MARCUS VINICIUS DO NASCIMENTO LIMA [1]
(orientador)
RESUMO: A presente pesquisa se volta ao estudo da vulnerabilidade das mulheres vítimas de tráfico para fins de exploração sexual no Brasil sob a perspectiva da lei 13.344/2016. Desse modo, o principal objetivo do estudo foi analisar como a vulnerabilidade das mulheres vítimas de tráfico de pessoas no Brasil tem sido interpretada pela doutrina e jurisprudência, após a lei 13.344/2016, bem como revisar a bibliografia em direito penal sobre o conteúdo. Nesse sentido, o desenvolvimento do estudo teve como base a revisão bibliográfica com abordem dedutiva. Visto isso, a pesquisa abordou as principais discussões sobre contexto histórico do tráfico de mulheres, analisou como o Protocolo de Parlermo definiu o crime e suas principais implicações no contexto mundial. Além disso, buscou traçar a evolução do tráfico de mulheres na legislação brasileira, analisando como a vulnerabilidade das mulheres está sendo discutida pelos tribunais brasileiros e doutrinadores. Diante disso, restou demonstrado que é necessário um estudo aprofundado pelos tribunais brasileiros em relação as posições de vulnerabilidades das vítimas do tráfico de pessoas, tendo em vista a necessidade de analisar qual situação socioeconômica e psicológica que a mulher se encontrava no momento em que aceitou a proposta ofertada pelos aliciadores.
Palavras-chave: situação de vulnerabilidade; legislação brasileira; estudo aprofundado.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Contexto histórico do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. 3. A evolução do tráfico de pessoas na legislação brasileira. 4. A vulnerabilidade das mulheres vítimas de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. 5. Dados sobre o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual no Brasil. 6. Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O tráfico de pessoas consiste no recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.
A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos, de acordo com o decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004 (BRASIL, 2004).
Trata-se de um assunto muito complexo e bastante relevante para a sociedade, haja vista ser um crime silencioso, que acontece em todos os lugares do mundo, destruindo as vidas de milhares de pessoas.
Além disso, as mulheres são as principais vítimas, vez que são vistas apenas como uma mercadoria, tendo a sua subjetividade feminina totalmente desconsiderada. Tais fatores as expõem a um nível de vulnerabilidade muito maior, principalmente quando se trata de exploração sexual.
Assim sendo, eis o problema de pesquisa: como a vulnerabilidade das mulheres vítimas de tráfico para fins sexuais vem sendo interpretada, após a Lei 13.344/2016?
Desse modo, nota-se que uma das principais causas desse crime estar inteiramente relacionada com o papel da sexualidade na sociedade se dar pelo fato de o gênero feminino compartilhar de vulnerabilidades comuns.
Tais fatores têm raízes culturais associados ao patriarcado, que ainda está bastante presente na cultura mundial. Assim, como consequência desse sistema, muitas mulheres são alvos do tráfico humano, por serem vistas apenas como um objeto sexual.
Nesse sentido, o tema tem fundamental importância para sociedade, visto que se trata de um crime que afeta principalmente mulheres vulneráveis. Além disso, contribuirá com a comunidade científica do Centro Universitário Santo Agostinho, pois trará informações de grande relevância para o estudo do crime.
2 CONTEXTO HISTÓRICO DO TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL
Desde a colonização, o tráfico de pessoas faz-se presente no Brasil. De acordo com Jesus (2003), devido ao constate deslocamento de pessoas, surgiu o tráfico de mulheres brancas, estas eram trazidas da Europa para serem sexualmente exploradas nos países que havia um crescimento capitalista.
Nessa diáspora, entre os séculos XVI e XVII, os nativos africanos estavam sendo trazidos para as terras brasileiras com a finalidade de serem explorados pelos seus “donos” de todas as maneiras possíveis, sujeitando-se ao regime escravocrata e servindo apenas como um “objeto lucrativo”.
Os negros e negras eram trazidos para o país em condições extremante precárias, dentro das embarcações praticavam-se todas as formas de violência, inclusive a violência sexual. De acordo com lei vigente em 1883, as escravas poderiam ser comercializadas como prostitutas, além dos seus donos receberam o lucro dessa prática, conforme relata Nabuco (2010).
Além dessas condições, ao chegar ao país, as escravas eram submetidas a um trabalho árduo, humilhações e estupros praticados pelos seus donos, tendo que suportar todas as violências do sistema escravista.
Nesse contexto, é notório que o tráfico de pessoas sempre existiu e durante um longo período histórico foi considerado como uma prática normal. Assim, a primeira discussão sobre o assunto aconteceu em um Congresso no ano de 1902 em Paris que denominava o problema como “tráfico de brancas”. Contudo, a abordagem só era referente às mulheres descentes e puras, não trazendo para o debate a situação da exploração das prostitutas, muito menos de mulheres negras (RESENDE, 2019).
Após o fato, diversos documentos foram criados com o intuito de discutir e combater o tráfico. No entanto, somente em 1921 o título “tráfico de brancas” foi substituído por “tráfico de mulheres e crianças”.
Em seguida, em 1949 foi editada pela ONU a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Seres Humanos e Exploração da Prostituição que representou uma grande evolução ao declarar que a escravização de pessoas para prostituição afrontava a dignidade e os direitos fundamentais das pessoas. Contudo, o ingresso dessa convenção só aconteceu em 1958, quando se promulgou o decreto n° 06 (CASTILHO, 2019).
O Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional só foi aprovado em 2000. Entretanto, a promulgação só aconteceu em 2003, e o Brasil passou aderir apenas em 2004, por meio do decreto n° 5.015 (LOPES, 2017).
Conhecido como Protocolo de Palermo, esse documento foi considerado fundamental no enfrentamento do tráfico de pessoas, visto que abrangeu diversas condutas que violam os direitos humanos, deixando de citar apenas exploração para fins de prostituição.
Contudo, mesmo o Brasil adotando o Protocolo de Palermo como instrumento de enfrentamento do tráfico, a tipificação do crime do Código Penal continuava obsoleta. Até o ano de 2005 o crime de tráfico fazia referência apenas as mulheres, e o bem jurídico tutelado eram os costumes, ou seja, o crime não protegia a liberdade individual da mulher, mas sim como a prostituição era vista na sociedade.
Somente em 2016, com a edição da lei n° 13.344 houve uma adequação do crime aos moldes do Protocolo de Palermo. Na referida lei, o legislador optou por referenciar uma série de medidas em relação à prevenção, cooperação e segurança quanto ao enfrentamento do tráfico. Além disso, revogou os artigos do código penal que tratava do tráfico de pessoas e inseriu o art. 149-A (BRASIL, 2016).
Desse modo, o crime passou a proteger vários bens jurídicos, tendo como principal a dignidade da pessoa e liberdade individual, além da integridade corporal, o estado de filiação e a dignidade e autodeterminação sexual (JESUS, 2020).
É importante salientar que devido à globalização, especificamente às novas tecnologias, meios de transportes e fluxos imigratórios crescentes favorecem o tráfico de pessoas.
No paradoxo do mundo capitalista, principalmente em países emergentes, as desigualdades sociais, os baixos salários e péssimas perspectivas de melhoria de condições faz com que inúmeras pessoas saiam de cidades, regiões e países em busca de melhores oportunidades.
Tais fatos contribuem para a exploração sexual, principalmente das mulheres, que além das desigualdades socioeconômicas, sofrem com as discriminações de gênero. Assim, essas mulheres pobres e marginalizadas são atraídas por falsas oportunidades e submetem-se ao mercado do sexo.
Desse modo, trata-se de um crime bastante complexo, conforme visto, possui inúmeras ações e meios para ser realizado, além de possuir uma finalidade de exploração. Nota-se que o crime possui definição bastante ampla e por isso é possível inúmeras interpretações doutrinárias.
Além disso, é um delito silencioso, com baixos índices de denúncias, pois existem muitas dificuldades de identificação. Ademais, as vítimas têm vergonha da sua condição de vulnerabilidade, e por medo dos aliciadores não acionam o sistema jurídico.
3 A EVOLUÇÃO DO TRÁFICO DE PESSOAS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Conforme relatado, o Brasil adotou o Protocolo de Palermo somente em 2004, após a adoção deste, surgiu a necessidade de realizar alterações na lei penal que tratava sobre o tráfico humano.
Dessa maneira, foi editada a lei n° 12.015/2009 que modificou o artigo 231 e incluiu o artigo 231-A, ambos do Código Penal, as tipificações fazia parte do título VI que tratava dos crimes contra a Dignidade Sexual (BRASIL, 1940).
Nesse sentido, os artigos 231 do Código Penal cuja redação foi dada pela lei n° 12.015/2009 trazia a redação do crime de tráfico internacional de pessoas, no qual o caput tratava a definição do crime como: promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro (BRASIL, 1940).
O parágrafo primeiro aduzia que incorria na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la (BRASIL, 1940).
O parágrafo segundo trazia as hipóteses do aumento de pena, dentre elas, se a vítima fosse menor de 18 (dezoito) anos; por enfermidade ou deficiência mental, não tivesse o necessário discernimento para a prática do ato; se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; e por último se houvesse emprego de violência, grave ameaça ou fraude (BRASIL, 1940).
O artigo 231-A abarcava os casos de tráfico dentro do território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual, trazia a mesma redação do aumento de pena no caso do tráfico internacional de pessoas para fins de explosão sexual (BRASIL, 1940).
Posto isso, é importante analisar as diferenças entre o tipo penal anterior e atual. A lei n° 13.344/2016 revogou os artigos supracitados e trouxe a inovação do art. 149-A do Código Penal com uma nova redação.
Assim, segundo o art. 149-A, o tráfico de pessoas consiste em agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; submetê-la a qualquer tipo de servidão; adoção ilegal; ou exploração sexual (BRASIL, 1940).
Ainda, de acordo com o parágrafo primeiro a pena é aumentada de um terço até a metade se o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las; o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência; o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional. Em consorte, o parágrafo segundo aduz que a pena será reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa (BRASIL, 1940).
É notório que os núcleos do tipo da antiga redação do crime eram muito restritos, e que o emprego de violência, grave ameaça e fraude eram considerados como aumento de pena, ou seja, não necessitava do consentimento para a caracterização do crime. Além disso, o crime de tráfico interno de pessoas era trazido no art. 231-A e na atual redação, o tráfico internacional foi incluído como aumento de pena.
De acordo com Brasil (2017, p. 14):
A ação consiste nos atos de agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher, não necessariamente nesta mesma ordem, nem cumulativamente. Ou seja, basta que o agente recrute, ou transporte, ou aloje para que o elemento ação se configure. O segundo elemento é o meio que consiste na grave ameaça, a violência, a coação, a fraude ou o abuso. A coação pode ser física, moral ou psicológica. A fraude acontece quando o traficante usa de artifícios fraudulentos como contratos de trabalho falsos, promessas de emprego, casamento, para obter sua concordância. O abuso ocorre quando o agente usa do seu poder (por exemplo, numa relação hierárquica) ou da posição de vulnerabilidade da pessoa a ser traficada (dificuldade financeira ou familiar) para coagi-la a aderir a sua conduta.
Assim, observa-se que a legislação brasileira ampliou o rol de ações, incluindo aos atos de agenciar, aliciar e comprar, não inclusos no Protocolo de Palermo. Com isso, é notório que houve um avanço nesse sentido. Ademais, a legislação anterior abarcava apenas a exploração sexual.
4 A VULNERABILIDADE DAS MULHERES VÍTIMAS DE TRÁFICO DE PESSOAS PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL
A vulnerabilidade é um conceito muito importante para o enfrentamento do tráfico de pessoas, pois esta atinge a capacidade e autonomia de um indivíduo influenciando em suas decisões (GUERALDI, DIAS, 2014).
Nesse sentido, de acordo com Gueraldi, Dias (2014), a vulnerabilidade está inteiramente atrelada à prática criminosa na qual a vítima é exposta, em especial as mulheres que são preferenciais no mercado da exploração sexual, sendo submetidas a condições degradantes.
Em consonância, esse ponto sempre foi muito importante quando se trata de tráfico para fins de exploração sexual, assim como a questão do consentimento. O bem jurídico tutelado é a liberdade individual, assim em caso de inexistência de lesão a liberdade individual, não existiria tipicidade na conduta.
Contudo, as situações de vulnerabilidade são muito específicas devido às fragilidades das vítimas e consentimento acaba sendo induzido por questão de sobrevivência. De acordo com Pinto (2019), os indivíduos que se encontram em situações socioeconomicamente instáveis e não conseguem oportunidades passam a ser mais vulneráveis ao tráfico humano, diante dessa condição, as suas escolhas não consideradas de livre decisão.
Nota-se que nessa situação existe evidente abuso por parte do traficante que se aproveitou da condição de fragilidade socioeconômica da vítima, que não tinha alternativa e preferiu aceitar um suposto emprego sem nenhuma segurança.
Assim, segundo Carneiro (2019, p. 19) a vulnerabilidade é uma situação, em que se encontra uma pessoa ou um grupo que, nesse caso, por questões sociais e institucionais, não têm seus direitos fundamentais respeitados, responsabilidade da qual não se exime o grupo dominante que insiste em descumprir a lei.
Dessa forma, a interpretação do artigo 149-A do Código Penal em relação a situação de vulnerabilidade das mulheres sobre o livre consentimento em realizar a atividade sexual terá que ser analisada de acordo com as condições de cada vítima, observando a situação econômica, psicológica, familiar e a desigualdade de gênero.
Em consonância com o exposto, a lei 13.344/2016 preceitua que os Estados tomarão e reforçarão medidas, para reduzir os fatores como a pobreza, o subdesenvolvimento e a desigualdade de oportunidades que tornam essas pessoas, especialmente mulheres e crianças, vítimas do tráfico (BRASIL, 2016).
Visto isso, percebe-se que a referida lei reconhece a vulnerabilidade das mulheres e traz isso como um problema para ser enfrentando. Assim, é importante analisar as decisões dos tribunais. Entretanto, por se tratar de uma lei recente e por ser um crime silenciado, existe uma dificuldade em encontrar decisões que versam sobre o assunto.
A turma do TRF 1ª Região decidiu dar provimento ao um recurso de apelação criminal, processo n° 0005165-44.2011.4.01.3600/MT interposto por três réus condenados em 1ª instância, absolvendo os réus e declarando atipicidade da conduta, conforme ementa do julgado abaixo:
PENAL E PROCESSO PENAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS. EXPLORAÇÃO SEXUAL DE MULHERES. ART. 231 DO CÓDIGO PENAL. CONDUTA PRATICADA NA VIGÊNCIA DA LEI 11.106/2005. SUPERVENIÊNCIA DA LEI 13.344/2016.(TRF1ª Região, AC n. 0005165-44.2011.4.01.3600/MT, relator Des. Monica Sifuentes).
Desse modo, nota-se que o Tribunal Regional Federal decidiu a luz do art. 149-A do Código Penal, visto que na data da apelação os artigos 231 e 231-A já tinham sido revogados. Com isso, decidiu que o crime não se caracterizou porque as mulheres que trabalhavam como prostitutas estavam ali por livre e espontânea vontade.
Assim, observa-se que os réus foram condenados em primeira instância porque as elementares do crime não exigiam ameaça, força, coação, rapto, fraude, engano ou abuso de vulnerabilidade em um contexto sexual, mas com a superveniência da lei 13.344/2016 exigiu-se o uso desses meios.
Contudo, a relatora não informou na decisão se houve um estudo sobre a situação de vulnerabilidade das mulheres, analisou apenas provas documentais e testemunhos recolhidos. Assim, mesmo comprovado que as mulheres estavam alojadas e trabalhando, não existe uma certeza em relação ao livre consentimento, pois as formas de vulnerabilidade são diversas.
No mesmo sentindo, decidiu o TRF 3ª Região ao reconhecer o abolitio criminis, absolvendo os réus condenados em 1ª instância pela prática do crime de tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual, conforme ementa do julgado abaixo:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS. ARTIGO 231 CAPUT DO CÓDIGO PENAL. CONDUTA PRATICADA NA VIGÊNCIA DA LEI 11.106/2005. SUPERVENIÊNCIA DA LEI 13.344/2016. VIOLÊNCIA, GRAVE AMEAÇA E FRAUDE QUE FIGURAVAM NA FORMA QUALIFICADA DO REVOGADO ARTIGO 231-A DO CP, PASSAM A CONSTITUIR CIRCUSTÂNCIAS ELEMENTARES DO ARTIGO 149-A DO CP. ABOLITIO CRIMINIS CONFIGURADA COM RELAÇÃO À FIGURA SIMPLES DO REVOGADO ARTIGO 231-A DO CP, NA REDAÇÃO DA LEI 11.106/2005. (TRF 3ª Região, 0003569- 27.2007.4.03.6181/SP, Relator Des. Márcio Mesquita).
Nota-se que se trata de um caso que os réus também foram condenados pela prática do crime do art. 231 e 231-A, contudo na data da apelação a lei 13.344/2016 já estava em vigor. Destaca-se que o argumento utilizado na decisão é que na denúncia não há referência a grave ameaça, violência ou fraude. Além disso, as vítimas tinham dado o seu consentimento ao abarcar, tendo plena consciência do propósito da viagem.
Contudo, ao analisar o relatório da decisão observa-se que devido a antiga redação do crime não exigir abuso à vulnerabilidade ou a qualquer outro os meios da atual redação, não houve um aprofundamento em relação à vulnerabilidade. Com isso, não há como concluir se essas vítimas estavam sendo expostas a situações que viciam o consentimento.
Desse modo, de acordo com Medeiros (2013) são múltiplos os fatores que contribuem para materializar a situação de vulnerabilidade, entre eles está a desigualdades e discriminação contra as mulheres, o desemprego, serviços de saúde e as péssimas condições de moradia.
Em consorte, um estudo realizado pela UNODC (2018) examinou a prática da questão do “abuso de vulnerabilidade” em 12 países e restou demonstrado que esses países estão aplicando o conceito de vulnerabilidade de forma bastante diversificada.
Assim, restou demonstrado que a maioria dos países que incluiu explicitamente o termo abuso de posição de vulnerabilidade dentro da definição do crime se preocupa em investigar mais a situação da vulnerabilidade do que o próprio abuso. Assim, a presença de situação irregular no país, pobreza podem ser suficientes para demostrar que existe a presença da vulnerabilidade (UNODC, 2018).
O referido documento também preceitua que as vítimas de tráfico não podem se identificar como tal e algumas podem até voltar voluntariamente a situações de exploração. Além disso, afirma que a irrelevância do consentimento pode ser mais difícil em relação a situação de abuso de poder ou posição de vulnerabilidade (UNODC, 2018).
Nesse sentido, é notório que o núcleo do tipo abuso trazido no artigo 149-A necessita ser interpretado diante das situações de vulnerabilidades, tendo em vista que são situações recorrentes, presentes na maioria dos casos de tráfico para fins de exploração sexual.
Conforme visto, as interpretações dos tribunais estão sendo omissas nesse quesito, deixando de averiguar a situação da vítima diante do crime em que foi submetida, tendo em vista que maioria das pessoas exploradas são mulheres e meninas de baixa renda, que se encontram em situações como a pobreza, o desemprego, e a baixa escolaridade.
5 DADOS SOBRE O TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL NO BRASIL
Segundo o Relatório Nacional Sobre o Tráfico de Pessoas (BRASIL, 2017), a Secretaria Nacional de Política das Mulheres revela que entre 2014 e 2016, 317 mulheres foram vítimas de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, tanto interno quanto internacional e apenas 05 homens.
Contudo, vale ressaltar que a coleta desses dados ainda é muito frágil, pois não existe uma política que faz um levantamento dos perfis das vítimas, sequer o gênero. Além disso, a justiça não disponibiliza um banco de dados. Desse modo, as informações são retiradas apenas das instituições que prestam assistência às vítimas, como o disque 180 (BRASIL, 2017).
Outrossim, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (BRASIL,2017) foram registrados 442 processos criminais de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual.
Visto isso, apesar do art. 10 da lei n° 13.344/2016 afirmar que o poder público é autorizado a criar um sistema de informações visando à coleta de dados que auxiliem no enfrentamento do tráfico, na prática existem dificuldades devido à falta de política voltada para o recolhimento de informações.
Nesse sentido, é importante ressaltar que a lei n° 13.344/2016 trata sobre a prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas, traz em seu art. 2° os princípios que o enfrentamento do tráfico de pessoas atenderá, dentre eles: o respeito à dignidade da pessoa, a não discriminação por motivo de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, atuação profissional, raça, religião, faixa etária, situação migratória ou outro status, transversalidade das dimensões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, raça e faixa etária nas políticas públicas e a atenção integral às vítimas diretas e indiretas, independentemente de nacionalidade e de colaboração em investigações ou processos judiciais (BRASIL, 2016).
Nessa seara, o tráfico de mulheres é uma violação dos seus direitos humanos e das suas liberdades individuais, causando dano e sofrimento físico e psicológico. Além disso, o modelo patriarcal é responsável por deixar as mulheres em maior situação de vulnerabilidade, pois de acordo com o IBGE (2021) estas ainda ganham 20,5% a menos que os homens.
A Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (Pestraf) realizada em 2002 aponta que no Brasil o tráfico para fins sexuais possui o maior índice de mulheres e garotas negras e morenas, com idade entre 15 e 17 anos (BRASIL, 2003).
Desse modo, apesar da Constituição Federal de 1988 estabelecer que todos são iguais perante a lei, sem qualquer distinção, garantindo a dignidade da pessoa e que ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento desumano e degradante, o tráfico de mulheres viola todos essas garantias constitucionais, infringindo as leis e os direitos básicos.
Convém ressaltar que de acordo com a Convenção Americana De Direitos Humanos (1969) na qual o Brasil é signatário, ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.
No entanto, conforme a PRESTRAF (2002) o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual é uma das mais visíveis formas desse crime, o que demonstra a enorme desigualdade de gênero.
Com isso, percebe-se que apesar de existir diversos regulamentos que proíbem essa prática, a construção social em relação ao papel feminino faz com que estas se tornem as principais vítimas do tráfico para fins sexuais.
Em um questionário disponibilizado pela Polícia Federal dirigido aos Delegados Federais que atuam nas investigações do tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual, coletados por Resende (2018) demostrou que os delegados federais responderam que o tráfico de pessoas é importante, contudo não é considerado prioritário.
Além disso, quando questionados sobre outros crimes, como tráfico de drogas, corrupção e contrabando, responderam que o crime de tráfico de pessoas é considerado igualmente gravoso. Contudo, na prática não está merecendo a mesma atenção dos demais crimes.
Outrossim, a Constituição Federal de 1988 aduz que os poderes da União são harmônicos e independentes entre si, essa harmonia significa a colaboração e cooperação entre os três poderes. Assim, é essencial a contribuição de todos os entes no enfrentamento do problema. (BRASIL, 1988).
Nesse sentido, os dados relatados demostram que o tráfico de pessoas está vinculado à desigualdade de gênero existente no Brasil afetando diretamente mulheres que estão submetidas a condições sociais precárias.
Diante disso, é notório que as inovações trazidas pela lei 13.344/2016 bem como o levantamento de dados realizados pela PRESTRAF, apesar serem muito importantes no enfrentamento ao tráfico, não são suficientes para solucionar as questões que causam o crime, tendo em vista que a questão ainda é visualizada como prioridade.
6 CONCLUSÃO
Conforme referido durante este estudo, a Lei 13.344/2016 modificou a redação do crime de tráfico internacional de pessoas ampliando o rol de ações, mas especificando que o crime só seria cometido mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso.
Destacou-se que o Brasil adotou o protocolo de Palermo em 2004, por meio do decreto n° 5.015. Contudo, somente em 2016 houve uma adequação do tipo penal aos moldes do referido documento.
Viu-se que o núcleo do tipo abuso no crime de tráfico de pessoas ocorre quando o agente usa do seu poder ou da posição de vulnerabilidade da pessoa a ser traficada para coagi-la a aderir a sua conduta. Contudo, estas situações vulneráveis são muito específicas, pois estão atreladas as condições financeiras, sociais e psicológicas das vítimas, necessitando de uma análise de cada caso concreto.
Desse modo, demostrou-se que os Tribunais Regionais Federais em decisões recentes estão absolvendo réus pela prática do crime de tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual, sob o argumento que a lei 13.344/2016 exigiu o uso de ameaça, força, coação, rapto, fraude, engano ou abuso de vulnerabilidade.
Contudo, restou apontado que nos relatórios das referidas decisões não houve um estudo em relação as condições vulneráveis que as vítimas estavam expostas, não comprovando que estas estavam em situações de livre consentimento.
Dessa forma, como examinado oportunamente, além da questão da suposta inércia do poder judiciário quanto ao estudo da situação de vulnerabilidade das mulheres vítimas do tráfico, apontou-se que os delegados não consideram o crime como uma prioridade.
Portanto, como conclusão, tem-se que são necessários maiores estudos no âmbito do poder judiciário para analisar cada caso concreto, observando as situações em que as vítimas se encontravam no momento que decidiram aceitar a proposta ofertada pelos aliciadores.
Outrossim, faz necessário que os delegados federais também contribuam para a punidade do crime, tratando a questão como prioridade e realizando as diligências necessárias para coletar todas as informações possíveis em relação a situação socioeconômica e psicológica de cada vítima.
Assim, restou demostrado que apesar das inovações na legislação brasileira ainda é necessário um amplo estudo em relação ao abuso de vulnerabilidade.
REFERÊNCIAS
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_________ (1992). Decreto Lei n° 678 de 06 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 30 abr. 2021.
_________ (2016). Decreto-Lei nº 13.344, de 06 de outubro de 2006 – Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13344.htm. Acesso em 30 abr. 2021
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[1] Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho- UNIFSA, Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, E-mail: [email protected]
Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Santo Agostinho.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, KEYLLA VIEIRA. A vulnerabilidade das mulheres vítimas de tráfico para fins de exploração sexual no Brasil sob a perspectiva da Lei 13.344/2016 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 dez 2021, 04:08. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57821/a-vulnerabilidade-das-mulheres-vtimas-de-trfico-para-fins-de-explorao-sexual-no-brasil-sob-a-perspectiva-da-lei-13-344-2016. Acesso em: 22 nov 2024.
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