade de um ex-magistrado da esfera Federal enquanto Juiz de Direito, o qual maculou toda a instrução processual envolvendo um ex-presidente da República Federativa do Brasil. Pretende-se indagar a importância e efetiva implantação da figura do juiz garantidor no âmbito do processo penal brasileiro e explanar toda prejudicialidade e insegurança jurídica trazida por decisões suspeitas, anulando todo o trabalho de persecução penal que durou anos a fio, em decorrência das decisões recentes tomadas pela Suprema Corte do País em que a condenação que recaiu sobre Luiz Inácio resultou em nulidade e, consequentemente, toda fase processual já superada será reiniciada, visto que, as decisões judiciais pretéritas foram valoradas de forma errônea e parcial. Propõe-se especificar os erros processuais de todo o curso de investigação e indagar a morosidade da aplicação de uma justa justiça e eficaz aplicabilidade.
Palavras-chave: Sistema Acusatório; Juiz das Garantias; Suspeição; Parcialidade; Processo Penal.
ABSTRACT: This work has the purpose of exploring the historical context of the Brazilian penal procedural system, listing the evolutionary phases that Brazil carried out throughout the penal procedural legislation until the moment of the definitive implementation of the accusatory system, in line with the Magna Carta of 1988, arrived. in comment will primarily have a qualitative approach and of a basic nature, methodologically using the explanatory objective, collecting the factors that contributed to the events of new legal phenomena. The procedure adopted in this analysis will be bibliographical research, with the main focus on legal doctrines and articles. Furthermore, it addresses the need for the implementation of the Judge of Guarantees brought by the novel Law No. 13,964/19, relating to the formation of the decision rendered by a magistrate involved in criminal prosecution, from the investigative phase to the sentence, in comparison with the judge's cognitive dissonance. Furthermore, it is important to list the growing case in the legal world, where the Supreme Court recognizes the suspicion and partiality of a former judge of the Federal sphere as a Judge of Law, who marred the entire procedural instruction involving a former president of the Republic Federative of Brazil. It is intended to investigate the importance and effective implementation of the figure of the guarantor judge in the scope of the Brazilian criminal procedure and explain all harmfulness and legal uncertainty brought about by suspicious decisions, nullifying all the work of criminal prosecution that lasted years on end, as a result of recent decisions taken by the Supreme Court of the country in which the conviction that fell on Luiz Inácio resulted in nullity and, consequently, any procedural phase already overcome will be restarted, since the past court decisions were wrongly and partially valued. It is proposed to specify the procedural errors of the entire course of investigation and investigate the delay in the application of fair justice and effective applicability.
Keywords: Accusatory System; Judge of Guarantees; Suspicion; Partiality; Criminal proceedings.
INTRODUÇÃO
1.1 O NOSSO SISTEMA PROCESSUAL:
1.1.1 As raízes inquisitórias do Processo Penal Brasileiro
Entender a origem do sistema processual brasileiro faz-se necessário para entender o agir do judiciário e seus costumes e, concomitantemente, compreender as decisões tomadas pelo mesmo, a fim de estabelecer um desenvolvimento na linhagem histórica para explorar as nuances de um sistema inquisitório presente no sistema acusatório, sendo este último o adotado no Brasil com o advento da Constituição Federal de 1988, cumprindo o dever de democrática e garantidora dos direitos fundamentais.
Em linhas gerais, historicamente, após a independência de Portugal e o início do Brasil Império, o jus puniendi, ou seja, o poder/dever de punir do Estado fora pautado desde os primórdios do Brasil imperialista com o objetivo principal de estabelecer o interminável poder do perdão e o controle da sociedade junto à Igreja Católica, vez que, as maiorias dos crimes à época eram direcionados ao imperante.
Além desse fator, o primeiro Código de Processo Penal Brasileiro surgiu em 1832 com uma grande relação aos princípios iluministas, que visavam basilarmente seguir os três pilares deste movimento intelectual, quais sejam, a razão, a liberdade e o desenvolvimento da sociedade referente ao pensamento racional e científico. No entanto, tais inspirações ficaram apenas nas escritas, tendo em vista que as práticas de penas de mortes ainda eram aludidas como um dos caminhos a serem tomados pelo juiz criminal, havendo ainda normas especiais caso o réu fosse escravo, tendo como punição o açoite (BRASIL, Código do Processo Criminal do Império de 1832).
Por sua vez, tal circunstância somente evidencia a historicidade do processo penal brasileiro nos tempos de reinado e, não faz parte da estrutura punitiva a ser explorada. Superado o tema do processo penal imperial que a história comprova a extrema nocividade, surge o Código de Processo Penal de 1941 trazido pelo Estado Novo de Getúlio Vargas sempre com a braveza da estrutura punitiva e da persecução imposta pelo Estado em face do réu, destoando do princípio basilar da dignidade da pessoa humana que visa defender o indivíduo da truculência estatal, garantindo ao réu uma condenação penal que corroborasse a autoria e criminalidade (PACELLI, 2021, p. 21).
Nesse passo, Hassan Choukr esclarece o viés autoritário do Código de Processo Penal supramencionado:
Como decorrência natural do espírito autoritário que possui e que alimenta largamente sua interpretação, até mesmo nos dias de hoje, os primeiros cuidados do Código dirão respeito à atividade de polícia para, depois, seguir-se a estrutura da ação e, por fim, as disposições de competência. Previsões sobre os atores processuais são bem posteriores e, verdadeiramente, o papel da jurisdição se afigura esmaecido entre os elementos de caráter administrativo que aparecem em primeiro lugar. (HASSAN CHOUKR, Fauz, 2005, p. 2).
Fato é que o desregramento e a prepotência do código de processo penal ainda vigoram perante os togados, vez que a máxima inspiração de legislação pertinente para atuar no âmbito penal é o afamado Código de Rocco, qual seja, o Código de Processo Penal Italiano, que traz em suas entranhas a imposição do regime fascista, onde é refletido diretamente no réu, que é posto como inimigo e o acusado a ser combatido pelo Estado sendo considerado claramente um inimigo do povo.
Consequentemente, o Código de Processo Penal de 1941 não fugiria dessas linhas totalitárias. Para tanto, apesar da novel Constituição de 1988 destruindo os resquícios ditatoriais, as laias inquisitórias não foram findadas como era de se esperar diante de uma nova Constituinte e uma constante discussão sobre a efetiva aplicação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos em todas as partes do globo.
1.1.2. As modificações pós Constituição de 1988
No Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988, cumprindo o papel de democrática e garantidora dos direitos fundamentais, o sistema processual sofreu diversas mitigações em seus anseios fascistas. Nessa toada, a chave do garantismo começava a contornar com o advindo da nova Constituinte, abolindo os princípios da culpabilidade e da periculosidade do agente vigente nas entrelinhas autoritárias do Código de Processo Penal e acobertado pela Constituição Federal de 1967.
A exemplo disso, uma inovação de alta relevância foi a implementação de um sistema de garantias individuais permitindo a proteção do indivíduo que ainda não foi submetido a uma sentença condenatória definitiva. Neste contexto, é identificado que a figura do Estado é infinitamente graúda perante o sujeito e para tanto, estas garantias eram indispensáveis ao cidadão para o restabelecimento do sentimento democrático. Sob esse prisma, o Estado Democrático de Direito passa a interessar-se em medidas igualitárias no momento da condenação do culpado e na absolvição do inocente, surgindo em concomitância a independência do Ministério Público, órgão estatal incumbido na parte acusatória, mas que precipuamente preserva a ordem jurídica do regime democrático fiscalizando a todos a fim de garantir o comportamento adequado diante da legislação atuante, rompendo de fato com as características pretéritas e maculadas que o MP desempenhava em função de inclinações exclusivas da função acusatória.
De sorte que, após todo o garantismo ser debatido perante a Carta Magna de 1988, de acordo com a doutrina brasileira, o Processo Penal Brasileiro foi contemplado com um modelo de sistema processual abrasileirado, vindo a ser destacado como um sistema de natureza mista, ou seja, pode-se dizer que fora desenvolvido um sistema híbrido com traços acusatórios e inquisitoriais, não rompendo com o conjunto processual anterior, mas aderindo a um novo conjunto democrático e visionário, formando então, o presente sistema com esta nomenclatura vigente até os dias atuais.
Nesse sentido, Nucci assevera que:
A doutrina brasileira costuma referir-se ao modelo brasileiro de sistema processual, no que se refere à definição da atuação do juiz criminal, como um sistema de natureza mista, isto é, com feições acusatórias e inquisitoriais. Alguns alegam que a existência do inquérito policial na fase pré-processual já seria, por si só, indicativa de um sistema misto; outros, com mais propriedade, apontam determinados poderes atribuídos aos juízes no Código de Processo Penal como a justificativa da conceituação antes mencionada. (NUCCI, Guilherme de Souza, 2005, p. 101).
Por iguais razões, é ponderoso destacar a reforma processual penal que ocorreu no ano de 2008, onde, através das Leis 11.719/2008 e 11.689/2008, objetivou adequar o Código de Processo Penal Brasileiro sob a ótica da Constituição Federal de 1988, em conformidade com todo o garantismo que a Carta Magna traz a respeito de melhorias no sistema de garantias do réu, assegurando um âmbito processual penal mais democrático conforme preceitua a supracitada Carta e estabelecendo uma brevidade processual digna de um sistema moderno (BRASIL, 2008).
Finalmente, mesmo que tardia, a reestruturação penal realizada através das normas no ano de 2008 visava atender os princípios basilares da Constituição que regem todo o sistema jurídico brasileiro e, que, de certa forma foi ignorado por décadas em alguns aspectos humanitários, precipuamente no âmbito penal, onde é de extrema importância a ressignificação da proteção aos direitos humanos e da construção de uma área extremamente democrática na sua totalidade para que o senso de justiça justa se solidificasse conforme o passar dos anos.
Tais princípios são encontrados na CF/88, que retratam respectivamente, os direitos e garantias dos cidadãos brasileiros explanando princípios norteadores, quais sejam, da dignidade da pessoa humana, do tratamento igualitário, do devido processo legal, da presunção da inocência, da atenção à integridade física e moral do preso, do contraditório e da ampla defesa, do juiz natural, da proibição de provas maculadas, da duração coerente do processo e por fim e imensamente importante, o tribunal do júri, sendo o primeiro princípio presente no Art. 1º da Constituição e os demais ostentados no Art. 5º.
Para exemplificar e construir uma imagem da relevância supradito, um marco no mundo jurídico ocorreu por meio da Súmula Vinculante 11 do STF, atuando como Guardião Constitucional, quando a proibição do uso de algemas pelo réu durante as argumentações do júri sofreu uma transformação, passando de regra para uma exceção. Tal gesto já era observado em diretrizes jurisprudenciais e, com a devida reforma, tornou-se artigo de lei, amparado pelos princípios da presunção da inocência do réu, da dignidade da pessoa humana e sob o prisma da integridade física e moral do acusado.
1.1.3. A reforma do Processo Penal com o Pacote Anticrime: Sistema Acusatório e Juiz das Garantias
O desenvolvimento e a inserção ávida das plenas peculiaridades do Sistema Acusatório no Código de Processo Penal Brasileiro são marcos necessários para que as normas atinentes ao juiz das garantias sejam de fato eficazes, tendo em vista a grande dificuldade de desvinculação dos atributos inquisitórios que permeiam o supracitado código processual e o seu texto natural, no entanto, pequenas correções foram realizadas ao longo dos anos e continuam sendo feitas quando ocorre uma confrontação a respeito da solidificação do modelo acusatório de processo penal.
As correções interpretativas são realizadas pela Suprema Corte Brasileira a fim de rechaçar perante o judiciário qual o sistema processual que o Brasil deseja encaminhar. Sob estes aspectos, importante listar um exemplo claro, quando o Supremo Tribunal Federal deliberou sobre a impossibilidade de o magistrado demandar de ofício, novas diligências probatórias, quando o Ministério Público se manifestar pelo arquivamento do inquérito, sustentando que o desrespeito ao sistema acusatório seria patente (STF – HC nº 82.507/SE, Rel. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, DJ 19.12.2002, p. 92).
Sendo desta maneira, é de extrema magnitude que o judiciário brasileiro cumpra os preceitos desta estrutura acusatória para ser eficaz diante de sua proposta democrática. Por isso, a implementação da figura do Juiz Garantidor é de grande anseio por fazer parte desse processo de redemocratização do judiciário brasileiro.
Para tanto, uma das principais modificações realizadas no CPP/41 consta na impossibilidade de o juiz decretar uma prisão cautelar de ofício, ou seja, sem o requerimento das partes. Esse estorvo ao ativismo judicial no qual impede o magistrado decretar prisão de ofício possui o fundamento na implementação expressa do sistema acusatório no processo penal brasileiro por intermédio do famigerado “Pacote Anticrime”. Consta ainda o fato de ter sido estabelecido que o sistema processual penal do País será acusatório, fazendo com que várias determinações contidas no CPP/41 passem a ser analisadas de formas distintas (BRASIL, 2019).
Após as devidas atualizações da Lei 13.964/19, é expressamente estabelecido que o sistema processual penal adota o método em que as funções de acusar e julgar foram desagregadas, legitimando a questão probatória para as partes e afastando o juiz de uma função atípica que exerceu durante fartos anos. Ao magistrado, cabe cumprir a sua atribuição, qual seja, de julgador e não de parte, consignando o papel de espectador adentro do jogo processual e não de jogador, como ocorre de quando em quando (BRASIL, 2019).
Vale repisar que todas as reformulações enfatizadas se tornaram um grande passo para almejar o ideal papel de togado imparcial, ainda que esta figura não goze de forma plena e devida e, ao mencionar que estão vedadas as iniciativas do juiz na fase investigativa, exprime que o magistrado não pode agir de ofício, seja para decretar medidas cautelares tal como medidas cautelares reais ou diligências de buscas e apreensões.
Conforme o Art. 3º-A do CPP/41, o papel probatório é da acusação e não do juiz, entretanto, em que pese a nova redação buscar modernizar o judiciário brasileiro, o legislador manteve o Art. 156, I, do CPP/41, que possibilita a atuação do juiz de ofício na questão probatória, a seguir:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
Ora, se a finalidade principal e objetiva é esgotar com o ativismo judicial e estabelecer que as provas sejam de inteira responsabilidade da acusação, como admitir a atuação do magistrado na produção de provas nos termos do artigo supracitado? Consigna-se que as provas consideradas urgentes e relevantes é amplamente superficial e de cunho genérico, ofertando margem para uma atuação ilimitada e descabida.
Há de se destacar que outro dispositivo presente no Código de Processo Penal é adverso atinente a inteligência do Art. 3-A, especialmente, quanto a possibilidade do juiz substituir as partes na questão probatória, o qual proporciona ao magistrado a realização de perguntas na audiência, de acordo com o Art. 212, P.U, CPP/41, in verbis:
Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
Imperioso ressaltar que, partindo das modificações realizadas na legislação processual penal através da Lei Nº 13.964/2019, aperfeiçoando o sistema penal e processual penal, é indubitável que o sistema acusatório foi definido por lei para ser estritamente cumprido, todavia, o artigo supraindicado ataca a legislação novel a qual determina que o ato probatório é de competência das partes, não devendo o togado substituir esta atuação.
Nesse sentido, inexiste razões para que o magistrado realize perguntas no decorrer da audiência, tendo em consideração que o mesmo não possui o condão de provar determinados fatos através de questionamentos. Por seu turno, mesmo diante das críticas e contradições dentro do próprio código, é preciso entender que o propósito é a total implantação do sistema acusatório, carecendo o juiz limitar-se ao papel que lhe é incumbido, qual seja, de julgador, de modo que as demais normas contidas no CPP/41 devem ser interpretadas em conformidade com a disposição do Art. 3-A, CPP/41.
Felizmente, surge a figura do juiz de garantias, incluída no Código de Processo Penal através da Lei Nº 13.964/19, no intitulado “Pacote Anticrime”, desencadeou um acirrado debate sobre sua virtude e principalmente sua constitucionalidade. Acrescenta-se, ainda, que a finalidade anunciada no Art. 1º da referida lei é “aperfeiçoar” o direito penal e o processo penal. De fato, as dúvidas que pairam se as novas regras realmente melhoram a legislação são constantes, no entanto, não se pode confundir com a análise da constitucionalidade das normas vindouras.
Por tais motivos, importante destacar a funcionalidade do Juiz das Garantias em outros países como um direito comparado, a fim assegurar a lisura do processo penal brasileiro e reafirmar a urgência da implantação desta figura no Brasil, tornando o ambiente da persecução penal mais justo e correto.
Com estes fundamentos, alguns países figuram a presença do juiz garantidor, tais como, Itália, Portugal, Chile, fazendo com que a distância entre o Juiz do processo seja efetivada perante os elementos recolhidos em investigação, não contaminando o magistrado julgador com convicções precipitadas. In casu, a prestação jurisdicional foi eficaz trazendo uma legitimidade processual com as tarefas específicas e divididas entre o magistrado do processo e o magistrado julgador, em outras palavras, com efeito, “a dissociação do juiz da investigação do de julgamento não é estranha ao Direito Comparado, ao contrário.” (SANTOS, 2020, p. 50).
A par disso, sabe-se que é um método inovador que afasta os resquícios do sistema inquisitório praticado no Brasil e, reafirma o princípio acusatório do sistema processual penal evidenciando a imparcialidade da toga e externando uma segurança jurídica a todos os envolvidos.
Portanto, é perceptível que a implementação do Juiz das Garantias não é apenas uma mudança legislativa e sim, uma evolução em direção a uma via processual penal mais democrática, que atende, por sua vez, ao mandamento constitucional na ordem inaugurada ainda nos idos de 1988. Além da influência política no processo penal, é preciso falar também da influência da nova ordem constitucional. A Carta Magna de 1988 prevê que os juízes garantidores representem a posição constitucional do tribunal, ou seja, durante a fase de investigação, de acordo com o sistema de acusação criminal, as ações são realizadas controlando a legitimidade e outros direitos individuais básicos.
A respeito do tema e das condições psicológicas em que se encontra o togado, na atual conjuntura processual penal do Brasil, Santos leciona que:
A adoção do juiz das garantias em tantos e diferentes Países é a resposta a uma constatação científica, extraída, mais precisamente, da psicologia: na medida em que o magistrado, embora passivamente, intervém no inquérito, acompanhando o seu desenrolar, deferindo medidas cautelares que servirão de suporte para a vindoura denúncia, dialogando com os agentes de repressão estatal – delegados e promotores de justiça –, tudo isso sem o contraponto defensivo, em vista da inquisitoriedade do inquérito, é natural que o seu convencimento comece a ser construído sob a ótica do Estado-acusação. Tal se dá não por má-fé, mas a partir de uma armadilha mental, afinal, suas impressões e convicções são construídas de acordo com a realidade colocada à sua frente. Não por acaso tem-se o bom e velho dito popular segundo o qual a primeira impressão é a que fica. Sendo esse mesmo juiz o responsável pelo julgamento do mérito, quando vier a versão defensiva o juiz a examinará carregado de preconceitos, subvertendo, psiquicamente, a presunção de não culpabilidade versada no art. 5º, LVII, da CRFB/88, enquanto regra de tratamento: ao invés de ouvi-la com desassombro, sem peias nem desconfianças, tratando o réu, senão como inocente, ao menos como não culpado, recebê-la-á com soslaio, com olhos de censura. E, se assim o é, imparcialidade inexiste.[...]. (SANTOS, 2020, p. 53, grifos nossos).
Entrementes, o maior valor agregado em relação ao processo criminal, diz respeito ao fato de que o magistrado das garantias que é atuante na fase de investigação não será o mesmo da fase de instrução em que julgará um determinado processo, ou seja, o juiz que comandará a parte instrutória irá se abster do conhecimento prévio relacionado as colheitas de provas durante a persecução penal.
Nesse passo, Junior (2021, p. 51) assevera que a mudança dos juízes ocorre em um momento de recebimento da denúncia ou da queixa, a qual é encaminhada para o togado da instrução acompanhado da peça acusatória, fazendo com que o juiz da instrução colha as provas através do cumprimento dos princípios substanciais democráticos, quais sejam, o devido processo legal e garantindo o contraditório e a ampla defesa para formar o seu convencimento.
Desta forma, basicamente as partes envolvidas no processo criminal estarão equidistantes e atuantes nas produções de provas ao magistrado para convencê-lo do julgamento pretendido, seja para condenação ou absolvição, diferentemente do que transcorre nos dias atuais, onde o juiz da instrução tem conhecimento prévio de toda a íntegra que da fase de investigação (JUNIOR, 2021, p. 70).
O juízo da instrução poderá manter contato com alguns componentes de informativos que já foram colhidos na fase de investigação, desde que, tratam-se de provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas e antecipação de provas que são encaminhadas ao juízo da instrução. Por seu turno, as outras informações da investigação ficam acauteladas, de modo que o magistrado da instrução não terá conhecimento sobre essas informações, pois, as mesmas ficarão distanciadas e, somente as partes, no caso a acusação e a defesa, quem poderá ter acesso as supracitadas averiguações. Então, no caso, a relação do juiz das garantias com o sistema acusatório se dá justamente porque a figura do mesmo tonifica o referido sistema. Para tanto, o Código de Processo Penal, através do Pacote Anticrime e à luz do Art. 3-A, determina:
Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
Então, em especial, a legislação acima reforça o sistema acusatório que já foi consagrado pela Constituição Federal, preceituando especificamente no Art. 129, I:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
Acrescenta-se ainda, que devido ao fato do Código de Processo Penal vigente ser anterior a Constituição, a mesma quando trouxe o dispositivo acima, deixou bem claro o sistema que o país adotaria referente aos procedimentos dos processos criminais brasileiros, isto significa a consolidação do sistema acusatório, em que, não haveria nenhuma desordem entre o poder de acusar e o poder de julgar. Como se depreende, a Carta Magna define bem a separação destes poderes de modo que ficasse clarividente que o julgador não atuará como órgão de acusação.
Cumpre consignar a exigência que a Constituição traz consigo, reivindicando que o magistrado se distancie o máximo possível das partes para que ele possa conferir paridade de armas a acusação e a defesa. Dentro desse contexto, a figura do juiz garantidor é responsável por realizar um reforço ao sistema acusatório e, além disso, explanar as funções de controle de legalidade e garantias de direitos individuais daqueles que estão sendo investigados.
Convém ponderar, ao demais que não são todos os procedimentos criminais que irão ser passíveis do juízo das garantias e nem todos os processos criminais caminharão para a autorização da separação do magistrado da fase de investigação e o magistrado da fase de instrução, considerando que o legislador conceituou uma ressalva no Art. 3º-C e seus parágrafos, do Código de Processo Penal Brasileiro, da seguinte forma:
Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código.
§ 1º Recebida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da instrução e julgamento.
§ 2º As decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias.
§ 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.
§ 4º Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias.
Isto é, os crimes de menor potencial ofensivo preceituados na Lei 9.099/95, a qual dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, não serão objetos de atuação do juiz das garantias, em virtude da celeridade dessa espécie de procedimento, o qual é designado como procedimento sumaríssimo. Então, em suma, o juiz das garantias tão somente será aplicado ao procedimento ordinário e ao procedimento sumário.
No caso vertente, após toda a ampla divulgação e promulgação da Lei 13.964/19, a Associação dos Magistrados Brasileiros e a Associação dos Juízes Federais do Brasil judicializaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal, a fim de impugnar a figura do juiz garantidor, através da ADI Nº 6298, onde todos os dispositivos que tratam da atuação do juiz das garantias foram suspensos partindo do Art. 3º-A findando no Art. 3°-F do CPP/41, sendo que, até a presente data da escrita deste artigo, a liminar mantém suspensa sua implantação imediata. Ademais, é um caso que consubstanciará no plenário do STF. Releva notar, ainda, que, a Lei 13.964/19 denominada “Pacote Anticrime” vigorou alterando o Código Penal, o Código de Processo Penal e a legislação extravagante.
2. A IMPARCIALIDADE DO JUIZ E O PRESSUPOSTO DO EXERCÍCIO PLENO DA JURISDIÇÃO PENAL
A concepção para emergir a imparcialidade do togado veio com força no autoritarismo da pré-revolução francesa no século XVIII. Dessa forma, logo se entendeu a ideia de que o juiz deveria julgar a partir da lei e não deixar margem para o subjetivismo, tencionando maior legitimidade no julgamento sem haver um preconceito por parte do julgador, mantendo-se neutro na situação. Destaca-se a relevância da temática acompanhada de sua complexidade, dado que o ser humano, assim como o juiz, conduz uma bagagem de acentuada vivência capaz de inspirar em sua tomada de decisão na atividade jurisdicional (MENDES, 2020, p. 50)
Conforme ensina Souza (2018, p.46) no tocante ao princípio fundamental da imparcialidade do juiz presente na Constituição Federal Brasileira de 1988, é de longe um dos mais cardinais, dado que, inexistindo a imparcialidade todos os outros princípios perdem sua essência, visto que não chegam a uma completude. Embora seja um princípio composto na CF, é bastante criticado em linhas filosóficas, políticas e sociológicas como um mito da modernidade e, apesar disso, é considerado formal e juridicamente necessário para que exista uma garantia contra a arbitrariedade e suas sequelas.
No sentido idealista do princípio, Souza (2018, p. 58) leciona que o juiz imparcial é aquele que julga livre de elo ou conexão com algumas das partes, portanto, sua decisão é indiferente aos fatos que não são apresentados como prova. Por conseguinte, extrai-se que a neutralidade do julgador é necessária para a legalidade do procedimento, resultando em uma ação plenamente eficaz do início ao fim sem perspectivas de falhas. Isto significa que as formalidades do direito vêm justamente com o intuito de transluzir segurança jurídica a todo momento em nome de uma equidade almejada. A fim de salvaguardar a figura do magistrado imparcial, a Carta Magna de 1988 aduz em seu Art. 95, parágrafo único, garantias e vedações que possuem primordialmente a função de tutelar contra possíveis incorreções cometidas pelo juiz, a seguir:
Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:
I - vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado;
II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII;
III - irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Parágrafo único. Aos juízes é vedado:
I - exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério;
II - receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo;
III - dedicar-se à atividade político-partidária.
IV - receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
V - exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).
Persistindo na importância de garantias e vedações do magistrado, o CPP/41 também estatui em seu Art. 252 em referência aos impedimentos e no Art. 254 em alusão as suspensões, dispostos a evitarem condutas antidemocráticas, sobretudo atuações inconstitucionais que versam na realidade do judiciário brasileiro.
Tradicionalmente, é contextualizado o significado de jurisdição penal como forma efetiva do Estado para exercer o imponente poder punitivo sobre o acusado, restando para a parte enfraquecida a submissão perante tamanho poder. Diante da conjunção, o predomínio do entendimento de jurisdição meramente como poder estatal corrobora as características de coação e do autoritarismo, ocorrendo uma brecha para as práticas arbitrárias em prol da afirmação do poder punitivo, tais como, uma reconsideração das garantias constitucionais que o cidadão possui como proteção contra o forte poder para com o Estado e irrestrita liberdade de iniciativa probatória do togado, com um argumento de aproximação da verdade real, que conflita diretamente com os valores democráticos de um Estado de Direito.
Com o efeito de realce, um Estado democrático é baseado na tutela de liberdade do cidadão contra o poderio estatal, através de um conjunto de direitos e garantias, celebrados de forma constitucional que possuem o condão de reiterar que a atividade jurisdicional deve ser abarcada como indubitável protetora do sistema de garantias e direitos constitucionais, não agindo de forma reversa com exibicionismo do arbítrio, de acordo com Lopes Jr.:
A efetividade da proteção está em grande parte pendente da atividade jurisdicional, principal responsável por dar ou negar a tutela dos direitos fundamentais. Como consequência, o fundamento da legitimidade da jurisdição e da independência do Poder Judiciário está no reconhecimento da sua função de garantidor dos direitos fundamentais inseridos ou resultantes da Constituição. Nesse contexto, a função do juiz é atuar como garantidor dos diretos do acusado no processo penal. (LOPES JUNIOR, 2019, p. 51)
Por consequência, a proteção das garantias as quais o indivíduo possui dentro de um devido processo legal no âmbito penal, é um preceito fundamental exigido por parte do poder Estatal a fim de frustrar tal poder, limitando-o constitucionalmente com base no contexto de que todo poder tende a ser autoritário e esse autoritarismo deve ser contido, não só submetendo o sujeito ao julgamento perante um juiz e sim, sujeitando-o a um magistrado natural, garantidor e preponderantemente imparcial, tendo em vista a construção de uma atividade probatória pelas partes envolvidas, cabendo ao togado apenas espectar com o intuito de proferir sentença de acordo com a apresentação de fatos e provas válidas dentro de um processo, alcançando uma verdade processualmente fidedigna embasada no que preconiza o conceito de jurisdição penal, exemplificando uma conjuntura de conhecimento e autoridade, aliando ambos no devido processo legal e à frente do saber, para que não haja o exercício do poder arbítrio.
2.1. Os efeitos da Dissonância Cognitiva na imparcialidade do magistrado
É crucial começar a introduzir os efeitos da dissonância cognitiva na imparcialidade do magistrado, elucidando a Teoria da Dissonância Cognitiva no ponto de vista psicológico. Sob esse prisma, ela foi desenvolvida a partir do campo da psicologia social na universidade de Nova York na década de 1950, por Leon Festinger, partindo do princípio da análise no qual verifica-se as formas em que as pessoas reagem diante de duas ideias certamente antagônicas e incompatíveis entre si e, de que maneira o indivíduo pode buscar algo para aliviar essa situação desconfortável, ou seja, um sujeito de forma passiva é provocado por concepções e acaba buscando uma possibilidade de equilíbrio dentro do seu próprio sistema cognitivo para harmonizar a relação entre o seu conhecimento e suas opiniões. (ANDRADE, 2019, p. 1654)
Em outras palavras, é uma solução para eliminar essa contradição existente que acaba extraindo a ideia da dissonância e consequentemente do próprio estresse que é gerado por ela. Isto em palavras simples, é como se o sujeito tencionasse, em sentido psicanalítico, defender-se do ego de eliminar as contradições intelectivas entre duas concepções divergentes da qual ele precisa encontrar lógica em uma das duas para pacificar essa estrutura cognitiva.
Trazendo essa realidade um pouco complexa para o mundo jurídico, enxerga-se na prática e com bastante precisão o funcionamento desse desequilíbrio e a forma que pode alterar a legitimidade em uma decisão processual. No caso, o magistrado está exposto diariamente a uma dissonância cognitiva, dado que um lado detém a tese da acusação e do outro a tese da defesa, logo, ambas colidem e imediatamente a psique do julgador entra em divergência e causa uma dissonância na compreensão dos fatos.
Nessa perspectiva, é imprescindível mencionar a sapiência do ilustre jurista alemão, Schünemann (2012), que assevera através de artigos e pesquisas em que, a ocasião de quando o juiz começava a ter contato com os episódios na fase do inquérito, imediatamente se convencia que aquilo era verdade. Posteriormente, o mesmo obtinha um reforço positivo com oferecimento e recebimento da denúncia e, no caminhar do processo, quando inserida a tese da defesa, o togado já estava contaminado e cada vez valorizando as idealizações que confirmavam o seu pensamento, negando-se a prestar atenção nos conteúdos que causavam essa dissonância, evidenciando que as teses da acusação dispunha de uma força bem maior perante a da defesa, em razão de convencimento prévio que o crime de fato havia desenrolado.
O jurista também percebeu em sua pesquisa que, de 17 juízes que tiveram contato com o inquérito, todos eles condenaram o acusado e de 18 juízes que não tiveram contato com o inquérito, 08 proferiram condenação e 10 absolveram, ou seja, reforça o quanto o magistrado nutrindo o contato prévio com o inquérito pode acarretar adversidades, visto que não é disponibilizado o ingresso ao contraditório pleno por analisar somente sob o ponto de vista estatal, em outras palavras, o julgador sente-se cômodo em aceitar as teses da acusação que reduziam a dissonância em detrimento das teses da defesa, resultando em um número maior de condenações. Essa ideia torna-se um grande problema até mesmo no ponto de vista moral, tendo como um bom exemplo no cotidiano para trazer essa pauta de forma prática, quando uma pessoa está espectando um telejornal em sua casa, e lá estiver atacando um político que o indivíduo possui grande estima, prova-se a entrada de um conflito entre o conhecimento e opinião, fazendo com que o mesmo imediatamente tende a desligar a televisão, em atenção as crenças que carrega consigo, fugindo das contradições de conhecimento e criando no sujeito um efeito de perseverança (SCHÜNEMANN, 2012).
Concomitantemente, esse efeito faz com que o indivíduo se fixa em uma primeira ideia assumida, vez que, o que era uma hipótese torna-se uma quase certeza. Por essa razão, é preciso que o sujeito almeje conhecimento e faça uma busca seletiva de informações, no entanto, essa busca de informações é transformada em pretexto para poder legitimar aquela primeira informação que já assumiu como verdadeira, e nessas circunstâncias para quem vai atuar dentro de um processo judicial na jurisdição penal, consegue na grande maioria das vezes se transformar em uma possível mácula por ser na verdade um instrumento que legitima uma busca de uma ideia preconcebida pelo órgão julgador, ou seja, a atividade defensiva pode se tornar algo meramente circense, sem nenhuma aplicabilidade enfática.
A exemplo, o cidadão que está sendo investigado e um determinado juiz autoriza a quebra de sigilo bancário, sigilo fiscal e/ou sigilo telefônico, sendo esse mesmo magistrado que oficiou esses arbítrios, julgará o réu nessa caracterização que o sujeito foi exposto, não englobando a valorosa proteção da figura do juiz das garantias que atua contra os abusos do Estado.
3. UM ESTUDO DE CASO: A (IM)PARCIALIDADE DE MORO E O PROCESSAMENTO DE LULA
No caso vertente, houve uma grande repercussão de forma negativa, em que o judiciário brasileiro revelou à tona suas deficiências em atuação conjunta com a instituição independente, sendo esta, o Ministério Público Federal. O assunto percorreu de forma midiática por envolver um ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, diante das investigações da operação intitulada “Lava Jato”, iniciada em meados do início do ano de 2014 e perdurando até os dias atuais, composta por diversos procuradores do MPF investigando e denunciando os envolvidos por ligação direta referente ao uso de dinheiro derivado de propina e lavagem de dinheiro.
Pois bem, o ex-presidente Lula foi alvo de condenação no ano de 2016 e consequentemente teve a prisão determinada em abril de 2018, na época pelo então juiz Sérgio Moro, titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, hoje ex-magistrado. Destarte, a prisão de Lula foi contestada por seus advogados através de vários recursos impetrados, no entanto, sem sucesso de provimento.
Para tanto, em busca de fundamentar as acusações contra o réu, o Ministério Público Federal, titular da ação penal, argumentava que Lula cometeu crime ao nomear um determinado diretor para o comando da estatal Petrobras e, em troca da nomeação, segundo o MPF, o acusado receberia uma parte da propina que os diretores corruptos receberiam. Por outro lado, a defesa de Lula ponderava a negativa das acusações e enfatizava que a competência territorial não era da Vara Federal de Curitiba. Destaca-se aqui, a temática alusiva a competência jurisdicional e a forma negativa como os Procuradores da República procediam com o caso abrangendo um ex-chefe de Estado, sendo a denúncia contra Lula apresentada exclusivamente em primeira mão à imprensa e não obedecendo o rito processual correto, o qual seria a apresentação da denúncia ao Poder Judiciário Federal (G1 PARANÁ, 2016).
Em ato contínuo, com a prisão de Lula no ano de 2018, ano eleitoral e com possibilidades de candidatura do mesmo, os direitos políticos do ex-presidente foram cassados tornando-o inelegível. Passado essa situação eleitoral e com um novo Presidente da República eleito, o então juiz federal Sérgio Moro pede exoneração do cargo de magistrado para assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública do novo governo vindouro. Após todo esse contexto questionável, abriram diversas discussões sobre a imparcialidade de Sérgio Moro diante da condenação de Lula, tendo em vista que supostamente haviam interesses particulares por parte do ex-juiz na sentença do ex-presidente. Com isso, a defesa de Lula incessantemente impetrava Habeas Corpus, remédio constitucional para cessar a prisão do mesmo e consequentemente apreciar os vícios cometidos pelo julgador à época, Sérgio Moro, que a defesa alegava na condenação do réu.
Um novo capítulo se abre quando surge novas provas provenientes de ataque “hacker” contra o ex-juiz Sérgio Moro e um Procurador da República e coordenador da operação Lava Jato, Deltan Dallagnol, hoje ex-membro do Ministério Público Federal, exonerado a pedido. Essas provas recém-adquiridas eram consideradas ilegais por serem obtidas em contrariedade as formalidades da legislação jurisdicional brasileira, porém, continha mensagens trocadas entre as duas partes envolvidas e supracitadas, através de aplicativos mensageiros de telefone com um teor de alinhamento jurídico para que a condenação do ex-presidente Lula fosse efetivada com sucesso, havendo instruções com escolhas e determinações por parte do ex-magistrado. Desta forma, inicia-se a comprovação do afastamento da imparcialidade por parte de Sérgio Moro, mesmo que através de evidências ilegais. Nesse passo, o Supremo Tribunal Federal decide apreciar os pedidos da defesa de Luiz Inácio para reconhecer ou não a suspeição de Moro perante o julgamento objeto de estudo.
Diante dos fatos, cumpre ressaltar que o STF não utilizou das provas indevidas divulgadas por “hackers” para basear sua decisão, mas, julgou pela procedência da suspeição do ex-magistrado Sérgio Moro, havendo outros elementos contundentes para considerar Moro suspeito e parcial. Isto significa que absolutamente nenhum juiz pode ser considerado imparcial quando é averiguado que o mesmo utiliza de meios jurídicos para grampear os advogados do réu e para divulgar conversas telefônicas com um objetivo específico de criar perante a sociedade um ambiente artificial de culpa do sujeito antes mesmo de ser levado a julgamento, sendo essas atitudes supramencionadas tomadas pelo então togado Sérgio Moro (NOTÍCIAS STF, 2021).
De sorte que, o Habeas Corpus (HC 164493, STF, 2021) foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal havendo um entendimento da Suprema Corte que o ex-magistrado era suspeito para julgar aquela causa e que, portanto, havia um vício processual que resultaria na nulidade daquele processo, sendo que, o novo juiz investido não poderá convalidar os atos anteriores já realizados e que, deste modo, teria que empreender novamente todos os atos processuais, inclusive, decidindo por uma nova sentença que pode vir a ser condenatória ou absolutória. Com o desfecho de todo o caso envolvendo o vício em questão, os processos tornaram-se nulos, calhando na volta dos mesmos para a fase inicial, a fim de que sejam discutidas todas as matérias de defesa, inclusive a falta de jurisdição da Justiça Federal de Curitiba.
Importante enfatizar que a influência máxima no julgamento que resultaria na suspeição de Moro era o vazamento de conversas “hackeadas” entre o ex-juiz federal e os Procuradores da República, que eram os acusadores do ex-presidente Lula no caso em questão. O questionamento seria concernente as provas ilícitas se poderiam ter ou não sua validade reconhecida em razão dos meios utilizados para coletá-las.
Mesmo não sendo utilizada na decisão de suspeição, havia precedente e doutrinas que aduzia no sentido de que provas ilícitas poderiam ser utilizadas no processo penal em benefício do réu para fundamentar o julgamento da matéria da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro, muito embora não havia conhecimento da veracidade daquelas provas, as mesmas deveriam passar por um processo de análise e perícia para identificação de adulteração ou de confirmação de fidedignidade em caso de utilidade dos indícios ilegítimos.
Perfaz notar as problematizações que o caso emerge frente ao judiciário brasileiro. É sabido que nenhuma prova da inocência será reconhecida quando não há um juiz imparcial atuando no caso, então, a premissa de legitimidade de qualquer processo é a existência de um magistrado imparcial, rigorosamente, posto que o papel do togado imparcial é apreciar as provas da acusação e as provas da defesa para então, proferir a sua decisão, todavia, no caso em comento da Operação Lava Jato de Curitiba não se encontrava um juiz equidistante e sim um juiz que coordenava a própria acusação.
3.1. As consequências das máculas da parcialidade
Em que pese os vícios processuais terem eivados os processos contra o ex-presidente Lula na sua totalidade, o ponto nodal do problema é como a máquina pública e o erário foram amplamente prejudicados com a movimentação enorme de um grande número de servidores públicos para o cumprimento das diligências processuais, ocasionando monstruosas despesas financeiras em toda estrutura montada a cada passo dado pela Vara Federal de Curitiba. Além do custo financeiro, a insegurança jurídica e democracia foram postas em xeque pela sociedade diante de reiteradas decisões controversas que iam de confronto com o ordenamento jurídico brasileiro e, principalmente, contra a Carta Magna de 1988.
A piora do quadro dar-se-á quando é obviedade que todos os custos morais e pecuniários serão de fato absorvidos pela coletividade brasileira, sem exceção, mas com maior prejudicialidade para os mais vulneráveis e acima de tudo para o Estado Democrático de Direito, violando todo seu regramento constitucional. É nessa linha de raciocínio que desenvolve o pensamento do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, acerca do Habeas Corpus impetrado pelo paciente Luiz Inácio para análise da suspeição do juiz Sérgio Moro:
Contudo, aqui vamos muito além de qualquer limite. Não podemos aceitar que o combate à corrupção se dê sem limites. Não podemos aceitar que ocorra a desvirtuação do próprio Estado de Direito. Não podemos aceitar que uma pena seja imposta pelo Estado de um modo ilegítimo. Não podemos aceitar que o Estado viole as suas próprias regras. (HC 164.493/PR, Ministro(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma do STF)
Ademais, o também Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, no mesmo sentido se direciona a lição de:
Em tal contexto, a exigência de imparcialidade dos magistrados constitui um dos pilares estruturantes do Estado Democrático de Direito, verdadeiro predicado de validade dos processos judiciais, estando intimamente vinculada ao princípio do juiz natural. Isto porque de nada adiantaria estabelecer regras prévias e objetivas de investidura e designação de magistrados para a apreciação das distintas lides ou proibir a instituição de juízes ou tribunais ad hoc, caso se permitisse ou tolerasse que julgadores fossem contaminados por paixões ou arrebatamentos exógenos aos fatos colocados sob sua jurisdição. (HC 164.493/PR, Ministro(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma do STF)
CONCLUSÃO
Anota-se, por fim, o carecimento da figura do Juiz das Garantias no Processo Penal Brasileiro por muitas décadas de evolução jurídica dentro do padrão democrático que a Constituição Federal de 1988 preconiza. Mesmo de forma tardia, o juiz garantidor fez-se presente perante o judiciário brasileiro com o intuito de extinção do sistema inquisitorial de tempos pretéritos e implementando de vez o sistema acusatório sem os resquícios inquisitoriais ainda presentes.
Importante consignar que a plenitude do sistema penal acusatório auferira totalidade democrática, quando a suspensão da atuação do juiz das garantias perder efeito para que ponha-se em prática as novas reformulações positivadas no Código de Processo Penal Brasileiro vigente, a fim de evitar aberrações jurídicas que, infelizmente, são comuns diante do procedimento penal que é investido no Brasil e, diante do caso do ex-presidente Lula que nada mais é do que um réu a mais condenado por um magistrado parcial dentre os milhares espalhados pelo país.
Com a adoção imediata da figura igualitária do juiz garantidor, a persecução penal perderá a essência viciosa que aparece diariamente e vigorará os preceitos fundamentais que a Carta Cidadã de 1988 prescreve de um ambiente justo, livre de arbítrio e totalmente democrático.
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Bacharelando do curso de Direito da Faculdade Serra do Carmo - Palmas/TO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Antonio Pereira de Arruda. Uma análise do juiz das garantias a luz do julgamento do ex-presidente Lula pelo então juiz Sérgio Moro. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 nov 2021, 05:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57721/uma-anlise-do-juiz-das-garantias-a-luz-do-julgamento-do-ex-presidente-lula-pelo-ento-juiz-srgio-moro. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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