Resumo: O trabalho que se apresenta pretende realizar uma breve análise a respeito dos aspectos jurídicos relativos à aplicabilidade da responsabilização penal às pessoas jurídicas em decorrência da prática delituosa. Para tanto, serão apresentados ensinamentos doutrinários acerca da responsabilização penal clássica. Em sequência, serão explanadas as principais teorias sobre a natureza jurídica do ente coletivo. Nessa senda, discutir-se-á acerca da capacidade de ação e da culpabilidade dessas entidades. Também serão apresentadas as teorias sobre a responsabilização penal da pessoa jurídica. Desse modo, serão explicitadas as razões jurídicas pelas quais a responsabilização penal da pessoa jurídica vem sendo admitida no Brasil, enfatizando-se o posicionamento da jurisprudência pátria sobre a temática.
Palavras-chave: Direito Penal Econômico. Criminalidade corporativa. Responsabilidade Penal das Pessoas Jurídicas.
Sumário: 1. Introdução 2. Breves Anotações sobre as Responsabilidades Individual e Coletiva 3. Teorias sobre a Natureza Jurídica do Ente Coletivo 3.1. Teoria da ficção 3.2. Teoria da realidade 4. Responsabilidade Penal, Capacidade de Ação e Culpabilidade 5. Insuficiência das Responsabilidades Civil e Administrativa 6. Teorias sobre a Responsabilização Penal da Pessoa Jurídica
1. Introdução
O assunto que será apresentado neste trabalho reflete uma realidade que se mostra hodiernamente. A pessoa jurídica consubstancia-se uma entidade composta por pessoas físicas e por bens, passível de ser sujeito de direitos.
Nessa senda, a questão que será analisada ao longo deste trabalho circunda a discussão acerca da capacidade das pessoas jurídicas para agir no campo delitivo e para responder pelo crime decorrente de sua atividade. Assim, o presente trabalho objetiva desmistificar a possibilidade do ente coletivo responder penalmente por crimes cometidos no ambiente corporativo, mormente crimes ambientais e econômicos.
Nos dias atuais, vê-se, não raramente, o crescimento quase incontido da proliferação de crimes econômicos e ambientais, em sua grande maioria, com a participação cada vez mais incisiva das grandes empresas, emergindo a necessidade da responsabilização da pessoa jurídica, visto que a imputação de um fato delituoso ao indivíduo responsável pela empresa e a responsabilidade civil ou administrativa do ente coletivo não são mais eficientes para conter e controlar as suas atividades, e, em consequência, os crimes por ventura por elas cometidos.
Nesse sentido, será questionado se um sistema penal voltado para a punição individual, como é o vigente no Brasil atualmente, consegue se amoldar à realidade que se mostra diante dos olhos da sociedade hodierna no que concerne aos crimes cometidos pela pessoa jurídica em sua atividade.
2. Breves Anotações sobre as Responsabilidades Individual e Coletiva
Antes de se focar nas discussões acerca da responsabilização penal da pessoa jurídica, faz-se necessário tecer alguns comentários concernentes ao campo das responsabilizações individuais e coletivas conhecidas ao longo da história da humanidade para se entender os fundamentos da responsabilidade penal coletiva.
Durante toda a evolução das civilizações, diversas concepções de caráter individualista ou coletivista têm surgido. O entendimento individualista da responsabilidade penal que existe atualmente surge no século XVIII e é fruto da Revolução Francesa com seus ideais iluministas. Nem sempre foi assim.
Cumpre registrar que não era raro algumas civilizações dos períodos Antigo e Medieval apresentarem sanções coletivas aplicadas à família, às tribos, às vilas e às cidades. Exemplo disso encontra-se no Código de Hammurabi, onde existia a possibilidade da pena passar da pessoa do condenado e da cidade ser responsável por alguns crimes. Além disso, pode ser citada como exemplo da responsabilidade coletiva a responsabilidade familiar tradicional existente no Japão, principalmente pelos crimes de traição.
Podem ser percebidos alguns traços do que hoje se conhece por pessoa jurídica já na Antiguidade. No Direito Romano não existia a figura da pessoa jurídica da maneira como é entendida atualmente, no entanto, existiam as corporações, conhecidas como universitas, que possuíam direitos e obrigações diferentes dos de seus membros. Aqui era reconhecida a capacidade delitiva das corporações e, se restasse provada a sua irresponsabilidade, cabia a seus membros a responsabilidade pelo delito das corporações em alguns casos, como explica Bitencourt:[1]
[...] segundo Ulpiano, podia ser exercida a actio de dolus malus (a acusação) contra o município, que era a corporação mais importante. Quando o “coletor de impostos” fizesse cobranças indevidas, por exemplo, enganando os contribuintes e enriquecendo indevidamente a cidade, podia ser exercida a actio de dolus malus contra o município. Comprovada a (ir)responsabilidade dos “coletores”, os habitantes da cidade deviam indenizar os contribuintes lesados (Digesto, 4,3,15,1). A partir desse entendimento, os romanistas passaram a sustentar a existência da capacidade delitiva das corporações no Direito Romano.
Portanto, percebe-se que nesse período já existe diferença entre as responsabilidades individual e coletiva.
Já no Período Medieval, a pessoa jurídica ainda não era conhecida, contudo, as corporações continuaram a existir e passaram a ter responsabilidade pelos delitos que cometiam contra a ordem social, passaram, então, a ser vistas como “a soma e a unidade de membros de direito [...] que podiam delinquir” [2]. Havia ainda a imputação individual, já que o membro da corporação podia também responder individualmente. Diante deste quadro, a responsabilidade da universitas (corporação) do período medieval é explicada por Bitencourt[3] da seguinte maneira:
Era indispensável, para configurar um crime conjunto da corporação, a existência de uma ação corporativa, decorrente de uma decisão coletiva dos membros da corporação. A ação realizada com base nas decisões tomadas pela maioria era equiparada à ação decorrente de decisão da totalidade do conjunto. Fora dessas hipóteses, a responsabilidade pela ação era atribuída ao membro da corporação individualmente responsável, segundo os princípios da imputação individual.
Mas foi no Direito Canônico que surgiu a figura da pessoa jurídica com o nascimento da igreja, pois, para essa instituição, os direitos que ela possuía pertencia a Deus, que era o titular dos direitos eclesiásticos, representado pelo chefe da comunidade eclesiástica. Aqui surge o conceito de pessoa jurídica com capacidade jurídica. É o que afirma Amorim[4] ao ensinar que “[...] foi no Direito canônico que ocorreu a construção da teoria da personalidade jurídica, com o advento da Igreja”.
Corroborando esse entendimento está o pensamento de Bitencout[5]:
Segundo Gierke e Binder, pode-se afirmar que os canonistas foram os pais espirituais da moderna concepção de corporação [...]. Na verdade, a partir daqui a pessoa jurídica passa a ser considerada uma pessoa ficta, cujo entendimento chega até nossos dias. Constata-se do exposto grande semelhança entre a teoria elaborada pelos canonistas e a teoria da ficção do século XIX, que recebeu o conhecido polimento de Savigny.
Portanto, vislumbra-se que foi na Idade Média que a responsabilidade coletiva foi reconhecida na forma da figura da pessoa jurídica, sem prejuízo da existência da responsabilidade individual.
3. Teorias sobre a Natureza Jurídica do Ente Coletivo
Para que possa ser discutido o campo da responsabilidade penal da pessoa jurídica, faz-se mister uma análise das teorias que fundamentam o surgimento da pessoa jurídica. Existem diversas teorias sobre o tema, no entanto, duas são clássicas dentro do universo jurídico, quais sejam: a da ficção legal e a da realidade.
3.1. Teoria da ficção legal
A teoria em foco tem como principal expoente Friederich Karl Von Savigny e enxerga as pessoas jurídicas como entidades coletivas criadas por lei com características de artificialidade e com a finalidade de exercer, dentre outras, funções sociais. A pessoa jurídica é, portanto, mera ficção jurídica. Essa teoria nasceu no Direito Germânico como fundamento da personalidade jurídica. Ao se referir ao pensamento de Savigny, Souza[6] reza que:
A concepção geral da ficição estabelecida por Savigny considera que cada direito supõe essencialmente um ser ao qual ele pertence. Segundo ele, somente o homem, por sua natureza, possui aptidão de ser sujeito de direito. Dessa forma, ao lado do homem, único sujeito de direito, o legislador aceita a criação de uma outra pessoa jurídica, constituída em um grupamento de pessoas e bens.
Assim, a teoria da ficção defende a existência de uma pessoa fictícia representante de um grupo de indivíduos que deve ser vista como uma pessoa real possuidora de direitos, contudo, não possui capacidade de ação, visto que sua atividade é desenvolvida por pessoas físicas. Daí decorre uma das mais ferrenhas críticas à teoria da ficção, pois, se para essa doutrina, o homem é o verdadeiro sujeito de direitos e só a ele podem ser conferidos esses direitos, como pode a pessoa jurídica ser sujeito de direitos? Tal crítica já se encontra superada, visto que já não existem mais controvérsias no que concerne à capacidade de ser a pessoa jurídica sujeito de direitos.
3.2. Teoria da realidade
A teoria da realidade apresenta como seu maior defensor Otto Gierke e entende que as pessoas jurídicas têm existência real e essa existência é diferente das dos indivíduos que a integram. Em conformidade com o pensamento manifestado pela teoria em tela, que se opõe ao da teoria da ficção, Smanio[7] ensina que:
“[...] a pessoa jurídica é um autêntico organismo, realmente existente, ainda que de natureza distinta do organismo humano. A vontade da pessoa jurídica é distinta da de seus membros, que pode não coincidir com a vontade da pessoa jurídica. Assim, a pessoa jurídica deve responder criminalmente pelos seus atos, uma vez que é o verdadeiro sujeito do delito”.
Dessa maneira, vislumbra-se que a teoria da realidade afirma e demonstra a real existência do ente coletivo, acrescentando ainda que a pessoa jurídica possui vontade própria diferente da vontade da pessoa física que a integra.
4. Responsabilidade Penal, Capacidade de Ação e Culpabilidade
Para que exista a responsabilidade penal é necessário que existam o fato delituoso e a culpabilidade, esta vista sob a ótica da teoria normativa pura, através da qual a culpabilidade se apresenta como sendo um juízo de reprovação ao agente do fato punível, ou seja, um juízo de censura pela realização de um fato típico e antijurídico.
São três os elementos constitutivos da culpabilidade no sentido referido, quais sejam: a imputabilidade, a potencial consciência de ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Estes elementos precisam estar presentes para que se possa responder penalmente por um crime. A imputabilidade caracteriza-se pela capacidade de ser culpável e para que se possa ser culpável é imprescindível a capacidade de ação. Dessa forma, percebe-se que a culpabilidade está intimamente ligada à capacidade de agir, visto que quem não tem esta capacidade não pode ser culpável. Este é um dos principais argumentos utilizados por aqueles que não admitem a responsabilização penal da pessoa jurídica, pois, se, para eles, o ente coletivo não tem capacidade de ação, não pode ser, portanto, culpável.
Quando se refere à capacidade de ação no Direito Penal, percebe-se que todos os modelos clássicos de ação existentes apresentam o caráter de ação humana. Citando Santos[8], podem ser apresentados os seguintes exemplos: a) o modelo causal de ação humana afirma a ação como “causação de modificação no mundo exterior por um comportamento humano voluntário”; b) o modelo final de ação diz que “Ação humana é exercício de atividade final, não meramente causal. A finalidade ou o sentido final da ação se baseia no poder humano de prever, em determinados limites, por força de seu saber causal, os possíveis efeitos de sua atividade, propor-se diferentes fins e dirigir, planificadamente, sua atividade para realização destes fins.”[9]; c) ainda segundo Santos[10], no modelo social de ação, esta é vista como “comportamento humano socialmente relevante”; d) o modelo negativo de ação, por sua vez, afirma ação como “não evitação do comportamento proibido”[11]; e) já o modelo pessoal de ação define ação como “manifestação da personalidade humana”[12].
Assim, percebe-se que no Direito penal Clássico, a capacidade de ação está diretamente voltada para o ser humano, sendo assim, só ele pode ser culpável e só ele pode ser responsabilizado criminalmente. Corroboram esse entendimento os princípios da personalidade das penas e da individualização das penas, entre outros.
É nesse terreno que se encontra a incompatibilidade da teoria da realidade com os clássicos dogmas do Direito Penal, visto que aquela acredita na capacidade de ação da pessoa jurídica enquanto estes afirmam a existência da capacidade delitiva exclusivamente humana.
5. Insuficiência das Responsabilidades Civil e Administrativa
É notório o importante papel que vem sendo exercido pelas pessoas jurídicas na sociedade. Também é certo o crescimento dos crimes econômicos e ambientais decorrentes das pessoas jurídicas. Sabe-se que a responsabilização civil e a administrativa desses entes estão previstas no ordenamento jurídico pátrio. No entanto, a questão que aqui se propõe e que é de grande importância para o tema proposto neste artigo é saber se as responsabilidades civil e administrativa são suficientes para regular as atividades da pessoa jurídica.
A responsabilidade civil está prevista na legislação civil na forma de reparação de danos, posto que o Código Civil prevê nos artigos 186, 187 e 927 que “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo”. Diz ainda o mesmo instituto no parágrafo único do artigo 927 que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. Diante disso, percebe-se que a responsabilização civil resume-se à indenização pela lesão a um direito, constituindo-se uma reparação decorrente de uma violação a uma norma jurídica.
Com relação à responsabilidade administrativa, sabe-se que ela decorre do poder de polícia que tem o Estado para controlar os atos de seus subordinados, é uma responsabilidade que provém da supremacia do interesse público, recaindo o poder de polícia na sua forma repressiva sobre bens, atividades ou direitos. Ocorre que quando da aplicação das sanções administrativas a Administração precisa fundamentar seus atos, e, quando se trata de atos discricionários, essa discricionariedade está limitada apenas pelo interesse público.
Discorrendo sobre o tema, Sanctis[13] diz que “a responsabilidade civil ou administrativa não impede a imputação penal, uma vez que essas visam reparar o dano ou atuar de forma preventiva, com o fito de se reduzir os prejuízos à coletividade, enquanto que o direito penal possui o condão de punir os atos que causam perturbação à ordem pública”.
Shecaira[14] acrescenta ainda que “há necessidade de uma pena de cunho processual criminal e não de uma medida semelhante no plano administrativo ou civil, pois a carga estigmatizante e mais gravosa da sanção penal, sob o aspecto ético, reflete-se na própria imagem da empresa”.
Dessa forma, percebe-se que a responsabilidade civil e a administrativa da pessoa jurídica não conseguem conter as ações criminosas que acontecem todos os dias tendo como sujeito ativo entes coletivos, sejam grandes empresas, organizações criminosas, dentre tantas outras. A criminalidade moderna cresce alarmadamente e indenização e/ou sanções administrativas não estão conseguindo contê-la.
6. Teorias sobre a Responsabilização Penal da Pessoa Jurídica.
Sobre o tema, destacam-se três doutrinas. A que não admite a responsabilização penal da pessoa jurídica, aquela que defende a aplicação de medidas especiais para responsabilizá-la e aquela que admite a responsabilização penal.
A corrente que não admite que a pessoa jurídica seja responsabilizada penalmente, calcada no princípio da Societas delinquere non potest, baseia-se nos ensinamentos do Direito Penal Clássico e na Teoria da Ficção de Savigny, portanto, afirma que sendo a pessoa jurídica criação fictícia dos homens, não pode responder criminalmente, pois não apresenta capacidade de ação e nem culpabilidade. É o entendimento calcado no princípio da personalidade das penas, devendo ser punido apenas aquele que é responsável pela empresa, ou seja, a pessoa física, pois dela advém a vontade ou a conduta delinquente. Referindo-se a esse pensamento Bitencourt[15] faz a seguinte indagação: “Como sustentar que a pessoa jurídica, um ente abstrato, uma ficção normativa, destituída de sentidos e impulsos, possa ter vontade e consciência? Como poderia uma abstração jurídica ter ‘representação’ ou ‘antecipação mental’ das consequências de sua ‘ação’?”.
Já a responsabilização penal da pessoa jurídica por meio de medidas especiais é um instrumento utilizado entre a responsabilização civil e a penal, visto como um caminho para se dirimir a periculosidade encontrada nas atividades desenvolvidas pelas pessoas jurídicas. É o denominado Direito de Intervenção, resumido assim: “[...] seria um meio-termo entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, que não aplique as pesadas sanções de Direito Penal, especialmente a pena privativa de liberdade, mas que seja eficaz e possa ter, ao mesmo tempo, garantias menores que as do Direito Penal tradicional, para combater a criminalidade coletiva”[16].
Smanio[17] acrescenta ainda que “O Direito de Intervenção para as pessoas jurídicas é visto no direito português como Direito de mera ordenação social, situado entre o Direito Penal e o Civil, em que são passíveis as aplicações de sanções como a multa, por exemplo, mas sem implicar sanção penal”.
Segundo Luiz Flávio Gomes[18], as sanções aplicáveis à pessoa jurídica fazem parte de um direito judicial sancionador, visto que não podem ser consideradas sanções penais frente à natureza sui generis da pessoa jurídica. Explicitando o seu entendimento está o seguinte trecho de um artigo de sua autoria:
Não se trata, destarte, nem de Direito Penal, nem de Direito Administrativo. Não é tema do Direito Penal do ius libertatis porque, dentre as sanções cominadas para a pessoa jurídica, obviamente, não consta a privação da liberdade. Não é assunto do Direito Administrativo porque não é a autoridade administrativa a competente para impor tais sanções. Cabe ao juiz fazer isso, no seio de um processo penal, com observância de todas as garantias constitucionais e legais pertinentes. Conclusão: é matéria do Direito judicial sancionador, que se caracteriza justamente pelo fato de se exigir a intervenção judicial para a imposição da sanção prevista em lei.
A terceira corrente citada entende que é possível a responsabilização penal da pessoa jurídica, é a teoria baseada no princípio da Societas delinquere potest. No entanto, ressalta que os conceitos do Direito Penal Clássico não são aplicáveis a essa responsabilização, visto que as noções de conduta e de culpabilidade consideram a ação humana, no sentido de ser o fato delituoso imputado apenas aos seres humanos. É uma visão individualista do mundo, que surgiu no Iluminismo e foi adotada pelo Direito Penal da época. Contudo, esse não é o entendimento adotado por esta teoria, que percebe claramente o alargamento da criminalidade decorrente das atividades da pessoa jurídica, não sendo mais a responsabilização civil e administrativa suficientes para conter e punir a criminalidade, principalmente a econômica e a ambiental, decorrente dessas atividades. Segundo esta doutrina os dogmas clássicos do Direito Penal precisam passar por um processo de transição para se adaptar a essa realidade. Há, portanto, a necessidade evidente e urgente da existência de um sistema penal que possa responsabilizar aqueles entes que ofendem os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal.
7. Responsabilização Criminal da Pessoa Jurídica
O argumento mais utilizado pela corrente que defende a irresponsabilidade penal da pessoa jurídica é aquele que traz em sua essência a incompatibilidade dos conceitos clássicos do Direito Penal com essa responsabilização, ou seja, para essa doutrina, o ente coletivo não pode ser responsabilizado criminalmente porque não possui capacidade de agir, já que a ação é humana, e, por isso, a pessoa jurídica não pode ser culpável. É um entendimento individualista do mundo que não corresponde mais à realidade vivenciada nos dias de hoje.
As entidades coletivas dotadas de personalidade jurídica existem, é indiscutível. São, ainda, capazes de possuírem direitos. É certo que são compostas, dirigidas, supervisionadas e administradas por pessoas físicas, mas sua atividade é fruto de uma decisão ou ação em prol dos objetivos da pessoa jurídica. O que se quer dizer é que não há mais como se negar a capacidade de agir de um ente coletivo, através de pessoas físicas, é claro, mas que vai determinar o caminho a ser tomado pela pessoa jurídica, inclusive quando se tratar de atividade ou conduta delitiva. Os crimes econômicos, os crimes ambientais, as organizações criminosas e a lavagem de dinheiro só confirmam o entendimento de que a pessoa jurídica tem capacidade para delinquir e, consequentemente, para ser culpável.
Sabe-se que admitir a capacidade de agir num sistema penal que visualiza apenas o indivíduo como réu no processo é ir ao encontro de todo um pensamento construído em bases sólidas, no entanto, traduz-se numa necessidade dos tempos modernos. É preciso a existência de um sistema que possa conter as ações criminosas decorrentes dessas entidades. É necessário que haja uma nova visão do Direito Penal Clássico no que se refere à admissibilidade da capacidade delitiva da pessoa jurídica.
Explicitando o pensamento de que há necessidade de criação de um sistema capaz de solucionar a criminalidade da pessoa jurídica está Smanio[19]:
Um dos principais aspectos da mudança está exatamente no reconhecimento da capacidade penal da pessoa jurídica. Todas as correntes doutrinárias reconhecem a importância da pessoa jurídica na criminalidade dos dias atuais. Desde a efetuação do crime até a sua ocultação, como a lavagem de dinheiro proveniente do tráfico ilícito de entorpecentes, o que constitui, por si só, crime. As diferenças ocorrem apenas quanto à forma de atuação do Direito em face desta realidade.
Corroborando este entendimento encontra-se o pensamento de Santos Barbero[20], que reforça a inevitabilidade de mudança na visão do Direito Penal clássico para que seja admitida a responsabilização criminal do ente coletivo: “Há que ficar claro que não repelimos a idéia de que se possa usar do Direito Penal para sancionar atuações das pessoas jurídicas. [...] os princípios que servem de fundamento do Direito Penal atual dificultam que ele possa abarcar hoje, em países que não sigam o sistema do Common Law, os entes coletivos. Nada haverá a objetar se estes princípios mudarem.”
Nessa linha de raciocínio, entende-se que a capacidade da pessoa jurídica de agir deve ser reconhecida. Já é o que acontece quando se fala nas suas responsabilidades civis e administrativas, não existindo mais dúvidas quanto a essa capacidade no campo penal. Segundo Smanio[21], “a capacidade de agir está voltada a uma vontade própria da pessoa jurídica”, a qual é denominada de vontade institucional e é explicada de forma clara por Fausto de Sanctis[22]:
[...] as pessoas jurídicas possuem vontade própria e se exprimem pelos seus órgãos. Essa vontade independe da vontade de seus membros e constitui uma decorrência da atividade orgânica da empresa. Conclui-se, portanto, que diante dessa vontade própria é possível o cometimento de infrações, de forma consciente, visando à satisfação de seus interesses.
Smanio[23] explica a conduta da pessoa jurídica, considerando que tal conduta apresenta três aspectos, quais sejam, o normativo, o organizacional e o interesse econômico:
A decisão institucional é um produto normativo estipulado no estatuto social, de acordo com a legislação vigente em cada país, em que há divisão de funções internas, de administração, e externas, de representação, havendo fixação de atribuições e responsabilidades [...]. A organização está diretamente relacionada com a ordem normativa, entretanto, manifesta-se autonomamente, posto que engloba a coletividade humana que integra a empresa[...]. O interesse econômico está na gênese das empresas, ou seja, na própria razão da sua formação, constituindo ao mesmo tempo seu objetivo.
Aqui se evidencia a Teoria da Vantagem Econômica, que defende que a teoria do risco da empresa legitima a responsabilidade da pessoa jurídica, visto que o interesse econômico da empresa é o verdadeiro objetivo da sua ação, sendo, ainda, esse interesse, diverso dos interesses daqueles que a integram, ou seja, a empresa possui vontade institucional diferente das pessoas físicas que a compõem. Esse pensamento tem se consolidado na comunidade Européia e demonstra que a capacidade de agir da empresa existe e é diversa da de seus membros.
Nesse sentido, faz-se necessário registrar a existência do sistema de dupla imputação, posto que a responsabilidade da pessoa jurídica no âmbito do crime não prejudica a responsabilidade penal de seus membros, na medida de suas culpabilidades, quando estes concorrem para o cometimento do crime. Ou seja, a imputação penal individual existe mesmo existindo a imputação coletiva, visto que a vontade da pessoa física é distinta da pessoa jurídica. Isso traz à baila a idéia de que a pessoa física não pode mais agir em nome da pessoa jurídica se valendo da incapacidade penal desta, além disso, mostra-se de grande importância no que concerne à figura do “laranja” tão conhecido no universo da criminalidade econômica moderna.
É nesse campo da responsabilidade da pessoa jurídica que é preciso ressaltar a responsabilidade por ricochete existente no direito francês. Diferentemente da responsabilidade objetiva da pessoa jurídica que existe no direito anglo-saxão, a responsabilidade por ricochete significa o empréstimo da culpabilidade existente na responsabilidade penal individual para a responsabilização do ente coletivo. É responsabilidade por ricochete porque, em primeiro lugar, deve ser responsável pelo crime a pessoa física, ou seja, a responsabilidade penal da pessoa jurídica depende da prática de um crime por uma pessoa física. Luiz Régis do Prado ensina como se dá a responsabilidade em análise:
[...] a responsabilidade penal da pessoa jurídica é explicada pela doutrina francesa através do mecanismo “emprunt de criminalite”, feito à pessoa física pela pessoa moral, derivando daí a denominação de responsabilidade subsequente, por ricochete ou de empréstimo que tem como suporte uma ação humana.
No Brasil, a responsabilidade por ricochete, denominada dupla imputação, embora tenha sua importância por segregar a responsabilidade da pessoa jurídica da responsabilidade da pessoa física, não prosperou, considerando que o Supremo Tribunal Federal rechaçou a ideia de que a responsabilização da pessoa jurídica depende da responsabilidade da pessoa física. Para a Corte Suprema, a responsabilidade da pessoa jurídica independe da responsabilidade da pessoa física, como firmado nos precedentes RE 628582 RS, RMS 39173 BA e RE 548181 PR.
Outro argumento muito utilizado pelos que não admitem a responsabilidade penal da pessoa jurídica é a impossibilidade de aplicação das sanções penais a essas entidades. Sabe-se que a pena existente no sistema penal individual é, em sua maioria, a privativa de liberdade. É notório que a pena privativa de liberdade é incompatível com a natureza jurídica do ente coletivo, ou seja, não há como aplicar a pena privativa de liberdade à pessoa jurídica. Há, portanto uma justificada resistência às penas tradicionais.
No entanto, cumpre afirmar que o sentido da sanção aplicável à pessoa jurídica é diverso daquele existente na sanção aplicável à pessoa física, pois aquela possui uma maior responsabilidade perante a sociedade, visto que os crimes por ela cometidos são, em sua maioria, crimes que violam bens jurídicos supra-individuais, o que faz surgir a necessidade de uma sanção que seja capaz de conter essa violação. As principais sanções recomendadas são a pena restritiva de direitos, a multa, a perda de bens, a prestação de serviços à comunidade, a divulgação de sentença, dentre muitas outras.
Cernichiaro[24] analisa as sanções aplicáveis à pessoa jurídica da seguinte forma:
É certo, há evidente incompatibilidade entre as pessoas jurídicas e as penas privativas de liberdade. Todavia aplicáveis as restritivas de direito; por força de lei, poderão ser definidas como penas principais. A interdição de funcionamento, a dissolução da entidade, além da perda de bens, mencionadas no art. 5.º, XLVI, “b”, da Constituição, superam a resistência com facilidade.
Referindo-se à eficácia das sanções, o mesmo autor[25] estabelece que:
As sanções devem ser eficazes. Não se pode prescindir da interdição de estabelecimento, da sede da associação ou da sociedade, suspensão de suas atividades e da dissolução compulsória. A multa, por si só, poderá ser ineficaz, ou mesmo estímulo para novos ilícitos porque o seu valor será repassado para o preço, restando ao usuário ou consumidor o ônus de pagá-la.
Diante dessa moldura, vislumbra-se que a disciplina da responsabilização penal da pessoa jurídica é uma necessidade urgente do ordenamento jurídico pátrio, pois os entes que ofendem os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal precisam ser responsabilizados. Em diversos países do mundo a responsabilização penal da pessoa jurídica vem sendo admitida, como é o caso dos Estados Unidos da América, da Inglaterra, da Espanha - onde se tem uma responsabilidade objetiva -, da França - onde a responsabilidade é subjetiva, calcada na culpabilidade -, do Japão, de Portugal, dentre tantos outros. Na América Latina, no entanto, a regra ainda é a irresponsabilidade da pessoa jurídica.
Nesse diapasão, é a possibilidade de responsabilização do ente coletivo que vem sendo recomendada por diversos documentos internacionais. A Organização das Nações Unidas, em 1979, no VI Congresso para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente, determinou o estabelecimento do princípio da responsabilidade penal das sociedades. Não foi diferente no Congresso de Bucarest, em 1929, no de Roma, 1953, no de Hamburgo, em 1984 e no XV Congresso Internacional de Direito Penal, realizado no Rio de Janeiro, em 1994. Em todos eles foi recomendada a admissibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica.
8. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica no Brasil
A responsabilidade penal da pessoa jurídica encontra-se, no direito pátrio, na Carta Magna do país, que traz expressamente em seu texto a responsabilização penal da pessoa jurídica pelos crimes cometidos contra a Ordem Econômica e Financeira e contra a Economia Popular, e pelos crimes praticados contra o Meio Ambiente, respectivamente, em seus artigos 173, § 5º, e 225, § 3º. O artigo 173, § 5º, reza que “A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-as às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”. Já o artigo 225, § 3º, preceitua que: “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
É certo que o legislador ordinário regulamentou apenas a responsabilização penal da pessoa jurídica pelos crimes cometidos contra o Meio Ambiente, no entanto, deixou bastante clara essa responsabilização. A lei nº 9.605/98, em nível infraconstitucional, disciplinou a responsabilidade penal da pessoa jurídica em relação aos crimes ambientais. Introduziu expressamente essa espécie de responsabilidade. O caput do artigo 3º do referido diploma legal prevê que “As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu colegiado, no interesse ou benefício de sua entidade”. O parágrafo único do mesmo artigo dispõe ainda que: “A responsabilidade da pessoa jurídica não exclui a das pessoas físicas, autoras, coatoras ou partícipes do mesmo fato”.
O STF possui farta jurisprudência a respeito da responsabilidade penal da pessoa jurídica na seara ambiental:
IV. A imputação penal às pessoas jurídicas encontra barreiras na suposta incapacidade de praticarem uma ação de relevância penal, de serem culpáveis e de sofrerem penalidades. V. Se a pessoa jurídica tem existência própria no ordenamento jurídico e pratica atos no meio social através da atuação de seus administradores, poderá vir a praticar condutas típicas e, portanto, ser passível de responsabilização penal. VI. A culpabilidade, no conceito moderno, é a responsabilidade social, e a culpabilidade da pessoa jurídica, neste contexto, limita-se à vontade do seu administrador ao agir em seu nome e proveito. VII. A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houver intervenção de uma pessoa física, que atua em nome e em benefício do ente moral. VIII. ‘De qualquer modo, a pessoa jurídica deve ser beneficiária direta ou indiretamente pela conduta praticada por decisão do seu representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado.’ IX. A atuação do colegiado em nome e proveito da pessoa jurídica é a própria vontade da empresa. A co-participação prevê que todos os envolvidos no evento delituoso serão responsabilizados na medida se sua culpabilidade. X. A Lei Ambiental previu para as pessoas jurídicas penas autônomas de multas, de prestação de serviços à comunidade, restritivas de direitos, liquidação forçada e desconsideração da pessoa jurídica, todas adaptadas à sua natureza jurídica. XI. Não há ofensa ao princípio constitucional de que ‘nenhuma pena passará da pessoa do condenado [...]’, pois é incontroversa a existência de duas pessoas distintas: uma física - que de qualquer forma contribui para a prática do delito - e uma jurídica, cada qual recebendo a punição de forma individualizada, decorrente de sua atividade lesiva. XII. A denúncia oferecida contra a pessoa jurídica de direito privado deve ser acolhida, diante de sua legitimidade para figurar no pólo passivo da relação processual-penal. XIII. Recurso provido, nos termos do voto do Relator” (BRASIL, STF, RESP. 564.960, Rel. Min. Gilson Dipp, v. u. j. 02.06.2005.)[26]
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA POR CRIME AMBIENTAL: DESNECESSIDADE DE DUPLA IMPUTAÇÃO CONCOMITANTE À PESSOA FÍSICA E À PESSOA JURÍDICA.1. Conforme orientação da 1ª Turma do STF, "O art. 225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação." (RE 548181, Relatora Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 6/8/2013, acórdão eletrônico DJe-213, divulg. 29/10/2014, public. 30/10/2014).2. Tem-se, assim, que é possível a responsabilização penal da pessoa jurídica por delitos ambientais independentemente da responsabilização concomitante da pessoa física que agia em seu nome. Precedentes desta Corte. 3. A personalidade fictícia atribuída à pessoa jurídica não pode servir de artifício para a prática de condutas espúrias por parte das pessoas naturais responsáveis pela sua condução. 4. Recurso ordinário a que se nega provimento.(RMS 39.173/BA, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 06/08/2015, DJe 13/08/2015)
EMENTA RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CONDICIONAMENTO DA AÇÃO PENAL À IDENTIFICAÇÃO E À PERSECUÇÃO CONCOMITANTE DA PESSOA FÍSICA QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. O art. 225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação. 2. As organizações corporativas complexas da atualidade se caracterizam pela descentralização e distribuição de atribuições e responsabilidades, sendo inerentes, a esta realidade, as dificuldades para imputar o fato ilícito a uma pessoa concreta. 3. Condicionar a aplicação do art. 225, §3º, da Carta Política a uma concreta imputação também a pessoa física implica indevida restrição da norma constitucional, expressa a intenção do constituinte originário não apenas de ampliar o alcance das sanções penais, mas também de evitar a impunidade pelos crimes ambientais frente às imensas dificuldades de individualização dos responsáveis internamente às corporações, além de reforçar a tutela do bem jurídico ambiental. 4. A identificação dos setores e agentes internos da empresa determinantes da produção do fato ilícito tem relevância e deve ser buscada no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou órgãos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou em benefício da entidade coletiva. Tal esclarecimento, relevante para fins de imputar determinado delito à pessoa jurídica, não se confunde, todavia, com subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas. Em não raras oportunidades, as responsabilidades internas pelo fato estarão diluídas ou parcializadas de tal modo que não permitirão a imputação de responsabilidade penal individual. 5. Recurso Extraordinário parcialmente conhecido e, na parte conhecida, provido. (RE 548181, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 06/08/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014)
Ademais, no Brasil, a tendência de responsabilização da pessoa jurídica pode ser verificada, ainda, por intermédio do advento das Leis nºs 9.613/1998 (Lei dos crimes de lavagem de dinheiro), alterada pela 12.683/2012; 12.846/2013 (Lei Anticorrupção); e 13.303/2016 (Estatuto das Estatais), as quais apontam para a aplicabilidade do instituto em análise.
Outrossim, tal tendência pode, ainda, ser constatada na recente jurisprudência do STF, notadamente por meio do julgamento da Ação Penal nº 470, no qual restou estabelecida a aplicabilidade de responsabilização penal dos compliance officers a partir da teoria do domínio do fato.
Assim, percebe-se que o entendimento da legislação vigente e da jurisprudência dominante atualmente no país está indo ao encontro da responsabilização penal da pessoa jurídica.
9. Considerações Finais
Diante das razões expendidas, depreende-se que a capacidade delituosa da pessoa jurídica é latente na contemporaneidade, visto que os crimes decorrentes de sua atividade, ou melhor, de sua ação institucional violam, em sua maioria, bens jurídicos supra-individuais, perturbando a ordem pública. Desta feita, com base na teoria da realidade, percebe-se que a pessoa jurídica possui capacidade de ação e, consequentemente, capacidade para ser culpável no campo penal, já que sua vontade é diversa da vontade de seus membros, a pessoa jurídica possui, pois, vontade e objetivos próprios.
Nesse sentido, responde penalmente pelos delitos cometidos, não prejudicando as suas responsabilidades civil e administrativa e, nem tampouco, a responsabilidade de seus membros, na medida de sua culpabilidade, quando estes concorrerem para o cometimento do crime.
Pode-se ainda afirmar, no âmbito da breve análise realizada neste trabalho, que o Direito Penal precisa se amoldar à nova realidade existente, a qual evidencia uma criminalidade não abarcada e, além disso, incompatível com seus dogmas clássicos. Assim, é necessária a existência de um sistema penal que possa corresponder e, mais que isso, que possa controlar as ações criminosas das pessoas jurídicas, pois o Direito Penal tem que atender aos reclames da sociedade, protegendo bens jurídicos de suma importância.
No Brasil, a legislação vigente caminha para o progresso desse sistema, posto que prevê a responsabilidade da pessoa jurídica na sua Carta magna e regulamenta expressamente essa responsabilidade na lei ambiental nº 9.605/98, onde elenca os requisitos necessários para essa responsabilização, afirma que a responsabilidade penal não é prejudicada pelas responsabilidades civil e administrativa. Acrescente-se a isso o fato de que as Leis nºs 9.613/1998 (Lei dos crimes de lavagem de dinheiro), alterada pela 12.683/2012; 12.846/2013 (Lei Anticorrupção); e 13.303/2016 (Estatuto das Estatais) indicam a possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica por meio dos programas de cumprimento e interidade.
10. Referências
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[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte especial. v. 2. Saraiva: São Paulo, 2003. p. 07
[2] Idem, Ibidem. p.8. Nota 01.
[3] Idem, Ibidem. p.8. Nota 01.
[4]AMORIM, Carpena. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. Disponível em: http://www.tj.rj.gov.br/adm_geral/editoriais/responsabilidade_penal_da_pessoa_juridica.htm. Acesso em: 16/09/2008
[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit. p. 9. Nota 01.
[6] SOUZA, Keity Mara Ferreira de. A (ir)responsabilidade penal da pessoa jurídica. Enfoques comparado, doutrinário e legal. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1716. Acesso em 10/09/08.
[7]SMANIO, Gianpaolo Poggio. A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5713. Acesso em: 10/09/2008.
[8] SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível. Freitas Bastos: Rio de Janeiro, 2000. p. 10-27.
[9] WELZEL. Apud SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. Cit. p. 14. Nota 08.
[10] SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. Cit . p. 10. Nota 08.
[11] Idem, Ibidem. p. 10.
[12] Idem, Ibidem. p. 10.
[13]Apud SAKAE, Lucia Reiko. A Responsabilidade Penal da pessoa jurídica. Disponível em: http://www4.mackenzie.com.br/fileadmin/Pos_Graduacao/Mestrado/Direito_Politico_e_Economico/Cadernos_Direito/Volume_4/04.pdf. Acesso em: 10/09/2008.
[14] Apud Idem, Ibidem.
[15]BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit. p. 13. Nota 01.
[16]HASSEMER, Winfried. Apud SMANIO, Gianpaolo Poggio. A responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. Disponível em: http://juridico.visaonet.com.br/artigos/juridica.doc. Acesso em : 22/11/2007.
[17] SMANIO, Gianpaolo Poggio. Op. Cit. Nota 07.
[18]GOMES, Luiz Flávio. Princípio da responsabilidade pessoal. Material da 1ª aula da Disciplina Culpabilidade e responsabilidade pessoal do agente, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Ciências Penais – UNISUL – IPAN – REDE LFG. p. 4.
[19] SMANIO, Gianpaolo Poggio. Op. Cit. Nota 07.
[20] Apud CERNICCHIARO, COSTA JR; Luiz Vicente, Paulo José da. Direito penal na constituição. Revista dos Tribunais: São Paulo, 1995. p. 164.
[21] SMANIO, Gianpaolo Poggio. Op. Cit. Nota 07.
[22] Apud SMANIO, Gianpaolo Poggio. Op. Cit. Nota 07.
[23] SMANIO, Gianpaolo Poggio. Op. Cit. Nota 07.
[24]CERNICHIARO, COSTA JR; Luiz Vicente, Paulo José da. Direito penal na constituição. Revista dos Tribunais: São Paulo, 1995. p. 158.
[25] Idem, Ibidem. p. 165.
[26]In: GOMES, Luiz Flávio. Responsabilidade “penal” da pessoa jurídica. Disponível em: http://www.blogdolfg.com.br/article.php?story=20070924110620139. Acesso em: 24/09/2005. Material da 1ª aula da Disciplina Tutela Penal dos Bens Jurídicos Supra-Individuais, ministrada no curso de Especialização Telepresencial e Virtual em ciências penais - UNISUL-IPAN-REDE LFG.
Advogada. Especialista em Direito Público. Especialista em Ciências Penais. Especialista em Investigação Forense e Perícia Criminal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMORIM, JULIANA BARRETO DE CARVALHO. Responsabilidade penal da pessoa jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 mar 2022, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58169/responsabilidade-penal-da-pessoa-jurdica. Acesso em: 26 nov 2024.
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