RESUMO: Ao longo dos anos, o Código Penal passou por diversas alterações, sobretudo nos crimes contra a dignidade sexual, em especial, com a Lei nº 13.718/2018, que modificou a titularidade da ação penal para esses delitos. Por essa razão, o presente artigo tem como objetivo analisar tais mudanças e os impactos provocados na vida das vítimas. Para sua elaboração, fez-se uso de estudos de obras bibliográficas e de casos, com abordagem qualitativa e método dedutivo, pautando-se sobretudo em artigos, jurisprudências, revistas eletrônicas e impressas, bem como em doutrinas relevantes que discorrem acerca do tema. Assim, verificou-se que a mudança da titularidade da ação penal teve avanços em relação à perspectiva utilitarista, todavia, do ponto de vista subjetivo do direito da vítima, a mudança pode ser considerada um retrocesso.
PALAVRAS-CHAVE: Crimes sexuais. Dignidade. Ação Penal. Titularidade.
ABSTRACT: Over the years, the Penal Code has undergone several changes, especially in crimes against sexual dignity, especially with Law No. 13,718/2018, which modified the ownership of criminal proceedings for these crimes. For this reason, this article aims to analyze such changes and the impacts caused on the lives of victims. For its elaboration, studies of bibliographic works and cases were used, with a qualitative approach and deductive method, based mainly on articles, jurisprudence, electronic and printed journals, as well as relevant doctrines that discuss the subject. Thus, it was found that the change in the ownership of criminal proceedings has made progress in relation to the utilitarian perspective, however, from the subjective point of view of the victim's right, the change can be considered a setback.
KEYWORDS: Sex crimes. Dignity. Criminal Action. Ownership.
Este trabalho objetiva analisar, sob uma perspectiva crítica, as consequências advindas com a mudança de titularidade da ação penal, frente aos crimes que ofendem a dignidade sexual. Com a reforma trazida pela Lei nº 13.718/2018, tais crimes, que eram de ação penal pública condicionada a representação, possibilitando assim, que a vítima do abuso tivesse a opção de escolher entre propor ou não a ação penal, passaram a ser regidos pela ação pública incondicionada, sendo irrelevante seu posicionamento, pois, independentemente de sua vontade, a ação penal será proposta.
Nesse sentido, indaga-se até que ponto essa falta de necessidade de consentimento do ofendido para iniciar a ação atinge seu direito subjetivo, buscando, ainda, compreender os impactos que a mudança da titularidade da ação penal provocou na vida das vítimas desses crimes, destacando seus pontos negativos e positivos.
Realiza-se, então, uma observação prática acerca dos crimes contra a dignidade sexual, tendo como pano de fundo as mudanças da sociedade nos últimos anos, abordando a Lei nº 13.718/2018, que reformou o Código Penal no Título que trata dos delitos sexuais, alterando drasticamente a titularidade da ação penal nesses crimes.
Assim, a partir das alterações na titularidade da ação penal nos crimes previstos nos Capítulos I e II, do Título VI do Código Penal, passou-se a ter como protagonista o Ministério Público, retirando a vítima do seu papel principal como detentora do direito de ação, o que provocou impactos significativos em sua vida. Nesse sentido, este estudo possibilitará elucidar se a referida mudança da titularidade da ação penal, de condicionada à representação para incondicionada, atingiu, de alguma forma, o direito subjetivo da vítima de autorizar a propositura da ação, na medida em que a lei sobrepôs o interesse coletivo ao desejo individual do ofendido.
Nessa perspectiva, foi realizada uma pesquisa bibliográfica e documental de abordagem qualitativa, através do método dedutivo, para averiguar a possibilidade de ofensa ao direito subjetivo da vítima quando da alteração da titularidade da ação penal, utilizando-se, para tanto, de consultas a artigos científicos, dissertações e doutrinas de autores renomados que discorrem acerca da temática.
Para tanto, o artigo será dividido em tópicos, que irão abordar os aspectos da mudança da titularidade da ação penal e a possibilidade de ofensa à intimidade e liberdade do ofendido. O primeiro tópico discorrerá sobre a distinção entre os direitos tutelados antes da alteração da titularidade da ação e aqueles que foram privilegiados posteriormente. O segundo realizará um apanhado histórico do papel da vítima no Processo Penal Brasileiro, enquanto o terceiro tópico apresentará uma análise crítica acerca dos avanços e retrocessos da mudança da titularidade da ação penal, a partir da queixa-crime (1940) à ação penal pública incondicionada (2018). O quarto tópico suscitará um conflito existente entre o interesse coletivo e a vontade subjetiva da vítima no que tange à propositura da ação penal. E, por fim, o último tópico versará sobre a revitimização provocada quando o Estado, independentemente da vontade da vítima, obriga-a a sofrer as consequências de uma ação penal pública incondicionada.
1.O UTILITARISMO DO DIREITO PENAL EM RELAÇÃO AOS CRIMES SEXUAIS
Os crimes contra a dignidade sexual, até setembro de 2018, eram tutelados pela ação pública condicionada a representação, o que dava à vítima, a opção de escolher entre propor ou não a ação penal. Entretanto, a reforma promovida pela Lei nº 13.718/2018 alterou a competência para seu ingresso, tornando-a pública incondicionada. Assim, a ação penal será proposta ainda que a vítima não tenha anuído, pois o seu titular é o Ministério Público. Nesse sentido, surge a indagação se a alteração dessa titularidade, que priva o ofendido da escolha de ingressar ou não com a ação penal, viola seu direito subjetivo (CORTEZ NETO, 2019).
Aqui, destaca-se que se a mudança da titularidade da ação penal for apreciada sob uma perspectiva utilitarista, pode-se dizer que a alteração da Lei nº 13.718/18 é benéfica e vantajosa para a sociedade, na medida em que o enfoque é para que os criminosos sejam punidos, em nome de um bem maior que é a coletividade, pois, havendo a devida penalização, não voltarão a cometer o delito, estando, desta forma, toda a sociedade protegida.
A mudança na titularidade da ação penal abriu exceção expressa ao direito subjetivo da vítima em prol do monopolismo da ação pública incondicionada para defesa do interesse coletivo, consequentemente, considerando-o maior que o próprio interesse pessoal da vítima, o que evidencia uma postura notadamente utilitarista (ANDRADE, 2019).
Por outro lado, levando-se em consideração uma perspectiva subjetiva, verifica-se fragilizado o direito da vítima, haja vista que foi ela quem foi agredida, violentada, estuprada, etc., portanto, nada mais justo que ela decida se quer ou não oferecer queixa-crime contra o seu agressor. Isto porque, não se trata de qualquer crime, mas de crimes contra a dignidade sexual, cujo constrangimento da vítima é ainda maior, pois, além da inquestionável dor física, está suscetível, também, a consequências psicológicas e sociais (CORTEZ NETO, 2019).
Diante das duas perspectivas, é possível concluir que há uma disparidade entre os interesses do Estado, que fundamentam a alteração por meio de uma abordagem utilitarista, isto é, do bem coletivo, e o interesse do ofendido, que muitas vezes prefere não ingressar com a ação por considerar o constrangimento que tal procedimento acarretaria mais danoso que a impunidade do infrator.
Sendo assim, percebe-se que não há, por parte do Estado/legislador, uma preocupação com a vítima, em ampará-la e protegê-la, ofertando-se os cuidados de que necessita, uma vez que o atual sistema punitivo a usa simplesmente como uma parte do processo, objetivando apenas criar bases para se chegar ao real protagonista do sistema criminal que é o autor do delito (ANDRADE, 2019).
2.A VÍTIMA COMO COADJUVANTE NO PROCESSO PENAL
No processo criminal, a vítima é a pessoa que sofre violação de normas de direito penal, ou seja, aquela que é atingida pela prática de crime. Embora esta, em decorrência do mesmo fato criminoso, possa também sofrer prejuízos nas esferas cível e administrativa (FERRARI; GOMES, 2005).
Importa dizer, ainda, que a vítima desempenha papéis diferentes de acordo com o tipo de ação penal. Na ação penal pública incondicionada, por exemplo, o inquérito policial pode ser instaurado sem a sua manifestação, uma vez que poderá iniciar-se de ofício ou mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público. Já no caso da ação penal pública condicionada a representação, proceder-se-á, como o próprio nome pressupõe, mediante representação da vítima. E, por fim, em caso de ação penal privada, dar-se-á através de queixa, mediante requerimento oral ou escrito pelo ofendido ou quem tenha a qualidade de representá-lo (BRASIL, 1941).
Mister se faz, então, um apanhado histórico do papel da vítima no processo penal, compreendendo que, por séculos, esta vem perdendo o protagonismo perante a persecução penal e a repressão contra o agressor, ou seja, esses agentes prejudicados pela ocorrência do crime foram desprezados perante o delito em si e o criminoso (CORTEZ NETO, 2019).
Conforme esclarece Andrade (2019), desde os séculos XII e XIII, a vítima vem sendo excluída como sujeito atuante do processo penal e substituída por um representante do soberano ou do Estado, com um prejuízo estrutural e irreversível para ela, uma vez que ficava eliminada do procedimento que lhe interessava diretamente. Desta forma, todo o processo expropriava-lhe o direito de participar da gestão do conflito.
Após a Segunda Guerra Mundial e as discussões acerca dos direitos humanos, a vítima recebeu a devida atenção, ganhando papel de destaque. Inclusive, após esse período, o Brasil fomentou na Constituição a criação dos artigos de respeito à dignidade da pessoa humana (CORTEZ NETO, 2019).
Importante frisar que o espaço destinado à atuação das vítimas para reparar o dano sofrido passou por um processo histórico. Isto porque, num primeiro momento, alcançou o máximo protagonismo, sua idade de ouro, coincidente com a época da justiça privada (FERRARI; GOMES, 2005). Posteriormente, a ação passou a ser de titularidade do Ministério Público, tendo a vítima o direito de manifestar sua vontade por meio da representação. E, atualmente, vive-se um período de neutralização, com atuação reduzida a um mero declarante, cujo objetivo se configura em puramente servir de prova.
Esse papel secundário relegado às vítimas tem raízes fincadas no pensamento da sociedade ocidental em que “o papel dominante foi histórica e majoritariamente atribuído a um modelo de masculinidade hegemônico, considerado superior, e o de dominado a um de feminilidade hegemônico, dito inferior” (CARVALHO et al., 2020, p.3).
Sendo assim, constata-se que, tendo a vítima diversos papeis de acordo com o tipo de ação penal, em que exige ou não sua manifestação, é importante investigar se a alteração da titularidade da ação em relação aos direitos da vítima configura-se como um progresso ou um retrocesso.
3.DA QUEIXA-CRIME À AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA: AVANÇO OU RETROCESSO?
Inicialmente, os crimes que atentavam contra a liberdade sexual se procediam mediante queixa, conforme redação dada pelo Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940, de modo que em sua redação inicial no Código Penal, estava disposto da seguinte forma:
Art. 225 - Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede mediante queixa.
§ 1º - Procede-se, entretanto, mediante ação pública:
I - se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família;
II - se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador.
§ 2º - No caso do nº I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público depende de representação (BRASIL, 1940).
Aqui, a ação penal privada era a regra, pois afetavam sobremaneira a intimidade da vítima, razão pela qual o legislador optou por conferir a ela o exercício do direito de ação (TÁVORA; ALENCAR, 2020).
Essa condição de ação privada dava total poderes à vítima, ficando, portanto, o Ministério Público inerte quando se tratava de crimes contra a dignidade sexual, somente podendo propor ação nas hipóteses previstas no §1º do referido dispositivo, quais sejam: que fosse cometido contra pessoas de parcos recursos, sendo necessário, nestas circunstâncias, a representação da vítima, ou quando houvesse, o crime, sido cometido com abuso de pátrio poder.
Nesse interim, respaldando-se no fato de que muitos autores de violência sexual acabavam ficando impunes, porque a vítima não prestava queixa, haja vista que a ação era privada, o STF editou a súmula 608, que foi aprovada em 17 de outubro de 1984. A referida Súmula previa que “no crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação é pública incondicionada”. Todavia, tal dispositivo gerou divergência na doutrina e entre juristas.
Percebendo que a lei penal já se encontrava descontextualizada ante a realidade social e, em face da impunidade dos autores desses crimes, centrado no fato da falta de queixa pela vítima, que era a única detentora do poder de ação para a persecução penal do ofensor, “buscou-se uma solução jurídica para diminuir esse direito de opção particular, transferindo e ampliando no possível o princípio monopolístico da ação estatal, de forma que pudesse atuar o jus persequendi do Estado” (SOUZA, 1997, p.3/4).
Nesse passo, diante dessa mudança da ação penal, e a exigência que a nova configuração social exigia, necessitando de uma outra roupagem para o mencionado dispositivo que se adequasse à sociedade vigente, em 2009, a Lei nº 12.015, exibiu uma nova redação para aquele artigo de lei. Deste modo, a titularidade da ação penal nos delitos contra a dignidade sexual sofreu uma significativa alteração, estabelecendo, então, que:
Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação.
Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável (BRASIL, 2009).
Assim, os crimes que antes se procediam mediante queixa, passaram a ser de ação penal pública condicionada à representação, com a ressalva para as vítimas menores de 18 anos, quando proceder-se-iam por ação pública incondicionada.
Nesse contexto, a ação privada deixou de existir para os crimes sexuais, salvo com a inércia do Ministério Público, quando então poderia ser proposta a ação privada subsidiária da pública, e a regra passou a ser, então, a ação pública condicionada a representação (TÁVORA; ALENCAR, 2020).
Tal alteração foi proposta visando atender aos anseios dos operadores do direito, que alegavam que, em vista ao princípio da proibição da proteção deficiente, aliado ao maior interesse público, a titularidade da ação penal deveria ser repassada ao Ministério Público, posto que, antes da mencionada lei, tal delito só se procedia mediante queixa, exceto em casos de vítima menor ou vulnerável (SOBRINHO NETO, 2018).
Aqui, importante destacar o aduzido por Carvalho et al. (2020, p.10):
Ao voltar-se aos crimes sexuais, é importante mencionar a alteração legislativa promovida pela Lei 12.015/2009, que trocou a nomenclatura do Título VI da Parte Especial do Código Penal de “Crimes contra os Costumes” para “Crimes contra a Dignidade Sexual”. Entende-se que, com a mudança, o legislador adequou a descrição de tutela do bem jurídico afetado com os princípios constitucionais norteadores do Estado Democrático de Direito. Desta forma, compreende-se que a lei atual, expressamente, afastou a punição de condutas consideradas contrárias a uma determinada moral e aos ditos bons costumes, para se incriminar as condutas que atentam mais gravemente contra a liberdade individual no âmbito da sexualidade. Assim, os crimes aqui estudados são lidos como protetores da dignidade sexual, enquanto bem jurídico maior, e da liberdade sexual, enquanto bem jurídico derivado daquele.
Optou o legislador por condicionar a ação penal pública à representação da vítima, quando praticado um delito que atinge imediatamente o interesse particular e mediatamente o interesse público, como é o caso dos crimes que atentam contra a dignidade sexual, a liberdade sexual e, portanto, a liberdade individual do sujeito. A representação está prevista no art. 24 do Código de Processo Penal, que apresenta a seguinte redação: "nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de representação do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo" (BRASIL, 1941).
Com efeito, a representação consiste em uma declaração de vontade da vítima. Deste modo, compreende-se que esta manifestação de vontade é necessária para a acusação pública, pois remove um obstáculo existente quanto ao exercício da ação penal. “Portanto, a vítima na ação penal pública condicionada é titular do direito de representação” (FERRARI; GOMES, 2005, p.7).
Neste sentido, aduz, ainda, Ferrari e Gomes (2005), que a representação retrata o prestígio da manifestação da vítima na instauração do processo penal. Essa titularidade justifica-se nos casos em que o interesse do particular é alcançado diretamente pelo delito, assim, somente com a manifestação de vontade da vítima se desencadeará a persecução penal.
Importa destacar o que elucida Santos (2011, p.10):
(...) alguns doutrinadores entendem que esta alteração trouxe maior coerência aos crimes sexuais, fazendo com que a pessoa que quer manter sua intimidade, apenas não represente, mas tendo vontade de punir o agente, basta que apresente sua representação que o restante do trabalho o Ministério Público terá responsabilidade.
Nesse contexto de renascimento da vítima “que se insere esta relevante figura dentro do processo penal e o desafio de manter o equilíbrio entre os interesses do Estado e da vítima na persecução penal pública, sem causar prejuízo às garantias do acusado” (FERRARI; GOMES, 2005, p.1).
Destarte, também houveram entendimentos desfavoráveis à alteração da titularidade da ação penal. Após a mudança do mencionado dispositivo, o Procurador Geral da República propôs ADIn por entender que a ação penal pública condicionada, nos crimes de estupro seguido de lesão corporal grave ou morte, ofendia o princípio da dignidade da pessoa humana, devendo, por este modo, em tais circunstâncias, proceder-se mediante ação penal pública incondicionada (SANTOS, 2011).
Argumentou o Procurador que existia um enfrentamento da proteção dos bens jurídicos vida e saúde, de modo que todos os dispositivos legais que tratavam destes tipos de crimes agravados pelo resultado (morte e lesão grave) eram objetos de ação penal pública incondicionada, não havendo justificativa por esta opção do legislador (SANTOS, 2011).
Esta inconstitucionalidade parcial do art. 225 do Código Penal, defendida pelo Procurador, fundamenta-se na ideia de evitar um favorecimento aos réus nos delitos sexuais em que não se encontrasse a vítima para realizar a sua representação (SANTOS, 2011).
Assim, sendo a ação condicionada, muitos criminosos ficariam impunes e os bens jurídicos que deveriam ser tutelados – a vida e a saúde – restariam desprotegidos, ao passo que, se a ação fosse pública incondicionada, haveria uma maior proteção à sociedade, haja vista que o ofensor tinha mais chances de ser punido.
Diante dessas questões, em 2018, houve uma nova alteração que modificou, mais uma vez, a titularidade de tal ação, refletindo sobremaneira na vida dos envolvidos, sobretudo da vítima, que atuava com papel principal, restando-lhe agora o papel de coadjuvante da ação penal, pois transfere por completo ao Ministério Público essa titularidade.
A Lei nº 13.718/18 alterou o Código Penal tornando, então, pública incondicionada a ação penal nos crimes contra a liberdade sexual e nos crimes sexuais contra vulneráveis, que, na redação anterior, procedia-se mediante representação da vítima, caso esta fosse maior e, mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, em caso de menor.
Conforme esclarece Nucci (2019, p.1209), “a mudança de postura do Legislativo deve-se à alteração de mentalidade da sociedade brasileira, que evoluiu para atingir o sentimento geral de punição ao agente de delito sexual, independentemente da vontade de quem foi vítima”.
Para tanto, vejamos as novas disposições do art. 225 do Código Penal Brasileiro:
Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública incondicionada.
Parágrafo único. (Revogado) (BRASIL, 2018).
A partir da promulgação e vigência, em 25/09/2018, da Lei nº 13.718/2018, apresenta-se, no sistema jurídico brasileiro, uma lei mais gravosa, especialmente porque, com a alteração do art. 225 do Código Penal, o legislador fez uma opção e acabou com a ação penal condicionada nos crimes sexuais, sendo todos eles agora delitos de iniciativa pública incondicionada (TÁVORA; ALENCAR, 2020).
Se antes, na ação penal privada, a vítima tinha amplos poderes para decidir acerca da propositura da ação e hoje, com a ação pública incondicionada, não passa de mera coadjuvante no processo criminal, pode-se deduzir que a alteração da lei trouxe mais prejuízos que avanços, pois passível de ofender o direito subjetivo da vítima.
Certo é que, mesmo o Estado sendo o titular do direito de punir e tendo o interesse em aplicar a sanção penal, é possível que a vítima não compartilhe desse entendimento, preferindo não agir, e nesse caso, é provável que esta alteração legislativa venha a ferir seu direito subjetivo, principalmente no que tange à intimidade e a vida privada, garantidos pela Constituição Federal.
Assim, verifica-se que existe um conflito de interesses, cuja prevalência é da vontade do Estado, haja vista que a titularidade da ação atualmente é do Ministério Público. Desse modo, tem-se advertido que a alteração legislativa do art. 225 do Código Penal proposta pela Lei nº 13.718/18 pode ser considerada um retrocesso, pois retira da vítima a capacidade de escolha (CUNHA, 2018).
4.CONFLITO ENTRE O INTERESSE COLETIVO E O DIREITO INDIVIDUAL DA VÍTIMA
A Lei nº 13.718/2018, ao tornar pública incondicionada a ação penal nos crimes contra a dignidade sexual, cuidou de tutelar e dar mais ênfase a bens jurídicos como a vida e a liberdade sexual, relegando a segundo plano aspectos relevantes como o interesse da vítima do delito. Percebe-se, assim, que tal legislação privilegia o interesse público do direito penal em detrimento do direito a intimidade e privacidade do cidadão.
Nota-se que o legislador tenta criar estruturas que corroboram com um direito punitivista, ensejando, de qualquer forma, a propositura de ação penal que acarrete em uma pena imposta ao criminoso.
O novo diploma veio, pois, para tentar efetivar a punição aos agentes delitivos, no entanto, deixou de levar em conta a posição das vítimas. De acordo com Nucci (2019, p.1209):
Com o surgimento da Lei 13.718/2018, todos os crimes previstos nos Capítulos I e II deste Título passam a ser investigados e processados mediante ação pública incondicionada, significando não mais se respeitar o querer da vítima. O delegado pode instaurar inquérito e o Ministério Público, denunciar, independentemente de qualquer provocação da pessoa ofendida.
No entendimento de Cunha (2018), há mais pontos negativos do que positivos na mudança. Conforme o autor, entre os poucos pontos positivos destaca-se o fato de encerrarem-se as discussões nos crimes agravados pelo resultado, haja vista que todos agora são de ação penal incondicionada, superando, assim, também, a discussão com relação à Súmula 608 do STF que aduz que “nos crimes de estupro praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada”.
Contudo, o ponto negativo da mudança está em igualar todas as formas pelas quais os crimes podem ser praticados, retirando da vítima qualquer capacidade de iniciativa (CUNHA, 2018). E, nesse sentido, entende-se que o Estado tem a obrigação de dar guarida e se responsabilizar pelas vítimas, priorizando-as, e não novamente repetindo a história, dando enfoque nos crimes e criminosos (CORTEZ NETO, 2019).
Nesta mesma senda, Ferrari e Gomes, (2005, p.11) expõem que, devido ao princípio da disponibilidade, “o particular tem a prerrogativa de exercer ou não, o direito de ação conforme lhe convenha, deixando de propor a ação quando considerar que o escândalo do processo, dada a publicidade da causa, provocaria um mal maior que a impunidade do agente”. Por meio deste entendimento, “respeita-se a vontade do ofendido, sua dignidade, o medo de se expor como vítima e o trauma que pode ter sofrido” (FERRARI; GOMES, 2005, p.11).
Com efeito, conforme Ferrari e Gomes (2005, p. 7), apud Tourinho Filho:
(...) o ofendido pode também ter interesse em que não se instaure o processo: a discussão do caso, o estrepitus fori, a divulgação do fato seriam para ele uma nova e grave ofensa, com funestas conseqüências para a tranqüilidade do seu lar, do círculo íntimo de suas relações de amizade e até de interesses pessoais. Ante essa situação, o Estado subordina a sua atividade persecutória à manifestação de vontade do ofendido: se este quiser, fará a representação, e, então, remover-se-á o obstáculo á persecução; se não, o processo não poderá ser instaurado.
No mesmo sentido, Esteves (2018, p. 16) entende que:
(...) caberia à vítima do delito sexual decidir se desejaria ou não deflagrar a instauração do processo, ponderando as consequências advindas dessa escolha. E isto porque, nos crimes desta ordem prepondera o chamado “strepitus judicis”, decorrente da exposição do caso por ocasião do julgamento, o que geraria um sentimento de vergonha na vítima superior ao trauma sofrido pela violação.
Sendo assim, resta verificado que a alteração da titularidade da ação, de fato, provoca o strepitus judicii, que seria a exposição da vítima, restringindo seu direito à intimidade, não permitindo que ela delibere sobre as consequências de suas escolhas, mensurando os traumas sofridos pela violação e as consequências advindas com a propositura de uma ação penal. Desta forma, acaba sendo vítima duas vezes, quando sofre o crime e quando o Estado a obriga a reviver seus traumas e ter sua intimidade exposta à comunidade.
5.A REVITIMIZAÇÃO SOB A ÓTICA DO BIS IN IDEM PUNITIVO
De acordo com o posicionamento de Andrade (2019), observa-se que as vítimas dos crimes contra a dignidade sexual, além da violência sexual, tornam-se vítimas da violência institucional, isto é, há um nítido processo de revitimização, haja vista que nossa sociedade patriarcal e machista ainda reproduz a violência social e os estereótipos que se criam e recriam cotidianamente, especialmente no campo da moral sexual dominante.
Nessa perspectiva, aduz Andrade (2019, p. 107) que:
(...) o sistema penal duplica a vitimação feminina, porque além de vitimadas pela violência sexual, as mulheres o são pela violência institucional, que reproduz a violência estrutural das relações sociais patriarcais e de opressão sexista, sendo submetidas a julgamento e divididas. A passagem da vítima mulher, ao longo do controle social formal, acionado pelo sistema penal implica, nesta perspectiva, vivenciar toda uma cultura da discriminação, da humilhação e da estereotipia (...).
Tal entendimento coaduna com o apontado por Cavalcante (2018), quando expõe que:
A vítima de um crime, especialmente em delitos sexuais ou violentos, todas as vezes em que for inquirida sobre os fatos, ela é, de alguma forma, submetida a um novo trauma, um novo sofrimento ao ter que relatar um episódio triste e difícil de sua vida para pessoas estranhas, normalmente em um ambiente formal e frio. Desse modo, a cada depoimento, a vítima sofre uma violência psíquica. Assim, revitimização consiste nesse sofrimento continuado ou repetido da vítima ao ter que relembrar esses fatos (CAVALCANTE, 2018, s.p.).
Verifica-se, pois, que o sistema penal não protege as mulheres vítimas da violência, ao contrário, fomenta a violência institucionalizada, através das revitimizações – vitimização secundária, quando revive os acontecimentos, tendo que relembrar os fatos que lhe causam dor, ao depor na delegacia, no âmbito judicial, repetindo, por várias vezes, o que quer esquecer, e vitimização terciária, quando a própria sociedade e a família colocam a vítima no papel de “autora”, julgando-a por sua conduta. De igual modo, não previne novas violações, apenas produz normas simbólicas, que, ao final, contribuem, ainda mais, para o aumento da densificação dos traumas sociais (SILVA, 2017).
Assim, a respeito do constrangimento das vítimas de estupro, Vigarello, apud Carvalho et al. (2020, p. 7), aponta que:
[...] o estupro provoca uma lesão ao mesmo tempo semelhante e diferente das outras. Semelhante porque é o efeito da brutalidade. Diferente porque é muitas vezes pouco consciente no agressor apagada pela efemeridade do desejo, ao passo que intensifica a vergonha na vítima, a ideia de uma contaminação pelo contato: a indignidade atravessando a pessoa atingida para transformá-la aos olhos dos outros. Daí a sensação de aviltamento criando obstáculos à queixa, inclinando a vítima a se calar e os observadores a acusá-la. Situação muito especial, em que a violência pode se tornar menos visível, empurrada para segundo plano, mascarada pela rejeição de que a vítima é objeto; situação aguçada ao extremo [...] por um conjunto de referências culturais, morais e sociais, transformadas em feixe de efeitos convergentes.
Nesse sentido, evidente a necessidade de se considerar as possibilidades de escolha dessas vítimas de violência sexual em acionar os meios protetores estatais para sua tutela contra as condutas alheias, uma vez que as ofensas de cunho sexual não constrangem da mesma maneira que outras formas de violência (CARVALHO et al., 2020).
A própria sociedade condena a vítima de crimes sexuais, reproduzindo a ideia de que esta colaborou de algum modo para ser violentada sexualmente. Em sua grande maioria, as vítimas são consideradas culpadas pelas agressões que sofreram, como se merecessem estar nesta condição, e mesmo quando não o são, esse tipo de violência deixa marcas e traumas terríveis, fazendo com que grande parte das vítimas busquem tratamento psicológicos para se recuperarem. Deste modo, não há porque obrigá-las a reviver essa situação novamente, pois, agir de tal modo, ensejaria um bis in idem punitivo à vítima.
Ademais, percebe-se que os crimes sexuais estão intrinsecamente ligados a uma questão de gênero, em que as violências se configuram pelos abusos dentro das relações entre os indivíduos socialmente construídos, uma vez que, de um lado, os corpos femininos, inferiorizados, sofrem constante objetificação, ao passo que o desejo masculino, valorizado, é utilizado como legitimador de condutas violentas, sendo reflexos das assimetrias geradas pela forma como se estruturam as referidas categorias na sociedade (CARVALHO et al., 2020).
Nesta senda, depreende-se como consequência deste cenário:
(...) as estatísticas disponíveis a respeito da realidade brasileira, na qual, em 2016, foram registradas 56.045 ocorrências de estupro e, em 2017, 60.018 ocorrências, o que representa uma média de aproximadamente 153,5 e 164,4 casos por dia, respectivamente, considerando-se somente os boletins de ocorrência registrados. No ano de 2016, ainda, 15,4% dos casos foram de estupros coletivos (com dois ou mais agressores). A despeito dos números já elevados, estima-se que, a cada ano no Brasil, 0,26% da população sofre violência sexual, o que indica que haja anualmente 527 mil tentativas ou casos de violência consumados no país, dos quais apenas 10% seriam reportados à polícia, havendo, portanto, um alto índice de subnotificação (Carvalho, et. al., 2020, p.3).
Ainda nesse sentido, Carvalho et al. (2020) aduzem que, em pesquisas realizadas pelo FBSP, em parceria com o Datafolha, no ano de 2016, evidencia-se uma dita “cultura do estupro”, notadamente percebida nas maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens, prática recorrente no cotidiano social, demonstrando os critérios morais determinados socialmente às mulheres, que justificam a conduta violenta de quem as agride.
Ademais, a mesma pesquisa apontou que:
(...) 30% dos homens e mulheres brasileiros concordam com a afirmação “A mulher que usa roupas provocantes não pode reclamar se for estuprada”, enquanto que 42% dos homens e 32% das mulheres concordam com a afirmação de que “Mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”, de modo a apresentar um quadro social de culpabilização das vítimas (Carvalho, et. at., 2020, p.6).
Deste modo, irrefutável que, ainda hoje, as vítimas de crimes contra a dignidade sexual não têm a devida atenção por parte dos entes estatais e até da própria sociedade, sendo, muitas vezes, culpabilizadas por crimes pelos quais sofreram violação.
Diante dessas violências, é possível constatar que a “quebra do silêncio pelas vítimas pode ser desestimulada pelo cenário de culpabilização das mulheres pelas violações sofridas, bem como por estruturas estatais que não apresentam um ambiente de acolhimento e entendimento das peculiaridades de cada caso” (CARVALHO et al., 2020, p.13).
Não obstante esta violência cometida pela sociedade, muitos autores, a exemplo de Cavalcant (2018), têm entendido a revitimização também como uma forma de “violência institucional” que o Estado comete contra a vítima, dando ensejo, da mesma forma, a um bis in idem punitivo.
Em contrapartida, há quem defenda a alteração promovida pela Lei nº 13.718/18 sob o argumento de que quando a ação era privada e, posteriormente, condicionada à representação, as vítimas passavam por constrangimentos e, muitas vezes, deixavam de comunicar o crime e de buscar a punição do agressor por medo de represálias, fazendo com que se multiplicassem casos de impunidade diante da extinção da punibilidade pela decadência. Sob esta ótica, argumentam que não há sentido manter uma regra que dificulte o ajuizamento da ação (CUNHA, 2018).
Contudo, os enormes avanços havidos ao longo de décadas em relação ao papel social da mulher servem para justificar a manutenção da regra que confere à vítima maior poder de decidir se deseja ou não processar o agressor e se submeter ao constrangimento característico de um processo dessa natureza (CUNHA, 2018).
Ainda conforme Cunha (2018), justamente porque se identifica a tomada de consciência pela igualdade de condições entre homens e mulheres, deve-se pressupor que a mulher, vítima de crime sexual, tem plenas condições de decidir sobre seus interesses, assim como o homem, de modo que esse raciocínio não se sustenta nos tempos atuais.
As alterações trazidas pela Lei nº 13.718/18 para o art. 225 do Código Penal, então, não se sustentam. Isto porque, de acordo com o posicionamento de Cavalcante (2018), sendo a vítima maior de idade e pessoa não vulnerável, ela é quem deve decidir se deseja ou não deflagrar a instauração do processo, ponderando seu desejo de justiça com as agruras que ainda teria que enfrentar.
Nesse sentido, entende-se que o Estado, em crimes dessa natureza, não pode colocar seus interesses punitivos acima dos interesses da vítima. Tratando-se de pessoa capaz – que não é considerada, portanto, vulnerável – a ação penal deveria permanecer condicionada à representação da vítima, da qual não pode ser retirada a escolha, a fim de evitar o strepitus judicii (CUNHA, 2018).
Além disso, considerando que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso III, prevê, como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana, proclamando a pessoa como fim e fundamento do direito, promovendo a sua proteção e potencializando o seu desenvolvimento (LUZ SEGUNDO, 2020), não é aceitável que seja restringido o exercício do seu direito de ação nos crimes contra a dignidade sexual, naqueles casos em que for apta física e mentalmente para tanto.
Assim sendo, conforme esclarece Luz Segundo (2020, p.5):
a obrigatoriedade da proteção máxima à pessoa, por meio de um sistema jurídico-positivo formado por direitos fundamentais e da personalidade humana, tem o escopo de garantir o respeito ao indivíduo, propiciando-lhe uma existência digna e protegida de qualquer espécie de ofensa, quer praticada pelo particular, quer pelo Estado.
Ademais, “a vítima não pode ser relegada ao esquecimento, ofuscada pelos discursos de emergência clamantes pelo aumento da repressão penal e leis de ocasião cujo foco invariavelmente é o aumento das penas e restrição dos direitos dos apenados” (FERRARI; GOMES, 2005, p.11).
Enfim, seguindo a evolução do direito penal, entende-se que a vítima deve ser valorizada na persecução penal, devendo prevalecer a sua vontade em representar, sendo válida qualquer forma de manifestação de vontade, como, por exemplo, o boletim de ocorrência, requerimento de instauração de inquérito e declarações (FERRARI; GOMES, 2005). Isto porque, pensar de modo contrário, desconsiderando os interesses subjetivos da vítima, poderia ensejar traumas e constrangimento, além de várias formas de violência, sobretudo à sua dignidade, concatenando em um bis in idem punitivo.
Perpassando a trajetória legislativa referente aos crimes sexuais, evidencia-se que, quando o Código Penal foi elaborado, a regra para tais crimes era a ação penal privada, que coadunava com os pensamentos dominantes à época (meados do século XX - 1940). Posteriormente, já na virada do século, em 2009, em consonância com a mentalidade vigente no período e, sobretudo, com a evolução do pensamento da humanidade, a tecnologia, a globalização e o surgimento de várias legislações que colocavam a vítima como protagonista, que começam a despontar no âmbito nacional, como, por exemplo, a Lei Maria Da Penha de 2006, a necessidade de uma mudança legislativa.
Assim, em 2009, a ação penal nos crimes sexuais passa a ser pública condicionada à representação, figurando o Ministério Público como propositor da ação penal, exigindo-se, para tanto, o consentimento da vítima.
Posteriormente, com a promulgação e vigência da Lei nº 13.718/2018, adotou-se a ação penal pública incondicionada para os crimes sexuais, ação esta que vigora atualmente. No entanto, é possível considerar que tal mudança seja um retrocesso, tendo em vista que a vítima é relegada a uma simples figura processual.
Hodiernamente, percebe-se que temos uma legislação que tutela a liberdade sexual da pessoa humana, todavia, a vítima não tem o direito de autodeterminação sexual, o que deveria ser garantido pela lei penal que rege os crimes sexuais. Isto porque, agir de outra forma seria desrespeitar seus direitos fundamentais à liberdade e vida privada, estabelecendo que a vida e a saúde são bens jurídicos mais importantes que a dignidade da pessoa humana e seu direito subjetivo de escolha para a propositura da ação penal.
Assim, a partir dos estudos desenvolvidos, observa-se, aparentemente, uma legislação utilitarista, que tem como foco o agressor e o animus puniendi, desconsiderando sobremaneira os sentimentos e as dores da vítima que, por vezes, acaba sendo punida duas vezes pelo mesmo fato: inicialmente, quando é vítima do delito e, posteriormente, quando é obrigada a reviver o ocorrido em uma ação penal, que traz à tona toda sua dor e constrangimento, configurando um bis in idem punitivo – em que é punida, inicialmente pelo seu agressor, e em seguida pelo Estado, com a propositura da ação e a instauração do strepitus judicii.
Ante todo o exposto, resta-se evidenciado a necessidade de uma legislação que pense mais na vítima, nas suas dores, na sua dignidade, nos transtornos que uma ação incondicionada pode provocar em sua vida – uma legislação mais humanitária e menos utilitarista que dará à vítima o papel de protagonista e não apenas de coadjuvante, e que possa ser capaz de assegurar as garantias constitucionais da dignidade humana e do direito à liberdade, à igualdade e à vida privada, englobando tanto a tutela penal quanto a necessidade de criação de políticas públicas. Ou seja, faz-se necessária uma prática judicial comprometida com a vítima que já fora punida pelo crime, não podendo ser punida novamente pelo sistema judiciário/legislativo, que a obriga a reviver dores e ver abertas suas feridas novamente.
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Este artigo foi publicado em 22/12/2021 e republicado em 20/03/2024.
Graduada em História pela Universidade do Estado da Bahia (2010 - 2014). Tem como principais linhas de pesquisa temas relacionados à escravidão e família. Tem experiência na área educacional. Atua como educadora no Município de Caetité desde 2009. Já lecionou para o Ensino Infantil e Fundamental I e II. Atualmente cursa bacharelado em Direito pelo Centro Universitário - FG (UniFG).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTANA, Elvislane Teixeira. O direito subjetivo da vítima ante a transição da titularidade da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 mar 2024, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57933/o-direito-subjetivo-da-vtima-ante-a-transio-da-titularidade-da-ao-penal-nos-crimes-contra-a-dignidade-sexual. Acesso em: 22 nov 2024.
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