EDY CÉSAR DOS PASSOS JÚNIOR[1]
(orientador)
RESUMO: O presente estudo, elaborado por intermédio de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, possui a seguinte temática: Delegação do poder de polícia administrativa às entidades da administração indireta de direito privado. Seu objetivo geral consiste em compreender a mudança de posicionamento dos tribunais superiores sobre o assunto, bem como discorrer sobre a nova tese objetiva elaborada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 633782, ocorrida em 26 de outubro de 2020. O assunto rendia diversos entendimentos conflitantes, tanto por parte dos doutrinadores, quanto pela jurisprudência. Entretanto, o tribunal de forma inovadora reconheceu a constitucionalidade da delegação do poder de polícia às entidades administrativas com personalidade jurídica de direito privado, desde que preenchidos alguns requisitos.
PALAVRAS-CHAVE: Poder de polícia administrativa. Delegação. Administração pública.
ABSTRACT: The present study, elaborated through bibliographical research, has the following theme: Delegation of the administrative police power to indirect administration entities under private law. Its general objective is to understand the change in the position of the higher courts on the matter, as well as discuss the new objective thesis prepared by the Constitutional Court in the judgment of Extraordinary Appeal 633782, which occurred on October 23, 2020. The matter yielded several conflicting understandings, both by scholars and by jurisprudence. However, the court in an innovative way recognized the constitutionality of the delegation of police power to administrative entities with legal personality under private law, provided that certain requirements are met.
Keywords: Administrative police power. Delegation. Public administration.
1. INTRODUÇÃO
A Administração Pública por meio dos seus órgãos e agentes, está presente na vida cotidiana das pessoas de forma ininterrupta, seja por meio da regulação dos serviços públicos (água, energia, telecomunicações), do fornecimento propriamente dito do serviço público (seguridade social, segurança pública, saúde, transporte, educação) ou até mesmo da fiscalização (vigilância sanitária, agentes de trânsitos, fiscal de posturas, alvarás, licenças, autorizações).
Legitimada perante os princípios do direito público, especialmente o da superioridade do interesse público, indisponibilidade da coisa pública e legalidade, possui prerrogativas, para consecução dos objetivos constitucionais, chamados de poderes. São estes, o poder regulamentar, hierárquico, disciplinar e poder de polícia administrativa.
Em linhas gerais, consistem em instrumentos desenvolvidos ao longo da história dos estados e governos, além da construção no campo teórico através dos doutrinadores, com a finalidade de promover a justiça social e o interesse da coletividade.
Por meio do presente artigo, pretende-se compreender a mudança de entendimento dos tribunais superiores sobre a delegação do poder de polícia administrativa, expor de forma breve a evolução da jurisprudência nos tribunais superiores sobre o tema e discorrer sobre a sobre a nova tese objetiva elaborada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 633782.
Até o julgamento do recurso citado, entendia-se, em via de regra, não ser passível a transferência do poder de polícia administrativa às entidades da administração indireta de direito privado (empresas estatais), por se tratar de atos de direito público, típicos de Estado.
Todavia, o STF por maioria absoluta, examinando o tema 532 em sede de repercussão geral, no julgamento do RE 633782, ocorrido no dia 26 de outubro de 2020, concedeu à BHTrans (sociedade de economia mista que realiza o policiamento ostensivo na região de Belo Horizonte/MG) a prerrogativa de autuar e aplicar multas de trânsito, prerrogativa que a entidade havia perdido em 2009 em um recurso especial julgado pelo Superior Tribunal de Justiça.
A tese em questão, elaborada pelo Ministro relator Luiz Fux e aprovada pela maioria, foi a seguinte: “É constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, às pessoas jurídicas de direito privado, integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial.”[2]
Na ordem teórica, os entes políticos[3], por meio de lei ordinária, podem delegar o poder de polícia, às empresas estatais, desde que prestem serviço público típico do Estado, em regime de exclusividade. Na ordem prática, entidades como a BHTrans, responsável pela fiscalização do trânsito na capital mineira, poderão autuar e aplicar multas aos motoristas.
Ademais, insta mencionar que o pronunciamento definitivo do tribunal sobre o tema, ocorreu há pouco mais de 1 ano, portanto muito recente, e ainda sem muitos trabalhos sobre o tema, desta feita, o artigo poderá contribuir para o meio acadêmico, advocacia, estudantes de concurso público, estudiosos do direito administrativo e a comunidade em geral sobre as consequências positivas desse entendimento para a administração pública e administrados.
O artigo será dividido em 3 partes principais. O primeiro apresenta conceitos básicos sobre os poderes da administração pública e institutos relacionados. O segundo se atém ao poder de polícia expondo conceitos, características, atributos, ciclos e discorre sobre sua delegação. O terceiro realiza um breve levantamento histórico da jurisprudência do STF e STJ sobre a delegação do exercício do poder de polícia e por fim discorre sobre a nova tese jurídica apresentada no RE 633782.
Quanto a metodologia, no trabalho foi empregado procedimentos de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, através da consulta aos manuais de direito administrativo, artigos científicos, legislações e jurisprudência.
2 PODERES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Segundo Di Pietro (2019, pg 280), “poderes são inerentes à Administração Pública[4] pois, sem eles, ela não conseguiria fazer sobrepor-se a vontade da lei à vontade individual, o interesse público ao interesse privado.” Tais prerrogativas decorrem do regime jurídico a qual a administração está sujeita, juntamente dos princípios basilares e devem ser exercidos nos limites da lei, por autoridades administrativas.
Atualmente tem-se adotado, a ideia de poder-dever, visto que inadequado pensar em faculdade quando na aplicação dos poderes. Desse modo, são irrenunciáveis e indisponíveis. Destaca-se a previsão legal na Lei nº 9.784/99 (regulamenta o processo administrativo no âmbito federal), em seu Art. 2o, Parágrafo único, inciso II, nos seguintes termos:
Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei; (grifos nossos).
Há pontual divergência na doutrina, se a discricionariedade e vinculação são poderes autônomos como os demais. Dessa forma, a professora Di Pietro (2019, pág. 280), dispõe: “quanto aos chamados poderes discricionário e vinculado, não existem como poderes autônomos; a discricionariedade e a vinculação são, quando muito, atributos de outros poderes ou competências da Administração.”
Assim, a discricionariedade e vinculação não devem ser destacadas como um poder autônomo, podendo ser observada claramente nos demais poderes, nos atos administrativos e atos diversos do gestor público.
Também, considerando que a administração pública somente pode fazer o que está previsto na lei (princípio da legalidade), a contrário senso, o particular pode fazer tudo desde que não seja proibido, pode acontecer de a autoridade extrapolar na pratica dos seus atos, podendo ser responsabilizado e o respectivo ato ser invalidado.
Assim, pode ocorrer o chamado abuso de poder, decorrente de conduta dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva, sendo dividido em duas espécies. Excesso de poder quando o servidor público pratica o ato para o qual não tinha competência legal, sendo o ato nulo[5].
Já o desvio de finalidade[6] ou desvio de poder se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência. Também o ato será nulo, visto que o requisito do ato administrativo, finalidade, não cabe convalidação.
A doutrina enumera os seguintes poderes propriamente ditos: poder disciplinar, regulamentar, hierárquico e poder de polícia, na qual passaremos a discorrer logo abaixo.
2. 1 PODER DISCIPLINAR
Consiste na prerrogativa de apurar infrações/transgressões administrativas e aplicar penalidades aos servidores públicos e terceiros sujeitos a disciplina administrativa.
Além dos agentes públicos, o particular também pode sofrer sanções administrativas. Tomemos como exemplo um contrato administrativo firmado com a finalidade de construção de um prédio, caso a empresa descumpra as cláusulas pactuadas, poderá ser aplicada multa, respeitados o processo administrativo e garantia da ampla defesa e contraditório. Tal medida está prevista na lei geral de licitações e contratos administrativos, Lei nº 8.666/93.
Quando diverso do servidor público, para a aplicação de sanção a terceiros, deve existir uma relação jurídica prévia, em caso diverso, o máximo que poderá restar caracterizado é o poder de polícia.
É mais comum observamos a apuração de infrações administrativas nos servidores investidos em cargos públicos, vinculados a um estatuto jurídico, na qual prescreve uma série de deveres, proibições e penalidades, denominado regime disciplinar.
A Lei nº 8.112/90, dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, prevê no Art. 121, “O servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições.” Mais adiante enumera as penalidades possíveis de aplicação em seu Art. 127, “São penalidades disciplinares: I - advertência; II - suspensão; III - demissão; IV - cassação de aposentadoria ou disponibilidade; V - destituição de cargo em comissão; VI - destituição de função comissionada.”
Para a administração aplicar qualquer penalidade seja para o agente público ou terceiros, há de ser respeitado as garantias constitucionais do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, celeridade processual, vedação a provas ilícitas, direito de recurso, entre outros, sob pena de nulidade e responsabilização.
2.2 PODER HIERÁRQUICO
Este poder-dever, está relacionado a coordenação e subordinação entre órgãos e agentes na administração pública, ou seja, na organização administrativa, sendo baseado em dois fundamentos: a distribuição de competência e a hierarquia.
É facilmente observado na organização do poder executivo, por meio das várias secretarias de estado, cada uma responsável por determinados assuntos. E dentro desta, há distribuição de competências entre núcleos, setores, gerências, departamentos, diretorias, superintendências, todos com uma coordenação e subordinação preestabelecida.
Decorrente desse instituto, transparece algumas obrigações, conforme destacados nos ensinamentos da doutrinadora Di Pietro (2019, pág. 290):
“o de editar atos normativos (resoluções, portarias, instruções), com o objetivo de ordenar a atuação dos órgãos subordinados; trata-se de atos normativos de efeitos apenas internos; o de dar ordens aos subordinados, que implica o dever de obediência, para estes últimos, salvo para as ordens manifestamente ilegais; o de controlar a atividade dos órgãos inferiores, para verificar a legalidade de seus atos e o cumprimento de suas obrigações, podendo anular os atos ilegais ou revogar os inconvenientes ou inoportunos, seja ex officio, seja mediante provocação dos interessados, por meio de recursos hierárquicos; o de aplicar sanções em caso de infrações disciplinares; o de avocar atribuições, desde que estas não sejam da competência exclusiva do órgão subordinado; o de delegar atribuições que não lhe sejam privativas.”
2.3 PODER NORMATIVO
Corresponde à produção de atos com efeitos gerais e abstratos, realizados pela administração pública. A expressão poder normativa é mais ampla que poder regulamentar, sendo esta associada a atribuição do chefe do poder executivo de expedir e publicar decretos regulamentares, para execução correta das leis.
Está previsto na Constituição Federal, no Art. 84, inciso IV: “Compete privativamente ao Presidente da República: IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução.”
Tem natureza de ato secundário, pois não decorre do processo legislativo[7], não constituindo produto capaz de inovar na ordem jurídica, criar obrigações direitos, sanções, serve precipuamente para complementar a lei, com o fim de sua fiel execução.
Ademais no mesmo artigo, a Carta Maior, traz espécie diversa de ato, cabível ao chefe do poder executivo. Vejamos:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
VI – dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;
b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;
Já esse decreto, chamado de independente ou autônomo, apesar de não estar contido no Art. 59, da CF, tem natureza originária. Segundo Di Pietro (2019): “O regulamento autônomo ou independente inova na ordem jurídica, porque estabelece normas sobre matérias não disciplinadas em lei; ele não completa nem desenvolve nenhuma lei prévia.”
Além desses, o poder normativo pode ser observado por meio de resoluções, portarias, deliberações, regimento internos, instruções, etc. Repare que o artigo 87, parágrafo único, inciso II, da CF/88 confere aos Ministros de Estado competência para “expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos”.
Por fim, relevante destacar que na hipótese de o Presidente da República extrapolar os limites do poder regulamentar incorrendo em abuso de poder mediante excesso, cabe ao poder legislativo por meio do Congresso Nacional sustar os atos ilegais, nos termos do Art. 49, inciso V da CF/88[8].
3. PODER DE POLÍCIA
No ordenamento pátrio o conceito legal do poder de polícia está contido no artigo 78 do Código Tributário Nacional, ao explicitar sobre o fato gerador do tributo denominado taxa, nos seguintes termos:
“Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.”
Em linhas gerais, consiste na atividade exercida pela administração que limita e relativiza direitos e interesses pessoais disponíveis (liberdade e propriedade) em favor do interesse público ou coletivo, impondo obrigações de não fazer (regra geral), fundamentado no princípio da supremacia do interesse público (ius imperii) e princípio da legalidade.
É comum as pessoas associarem o poder de polícia com os órgãos de segurança pública. Diante disso, relevante esclarecer as diferenças entre polícia administrativa e polícia judiciária.
Polícia administrativa, em via de regra, atua antes da infração ocorrer, para evitá-la, submetendo-se às regras e princípios do Direito Administrativo, sendo voltada para a atividade das pessoas. Desta forma, tem natureza eminentemente preventiva. No Brasil, essa polícia é associada a modalidade de policiamento ostensivo, sendo desempenha pelo IBAMA, ICMbio, Polícia Ambiental, Fiscal de Posturas e Obras (no âmbito municipal) e Polícia Militar.
A polícia judiciária tem natureza repressiva, voltada as pessoas, atuando depois da ocorrência do delito, com a finalidade de apurar a autoria, materialidade e circunstâncias de uma infração penal. Está sujeita as regras e princípios do Direito Processual Penal. Nesse aspecto, temos a Polícia Federal e Polícia Civil.
Diante disso, o exercício do poder de polícia administrativa não é exclusivo dos órgãos de segurança pública insculpidos no Art. 144[9], da CF, não se confundindo com segurança pública, a quem, sua promoção, aí sim, é exclusiva dos órgãos policiais.
Adiante, levando em consideração a teoria do doutrinador Diogo de Figueiredo Moreira Neto a atividade do poder em polícia pode ser compreendida em ciclos, sendo 1ª- ordem, 2ª- consentimento, 3ª- fiscalização e 4ª- sanção.
As ordens decorrem de atos normativos de caráter abstrato, genérico e impessoal, prevendo obrigações de não fazer e, excepcionalmente, obrigações de fazer. Em relação ao segundo ciclo, José Dos Santos Carvalho Filho:
“Os consentimentos representam a resposta positiva da Administração Pública aos pedidos formulados por indivíduos interessados em exercer determinada atividade, que dependa do referido consentimento para ser considerada legítima. Aqui a Polícia Administrativa resulta da verificação que fazem os órgãos competentes sobre a existência ou inexistência de normas restritivas e condicionadoras, relativas à atividade pretendida pelo administrado. Ele pode se corporificar por meio de autorização e permissão” (Manual de Direito Administrativo,2014, pg. 85).
O terceiro ciclo deve-se à possibilidade de os entes estatais controlarem as atividades submetidas ao poder de polícia para verificar o seu cumprimento, podendo para o efeito recorrer a fiscalizações, análise documental, vistorias, inspeções etc. Basicamente, resume a uma análise de conformidade às normas.
Por fim, a atuação da polícia administrativa pode levar à imposição de penalidades, no caso de violação das regras impostas pelo Estado (multas, advertência, suspensões de atividades, cassação de alvarás, demolição de obras e embargos).Neste aspecto incide princípios basilares do direito administrativo, tais como a proporcionalidade e razoabilidade, perfazendo em efetivos limites[10] da discricionariedade.
Costuma-se apontar na doutrina clássica como atributos do poder de polícia a discricionariedade, a autoexecutoriedade e a coercibilidade.
A discricionariedade é o espaço de liberdade que a lei autoriza, seja por expressa previsão legal ou por sua omissão, ao gestor público para que ele, mediante critérios de oportunidade e conveniência (mérito administrativo), possa dentre as várias alternativas previstas, escolher a mais adequada ao caso concreto.
Autoexecutoriedade é a capacidade da administração, utilizando dos próprios meios legais, executar atos, sem consulta prévia ao poder judiciário. Coercibilidade consiste na possibilidade da utilização de medidas coativas quando, na situação concreta, o particular resiste. A professora Di Pietro representando corrente minoritária acrescenta o atributo da indelegabilidade na qual aprofundarei mais adiante.
Outra caraterística é que o exercício de tal poder-dever não gera dever de indenizar, pelo fato de atingir a todos, ser genérico e abstrato, ao contrário dos atos de efeitos concretos. Desse modo, via de regra, não causa danos a pessoas determinadas que possam ocasionar em obrigação de indenizar. Ademais, o direito de ação de perdas e danos contra a Administração prescreve[11] em cinco anos, comportando interrupção e suspensão, nos termos do Código de Processo Civil.
3.1 (IN) DELEGABILIDADE DO PODER DE POLÍCIA
É sobressalente na doutrina clássica o entendimento de que o poder de polícia é intransferível, pois se trata de manifestação do poder de império (ius imperii) do Estado, fundamentado na superioridade do interesse público sobre o privado. Dito isso, inviável a delegação de tal prerrogativa a particulares que se relacionam no aspecto jurídico imbuído do princípio da igualdade.
Nesse ritmo o ilustre Celso Antônio Bandeira de Mello (2015, p.863-865) destaca que a “restrição à atribuição de atos de polícia a particulares” estaria fundamentada no “corretíssimo entendimento de que não se lhes pode, ao menos em princípio, cometer o encargo de praticar atos que envolvem o exercício de misteres tipicamente públicos quando em causa liberdade e propriedade”.
Sobre o tema, observemos o Art. 4º,inciso III, da Lei Nº 11.079/2004, que estabelece normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada na administração pública, “na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes: – indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado”. (grifos nossos).
Outro argumento dentro da doutrina clássica, se alinha a teoria do Estado, ao discorrer que o monopólio da violência cabe exclusivamente a determinadas autoridades públicas. Na própria caracterização do poder de polícia há existência da coercibilidade, como meio de fazer cumprir as determinações legais, com a implementação de uma série de formas de coação, tudo isso, justificado na supremacia do interesse público.
Nessa esteira, fica impedido que entidades da administração indireta de direito privado apliquem sanções em outros particulares, pois tal prerrogativa consiste em atividade típica de estado, podendo ser desvirtuada sob o pretexto de lucro, restando em contrariedade com os critérios de igualdade presentes nas relações jurídicas entre particulares.
Diante desse ambiente, a delegação nasce, como técnica organizacional de transferência de atribuições públicas a destinatários diversos daqueles dotados das competências originárias. Isso com a finalidade precípua de atender ao princípio da eficiência na atuação da Administração Pública. A lei de processo administrativo federal (Lei nº 9.874/99), trata sobre o tema em seu Art. 12, da seguinte forma:
“Art. 12. Um órgão administrativo e seu titular poderão, se não houver impedimento legal, delegar parte da sua competência a outros órgãos ou titulares, ainda que estes não lhe sejam hierarquicamente subordinados, quando for conveniente, em razão de circunstâncias de índole técnica, social, econômica, jurídica ou territorial.”(grifos nossos).
Além disso, ao contrário das ideias da doutrina e jurisprudência clássica, o professor Alexandre Mazza (2020) inova da seguinte forma:
“é possível delegar a particulares atividades materiais preparatórias ao exercício do poder de polícia, já que elas não realizam a fiscalização em si, mas apenas servem de apoio instrumental para que o Estado desempenhe privativamente o poder de polícia. Exemplos: empresa privada que instala radares fotográficos para apoiar na fiscalização do trânsito e manutenção de presídios administrados pela iniciativa privada. Nos dois casos, o particular realiza atividades materiais secundárias, permitindo que o Estado exerça a fiscalização propriamente dita.”
Assim, seria possível a delegação das atividades de consentimento e fiscalização para pessoas com personalidade de direito privado, desde que essas atividades servirem indiretamente para a atuação da Administração.
Por fim, considerando a teoria funcional do poder de polícia em ciclos, especialmente sobre a 1º fase, a ordem de polícia, esta possui caráter absolutamente indelegável, em razão de tratar-se da função legislativa[12], ao criar obrigações de não fazer (via de regra), por meio de normas.
4. BREVE HISTÓRICO DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES SOBRE A (IN) DELEGABILIDADE DO PODER DE POLÍCIA
Sobre o assunto há embate de teses jurídicas tanto pelos tribunais, quanto pelos doutrinadores, resultando em um assunto espinhoso do direito administrativo. Neste cenário, o STF permaneceu por muitos anos alinhado a doutrina clássica, ao contrário do STJ que observando a teoria do professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, de forma inovadora permitiu a execução das etapas de consentimento e fiscalização para entidades indiretas da administração pública com personalidade jurídica de direito privado. Entretanto vedou tal concessão na fase de sanção. Diante do exposto, foi realizado breve histórico da jurisprudência sobre o tema.
Conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, por meio da ADIn 1.717-6/DF, julgada em 7 de Novembro de 2002, tendo como relator o Min. Sydney Sanches, restou firmada a tese que o poder de polícia só pode ser delegado a pessoas jurídicas de direito público (autarquias), e não a pessoas jurídicas de direito privado.
A controvérsia se delineava sobre o art. 58 da Lei nº 9.649/1998, na qual alterava a natureza jurídica dos conselhos de classe, passando a atribuir a entidades (pessoas jurídicas) de direito privado os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas. Provocado o STF declarou inconstitucional o caput do artigo citado e seus parágrafos, vez que não harmonizava com a natureza das atribuições dos conselhos de classe, que permaneciam legalmente investidos dos poderes de tributação e de polícia, concernente ao desempenho de atividades profissionais regulamentadas em lei.
Vejamos excerto da ementa do julgado:
“Com efeito, não parece possível, a um primeiro exame, em face do ordenamento constitucional, mediante a interpretação conjugada dos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da C.F., a delegação, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que tange ao exercício de atividades profissionais.
5. Precedentes: M.S. nº 22.643.
6. Também está presente o requisito do „periculum in mora ‟, pois a ruptura do sistema atual e a implantação do novo, trazido pela Lei impugnada, pode acarretar graves transtornos à Administração Pública e ao próprio exercício das profissões regulamentadas, em face do ordenamento constitucional em vigor.
7. Ação prejudicada, quanto ao parágrafo 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998. 8. Medida cautelar deferida, por maioria de votos, para suspensão da eficácia do „caput ‟e demais parágrafos do mesmo artigo, até o julgamento final da Ação.” (ADIN 1.717-6/DF – DJ 25.02.00).
Para ilustrar o posicionamento solidificado, à época, do STF sobre o tema, onde se coadunava até o ano de 2020 com a doutrina clássica que sustentava a vedação a delegação do poder de polícia, destaca a ADI n° 2.310/DF.
A demanda judicial foi proposta pelo Partido dos Trabalhadores (PT) com pedido de liminar para suspender determinados artigos da Lei nº 9.896, de 18 de julho de 2000, que dispõe sobre a administração e organização de recursos humanos das Agências Reguladoras. Entretanto, a demanda foi extinta posteriormente em razão da perda do objeto.
O mérito repousava sobre a inconstitucionalidade na criação de empregos públicos regidos pela CLT no âmbito das agências reguladoras (autarquias especiais), visto que as atribuições das autarquias especiais são atividades típicas de Estado, como a fiscalização, não podendo ser exercida por empregados.
Assim, o Ministro Marco Aurélio concedeu liminar na ADI, ad referendum do Plenário do STF, manifestando oposição à inserção de servidores efetivos no regime celetista:
“prescindir, no caso, da ocupação de cargos públicos, com os direitos e garantias a eles inerentes, é adotar flexibilidade incompatível com a natureza dos serviços a serem prestados, igualizando os servidores das agências a prestadores de serviços subalternos, dos quais não se exige, até mesmo, escolaridade maior, como são serventes, artífices, mecanógrafos, entre outros. Atente-se para a espécie. Está-se diante de atividade na qual o poder de fiscalização, o poder de polícia fazem-se com envergadura ímpar, exigindo, por isso mesmo, que aquele que a desempenhe sinta-se seguro, atue sem receios outros, e isso pressupõe a ocupação de cargo público, a estabilidade prevista no artigo 41 da Constituição Federal.” (Supremo Tribunal Federal. ADI 2.310 MC. Rel. Min. Marco Aurélio, posteriormente Min. Carlos Velloso, j. em 19/12/2000, DJ 01/02/2001)
Adiante, considerando a teoria funcional do poder de polícia do doutrinador Diogo de Figueiredo Moreira Neto, na qual desdobra-o em ciclos ou fases, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu relevantes julgamentos.
Ressalta o REsp 817.534/MG, envolvendo a Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte (BHTrans), julgado em 10/11/2009, na 2ª Turma do Tribunal, consistindo a controvérsia na possibilidade de a sociedade de economia mista aplicar multas/sanções aos motoristas. Ao fim, ficou definido pelo relator Min. Mauro Campbell Marques que:
“3. As atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser sumariamente divididas em quatro grupos, a saber: (i) legislação, (ii) consentimento, (iii) fiscalização e (iv) sanção.
4. No âmbito da limitação do exercício da propriedade e da liberdade no trânsito, esses grupos ficam bem definidos: o CTB estabelece normas genéricas e abstratas para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (legislação); a emissão da carteira corporifica a vontade o Poder Público (consentimento); a Administração instala equipamentos eletrônicos para verificar se há respeito à velocidade estabelecida em lei (fiscalização); e também a Administração sanciona aquele que não guarda observância ao CTB (sanção).
5. Somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público.
6. No que tange aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro - aplicação de multas para aumentar a arrecadação.
7. Recurso especial provido.”
(STJ, REsp 817.534/MG, Segunda Turma, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 10/11/2009, DJe 10/12/2009) (sem grifos no original)
Assim, ficou estabelecido que a BHTRANS, por ter natureza de sociedade de economia híbrida, pessoa jurídica de direito privado, não poderia autuar e nem aplicar sanções diretamente aos motoristas, em razão da impossibilidade do exercício da função sancionatória do poder de polícia. Podendo apenas exercer a atividade de policiamento de trânsito no município.
5. DELEGAÇÃO DO PODER DE POLÍCIA ADMINISTRATIVA NO RE 633782
O Supremo Tribunal Federal, no dia 23 de outubro de 2020, por maioria dos ministros, examinando o tema 532 em sede de repercussão geral, concedeu a BHTrans a prerrogativa de aplicar mutas aos motoristas na capital mineira, na qual havia perdido há 11 anos no através do REsp 817.534 .Decisão foi emanada no julgamento do RE 633782, sob a relatoria do Ministro Luiz Fux, com voto favorável ao recurso da entidade. A tese definida foi:
“É constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, às pessoas jurídicas de direito privado, integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial.”
O litígio teve sua origem no ano de 2004, quando um representante do ministério público de Minas Gerais ajuizou ação civil pública questionando a aplicação de penalidades pela BHTrans.
A ação foi julgada perante o Juízo da Vara da Fazenda Pública de Belo Horizonte e a demanda quedou-se improcedente para o parquet, sendo mantida as atividades da entidade. Após dois anos, exatamente em fevereiro de 2006, o referido representante do MP ajuizou novas ações judicias no TRF-1 e no STJ em sede de recurso especial contra acordão proferido pelo TJ/MG. Foi derrotado no primeiro, porém conseguiu acordão procedente no planalto central na Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (REsp 817.534).
Assim, foi interposto o Recurso Extraordinário, pela BHTrans em face do acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, argumentando que o pronunciamento judicial recorrido transgredia os artigos 5º, XXXV; 30, I; 37, caput e XIX; 93, IX; e 175, todos da Constituição Federal. O fato controvertido consistia no exame da constitucionalidade da delegação do exercício de poder de polícia a pessoas jurídicas de natureza privada integrantes da Administração Pública indireta, especialmente as S.A.
Para chegar a esse entendimento o relator realizou aprofundado estudo sobre o regime aplicado as empresas denominadas estatais, isto é, empresas públicas e sociedades de economia mista. No sentindo de reconhecer que essas entidades, quando prestadoras de serviço público em regime não concorrencial, apresenta natureza de regime jurídico híbrido, ou seja, apesar de serem pessoas jurídicas com personalidade de direito privada, há em muitos momentos uma derrogação parcial do direito privado pelo direito público, sendo estendido àquelas prerrogativas e sujeições da Fazenda Pública.
Nessa esteira, o STF já havia julgado na Tese de Repercussão Geral 253, que “sociedades de economia mista que desenvolvem atividade econômica em regime concorrencial não se beneficiam do regime de precatórios, previsto no art. 100 da Constituição da República.” (STF, Plenário, RE 599628, Rel. Min. Ayres Britto, Redator p/acórdão Min. Joaquim Barbosa, julgado em 25/5/2011).
O posicionamento da Corte Constitucional foi reconfirmado no julgamento ADPF 387, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, em que restou assentada no item 4 da ementa a disposição, no sentido de que “é aplicável o regime dos precatórios às sociedades de economia mista prestadoras de serviço público próprio do Estado e de natureza não concorrencial”.
Também, no RE 229.696, o STF igualou a EBCT à Fazenda Pública, reconhecendo a garantia da impenhorabilidade aos seus bens, rendas e serviços, característica peculiar inerente aos bens públicos, que não estão sujeitos também a usucapião.
Ademais, apreciando a controvérsia do RE 658.570, a Corte decidiu pela constitucionalidade do exercício do poder de polícia pelas guardas municipais, inclusive com a possibilidade de aplicação de sanções administrativas previstas em lei, fixando tese em repercussão geral, nos seguintes termos: “é constitucional a atribuição às guardas municipais do exercício de poder de polícia de trânsito, inclusive para imposição de sanções administrativas legalmente previstas”. (STF, RE 658570, repercussão geral, Relator Min. Marco Aurélio, Redator para acórdão Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 6/8/2015)
Tal fenômeno foi bem observado na jurisprudência pelo doutrinador Gustavo Binenbojm, denominando-o de “autarquização das empresas estatais prestadoras de serviço públicos” ou “feições autárquicas”. Sobre o assunto, Gustavo Binenbojm, em seu livro Poder de Polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 273, discorre:
“A despeito de sua natureza jurídica de direito privado, isso não é obstáculo per se a que elas exerçam certos atos e funções que um dia foram tidos como exclusivos do Estado. Tanto assim que se reconhece com certa tranquilidade, que as empresas estatais praticam atos de império no âmbito de licitações e concursos públicos, por imperativo do art. 37, II e XXI, da Constituição de 1988. Se as estatais se sujeitam ao regime jurídico de seleção de pessoal e de fornecedores, faz sentido que elas exerçam algum nível de autoridade. O processo licitatório e os atos relativos ao concurso público são tipicamente de Estado e aproximam-se da sua lógica de império. Daí se reconhecer, inclusive, o cabimento de mandado de segurança contra atos de autoridade praticados por empresas estatais.”
Avançando, o excerto “regime não concorrencial”, quer dizer que a entidade opera e executa suas atividades com exclusividade, em verdadeiro monopólio. Para exemplificar, tomemos a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT), a quem a Carta Política[13] concedeu regime de exploração exclusivo[14].
Outro ponto insuperável, é que a delegação do power police[15] a uma estatal também depende da edição de lei formal, ou seja, lei sem sentido estrito, isto é, lei ordinária decorrente do processo legislativo. No caso objeto de estudo, a Lei Municipal 5.953/91 permitiu a instituição da BHTrans com o escopo de operar e executar os serviços de trânsito na cidade de Belo Horizonte, conforme disposição no art. 24 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97), em sede de competência local dos municípios, na esteira das linhas do art. 30 da Constituição Federal.
Nesse quesito, José dos Santos Carvalho Filho repercute a indispensabilidade de tal requisito, verbis (Manual de Direito Administrativo. 31 ed. São Paulo: Atlas, 2017. p. 82):
“Indispensável (...) para a validade dessa atuação é que a delegação seja feita por lei formal, originária da função regular do Legislativo. Observe-se que a existência da lei é o pressuposto de validade da polícia administrativa exercida pela própria Administração Direta e, desse modo, nada obstaria que servisse também como respaldo da atuação de entidades paraestatais, mesmo que elas sejam dotadas de personalidade jurídica de direito privado. O que importa, repita-se, é que haja expressa delegação na lei pertinente e que o delegatário seja entidade integrante da Administração Pública.”
Outro ponto, que não se pode olvidar, é sobre a administração pública indireta, composta pelas autarquias, fundações públicas, sociedade de economia mista e empresa pública. Vamos tratar especialmente das duas últimas, atinentes ao objeto de estudo.
De acordo com Di Pietro (2019, pg 984) sociedade de economia mista:
“é pessoa jurídica de direito privado, em que há conjugação de capital público e privado, participação do Poder Público na gestão e organização sob forma de sociedade anônima, com as derrogações estabelecidas pelo direito público e pela própria lei das S.A. (Lei nº 6.404, de 15-12-76); executa atividades econômicas, algumas delas próprias da iniciativa privada (com sujeição ao art. 173 da Constituição) e outras assumidas pelo Estado como serviços públicos (com sujeição ao art. 175 da Constituição). A empresa pública é pessoa jurídica de direito privado com capital inteiramente público (com possibilidade de participação das entidades da Administração Indireta) e organização sob qualquer das formas admitidas em direito.
A base jurídica está contida na Constituição Federal no Art. 37, Inciso XIX, “somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação”.
No caso da autarquia, a própria lei cria a entidade, podendo perfeitamente trazer a possibilidade de criação de subsidiária e tratamento dos bens em caso de extinção, devendo ser uma lei específica sobre o assunto e apesar de não deixar claro, o tipo de lei adotado será a lei ordinária. Já no caso das demais, a lei autoriza a criação, sendo que o nascimento jurídico da entidade administrativa se dá com registro do ato constitutivo, nos termos do Código Civil[16].
Imperioso destacar, o princípio da especialidade previsto na doutrina, que trata sobre a administração pública indireta, ligado a ideia de descentralização, ou seja, um dos meios de organização da administração. Ocorre quando o Estado cria pessoas jurídicas públicas administrativas e as transfere a execução e/ou titularidade de determinados serviços públicos, por meio de contratos administrativos e/ou leis.
Noutra esteira, apesar de houver autonomia e não está vinculada de forma hierárquica a Administração Direta, tais entidades podem sofrer supervisão ministerial e controle finalístico, nos limites legais. Elas são criadas, para operarem em regime diverso do regime público, em razão da flexibilidade, com a finalidade de desempenharem de forma descentralizada, atividades típicas do estado, serviços públicos[17], ou mesmo, explorarem atividade econômica[18].
Na tese desenvolvida pelo relator e aprovada por maioria, há a seguinte expressão, “integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público” dando a entender, in casu, o enquadramento apenas das sociedades de economia mista. Entretanto, tal entendimento, não é o mais adequado, visto que restritivo, sendo viável juridicamente que empresas públicas, cujo capital social é totalmente deito pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, que desempenham serviço público em regime de exclusividade, utilizem do poder de polícia, pois os dois tipos de entidades, se submetem ao mesmo regime jurídico híbrido.
A delegação, somente se faz válida e capaz de produzir efeitos no ordenamento, quando realizada por meio de lei. No caso de Minas Gerais, se deu por meio da Lei Municipal 5.953/1991, que previu em seu Art. 2º:
“Art. 2º A BHTRANS terá por finalidade planejar, organizar, dirigir, coordenar, executar, delegar e controlar a prestação de serviços públicos relativos a transporte coletivo e individual de passageiros, tráfego, trânsito e sistema viário, respeitadas a legislação federal e a estadual pertinentes, bem como o planejamento urbano do Município.”
Depreende-se que a lei será ordinária, visto que, esta tem caráter residual, ao contrário da lei complementar, que é reservada a assuntos específicos previamente estipulados pelo poder constituinte originário, exigindo-se quórum qualificado.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O poder de polícia está presente na vida cotidiana das pessoas, fundamentado no contrato social previamente estabelecido entre a sociedade para a instituição do Estado, tem o escopo de preservar as relações entre as pessoas, de forma harmoniosa e pacífica, promovendo a paz social.
Nesse sentido, a administração ao exerce-lo limita direitos e interesses individuas, especialmente relacionados a liberdade e propriedade, obrigando-nos mediante obrigações negativas nos mais diversos setores, como a segurança, meio ambiente, uso dos logradouros e espaços públicos, higiene, mercado comercial.
Há muito, entedia-se na doutrina e jurisprudência pela impossibilidade absoluta de particulares desempenhar tais prerrogativas. Entretanto, com o aperfeiçoamento e inovação da doutrina, bem como dos gestores públicos que cada vez lançam mão da iniciativa privada e da descentralização das atividades estatais, em prol da qualidade, tecnicidade, especialidade, flexibilidade, desburocratização, acabou tornando-se prática corriqueira nos órgãos públicos, exigindo adequação do ordenamento pátrio e do entendimento dos tribunais.
É cada vez mais comum a execução de atividades materiais preparatórias por particulares, geralmente por meio de contratos administrativos de prestação de serviços, nas mais diversas áreas do setor público, inclusive sensíveis, como o processamento de dados, segurança pública, trânsito, logística.
A expertise e as técnicas implementadas por pessoas jurídicas privadas, sob regime de delegação, seja através de lei ou contrato administrativo, permite a atuação da administração de forma mais acertada, sempre com o fim único de promover o bem coletivo.
Percebe-se sem grande esforço, o instituto jurídico denominado pela doutrina de “autarquização das empresas estatais prestadoras de serviço públicos” ou “feições autárquicas”, por meio de vários julgados dos tribunais ao longo dos anos, perfazendo na derrogação parcial do regime de direito privado aplicado as empresas estatais, instituindo desse modo, um regime jurídico híbrido. Ressalto, que tal desdobramento somente ocorre nas entidades administrativas que executem serviço público em regime de monopólio.
Desse modo, na esteira de tribunais estaduais que já vinham estabelecendo precedentes, adotando aspectos de inovação na doutrina, sobre a possibilidade de delegação do poder de polícia a entidades da administração indireta de direito privado, que executem serviços públicos de forma exclusiva, o STF através da nova tese, assentou o impasse que existia nas fazendas públicas, entre os tribunais e especialmente entre os doutrinadores. A decisão atente aos princípios do direito administrativo, especialmente o da eficiência, qualidade no serviço público, do dever da boa administração, da segurança jurídica e da legalidade.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,1988.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 1.717. Rel. Min. Sydney Sanches, PLENÁRIO, j. em 07/11/2002, DJ 18/11/2002.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 2.310 MC. Rel. Min. Marco Aurélio, posteriormente Min. Carlos Velloso, j. em 19/12/200, DJ 01/02/2001.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. REsp 817.534/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, SEGUNDA TURMA, DJe 10/12/2009
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ARE 662.186, Rel. Min. Luiz Fux, PLENÁRIO, j. em 22/03/2012, DJe 13/09/2012, p. 4.
BINENBOJM, Gustavo. Poder de Polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 273.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 27 ed., São Paulo: Atlas, 2019, p. 280.
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 24ª Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2011, p. 97-98.
FONSECA, Gabriel Campos Soares d., GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. É constitucional a delegação do poder de polícia a particulares?. Revista Consultor Jurídico, 31 de agosto de 2019. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2019-ago-31/constitucional-delegacao-poder-policia-particulares. Acesso em: 21 de novembro de 2021.
MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2017. v. 1. 661p.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p.863-865.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 128-129.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009, p. 444.
TEIXEIRA, Flávio Germano de S. TEIXEIRA JÚNIOR, Flávio Germano de Sena. Reviravolta na delegação do poder de polícia às entidades administrativas de direito privado. Migalhas. 12 de novembro de 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/336286/reviravolta-na-delegacao-do-poder-de-policia-as-entidades-administrativas-de-direito-privado. Acesso em: 21 de novembro de 2021.
[1] Bacharel em Direito, advogado, servidor público federal, Mestre em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade Federal do Tocantins-UFT. Professor da Faculdade Serra do Carmo (FASEC).Palmas-TO. E-mail: [email protected]
[2] (RE 633782, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-279 DIVULG 24-11-2020 PUBLIC 25-11-2020).
[3] União, Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios.
[4] Art. 6º, inciso XI, da Lei nº 8.666/93, lei geral de licitações e contratos administrativas. Administração Pública - a administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob controle do poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas.
[5] Art. 2º, Parágrafo único, da Lei nº 4.717/1965 (Lei da Ação popular): Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas: a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou.
[6] Art. 2º, Parágrafo único, alínea “e” da Lei nº 4.717/1965.
[7] Art. 59 da CF. O processo legislativo compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição; II - leis complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas provisórias; VI - decretos legislativos; VII - resoluções.
[8] Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa.
[9] Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. VI - polícias penais federal, estaduais e distrital.
[10] Art. 78, Parágrafo único, do CTN. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.
[11] Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem. DECRETO Nº 20.910, DE 6 DE JANEIRO DE 1932.
[12] Constituição Federal, Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Assim, temos que é função exclusiva e tipicamente do Poder legislativo, não podendo os demais usurpar dessas funções.
[13] Art. 21. Compete à União: X - manter o serviço postal e o correio aéreo nacional.
[14] Art. 2º - O serviço postal e o serviço de telegrama são explorados pela União, através de empresa pública vinculada ao Ministério das Comunicações. LEI Nº 6.538, DE 22 DE JUNHO DE 1978.
[15] Expressão oriunda da doutrina norte-americana. Lá a expressão refere-se a outros aspectos, sendo diferente da conceituação adotada no Brasil, no sentido de limitar direitos.
[16] Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.
[17] Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. CF/88.
[18] Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.CF/88.
Bacharelando em Direito na Faculdade Serra do Carmo (FASEC),Palmas/TO. Servidor público estadual. Interessado em assuntos sobre direito administrativo e direito público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MATHEUS SANTOS GONÇALVES, . Delegação do poder de polícia administrativa à entidades da administração indireta de direito privado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 dez 2021, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57881/delegao-do-poder-de-polcia-administrativa-entidades-da-administrao-indireta-de-direito-privado. Acesso em: 22 nov 2024.
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