TADEU GALVÃO MAESSE
(orientador)
RESUMO: O presente trabalho volta-se à análise da legislação penal brasileira dedicada à proteção da mulher. A violência contra a mulher é uma realidade não só no Brasil, mas em todo o mundo. As estatísticas revelam que as mulheres são vítimas de crimes violentos e perversos apenas por sua condição de ser mulher. Em razão disso, a legislação penal se adapta e inova ao criar normas para combater a violência de gênero no país. Assim, a Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, e a Lei 13.104/15, que tipifica o feminicídio, são os objetos de estudo deste artigo. Sem a intenção de esgotar o assunto, busca-se, através da pesquisa e da revisão literária sobre o tema, discutir a necessidade e a eficácia de tais leis no combate à violência contra a mulher no Brasil. Fica claro, através da análise de dados e do estudo das referidas leis, que, além dos esforços legais, outras medidas ainda precisam ser adotadas para resolver o problema da violência de gênero no país.
PALAVRAS-CHAVE: Violência contra a mulher. Lei Maria da Penha. Feminicídio.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA. 1. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: CARACTERÍSTICAS E NÚMEROS. METODOLOGIA. 2. A LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA VOLTADA À PROTEÇÃO DA MULHER. 2.1 Aspectos gerais da Lei 11.340/06. 2.2 Aspectos gerais da Lei 13.104/15. 3. O PAPEL DA MÍDIA FRENTE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
A violência contra a mulher é tão antiga quanto a história da humanidade. Ela é estruturada em uma construção social que prega a dominação do masculino sobre o feminino, que, em última análise, é resultado do sistema patriarcal, amplamente marcado e garantido pelo uso da violência. Essa relação de poder, baseada em padrões de dominação, leva à discriminação da mulher, à reprodução de estereótipos, tanto no espaço público como no âmbito das relações privadas, e contribui para que o agressor sinta-se legitimado ao cometer abusos, físicos ou psicológicos.
Embora seja um problema histórico, a violência de gênero passou a ser mais discutida na segunda metade do século XX. A partir da década de 1970, os movimentos feministas cresceram e a comunidade internacional começou a reconhecer a necessidade de oferecer um tratamento diferenciado à problemática de gênero. Assim, em 1979, as Nações Unidas aprovaram a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, em inglês), primeiro documento internacional de direitos humanos que aborda exclusivamente o tema da violência contra a mulher.
Ainda levaria alguns anos para que tivessem início as reformas legais que deram origem a leis específicas de combate à violência contra a mulher. Embora outros países latino-americanos tenham editado leis nesse sentido ainda na década de 1990, o Brasil só promulgou sua primeira lei voltada à violência de gênero em 2006.
A lenta evolução legislativa pode ser entendida quando se verifica que, no que tange à questão de gênero, a legislação brasileira apresenta um longo histórico de discriminação negativa. Muitos diplomas legais previam expressamente a discriminação da mulher. O Código Civil de 1916, por exemplo, previa a possibilidade de o marido anular o casamento caso constatasse que a esposa não era mais virgem. Esse Código vigorou até 2002. Já o Código Penal de 1940, trazia, até o ano de 2005, o conceito de “mulher honesta”, que seria aquela cuja conduta moral e sexual era considerada irrepreensível. Tal característica era imprescindível para assegurar proteção legal contra determinados crimes sexuais, descaracterizando, por exemplo, o caráter criminoso do estupro de uma prostituta. Esse Código também previa, até 2005, a extinção da punibilidade de um crime pelo casamento da vítima com o autor. Assim, um estuprador deixaria de ser condenado caso a mulher vítima do estupro viesse a se casar com ele.
A partir desse contexto, no primeiro momento das reformas legais, buscou-se retirar da legislação essas discriminações negativas. Após, com a evolução das estruturas de pensamento e a pressão social e internacional, tornou-se necessário inserir entre as leis do país exemplos de discriminação positiva da mulher. Dessa forma, há cerca de uma década, a legislação penal brasileira avançou ao criar leis que tipificam crimes cometidos contra as mulheres.
A primeira lei de proteção à mulher foi promulgada em 2006. Trata-se da Lei 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha. Sem natureza punitivista e de caráter político-criminal, a Lei cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. A norma tipifica cinco formas dessa violência: a violência física, a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. Prevê, ainda, políticas de prevenção e assistência à mulher em situação de violência, além de medidas protetivas de urgência. A Lei também regulamenta o atendimento de mulheres em situação de violência doméstica pela Autoridade Policial e a atuação do Ministério Público nesses casos.
Quase dez anos após a sanção da Lei Maria da Penha, outro crime contra a mulher foi tipificado no Brasil: o feminicídio, ou seja, o assassinato de mulheres exclusivamente em razão de gênero. A Lei 13.104/15, de caráter mais punitivista, altera o art. 121 do Código Penal, “para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos”.
Tal legislação especial ainda é alvo de críticas e discussões. O objetivo deste trabalho é justamente apresentar essas leis, em aspectos gerais, e analisar sua necessidade e eficácia frente aos elevados números das estatísticas de violência contra a mulher. Tal estudo revela-se ainda mais relevante se considerarmos que a cultura do machismo ainda é forte no Brasil e que, muitas vezes, a mídia atua de forma tendenciosa ao noticiar os casos de violência contra a mulher, retratando as vítimas de maneira preconceituosa e favorecendo a sua culpabilização.
O objetivo deste trabalho é analisar a proteção conferida à mulher na legislação penal brasileira. Para tanto, são estudadas as leis 11.340/06 e 13.104/15.
Inicialmente, fez-se necessária a análise do Código Penal de 1940 e suas alterações. Nessa fase, serviram de base obras como Curso de Direito Penal: legislação penal especial, de Fernando Capez (CAPEZ, 2014), e Direito Penal Esquematizado: parte especial, de Victor Eduardo Rios Gonçalves (GONÇALVES, 2012).
No estudo específico das leis acima mencionadas, merece destaque o trabalho de Ricardo Antonio Andreucci, que, no livro Legislação Penal Especial (ANDREUCCI, 2013), faz uma análise técnica e minuciosa sobre violência doméstica e familiar contra a mulher, apresentando a Lei 11.340/06.
Sobre esta norma, também serviram de base os livros de Maria Berenice Dias, A Lei Maria da Penha na Justiça – A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher (DIAS, 2007), e de Alice Bianchini, Lei Maria da Penha – Aspectos assistenciais, protetivos e ciminais da violência de gênero (BIANCHINI, 2014), que detalham os vários aspectos da referida lei.
Ainda sobre esse tema, foi visitada a obra A família ameaçada – Violência doméstica nas Américas, de Andrew R. Morrison e María Loreto Biehl (MORRISON & BIEHL, 2000), importante para contextualização histórica da violência contra a mulher na América.
Para o estudo sobre a Lei 13.104/15, foram analisados trabalhos acadêmicos de maior relevância, além do livro Feminicídio – invisibilidade mata, organizado por Débora Prado e Marisa Sanematsu (2017), que é bastante rico em definições e traz a evolução do conceito de feminicídio no ordenamento jurídico internacional e sua incorporação ao Código Penal Brasileiro.
Além da revisão bibliográfica mencionada, foram colhidos dados estatísticos sobre a violência contra a mulher, seja ela doméstica ou não. Ao mostrar os números disponibilizados em dossiês e mapas de violência, como o elaborado por Julio Jacobo Waiselfisz (2015), que analisa o homicídio de mulheres no Brasil, busca-se comparar os dados anteriores e posteriores às leis estudadas neste trabalho, com o objetivo de verificar a necessidade e a eficácia das mesmas.
1. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: CARACTERÍSTICAS E NÚMEROS
Os números da violência contra a mulher são alarmantes em todo o mundo. No Brasil, essa realidade não é diferente. Segundo dados recentes, divulgados pelo site Agência Patrícia Galvão, ocorrem cinco espancamentos de mulheres a cada dois minutos no país. A cada onze minutos, uma mulher é estuprada. Cento e setenta e nove agressões são relatadas por dia no Ligue 180, central de atendimento criada para orientação sobre direitos e serviços públicos para a população feminina em todo o país. Por fim, um feminicídio ocorre no Brasil a cada noventa minutos.
De acordo com o Mapa da Violência 2015, entre os anos 1980 e 2013, 106.093 mulheres foram vítimas de homicídio no Brasil. Em 1980, 1.353 mulheres foram assassinadas, enquanto esse número subiu para 4.762 em 2013, configurando um aumento de 252%. Se considerarmos o crescimento da população, veremos que a taxa de vítimas a cada 100 mil mulheres também aumentou, passando de 2,3 vítimas por 100 mil em 1980 para 4,8 em 2013, um aumento de 111,1%.
A pesquisa também analisou os números antes e depois da promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006. Verificou-se que, antes da Lei, de 1980 a 2006, o crescimento do número de homicídio de mulheres foi de 7,6% ao ano e o crescimento da taxa ponderada, que leva em conta a população total feminina, foi de 2,5% ao ano. No período de 2006 a 2013, já com a vigência da Lei, o crescimento do número de homicídios e da taxa ponderada caiu para 2,6% e 1,7% ao ano, respectivamente. Entretanto, levando-se em conta apenas a década de 2003 a 2013, verificou-se que o maior aumento de número de homicídios e taxas ocorreu sob a égide da referida lei, entre os anos de 2006 e 2013. Nesse período, o número de homicídios cresceu 18,4% e a taxa ponderada aumentou 12,5%.
Em dados fornecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2013, o Brasil era o 5º país com maior taxa de homicídio por 100 mil mulheres, num grupo de 83 países com dados homogêneos. A taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres deixava o país à frente apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Federação Russa. O número de homicídios femininos no Brasil era 48 vezes maior que no Reino Unido, por exemplo.
É importante ressaltar que os índices trazidos pelo Mapa da Violência 2015 são referentes a homicídios de mulheres e não especificam o número de feminicídios, ou seja, quando o crime é cometido em razão de gênero. Isso se deve ao fato de que a Lei 13.104/15, que tipifica o feminicídio, é ainda recente. Portanto, os dados de boletins de ocorrência e inquéritos policiais gerados após a tipificação desse crime ainda não puderam ser devidamente analisados.
O Ligue 180 - Central de Atendimento à Mulher é um importante serviço vinculado à Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, do Governo Federal. Os dados mais recentes da Central são referentes ao 1º semestre de 2016. Em 11 anos de funcionamento, foram registrados cerca de 5,4 milhões de atendimentos. De 2014 para 2015, houve um aumento de 54,4% na procura pelo serviço, mostrando que a violência contra a mulher está mais visível e mais gritante. Nos primeiros seis meses de 2016, foram registrados 555.634 atendimentos. Desses, 68 mil atendimentos, ou 12,23% do total, foram relatos de violência: 51% correspondem a violência física; 31,1% violência psicológica; 6,51% violência moral; 1,93% violência patrimonial; 4,30% violência sexual; 4,86% cárcere privado; e 0,24% tráfico de pessoas.
A violência contra a mulher, motivada por questões de gênero, tem características próprias muito relevantes: ela decorre de uma relação de poder marcada pela dominação do homem e pela submissão da mulher; normalmente essa violência perpassa a relação pessoal entre homem e mulher e é encontrada também nas instituições, nas práticas cotidianas e em tudo que constitui as relações sociais; por fim, a relação afetiva, a proximidade entre a vítima e o agressor, característica marcante da violência doméstica, e a habitualidade das situações de violência tornam as mulheres ainda mais vulneráveis dentro do sistema de desigualdade de gêneros.
A motivação das agressões contra mulheres decorre de diversos fatores. A pesquisa DataSenado 2013 apontou que 28% das vítimas de violência responderam que o ciúme motivou a agressão. Outras 24,5% apontaram o uso de álcool, enquanto 6,5% a traição conjugal, 6% a separação e 2,6% o uso de drogas.
A relação de proximidade com o agressor também é um fator marcante na violência de gênero. Segundo o Mapa da Violência 2015, 1.583 mulheres foram mortas por familiares, parceiros ou ex-parceiros no ano de 2013. Esse número corresponde a 33,2% dos homicídios femininos ocorridos naquele ano. As formas de agressão também merecem destaque quando se trata de violência contra a mulher. Os meios que exigem contato direto, como objetos cortantes e penetrantes, objetos contundentes e sufocação são muito mais utilizados contra mulheres do que contra homens.
O chamado ciclo da violência é complexo e difícil de ser rompido. O predomínio da cultura machista, a falta de mecanismos que possam garantir a segurança das mulheres agredidas longe dos agressores, o reduzido número de casas-abrigo, de delegacias da mulher, de centros multidisciplinares de atendimento a vítimas e de juizados especializados contribuem para que o ciclo seja mantido. Além disso, alguns motivos levam as mulheres em situação de violência doméstica e familiar a não denunciarem os agressores. Entre eles, os mais comuns são: medo do agressor; dependência financeira; percepção de que nada acontece com o agressor quando denunciado; preocupação com a criação dos filhos; vergonha de se separar e de admitir que foi agredida; e acreditar que aquela agressão seria a última.
Importante ressaltar que a violência doméstica e a social estão estreitamente ligadas, uma vez que crianças que convivem com agressões e testemunham maus-tratos são mais propensas a se comportarem de maneira violenta quando adultos, dentro e fora de casa. A violência contra a mulher também gera prejuízos econômicos, tanto em função dos gastos com tratamento das mulheres agredidas e com a persecução penal e o encarceramento dos agressores, quanto em razão do afastamento dessas mulheres do trabalho e do prejuízo ao desenvolvimento escolar das crianças que testemunham os maus-tratos sofridos pelas mães e, assim, têm suas possibilidades futuras no mercado de trabalho prejudicadas, além de ter reduzida sua capacidade de contribuir para o desenvolvimento socioeconômico do país.
Para o desenvolvimento desse trabalho, foi utilizado o método dialético. Primeiramente, através de pesquisa bibliográfica, por meio de leitura e fichamento de livros, artigos e periódicos, além da utilização de material audiovisual. Com essa pesquisa, vislumbrou-se o aprofundamento do conhecimento legal, doutrinário e jurisprudencial do tema proposto.
Após a conclusão da pesquisa e o estudo de todo o material encontrado, iniciou-se a confecção do trabalho, cuja redação privilegiou a objetividade e a concisão, visando ao fácil entendimento por parte do leitor, sem prejuízo da riqueza da exposição do tema.
A partir da pesquisa exploratória e análise qualitativa das informações, buscou-se mostrar as principais características e especificidades da matéria em exame, bem como apontar as maiores falhas e possíveis soluções para os problemas apresentados.
2. A LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA VOLTADA À PROTEÇÃO DA MULHER
2.1 Aspectos gerais da Lei 11.340/06
A Lei Maria da Penha foi promulgada em 7 de agosto de 2006. Esse nome foi dado à Lei 11.340/06 como homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima de violência e tentativa de homicídio pelo então marido, um professor universitário. Os fatos aconteceram na década de 1980 e Maria da Penha ficou paraplégica em razão de um tiro dado pelo agressor. O caso se arrastou na justiça e o criminoso foi preso apenas no ano 2002, tendo cumprido somente dois anos de prisão. A repercussão foi tão grande que o Brasil foi condenado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) a pagar indenização em favor de Maria da Penha e o Estado brasileiro foi responsabilizado por negligência e omissão em relação à violência doméstica. Graças à pressão por parte da OEA, teve início em 2002 o projeto que seria enviado ao Congresso Nacional no ano de 2004 e resultaria, enfim, na Lei 11.340/06.
Tendo como base a Constituição Federal e importantes documentos internacionais, além de outras providências, a Lei Maria da Penha:
Art. 1º [...] cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal.
Cinco formas de violência doméstica e familiar contra a mulher são mencionadas expressamente na Lei: a violência física – quando há ofensa à integridade ou saúde corporal da mulher (art. 7º, I); a violência psicológica – quando há dano emocional, diminuição da autoestima, prejuízo ao pleno desenvolvimento ou à saúde psicológica e à autodeterminação (art. 7º, II); a violência sexual – quando a mulher é constrangida a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada, quando é induzida a comercializar ou utilizar sua sexualidade ou quando há limitação do exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos (art. 7º, III); a violência patrimonial – quando há a retenção, subtração ou destruição de objetos, documentos, bens, valores e direitos da mulher, entre outros (art. 7º, IV); e, ainda, a violência moral – quando ocorre qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (art. 7º, V). Entretanto, o rol é meramente ilustrativo, uma vez que o dispositivo faz menção à expressão “entre outras” no caput do art. 7º.
Para se caracterizar a violência doméstica e familiar contra a mulher, tipificada no art. 5º da Lei Maria da Penha, alguns requisitos são necessários: a violência tem que ser baseada em uma questão de gênero, praticada contra a mulher em um contexto familiar, doméstico ou em razão de relação íntima de afeto e resultar em morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
Embora a mulher em situação de violência doméstica e familiar seja o destinatário principal da Lei 11.340/06, a norma também prevê alguns dispositivos de caráter assistencial e/ou protetivo direcionados aos familiares, às testemunhas e ao próprio agressor. Importante ressaltar que a Lei menciona expressamente que sua aplicação independe de orientação sexual, garantindo, assim, proteção a mulheres hétero, homossexuais e transexuais. Outro avanço da Lei é considerar a violência doméstica e familiar como uma violação dos direitos humanos das mulheres. Para Alice Bianchini, “os direitos das mulheres são indissociáveis dos direitos humanos: não há que se falar em garantia universal de direitos sem que as mulheres, enquanto humanas e cidadãs, tenham seus direitos específicos respeitados.” (BIANCHINI, 2014, p.129).
Para proteção da mulher em situação de violência doméstica e familiar, a Lei Maria da Penha prevê políticas públicas de prevenção, políticas assistenciais e aplicação de medidas protetivas de urgência. No art. 8º da Lei, são elencadas ações a serem desenvolvidas articuladamente pela União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, além de entidades não governamentais, para inibição da violência doméstica e familiar contra a mulher. Entre elas, estão previstos a integração operacional dos órgãos públicos, a promoção de estudos e pesquisas, o atendimento policial especializado, a realização de campanhas educativas, de convênios e parcerias, a promoção de programas educacionais e de capacitação permanente de agentes das áreas de segurança pública, saúde, assistência social, educação, entre outras, além da inclusão do tema nos currículos escolares e a previsão de atuação dos meios de comunicação para evitar a corroboração de estereótipos e da violência contra a mulher.
O art. 9º da Lei trata da assistência a ser prestada à mulher em situação de violência doméstica e familiar, que deverá ser articulada e realizada segundo os princípios e diretrizes do Serviço de Assistência Social, do Sistema Único de Saúde, do Sistema Único de Segurança Pública e de outras normas e políticas públicas de proteção. Conjugando áreas médicas, jurídicas e sociais, esse artigo evidencia o caráter interdisciplinar do combate e prevenção à violência doméstica e familiar. Assim, estão previstas na Lei políticas públicas de proteção, em especial de assistência social, de saúde e de segurança, com inclusão da mulher em situação de violência no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal; normas de proteção no trabalho, com garantia de acesso prioritário à remoção para servidoras públicas e garantia de manutenção do vínculo trabalhista a funcionárias em caso de afastamento por até seis meses; e, ainda, políticas públicas especiais de proteção à saúde, relacionadas à violência sexual, com assistência médica especializada.
As medidas protetivas de urgência estão relacionadas no Capítulo II, arts. 18 a 24, da Lei Maria da Penha. Tais medidas serão concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida. A mulher vítima de violência pode solicitar medida protetiva diretamente à Autoridade Policial, durante o registro da ocorrência. O expediente será encaminhado ao juiz para que, em 48 horas, decida sobre o pedido. As medidas também podem ser solicitadas pela ofendida diretamente ao juiz, durante o trâmite do processo judicial. Ao longo dos artigos acima mencionados estão previstas a atuação da Autoridade Policial, do Judiciário e do Ministério Público na condução dos casos que envolvem aplicação de medidas protetivas de urgência. Também são elencadas as medidas passíveis de aplicação, sejam as que obrigam o agressor ou as que protegem a vítima. Entre as medidas protetivas que obrigam o agressor, estão previstas a suspensão ou restrição do porte de armas; o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; a proibição de condutas como a aproximação e o contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas; a suspensão ou restrição de visitas aos dependentes menores e a prestação de alimentos provisionais ou provisórios. Entre as medidas protetivas de urgência à ofendida, estão o encaminhamento da ofendida e seus dependentes a programas governamentais e comunitários; a recondução dos mesmos ao domicílio após o afastamento do agressor; a separação de corpos e o afastamento da ofendida do domicílio, sem prejuízo de direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos. Estão previstas, ainda, medidas protetivas de ordem patrimonial, como restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor, suspensão de procurações conferidas pela ofendida ao agressor, entre outras.
Importante salientar que no Capítulo II também está prevista a prisão preventiva do agressor em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, podendo ser decretada pelo juiz de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da Autoridade Policial. O art. 41 da Lei Maria da Penha ainda previu expressamente a impossibilidade de aplicação da Lei 9.099/95, a Lei dos Juizados Especiais, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Com isso, esses crimes deixam de ser considerados de menor potencial ofensivo e ficam inviabilizadas a transação penal e a suspensão condicional do processo. Outro ponto que chama atenção em relação às penas aplicadas nos casos previstos na Lei 11.340/06 é que o art. 17 da norma veda a possibilidade de pagamento de cestas básicas e outras prestações pecuniárias, ou a substituição da pena por pagamento isolado de multa.
O art. 16 da Lei Maria da Penha trata da renúncia ou retratação da representação. Prevê o dispositivo que, nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida, a mulher vítima de violência doméstica e familiar só poderá desistir da representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público. Ainda assim, é grande o número de mulheres que abrem mão de medidas protetivas concedidas e até mesmo voltam ao convívio com o agressor. As razões que levam as mulheres a tais atitudes são, muitas vezes, incompreendidas. Mas o ciclo da violência é complexo e fatores como o vínculo entre o agressor e a vítima, a dependência financeira da mulher, o medo do agressor e a preocupação com a criação dos filhos sempre interferem nas decisões das mulheres vítimas. Tais fatores também têm grande peso na questão da subnotificação da violência, pois é sabido que grande parte dos casos não chega sequer a ser comunicado às autoridades competentes.
Em 2009, a Lei Maria da Penha foi considerada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas como uma das três mais avançadas no mundo, dentre 90 legislações sobre violência doméstica e familiar contra a mulher. Muitas são as iniciativas previstas na lei capazes de combater e reduzir esse tipo de violência. Entretanto, ainda faltam esforços para que essas iniciativas sejam aplicadas em todo o país. A lei prevê, por exemplo, a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar, com competência cível e criminal para atuação nas causas decorrentes da prática de tal violência. Prevê, ainda, que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios criem e promovam, no limite de suas competências, centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e seus dependentes em situação de violência doméstica e familiar, casas-abrigos, delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados, programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar, além de centros de educação e reabilitação para os agressores. Contudo, sabemos que, nos 5.570 municípios do país, existem apenas 502 delegacias da mulher, os Juizados de Violência Doméstica e Familiar estão presentes em cerca de 80 municípios, fazendo com que os casos se acumulem nas varas criminais comuns, e, por fim, só existem 19 iniciativas de reabilitação de agressores no país, contrariando as estatísticas que mostram que menos de 2% dos homens que participam de grupos de reflexão voltam a agredir suas companheiras.
Há que se destacar, ainda, que a Lei 11.340/06:
[...] é uma lei de ação afirmativa, significando, com isso, que seu caráter é transitório. Ela vigorará, portanto, enquanto for necessária para atingir os objetivos para os quais ela foi criada: coibir e prevenir a violência de gênero, no contexto doméstico, familiar ou de uma relação íntima de afeto. (IBIDEM, p. 24)
Tal caráter de excepcionalidade da Lei está relacionado a uma previsão contida no art. 4º da Convenção Belém do Pará, que determina que as “medidas especiais [...] destinadas a acelerar a igualdade de fato entre homem e mulher [...] cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento forem alcançados”. (apud BIANCHINI, 2014, p. 137).
2.2 Aspectos gerais da Lei 13.104/15
A Lei 13.104/15, que tipifica o feminicídio, entrou em vigor em 10 de março de 2015. Com isso, o Brasil se tornou o 16º país da América Latina a prever tal figura em sua legislação penal. A referida Lei alterou o art. 121 do Código Penal de 1940 para incluir o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio, descrevendo seus requisitos típicos. Além disso, foram elencadas condições em que a pena para tal crime é aumentada de um terço até a metade e o feminicídio foi incluído no rol dos crimes hediondos, previstos na Lei 8.072/90.
Segundo a Lei, o feminicídio se caracteriza quando o homicídio é cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.” Em seguida, a norma esclarece que “considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.”
O feminicídio, em última análise, é o assassinato de uma mulher em razão da condição de ser mulher, ou seja, um crime cometido por motivos de gênero. Trata-se de um crime de ódio, cujo conceito surgiu na década de 1970, para dar visibilidade à morte violenta de mulheres, decorrente da discriminação, da opressão, da desigualdade e da violência sistemática. As motivações mais comuns para tal crime são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda do controle e da propriedade sobre as mulheres, pensamentos muito presentes em sociedades marcadas pelo sistema patriarcal e pela associação de papéis discriminatórios às mulheres, como é o caso do Brasil. Para Maria Amélia Teles e Mônica de Melo, a violência de gênero representa “uma relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher. Demonstra que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos.” (apud BIANCHINI & GOMES, 2015).
A violência de gênero envolve certa determinação dos papéis sociais masculinos e femininos. Não há qualquer problema no fato de homens e mulheres desempenharem papéis diferentes dentro de uma sociedade. A questão se torna prejudicial à medida que eles são valorizados de maneiras diferentes. E o que podemos verificar, com frequência, é que existe uma supervalorização dos papéis masculinos em detrimento dos femininos. Essa determinação social favorece uma cultura de controle da mulher. E, no caso da violência de gênero, esse controle incide de forma quase absoluta, uma vez que a relação desigual de poder é muitas vezes marcada pelo afeto, a intimidade e a convivência com o agressor. Entretanto, merece destaque a reflexão de Alice Bianchini sobre essa questão:
É necessário compreender as maneiras como a assimetria sexual se estabelece e se reproduz em sociedades históricas concretas. A diferença de tratamento entre os sexos, com a valorização de papéis atribuídos aos homens, é uma construção social: modificável, portanto, por meio do implemento de novas formas de pensar e agir, com valores outros sendo disseminados, prestigiados e estabelecidos por um proselitismo competente. (BIANCHINI, 2014, p. 92)
Com base nos conceitos apresentados, é possível perceber que nem todo crime cometido contra uma mulher ocorre em razão de gênero. Da mesma forma, nem todo homicídio de mulheres é um feminicídio. Assim, um marido que mata a esposa por questões relacionadas à dependência química, não comete feminicídio. Já aquele que mata a mulher pelo fato de ela pedir a separação, está cometendo um crime baseado no gênero, na ideia de que é superior àquela mulher e não pode se render à sua vontade, caracterizando, assim, um feminicídio.
A Lei 13.104/15 estabelece algumas condições em que a pena para o feminicídio, que varia de 12 a 30 anos de reclusão, seja aumentada de um terço até a metade. São elas: quando o crime é praticado durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; quando é cometido contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência e quando ocorre na presença de descendente ou de ascendente da vítima.
Outro ponto importante é que, com a tipificação do feminicídio como homicídio qualificado, tal crime passa automaticamente a integrar o rol de crimes hediondos, previstos na Lei 8.072/90, assim como o estupro, o latrocínio e o estupro de vulnerável. Todos os crimes hediondos são insuscetíveis de anistia, graça e indulto, além de serem inafiançáveis.
A tipificação do feminicídio, ainda hoje, é uma questão polêmica. Segundo Luciana Gebrim e Paulo César Borges:
O principal argumento daqueles que defendem a tipificação do feminicídio é tornar visível a existência de homicídio de mulheres por razões de gênero. Argumenta-se que as mulheres são assassinadas em circunstâncias em que os homens não costumam ser e que é necessário expor tais circunstâncias, a fim de que o público as conheça e se sensibilize com a situação dessas mulheres [...]. (GEBRIM & BORGES, 2014, p. 68)
Além disso, essa exposição contribuiria para obrigar o Estado a tomar providências para evitar a morte de mulheres, através de políticas públicas de prevenção, e também a atuar de maneira eficaz na persecução penal do agressor, nos casos em que o crime não é evitado. Já aqueles que são contrários à tipificação do feminicídio argumentam, principalmente, que o problema da violência contra a mulher, bem como a impunidade e as dificuldades no acesso à justiça, não se solucionam com a criação de novos tipos penais ou com o aumento das penas.
3. O PAPEL DA MÍDIA FRENTE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
A Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), realizada em 1979, assim como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), ocorrida em 1994, preocuparam-se em incluir os meios de comunicação em seus documentos. Os Estados-Partes da Convenção de Belém do Pará acordaram, por exemplo, adotar medidas e criar programas para “estimular os meios de comunicação a criar diretrizes adequadas de difusão que contribuam para a erradicação da violência contra a mulher em todas as suas formas e realçar o respeito à dignidade da mulher.” (ANDREUCCI, 2013, p. 1435)
Da mesma forma, foi acrescentado ao Capítulo I da Lei Maria da Penha, que trata das medidas integradas de proteção, o inciso III, que prega:
O respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do art. 1º, no inciso IV do art. 3º e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal.
Tal preocupação mostra-se relevante, uma vez que é notório o poder da mídia de influenciar crenças e comportamentos, já demonstrado em inúmeros estudos. Sendo assim, em casos de grande repercussão na imprensa, até mesmo o processo penal pode vir a sofrer influência.
Segundo o relatório mais recente do Projeto Global de Monitoramento da Mídia, de 2010:
Quase metade (48%) de todas as matérias reforça estereótipos de gênero, enquanto 8% das matérias questionam estereótipos de gênero. As mulheres são identificadas nos noticiários por seus relacionamentos familiares (esposa, mãe, filha), cinco vezes mais que os homens.
Matérias apresentadas por mulheres têm consideravelmente mais foco em temas femininos do que as matérias apresentadas por homens, e questionam os estereótipos de gênero quase duas vezes mais do que matérias de repórteres homens. (apud BIANCHINI, 2014, p. 89)
Nos casos de violência contra a mulher, a imprensa muitas vezes aborda o assunto de maneira sensacionalista, expondo imagens indevidas, reforçando estereótipos, procurando “justificativas” para o crime e contribuindo para a culpabilização da vítima. Não raras são as vezes em que os crimes cometidos por parceiros e ex-parceiros são apresentados pela mídia como “crimes de amor”, praticados durante “ataques de ciúme”, “ataques de loucura” ou em momentos de “surto” do agressor. Essa visão contribui para a naturalização da desigualdade entre os gêneros, principal causa da violência contra a mulher. A legitimação do comportamento do agressor faz com que este sinta que tem, de fato, o poder de possuir, controlar e disciplinar a mulher com a qual se relaciona.
Um dos casos mais emblemáticos dessa cobertura sensacionalista da imprensa ocorreu no Brasil em 2008, durante o sequestro que teve como desfecho a morte da adolescente Eloá Cristina Pimentel, de 15 anos. Eloá foi mantida em cárcere privado pelo ex-namorado, Lindemberg Alves, de 22 anos, durante cinco dias. As 100 horas em que a adolescente ficou presa foram acompanhadas de perto pela mídia e transmitidas, ao vivo, por diversos canais de TV aberta. O caso terminou com a invasão da polícia ao apartamento onde Eloá e uma amiga eram mantidas reféns, sob constante ameaça de violência e sob a mira de uma arma. Durante a ação, Lindemberg atirou em Eloá e Nayara, ferindo a ex-namorada na cabeça e no púbis e a outra adolescente no rosto. Eloá não resistiu aos ferimentos e morreu no dia seguinte.
Em 2015, esse caso deu origem ao documentário “Quem matou Eloá?”, de Lívia Perez. O curta-documentário mostra como se deu a cobertura dos fatos e discute a naturalização da violência contra a mulher na mídia televisiva. Fica evidenciado ao longo do filme como a imprensa atuou de forma abusiva durante o caso, buscando sempre o “furo jornalístico” e não demonstrando qualquer preocupação ou cuidado com as vítimas do crime que estava ocorrendo. Além disso, o machismo ficou marcado pela valorização do homem que estava cometendo o crime, sempre tratado como “um menino trabalhador”, “um jovem apaixonado”. A romantização da violência, vista como um “crime de amor” também foi marcante na cobertura do caso. Diversos programas de TV entrevistaram o sequestrador ao vivo, com destaque para o programa “A tarde é sua”, da RedeTV, que na época era apresentado pela jornalista Sônia Abrão. Durante a entrevista com Lindemberg, na qual muitas vezes se referiu a ele como “querido” ou “filho”, a apresentadora afirmou categoricamente: “a gente quer saber se está tudo bem com você, a nossa preocupação é com você”. Em seguida, a jornalista também falou com Eloá e perguntou à adolescente se “estava tudo bem”. Após a entrevista, um advogado que participava do programa como convidado afirmou que estava otimista e que esperava que o caso terminasse com o casamento entre Lindemberg e a “namorada apaixonada” dele.
Segundo a diretora do documentário “Quem matou Eloá?”, o que a motivou a realizar o projeto foi o fato de que, em nenhum momento da cobertura do caso, foi usada a expressão “violência contra a mulher”. Para Cynthia Vianna:
A atuação dos meios de comunicação neste caso foi uma subversão de todos os valores que devem reger a comunicação social, especialmente a dignidade da pessoa humana e a não-discriminação. Programas de televisão não respeitaram sequer a situação delicada das vítimas e interferiram, ao vivo, conversando com alguém que estava cometendo um crime. [...]
Com essa postura, os meios de comunicação interferiram nas negociações, estimularam uma inversão de valores que estimula o público a se identificar e defender alguém que está cometendo um crime, e agiram de forma escandalosa, violando o Código de Ética dos Jornalistas. (VIANNA, 2010)
Embora tenham ocorrido evoluções desde então, a cobertura de casos de violência contra a mulher e de feminicídio pela mídia ainda apresenta muitos problemas. Em um caso recente de estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro, em 2016, a imprensa insistia em noticiar o fato como um “suposto crime”, mesmo depois que os acusados já haviam postado imagens da violência na internet. Além disso, o testemunho da vítima, assim como sua conduta, várias vezes foram colocados sob suspeita, mais uma vez buscando justificativas para a ocorrência do crime e contribuindo para a ideia equivocada de que a culpa é da vítima.
Em casos de violência contra a mulher e, principalmente, nos casos de feminicídio, a mídia deveria informar mais sobre a real magnitude da violência de gênero, tanto no Brasil como no mundo; divulgar e avaliar os serviços disponíveis para apoio às vítimas e canais de denúncia; contextualizar o problema, buscando apontar causas e soluções; além de evitar o uso de títulos e imagens indevidas, que culpabilizam a vítima e trazem informações desnecessárias e revitimizantes.
Depois de mais de vinte anos de esforços da comunidade internacional e de cerca de uma década da promulgação da primeira lei de combate à violência contra a mulher no Brasil, os resultados ainda não são claros. Por um lado, os esforços, a dedicação e o compromisso do governo e da sociedade têm despertado atenção para o problema, gerando reações positivas no enfrentamento da violência de gênero. No entanto, a questão ainda não recebe o tratamento adequado, os recursos são insuficientes e as leis nem sempre são cumpridas.
Assim, permanecem algumas questões: a edição de leis especiais é suficiente para coibir a violência contra a mulher? Após a edição de tais leis, como podemos continuar progredindo no enfrentamento desse crime? Como podemos tornar a questão uma das prioridades de política pública? E como podemos garantir que as ações de iniciativa pública e privada levem a uma redução real dessa violência?
Primeiramente, é necessário abordar o problema de maneira global, em todos os seus aspectos. É preciso dar mais visibilidade à questão da violência de gênero, de maneira a colocá-la entre o rol de problemas que afetam toda a sociedade, demonstrando que a violência contra as mulheres é intolerável. Alguns esforços têm sido feitos nesse sentido, como as já mencionadas convenções internacionais e as leis especiais sobre o tema. Contudo, apesar da importância dessas ações, algumas medidas ainda precisam ser adotadas.
Estudiosos defendem que as políticas de repressão à violência contra a mulher devem ser incorporadas às políticas de desenvolvimento, de direitos humanos e culturais do país. De fato, o combate à violência de gênero deve fazer parte da política de desenvolvimento do país, uma vez que, como já mencionado, a violência doméstica e familiar contra a mulher tem consequências sociais, econômicas e políticas para a sociedade como um todo. Da mesma forma, sendo o problema reconhecido como uma ofensa aos direitos humanos das mulheres, deve-se investir em políticas que possibilitem às mulheres o pleno exercício de seus direitos como seres humanos e como cidadãs. Não menos importante, a inserção do tema entre as políticas culturais do país contribuiria para promover o questionamento de estruturas familiares hierárquicas e autoritárias e de instituições discriminatórias, resquícios do sistema patriarcal.
Fica claro que a edição de leis penais, por si só, não é suficiente para resolver o problema da violência de gênero, sobretudo quando as políticas previstas nas leis não são implementadas. Tal situação se verifica em muitos aspectos da Lei Maria da Penha. A norma prevê, dentre outras iniciativas, a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar, centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e seus dependentes em situação de violência doméstica e familiar, casas-abrigos, delegacias, núcleos de Defensoria Pública, além de centros de educação e reabilitação para os agressores. Entretanto, vimos que são poucos os juizados especializados existentes, os centros de atendimento multidisciplinar são raros, assim como as iniciativas de reabilitação de agressores no país. Além disso, falta capacitação para os agentes envolvidos no atendimento e na condução dos casos de violência contra a mulher. Considerando que se trata de uma situação traumática e, muitas vezes, vexatória, a mulher vítima de violência precisa ser acolhida por profissionais capacitados e receptivos, a fim de que se sinta apoiada e segura em suas decisões.
A não criação de mecanismos institucionais necessários, a falta de capacitação das forças policiais e dos operadores da justiça, a atuação equivocada da imprensa nos casos de violência contra a mulher, combinadas com a baixa dotação orçamentária para enfrentamento do problema e com as barreiras de acesso à justiça, fazem com que a mulher sofra reiterada vitimização e, muitas vezes, desconheça seus direitos e os dispositivos legais existentes para sua proteção. Outras questões já relatadas, como a dependência financeira e emocional em relação ao agressor, também impedem o rompimento do ciclo da violência.
Portanto, enfrentar a violência contra a mulher não depende apenas de esforços legais. Além das leis, são necessárias políticas de longo prazo que considerem a compreensão da origem do problema, dos atores envolvidos e das necessidades das mulheres. As soluções devem partir de perspectivas mais abrangentes, voltadas, sobretudo, à diminuição das desigualdades e da exclusão e à formação de uma consciência e autocrítica que favoreçam o empoderamento das mulheres nas estruturas e nas relações sociais.
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Graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pós-graduada em Direito Constitucional pela Faculdade Internacional Signorelli. Servidora pública no Ministério Público de Minas Gerais
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RESENDE, Evie Saramella de. A (des)proteção da mulher e a legislação penal brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 fev 2022, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58092/a-des-proteo-da-mulher-e-a-legislao-penal-brasileira. Acesso em: 22 nov 2024.
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