RESUMO: O presente artigo tem como objetivo explanar a existência do trabalho análogo à escravidão na indústria da moda, visando demonstrar sua origem e alguns exemplos de como se desenvolve atualmente. A pesquisa foi desenvolvida por meio de textos, sites oficiais na internet, livros, notícias, documentários sobre os casos citados e artigos publicados. O intuito é difundir o outro lado da indústria têxtil e propagar que para além do glamour, há uma indústria maléfica e indiferente a um vasto número de trabalhadores.
Palavras-chave: Escravidão. Indústria da Moda. Fashion Law.
ABSTRACT: This article aims to explain the existence of work analogous to slavery in the fashion industry, aiming to demonstrate its origin and some examples of how it is currently developed. The research was carried out through texts, official websites, books, news, documentaries on the cases mentioned and published articles. The aim is to spread the other side of the textile industry and propagate that, in addition to glamour, there is an evil industry indifferent to a vast number of workers.
Keywords: Slavery. Fashion Industry. Fashion Law.
Sumário: 1. Introdução. 2. Histórico do Trabalho e dos Direitos Trabalhistas na Indústria da Moda. 3. O Trabalho Escravo Contemporâneo. 3.1. Caso Zara. 3.2. A Exploração e o Setor Têxtil na Ásia. 4. Considerações Finais. 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A roupa é, sem dúvidas, um dos itens que mais usamos no dia a dia. Não à toa que a indústria da moda é uma das mais lucrativas e tem um papel fundamental na economia global. Em 2018, ela foi avaliada em aproximadamente US$ 3 trilhões e representa 2% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial. Pelo tamanho da indústria e pela imensa necessidade de mão de obra, a indústria têxtil é responsável pela geração de milhões de novos empregos.
Parte desse sucesso deve-se ao fato de a moda ser reconhecida como um fenômeno capitalista e ocidental, que ao longo dos anos e com impulso da Revolução Industrial, foi criando um padrão de consumo: baixo custo de produção, rapidez no escoamento da distribuição e preços atrativos.
No entanto, as consequências desse novo padrão são drásticas. A insuficiência de regulamentação e fiscalização das atividades de produção fez com que inúmeros casos de violação dos direitos humanos desses trabalhadores fossem expostos, incluindo casos de trabalho análogo ao escravo, principalmente em países em desenvolvimento. Por isso, esta pesquisa tem como objetivo explanar a existência do trabalho análogo à escravidão na indústria da moda, visando demonstrar sua origem e alguns exemplos de como se desenvolve atualmente.
O trabalho, como forma de sustento de vida, deve ser tratado como pilar fundamental para manutenção de muitas famílias. É por isso que a partir dele nasceram princípios conquistados ao longo do tempo que se fazem essenciais para um labor digno e humano. Dentre eles, está o princípio da dignidade da pessoa humana. Este princípio consiste em proporcionar minimamente ao trabalhador um trabalho íntegro onde sua honra e dignidade sejam respeitadas.
A Constituição da República Federativa do Brasil (1988), em seu artigo 1º, inciso III, constitui a dignidade da pessoa humana como fundamento, para que acima de tudo, a pessoa em si seja valorizada. No inciso IV deste mesmo artigo, a constituição cita os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa, demonstrando mais uma vez que o trabalhador deve ter seus direitos preservados, acima de qualquer indústria.
No tocante à indústria da moda, as pessoas tendem a pensar no glamour, holofotes e no quão deslumbrantes são os desfiles, as semanas de moda, lançamentos e aberturas de milhares de lojas ao redor do mundo. Cita-se principalmente a abertura de lojas “fast fashion”, ou, em sentido literal, “moda rápida”, onde empresas têm as primeiras tendências de forma acelerada e difundida ao redor do mundo. Basicamente, é dizer que essas lojas e indústrias produzem as roupas do momento com poucos critérios, e, independente das estações, lotam as lojas com novas coleções.
Pela sua forma de produção, com baixo custo e rapidez no escoamento da distribuição, as empresas responsáveis pela fabricação das roupas burlam leis e sistemas de proteção ao trabalhador. Em lugares como Bangladesh, há inúmeros casos de exploração de trabalhadores, em que estes são forçados a trabalhar quase 12 horas por dia, sob condições insalubres, em lugares perigosos, levando-os a posição de trabalhadores em situação análoga à escravidão.
Para uma melhor compreensão, a pesquisa está dividida em duas partes. Na primeira, tratar-se-á da história dos direitos trabalhistas e do trabalho relacionados à indústria da moda. Na segunda, o foco será sobre a conjuntura do trabalho escravo contemporâneo, com apresentação do caso da empresa Zara e do setor têxtil na Ásia.
2. HISTÓRICO DO TRABALHO E DOS DIREITOS TRABALHISTAS NA INDÚSTRIA DA MODA
A palavra trabalho origina-se do latim “tripalium”, um instrumento romano de tortura. Na Baixa Idade Média, trabalhar, foi por muito tempo sinônimo de perda de liberdade, de suplício, de sofrimento e de condição inferior. Por isso era destinado aos escravos e estes eram tratados como propriedades dos seus compradores. A Revolução Industrial, ocorrida no século XVIII entre os anos de 1760 e 1840, e seu sistema de fábricas apenas acentuou os abusos e violações sofridos pelos trabalhadores. Sendo assim, contribuiu enormemente para a desvalorização da força produtiva e para a consequente má remuneração dos operários.
Em relação à indústria da moda, a Revolução Industrial fez com que a confecção de vestimentas passasse de um modelo doméstico que visava a necessidade para um sistema de fábricas (factory system), uma atividade capitalista e altamente lucrativa. Ao longo do século XIX esse sistema foi se consolidando e cada vez mais o talento e a habilidade dos trabalhadores foram ignorados, já que as máquinas faziam todo o trabalho. Nas palavras da Juíza do Trabalho, Lygia Maria Godoy Batista CAVALCANTE, 2007, p. 144):
A exigência cada vez menor com relação às habilidades individuais do trabalhador, a preponderância da grande máquina e o número cada vez maior de empregados povoando as grandes fábricas transformaram o trabalhador numa simples peça, sem maior importância e anônima, desconhecida; um objeto igual aos demais, carente de valor humano.
Logo após, outro tipo de ambiente de trabalho foi se consolidando na indústria têxtil: o sistema “de suor” (sweating system)[1]. Esse modelo é baseado nas terceirizações para fornecedores que “quarteirizam” oficinas com trabalhadores desonrados de seus direitos fundamentais. Nesse sentido, as eventuais responsabilidades jurídicas quase sempre são dribladas por esses contratantes. Esse é a modalidade de produção industrial que atualmente as empresas de fast fashion aderem.
Foi nesse contexto que surgiram os modelos de produção que ficaram conhecidos como “taylorismo” e “fordismo”. Essas técnicas foram as principais responsáveis pelo aumento do montante de produção e pela redução dos custos de fabricação, impulsionando, assim, o consumo em massa.
Nesta conjuntura, avaliando-se o princípio da não intervenção do Estado na economia e na vida privada dos cidadãos, que vingava na época, não existiam leis que dirigissem essas relações laborais, ou seja, as novas relações entre empregado e empregador não tinham respostas jurídicas (BOBBIO, 1994, p. 11). A ascensão do capitalismo fez com que vários problemas como a desvalorização do trabalhador, a má remuneração, as longas jornadas em ambientes insalubres e perigosos e o aproveitamento da mão de obra feminina e infantil fossem despertados. Em consequência, o movimento operário juntou forças para reivindicar seus direitos, o que marca o início da sistematização e consolidação do Direito do Trabalho em 1848.
Após o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1919, fez-se necessária a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) com o objetivo de promover oportunidades para que homens e mulheres tenham acesso a um trabalho digno e decente, esse organismo internacional foi fundamental para a formação de um Direito do Trabalho mundial, por intermédio de normas, convenções e tratados. Em seu ato constitutivo foi estabelecido que o trabalho não pode ser tratado com mercadoria (OIT, 1944, p. 19).
Consequentemente, no Brasil, em 1930, o então presidente Getúlio Vargas criou o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, e em 1943, por meio do Decreto-Lei n° 5.452, consolidou a Lei do Trabalho e o Direito Processual do Trabalho.
Também em 1930, a OIT aprovou na 14ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho em Genebra, a Convenção nº 29 que discorre sobre o trabalho forçado, a qual o define como “todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade” (OIT, 1930). Logo, infere-se que o trabalho forçado abrange situações em que as pessoas são obrigadas a trabalhar por meio de violência ou intimidação, assim como a retenção de documentos e servidão por dívidas.
O cenário internacional foi marcado, no ano de 1948, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em um contexto de crise das duas guerras mundiais, tornou-se necessária a criação de normas que tivessem como objetivo a proteção dos indivíduos. A Declaração, promulgada no dia 10 de dezembro pela Assembleia Geral das Nações Unidas, tornou-se um marco na comunidade internacional pelo comprometimento de grande parte das nações com a dignidade do ser humano.
No tocante aos direitos trabalhistas, o artigo IV do documento afirma que “ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas” (DUDH, 1948). Desse modo, é estabelecida a condição mínima para o exercício do trabalho ou de qualquer atividade humana.
Em 1957, a Convenção sobre a Abolição do Trabalho Forçado nº 105 foi aprovada e complementa o conteúdo da Convenção nº 29, citada anteriormente. Seu texto determina a abolição de toda e qualquer forma de trabalho forçado, incluindo aqueles impostos como sanção, castigo ou medida de coerção ou de educação para quem tiver cometido faltas disciplinares no trabalho, participado de greve ou manifestado opiniões políticas (OIT, 1957).
Recentemente, em 2014, a OIT adotou um novo Protocolo, que atualiza as duas convenções previamente citadas com o objetivo de redobrar os esforços contra as formas modernas de escravidão. Ressalta-se a importância da introdução de novas obrigações relacionadas à prevenção do trabalho forçado, visto que hoje existem cerca de 21 milhões de pessoas vítimas dessa modalidade em todo o mundo (OIT, 2014)
Apesar de significar grande avanço para os Direitos Trabalhistas, as normas internacionais emitidas pela ONU e pela OIT estabelecem apenas padrões mínimos sobre o trabalho decente. Não há, no entanto, normas coercitivas que possam exigir o cumprimento por parte das empresas transnacionais e pelos países não ratificantes.
3. O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO
Como visto anteriormente, a escravidão tinha como aspectos principais a tomada do escravo como propriedade do seu dono e a privação de liberdade. Com o passar dos anos, apesar de um grande surgimento de leis e uma forte onda de proteção ao trabalhador, o trabalho escravo passou a se configurar de outras formas, sendo chamado “trabalho escravo contemporâneo” ou “trabalho análogo à condição de escravidão”.
Pode-se definir o trabalho escravo contemporâneo como apenas um meio para o patrão alcançar suas metas de produtividade, ignorando o fato de que o trabalhador precisa ter a sua dignidade, honra e integridade preservada. Carolina Caixeta, citando Fávero, assevera que constitui (2017, p. 22):
(...) definição marcante do trabalho escravo contemporâneo, o fato de o empregador sujeitar o empregado a condições degradantes, constrangendo-o de maneira que consiga viciar o seu consentimento na celebração do contrato empregatício e restringindo a sua liberdade e capacidade de rescindir o vínculo.
O princípio da dignidade da pessoa humana veda qualquer tipo de exploração a qualquer pessoa, inclusive ao trabalhador. Na Constituição Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 1º, inciso III, o país toma como fundamento este princípio (1988), o que o torna pilar e argumento para que deva ser levado em conta quando das decisões, sejam judiciais ou não, que envolvam seres humanos.
O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 149, tipifica o seguinte (1940):
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Este artigo, mudada sua redação em 2003 pela Lei nº 10.803, mostra a evolução do contexto social sobre o trabalho. Ressalta que apesar da abolição da escravidão, o trabalho análogo à condição de escravo ainda está presente e assombra diversos trabalhadores. Além disso, a tipificação do conceito dado pelo artigo 149 do CP é reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Houve, no Brasil, uma tentativa de mudar o conceito de trabalho escravo. O Ministério do Trabalho, por meio da Portaria nº 1.129, publicada no Diário Oficial da União no dia 16/10/2017, modificou as definições de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo. A nova conceituação trazida pela portaria definia que era indispensável ocorrer o cerceamento de liberdade de locomoção do trabalhador (ROVER, 2017).
Porém, a portaria distanciava-se do entendimento atual do país, signatário de instrumentos internacionais, e do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF). O conceito destoa das decisões firmadas pela Suprema Corte. No julgamento do Inquérito 3.412, o STF (2012, p. 26) trouxe a explicação de escravidão moderna, afirmando que esta que seria “mais sutil”, e que “o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos” (STF, 2012, p. 26-27). Diversos levantes foram feitos contra a portaria, entre eles o da Procuradora Geral de Justiça à época, Raquel Dodge (TUROLLO, 2017):
Não podemos admitir retrocesso no conceito de trabalho escravo porque aquele conceito alcançado nessa portaria está apenas a dizer que a escravidão é uma questão de ofensa a um certo grau de liberdade humana. Ela é muito mais do que isso. A escravidão fere a dignidade humana. E aquela portaria implica em uma mudança de um conceito que está sedimentado em lei e na política pública que vem sendo praticada no país nos últimos 30 anos. É por isso ela representa um claro retrocesso nas nossas instituições.
Pela repercussão negativa da portaria, o STF, em decisão redigida pela ministra Rosa Weber, suspendeu liminarmente a portaria por afrontar de forma direta a Constituição Federal, e apontou (2012, p. 27):
Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade, tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno.
Partindo deste entendimento, no cenário internacional, a Organização Internacional do trabalho adota medidas e convenções que visam erradicar o trabalho forçado, a jornada exaustiva e a exploração do trabalhador. Em 2015, foi adotada pelos Chefes de Estado do Mercado Comum do Sul, a Declaração Sociolaboral do Mercosul, que firma o compromisso dos integrantes do bloco econômico de “adotar as medidas necessárias para eliminar toda forma de trabalho forçado obrigatório exigido de um indivíduo sob ameaça de sanção ou para o qual não tenha se oferecido espontaneamente” (artigo 8, inciso 2º) e “adotar medidas para assegurar a abolição de toda utilização de mão de obra que propicie, autorize ou tolere o trabalho forçado ou obrigatório” (artigo 8, inciso 3º) (BRASIL, 2015).
Em 1995, quando o então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso reconheceu oficialmente a existência de situações de trabalho forçado no Brasil, foram criados o GERTRAF – Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado e o GEFM – Grupo Especial de Fiscalização Móvel, sob comando do MTE.
Ressalta-se também a Lei 7.998/90, norma aprovada que garantiu a todo trabalhador resgatado da condição análoga a de escravo pela fiscalização do MTE e o recebimento de seguro-desemprego (1990):
Art. 2º-C: O trabalhador que vier a ser identificado como submetido a regime de trabalho forçado ou reduzido a condição análoga à de escravo, em decorrência de ação de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, será dessa situação resgatado e terá direito à percepção de três parcelas de seguro-desemprego no valor de um salário-mínimo cada, conforme o disposto no § 2o deste artigo.
Todavia, apesar de um determinante avanço na legislação, ainda existem casos de empresas que vão de encontro às normas estipuladas.
3.1. Caso Zara
As lojas de fast fashion estão cada vez mais presentes no mundo todo. Sua política baseia-se no dumping social fashion, ou seja, o trabalho é precarizado com o objetivo de reduzir os custos, além de transformar as peças de bens duráveis em “descartáveis”, fomentando cada vez a produção progressiva de novas coleções e o alto consumo.
A empresa espanhola Zara, do grupo Inditex, recentemente enfrentou problemas com denúncias de condições sub-humanas de trabalho por parte do Ministério Público do Trabalho e Emprego em São Paulo, de acordo com a Portaria nº 1.668, de 21/10/2011. Nesse ano, três fiscalizações foram realizadas e bolivianos foram flagrados produzindo roupas para a marca em condições análogas à escravidão. Eles recebiam R$ 2 (dois reais) por peça costurada.
Em entrevista para o site Repórter Brasil, dois bolivianos aceitaram relatar em detalhes as condições da oficina que trabalhavam (ARANHA, 2015).
A gente começava a trabalhar às seis da manhã e ia até às nove da noite, às vezes meia noite. Mas a mulher que batia nosso ponto marcava sempre o horário das sete da manhã às seis da tarde. O trabalho era cronometrado. Se não tirasse 30 peças em uma hora, ela descontava como hora incompleta. Depois tinha que trabalhar mais. Tinha um gerente muito violento. Ele levava uma faca na cintura, gritava com a gente, mandava limpar o chão do banheiro. Ele bateu em um funcionário na nossa frente. Tinha uma adolescente trabalhando lá e duas crianças, que ficavam no meio das máquinas. A dona ficava com o nosso salário, ela mentia, dizia que o banco brasileiro cobra taxa de juros alta. A gente tinha acabado de chegar, confiamos nela. Trabalhamos muito um ano inteiro, economizando, sem gastar nada que não fosse preciso. A dona guardava tudo. Depois ela disse que não podia devolver nosso dinheiro, que a gente procurasse a justiça. Até hoje não recebemos por parte desse ano de trabalho. Depois que procuramos ajuda, começaram as ameaças. O gerente e seus parentes ficavam espionando quando a gente ligava para o advogado. Ficamos com medo e fugimos para outra cidade. Foi difícil porque não conhecemos ninguém.
Em 2014, foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Trabalho na Assembleia Legislativa de São Paulo. Na CPI, ficou evidente que a empresa não cumpria o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que tinha como objetivo zelar pelas condições trabalhistas. Esse termo discorria sobre a responsabilização da Zara por qualquer caso de violação trabalhista aos terceirizados e subcontratados. O grupo Inditex afirmou que se comprometeria em fiscalizar melhor seu sistema de produção. No entanto, novas fiscalizações realizadas em 2015 demonstraram que a Zara Brasil continuava a cometer infrações, o que resultou em um novo TAC em 2017. A empresa obrigou-se a investir R$ 5 milhões em projetos sociais.
A Zara, no entanto, com intuito de estabelecer nova imagem perante seus consumidores, mudou o seu comportamento como empresa. Entre 2016 e 2018, a empresa “foi reconhecida como a mais sustentável pelo Índice de Sustentabilidade Dow Jones” e obteve o 23º lugar no “relatório de transparência do Fashion Revolution” (ESTEVÃO, 2019).
Apesar do escândalo em que estava envolvida, após a mudança no CEO da empresa e atualizações na sua política de produção, a Zara anunciou em 2019 anunciou um pacote de medidas que previa várias ações voltadas ao meio ambiente. Dentre elas, está a produção de todas as coleções da marca com tecidos 100% sustentáveis até 2025, também, o outro plano é que “80% da energia consumida pelos estabelecimentos da empresa virão de fontes renováveis” (ESTEVÃO, 2019), deixando de “descartar resíduos e produtos químicos em locais inadequados” (ESTEVÃO, 2019).
No cenário internacional, a empresa tomou uma postura mais regular e realista quanto aos impactos causados pela geração de suas roupas. Obteve a iniciativa de instalar bancos de descarte de roupas em mais de 800 lojas da Espanha, Pequim e Xangai, e, recolheu mais de 34.000 (trinta e quatro mil) toneladas de peças usadas.
Após a união da empresa com instituições como a Cruz Vermelha, a distribuição dessas peças a pessoas necessitadas foi realizada, tornando possível a reversão e construção de uma nova identidade para a marca. No Brasil, a rede de lojas ficou entre as três etiquetas mais corretas do país.
Casos de trabalho escravo vilipendiam a imagem de grandes marcas, e muitas delas, inclusive, mantêm-se no erro. A Zara mostra que apesar dos acontecimentos, mudou seus representantes, seus modos de difusão da empresa ao redor do mundo, suas políticas em relação aos trabalhadores e ao meio ambiente, sendo um exemplo de reconstrução de sua reputação e buscando um novo contato com os trabalhadores e clientes.
3.2. A Exploração e o Setor Têxtil na Ásia
A terceirização é um fenômeno bastante comum na indústria têxtil, grandes marcas terceirizam o trabalho da costura para empresas em países subdesenvolvidos. Bangladesh ainda é um dos locais onde há um número considerável de fábricas têxteis, mas igual ao número de fábricas, é o número de violações feitas pelos donos dessas empresas.
Em 24 de abril de 2013, um prédio chamado Rana Plaza de três andares desabou em Dhaka, capital de Bangladesh. Mais de 200 (duzentas) pessoas foram mortas e mais de 1.000 (um mil) ficaram feridas. No prédio funcionava uma fábrica de tecidos, e no momento do desabamento, estava lotado com mais de 3.000 (três mil pessoas).
A tragédia chama atenção, pois o corpo de bombeiros identificou que o prédio estava com a estrutura precária, sem condições de ser um adequado local de trabalho. Os trabalhadores que ali laboravam estavam submetidos a um local completamente desprovido de cuidado e sem fiscalização. Havia rachaduras por todo o prédio e mesmo após alerta desses empregados, o chefe do local ignorou as chamadas para manutenção. Após uma semana do aviso, o prédio desabou.
O repórter da BBC, Andrew North, correspondente do Sudeste da Ásia, diz que (2013) “é no norte da capital Dhaka que se concentra a maior parte das fábricas de roupas do país”. No Rana Plaza, por exemplo, havia um fornecedor da empresa britânica muito conhecida, a Primark. A BBC ainda relatou que seis meses antes do desabamento, houve um incêndio de outra indústria têxtil, em situações precárias de trabalho, da marca Walmart (2013).
Essas tragédias trazem à tona um lado obscuro, pouco conhecido pela sociedade: a exploração de trabalhadores em situação de trabalho análogo ao escravo. Muitos desses trabalhadores são submetidos à jornadas exaustivas de atividade laboral, abrigos de pouco saneamento e locais de trabalho completamente inadequados.
Infelizmente, países subdesenvolvidos estão sujeitos a esses acontecimentos pois não é feito um trabalho de fiscalização junto a órgãos internacionais. O “boom” das roupas baratas fez com que os administradores de empresas explorassem ainda mais os trabalhadores. Um integrante do sindicato de Bangladesh disse que “quando você compra algo e leva outro de graça – não é exatamente de graça” (BBC, 2013).
O governo de Bangladesh diz que quer melhorar as condições de trabalho, mas também ressalta a preocupação com as consequências para milhares de pessoas que dependem da indústria para sobreviver. Em posicionamento, o ministro do Comércio do país, Ghulam Mohammed, disse que “o maior direito humano é o direito a sobrevivência” (BBC, 2013).
Segundo relatório da empresa Textiles Intelligence, o mercado internacional de artigos de malha “está se transformando à medida que os importadores dos principais centros de consumo, como EUA e União Europeia, mudam suas fontes para produtores de baixo custo de países emergentes na Ásia, como Bangladesh, Índia, Indonésia, Paquistão e Vietnã” (2019). O controle, fiscalização e monitoramento desses lugares é necessário, ainda mais na Ásia, onde se concentra grande parte desse setor.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho em condições análogas a de escravo, infelizmente, ainda persegue muitos trabalhadores. Fatores como a classe social, a cor da pele, o gênero, a baixa escolaridade, influenciam fortemente esses trabalhadores a seguirem por caminhos que de fato desrespeitam seus direitos e os fazem se submeter a situações que ferem princípios constitucionais, convenções internacionais e leis de regulamentação interna de cada país.
Algumas empresas ainda mantêm trabalhadores em situações precárias pois o número de consumidores é gigantesco. Empresas como a Primark, Walmart, Animale etc., tem um vasto número de admiradores. Cabe a cada participante da sociedade averiguar a índole de cada empresa e fazer da compra de roupas um ato responsável para promover a valoração de empresas que preservam a saúde de trabalhadores e mantêm famílias de forma digna.
A roupa para alguns é apenas uma forma de cobrir a nudez, para outros serve como forma de expressão e identificação pessoal. Por trás de todo esse conceito, há alguém que produziu, lavou e costurou essa roupa, houve a tramitação de continente a continente até as mãos do consumidor. A verificação é necessária. Por fim, como diziam alguns trabalhadores entrevistados pela equipe do documentário The True Cost: “Muitas dessas vestimentas são produzidas com o nosso suor, mas não deixem que elas também sejam lavadas com o nosso sangue” (2015).
5. REFERÊNCIAS
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BRASIL. Portaria nº 1.129, de 13 de outubro de 2017. Dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos do artigo 2-C da Lei n 7998, de 11 de janeiro de 1990; bem como altera dispositivos da PIMTPS/MMIRDH Nº 4, de 11 de maio de 2016. Brasília, DF. Disponível em: <https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/19356195/do1-2017-10-16-portaria-n-1-129-de-13-de-outubro-de-2017-19356171>. Acesso em: 18 dez. 2021.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INQUÉRITO 3.412 ALAGOAS. Distrito Federal, 29, de março de 2012. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3076256>. Acesso em: 18 dez. 2021.
BRASIL. Lei nº 7.988, de 11 de janeiro de 1990. Regula o Programa do Seguro-Desemprego, o Abono Salarial, institui o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), e dá outras providências. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7998.htm>. Acesso em: 18 dez. 2021.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Constituição OIT e Declaração de Filadélfia. Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/centro-de-informacoes/documentos/WCMS_336957/lang--pt/index.htm>. Acesso em: 18 dez. 2021.
CAIXETA, Carolina Correia. Fashion law – Trabalho escravo no mundo da moda. 2012. 53 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Centro Universitário do Cerrado Patrocínio, Patrocício, 2017. Disponível em: <https://www.unicerp.edu.br/ensino/cursos/direito/monografias/20172/FASHIONLAW.pdf >. Acesso em: 18 dez. 2021.
BRASIL. Declaração Sociolaboral do MERCOSUL de 2015 – I Reunião Negociadora – Brasília, 17 de julho de 2015. Brasília, DF. Disponível em: <https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-sociolaboral-do-mercosul-de-2015-i-reuniao-negociadora-brasilia-17-de-julho-de-2015>. Acesso em: 18 dez. 2021.
[1] BIGNAMI, Renato. Trabalho Escravo Contemporâneo: o Sweating System no Contexto Brasileiro como Expressão do Trabalho Escravo Urbano. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Coord.). Trabalho Escravo Contemporâneo – O Desafio de Superar a Negação. 2ª ed. São Paulo: LTR, 2011.
Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, Daniel Gonçalves. Análise acerca do trabalho análogo ao escravo na indústria da moda internacional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jan 2022, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57993/anlise-acerca-do-trabalho-anlogo-ao-escravo-na-indstria-da-moda-internacional. Acesso em: 22 nov 2024.
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